sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Manuela



Foi num domingo de maio que aconteceu um fenómeno muito estranho com uma cassete. Nesse domingo estava na casa da praia e fiz alterações num programa de totoloto que corria no velho Spectrum e ao qual tinha dado o nome de Caçador. A sonhar com um milagre que fizesse inverter a sorte, talvez pensando nas previsões da Verónica, uma vidente que tinha visitado recentemente juntamente com mais três amigos, inseri numa rotina do programa algumas frases místicas ligadas à Virgem Maria. Depois, gravei na cassete. Se aparecesse um prémio muito bom, surgiriam essas frases no monitor. 

A cassete suspensa
Duas ou três horas depois, comecei a arrumar as coisas para regressar a Lisboa. Re­cordo-me que andei com a cassete na mão enquanto estive a arrumar, no saco vermelho do costume, uns livros e outros objetos. Fechei a porta à chave e desci com a minha companheira as escadas que partiam do terraço e davam externamente acesso à rua.
Quando cheguei a Lis­boa, a cassete não estava no saco.
Por coincidência a minha companheira voltou à Ericeira nesse mesmo dia. A Vanda tinha-lhe telefonado a pedir se a acompanhava para tratar de um assunto relacionado com a mulher-a-dias. Era coisa rápida, disse-me. Então aproveitei para pedir-lhe que desse uma vista de olhos pela casa. O desaparecimento da cassete não me saía da cabeça. Talvez que estivesse à vista na casa.
Regressou por volta das onze e meia da noite. Nada. Não vira a cassete em lado algum. Então perdi a esperança. Provavelmente deixara-a cair no chão, entre a porta da rua e o carro.
No dia seguinte voltei à Ericeira, desta vez com um amigo. O Matias. Procurámos a cassete por todo o lado. Em vão. Tinha-se evaporado numa casa de poucas divisões e de dimensões mínimas. O terraço tinha maior área que a própria casa.

As buscas terminaram no quarto.
«A casa não tem buracos, Matias!»
«Pois não. É estranho.»  
Ficámos no quarto à conversa sobre casos insólitos. Eu estava de costas para a única janela do quarto, que dava para poente e donde se via o mar.

Aproveitei a altura para contar um caso que se tinha passado com um estabilizador de televisão que esteve sempre debaixo da cama e quando precisámos dele não o encontrámos. Ficou invisível aos nossos olhos durante algum tempo, na Páscoa do ano passado. Depois de eu e a minha companheira termos dado volta ao quarto mais que uma vez, ela foi perguntar à vizinha Aldina se tinha visto o estabilizador. Era natural a pergunta porque a vizinha fazia o favor de limpar e arrumar a casa e podia tê-lo mudado de sítio ou levado para baixo, por qualquer motivo.
A vizinha Aldina morava no rés-do-chão e tinha a chave da casa. Podia haver algum problema  porque nós só estávamos presentes durante o fim-de-semana. Confessei ao Matias uma coisa que me fazia confusão. Logo nas primeiras semanas de ocuparmos aquele segundo andar, demos conta que nos limpava a casa. Ficou mesmo zangada quando, a princípio quisemos pagar o seu trabalho. Nunca compreendi o motivo que a levou a fazer de graça a limpeza à nossa casa.
O estranho disto tudo é que ela disse que tinha visto o estabilizador debaixo da cama. E mais estranho ainda: o estabilizador estava, de facto, no sítio do costume, debaixo da cama. Bem visível. Onde já tínhamos procurado várias vezes.
Estava a contar ao Matias este caso quando aconteceu o fenómeno. Na minha frente, encostada à parede abaixo da janela, havia uma credên­cia. Entre outras coisas ti­nha livros sobre uma das prateleiras. A atenção centrou-se nos livros. Interrompera entretanto a história que contava. Havia outros valores mais altos. O livro da Fina d' Armada, sobre as aparições de Fátima, por exemplo, esta­va do lado direito, na primeira prateleira. Coisa natural. Depois, olhei para o meu lado esquerdo e vi logo um livro de contos. Precisamente "Os longos dias azuis". 
«Estranha associação!» pensei.
E estranho achado, quando me baixei um pouco e vi a cassete. Estava encaixada entre a parede e uma perna da credência. Logo por cima de “Os longos dias azuis”.
Aproximei-me da credência. Um passo. Dois. Não mais. Agarrei a cassete. Senti crescerem os pelos da barba. Alguém tinha colocado ali a cassete e esse alguém até podia ter sido eu, num ato inconsciente. Ou a minha companheira, só para me baralhar.
«Esta agora!»
Mas que se passava?
Qualquer coisa não jogava bem. A credência tinha uma pedra mármore branca a cobrir o tampo e estava encostada à parede. Totalmente encostada à parede. A minha dúvida era muito simples: quem brincara comigo?
Coloquei a cassete no sítio onde estivera. Caiu.
Como acontecera aquilo?
É que a pedra da credência estava en­costada à parede e a cassete não podia ter caído por ali. Não havia mais hipóteses. Alguém tinha-a colocado no sítio.
Mas quem?
Só se fosse a vizinha. Ou a minha companheira. Ou até eu, conforme já tinha admitido. 

Seria que...?
Não me lembro do que disse ao Matias. Ficam estas palavras:
«A cassete ficou suspensa!»

Olhou-me, aparentemente incrédulo.
«Achas que sim, Mário?»
Coloquei a cassete no sítio onde estivera durante várias horas. Caiu no sobrado. Voltei a colocar a cassete. Caiu de novo. Repeti. Claro que caiu outra vez. Caía sempre que repetia a experiência.
Olhei para o Matias, incrédulo.
«Não é possível!» exclamou este.
«Alguém pôs aqui a cassete...»
Quem a conseguiu “colar” à parede?
Não podia cair. A pedra mármore estava encostada à parede.
Empurrei o mais possível a credência de encontro à parede e repeti mais uma vez a experiência, abrindo muito o invólucro da cassete. Nada feito.
Causas possíveis?
Fundamentalmente, remotas. O livro de contos que tinha sido publicado em 1964 estava do lado da cassete. Dois ou três contos eram dedicados à Manuela. Talvez que a associação dos contos e das frases místicas tivessem originado um forte chamamento correspondido de forma insólita.
O tempo passou e repeti muitas vezes a experiência com a cassete. Caiu sempre. Vários amigos fizeram a experiência com a cassete e ninguém conseguiu que ela se segurasse entre a parede e a perna da credência. Absolutamente im­possível. A perna fazia uma barriga, mas não encostava à parede. Contudo, e durante um dia, a cassete esteve suspensa. Durante um dia alguém a segurou.
Afinal o que tinha a cassete de especial?
Um vulgar programa de pesquisa de apostas e umas frases místicas ligadas à Virgem e a um possível milagre, caso tivesse um primeiro prémio. Só isso.
Mas não teria sido perigoso ligar o jogo à Virgem Maria?
Era isso. Não se podia brincar com a Virgem. Era blasfémia. Nunca o devia ter feito. Nunca.
O assunto não ficou esgotado. De regresso a Lisboa, continuámos a conversar sobre o estranho caso ocorrido. Sem saber porquê, mergulhei bem fundo no passado. Recordei a Manuela. Um amor quase platónico que envolveu a rapariga do vestido branco e o rapaz da camisola azul. Tão distantes iam os tempos e tão perto ela parecia estar agora! Não. Não podia ser. Fora há tanto tempo! 
Um reparo: também falava na cassete de uma “mulherzinha de branco”.
Uma vidente que consultei uns dias antes afirmou que eu tinha um encosto. Por sinal um homem. Dei voltas à cabeça e não encontrei ninguém do sexo masculino que se ajustasse a esse encosto que a vidente admitia ter. De facto não me sentia bem, mas, a haver encosto, claro que não era um homem. Só podia ser a Manuela. Gostava muito dela mas levei-a mais que uma vez ao engano, criando-lhe falsas esperanças. Brinquei com o amor. Talvez com a sua vida. Não procedi bem. Morreu duas vezes. Da primeira, fui eu quem a matou nos “Longos dias azuis” e logo com uma inclemente mistura de propano-butano. Não encontrei uma solução mais suave. Por exemplo, overdose de comprimidos. Da segunda vez, morreu de verdade e não sei como morreu. Tinha trinta e dois anos e uma vida inteira à sua frente. Morreu só. O seu segredo ficou para sempre guardado na tumba onde repousam os seus restos mortais.
Por mais que uma vez estive à beira de saber a verdade. No último momento as pessoas escusavam-se a continuar, desculpando-se  com a palavra esquecimento. Não compreendia. Era a coisa mais natural do mundo contarem-me a causa da sua morte, mas logo algo as travava, chegando a notar uma certa perturbação. E, por mais que insistisse, o resultado era sempre o mesmo: não se lembravam.
O Matias ouviu-me em silêncio. Notei preocupação no seu rosto.
«Deves ir a Estremoz, Mário!»
Concordei com ele.
Aconteceu outro fenómeno nesse domingo na estrada para Lisboa, quando avistei um carro, a duzentos metros, encostado à berma.
Tudo bem, pensei. Logo de seguida, o condutor do carro começou a fazer uma manobra de marcha atrás. Tudo mal, pensei então. Era uma manobra perigosa. Esqueci. O carro ficou para trás. Mas por pouco tempo. Fui logo ultrapassado, mais à frente, pelo mesmo carro. Levava velocidade excessiva. Lá dentro ia gente nova. Voltei a esquecer e concentrei-me na condução e na estrada. De novo, por pouco tempo. Um pouco mais adiante, a seguir a um cruzamento, vi o carro parado e um seus dos ocupantes no exterior, urinando. O carro voltou a ficar para trás.
Quase logo a seguir, passou, veloz por nós. Fiquei zangado.
«Vais bater!» disse em voz alta.
Em poucos segundos o carro desapareceu da nossa vista. Logo de seguida, vi acenderem-se os sinais de stop do carro à minha frente. Travei também. Não vi nada. Mas tinha havido qualquer coisa na curva.
Saímos do carro. Dois carros tinham  batido. Foi só lata com lata. Apenas um homem sangrava da testa, mas estava bem.
Voltámos ao carro. Fiquei a pensar no caso. Um dos carros era o que nos ultrapassou mais que uma vez e cujo condutor cometeu as imprudências que descrevi.
Foi a segunda vez que aconteceu. Não interessa relatar a outra. O certo é que devia dar mais atenção às palavras que me saíam da boca, vindas de um pensamento fortemente agressivo.

Não dês corda ao relógio
Estou a sair de uma encruzilhada. A minha personalidade modificou-se e tornei-me mais aberto. Já não sou tão introvertido. Saí da concha onde estive refugiado durante muito tempo. Quanto aos fenómenos, esses multiplicam-se e começo a ficar alarmado. As crises confundem-me e deixam marcas. Devo ser forte para conseguir ultrapassar esta crise provocada por tudo e mais que tudo de estranho que está a acontecer na minha vida. Ou por outra, eu sou forte. Nada me quebra. Até acho que sou eterno. Vou e volto. É isso. Vim para ficar. E o mais curioso de tudo é que saio sempre reforçado das crises. Há qualquer coisa que ganho e não sei bem o quê. Talvez poder. Força. Sinto-me diferente. Penso que é o resultado de passar muito tempo a programar no Spectrum. E outra coisa: julgo que perdi o medo pelo sobrenatural. Já vai longe o tempo daqueles momentos fantásticos do “não dês corda ao relógio”.
O relógio. Nunca esqueceria, embora talvez o que aconteceu naquela tarde não tivesse passado de uma alucinação auditiva. Apenas isso. Um relógio a falar comigo era coisa do outro mundo.
«Não dês corda ao relógio.»
Passou-se qualquer coisa estranha nessa tarde. Até porque não tinha por hábito falar sozinho em voz alta.
Tinha vindo da praia de S. Lourenço com uma amiga. Os outros ainda ficaram a aproveitar os benefícios daquela tarde sem vento e com muito sol. A nossa missão era comprarmos carne no talho para se fazer um cozido no dia seguinte. O local escolhido para o almoço fora, como quase sempre, o terraço da minha casa.
«Vai andando para o talho que eu preciso de mudar de roupa.» Disse para a Virgínia.
À entrada da casa, uma pequena divisão que funcionava como cozinha e casa de jantar, no máximo para quatro pessoas, olhei para o relógio de pêndulo, suspenso na parede, e reparei que estava parado. Foi então que ouvi uma voz:
«Não dês corda ao relógio.»
Encolhi os ombros.
«Ora, agora estou a falar sozinho.»
E dispus-me a dar corda ao relógio. O estranho é que este tinha a corda toda. Então arrepiei-me de alto a baixo e saí de imediato porta fora, o que foi mais estranho ainda. O certo é que durante mais de um mês não consegui entrar à noite, sozinho, na casa da praia. Nos anos que se seguiram, não dormi lá uma única noite sem companhia. Mas, quer houvesse na casa alguém ou não, acabei por encarar tudo com naturalidade e menos medo. E não é coisa para encarar assim quando há portas que aparecem abertas de manhã e foram fechadas à noite. Mais. Objetos que mudam de lugar. Cassetes suspensas. Cheiros estranhos, como a caca de galinha, que me fazem acordar. Tudo faz parte do meu dia a dia. Coisas que acontecem e que ficam por explicar. Mas não me apresso. A caminhada é longa e tenho que ganhar forças anímicas. Já ouvi falar de muita gente que ficou pelo caminho. Devo ir devagar. Muito devagar.
Uma outra coisa, que ainda não referi, é bem mais complicada. A Verónica disse que ia separar-me da minha companheira. E a decisão era minha. Saía de casa. O mais estranho de tudo é que os meus amigos estiveram a assistir a essa sessão e todos disseram que não ouviram as palavras visionárias da Verónica.
Entretanto segui o conselho do Matias. Fui a Estremoz.

Em Estremoz
É ao som da música do Fernão Capelo Gaivota que começo a escrever. Nada mais apropriado que um símbolo que considero ser de liberdade. O desejo de novos rumos. Voos pelas estradas dos caminheiros do éter que refiro nos meus poemas. Sem rumo. Sem destino. A propósito dos poemas, de facto sou eu quem os escreve. E também pequenas prosas poéticas. Quanto ao meu amigo António, é o contista.
Volto vinte e três anos atrás e reencontro a gaivota que picava para a rebentação à procura do peixe mais aventureiro que é referido em "Os longos dias azuis". Também um sonho impossível. O desencanto. Tudo caiu por terra. Já cá não estás, estrela. Agora só vejo “Patrícias” à minha volta. São duas da tarde e estou de regresso. Chegou o tempo de recordar. Nunca te esqueci, estrela...

Antes das sete da manhã já estava já a caminho de Estremoz. Aos poucos, o dia clareava. Cumpria-se, mais depressa do que imaginava, uma das profecias da Verónica, uma vidente de Ribamar.
«Vai fazer uma viagem...»
«Eu? É muito difícil! Não gosto de fazer viagens.»
O caso da cassete suspensa era mais que evidente. Um sinal. Um chamamento.
Chegado a Estremoz, estacionei o carro junto ao lago do Gadanha. Se recuasse no tempo trinta anos estaria bem perto dela.





Lá estava o lago. Agora sem cisnes. E a antiga casa da Manuela, desabitada. Não havia uma cortina, um rosto a espreitar. Apenas a verdade da manhã com o sol a brilhar num céu sem nuvens.
Dei alguns passos e enquadrei a casa no visor da máquina fotográfica. Só a casa. Quando acabei de fotografar, fiquei parado, à espera de um sinal que nunca viria. À espera de a ver sair, sorridente, a caminhar ao meu encontro.
«Demorei muito?»
Uma eternidade. Perdi-a para sempre.
O tempo continuou a correr. A fugir. Ela ficou para trás. E eu também. No momento que passava, sem tempo, não sei se era eu o ladrão do tempo, ou se ele me acolhia e deixava que mergulhasse nas suas entranhas misteriosas, alongadas.
Havia duas ou três pessoas no cemitério. Ainda era muito cedo e o calor já apertava e prometia apertar mais ao longo da tarde.
Comecei a procurar. Logo à entrada encontrei, numa sepultura, a fotografia de um primo da Manuela. Morrera, talvez em 1958, num fatídico acidente de viação.
Mais adiante, deparei com a sepultura de um familiar dela. Tinha o mesmo apelido da mãe.
Procurei por todo o lado e nada. Não descobri a sepultura da Manuela. Resolvi regressar ao portão de entrada do cemitério e fiquei aí durante uns ou dois minutos. Precisava de ganhar serenidade. Ao mesmo tempo, desesperava por não conseguir encontrar a sua sepultura, o que nada favorecia a capacidade de concentração que era bem precisa no momento. O Sol estava já mais alto e o calor que sentia também não ajudava.
Que fazer então?
Desci outra vez o caminho principal, orientado para poente. Fui olhando para um e outro lado. Em vão. O desespero era cada vez maior. Apertei com força a imagem da Senhora que trouxera de Fátima.
Eis que...
Passara tão perto e não tinha visto! Estava ali, mesmo na minha frente e do lado direito da pequena rua. Emocionei-me. De seguida, senti-me culpado.
De quê?, da sua morte?
Não consegui compreender. Morreu com 32 anos. Era ainda muito nova para Deus a levar. Talvez fosse castigo por a amar tanto e não ter tido a coragem para mudar o rumo dos acontecimentos. Se a amava, estava nas minhas mãos não ter deixado que se afastasse de mim. Mas não foi isso que aconteceu.  
Havia umas frases gravadas na pedra da campa. Eram palavras simples que traduziam muito amor e orgulho da mãe, dos avós e dos tios. Uma mensagem que achei bela. Cheguei-me mais perto. Uma mulher lavava uma pedra da campa a menos de cinco metros. Baixei-me, fingindo que atacava os sapatos (há muitos anos que não usava sapatos abotinados; os meus eram de pala) e pus a imagem junto à sepultura. Continuava a sentir-me culpado. 
Afastei-me alguns metros e continuei, aparentemente, a ver a mulher a lavar a pedra em mármore.
O funeral tinha sido em 5 de junho, dois dias depois da sua morte física. Morte
física. Que triste ideia a minha! Ela não estava ali. Se a vida prevalecia para além da morte, ela não podia estar ali. Apenas os ossos. Os nossos que esperavam pelos vossos. Mais nada. Só a recordação e a saudade.
O funeral realizou-se dois dias depois de morrer.
Terá sido autopsiada?
De novo a sensação de culpa. Desta vez ainda mais forte. Perdi-a para sempre depois daquele incidente na casa dos meus tios. Perdi-a e nunca mais a procurei. Nem ela. 
«Minha pobre estrela que já não brilhas!»
Retirei uma folha de papel do bolso do blusão. Desdobrei-a. A prova do crime, pensei. No conto, a Manuela morreu "embriagada por uma mistura de propano-butano". Um conto maldito, pensei. A seguir, rasguei a folha aos bocados, olhei em volta e deitei-os, disfarçadamente, junto a uma parede. Era a última página de “Os longos dias azuis”.
Já estava fora do cemitério. Se rasguei a última parte do conto, isso podia significar que ele não tinha chegado ainda ao fim.
Mas que fim estava à espera de ser escrito?
A Manuela existiu e existia ainda no meu subconsciente. Daí ter o sentimento de culpa enquanto ela vivesse dentro de mim.
Parei, algo intrigado. Tinha dado conta de uma coisa. Faltava um dado  importante.
Voltei a entrar no cemitério. Queria ler de novo a mensagem gravada na pedra em mármore. Era isso. Primeiro, o seu nome. Maria Manuela. E depois, lia-se o seguinte: “Homenagem da mãe, avós e tios”.
Não figurava o nome do marido, porquê?
O corpo do pai, falecido quando ela tinha só quatro anos, estava sepultado junto com a filha. Morrera a 28 de setembro de 1946. Por associação lembrei-me de um outro 28 de setembro em que começámos a namorar oficialmente. O dia não fora escolhido ao acaso. Era um dia muito importante para ela. O da morte do pai.
Reparei ainda nas flores que estavam sobre uma jarra. Tinham secado há vários dias. Mas alguém lembrara-se dela. 
Abandonei de vez o cemitério. Desejei ardentemente que ela se libertasse. O meu encosto. A Verónica falara de um homem que morrera num acidente ou que se suicidara, mas afinal o encosto era ela. Agora tinha a certeza.
Quando cheguei ao carro senti-me mais aliviado. Livre como a gaivota que tem todo o azul do céu para voar.
Liguei o rádio à saída de Estremoz. Os olhos humedeceram-se. Era um sentimental. Sentia-me a voar, lado a lado com a gaivota. O snack de bancos altos junto ao balcão. Os copos vazios. As chávenas vazias. Patrícia e o desencanto. Sim. A Manuela existiu. E existe ainda. Vive em comunhão com o meu espírito até um dia encontrar a paz que perdeu.
Não deixarei que parta enquanto não tiver luz.
Foi a música do Capelo Gaivota, cantada pelo Neil Diamond, que me fez humedecer os olhos. Estranha coincidência. Ou sinal de uma ligação eterna.
«Não passas de um sentimental, Mário!»
Mudei para FM. Queria ouvir a música em estereofonia. Não consegui e mudei de novo para AM. Não demorei mais que dez segundos, mas foi o tempo suficiente para perder a música.
De regresso, já depois de Setúbal, perto da portagem, recebi um novo sinal. Este bem evidente, mas de significado desconhecido. Por acaso tinha olhado o indicador de nível da gasolina e estava a “zeros”, embora tivesse atestado o depósito nas proximidades de Estremoz.
Pouco tempo depois, o ponteiro voltava à posição normal. Fiquei mais descansado depois daquele convite para parar na zona de Setúbal.
Premonição ligada a Setúbal?
O futuro diria...
Continuei a viagem de regresso. Era quase uma da tarde quando cheguei a casa.
A seguir ao almoço deitei-me em cima da cama e estive a ver o álbum de fotografias do tempo da minha juventude. Mais precisamente, umas fotografias tiradas na serra de S. Mamede em que estávamos só os dois. Juntos. Muito juntos. Numa delas, olhava para a Manuela. Estava pensativa. Triste. Como triste foi sempre a expressão do seu olhar.
Tirei a fotografia da folha e virei-a. Tinha escritas as palavras: “e prometia impossíveis”.
Quem prometia impossíveis?
Pensei na palavra "premonição". Sim. Era adequada. A machadada final ocorreu quando interrompi o curso para prestar serviço militar. Primeiro no Porto. Depois em Coimbra, neste caso por mero acidente pois houve manipulação nas colocações dos aspirantes a oficiais. De seguida, Figueira da Foz. Finalmente, Lisboa. Voltei à vida civil após mais de três anos passados em sucessivos congeladores. A minha obsessão era concluir o curso interrompido abruptamente pelo serviço militar e não a Manuela que já não estava nos meus horizontes.
A partir do rompimento com a Manuela, por causa de ciúmes que não admiti e se tornaram insuportáveis, vi-me metido numa encruzilhada de amizades e paixões, onde faltava sempre qualquer coisa. O amor verdadeiro. O tal sinal de feromonas no ar que nunca mais apareceu. Tive uma paixão “forçada” pela Simone, que foi a mulher que me desviou o destino. Fui idolatrado por uma jovem e atraente açoriana. Roubei num baile uma linda rapariga ao meu colega de quarto, mas a nossa relação nunca passou para lá da atração mútua. Quando as coisas corriam mal, a Odete era o meu lago de bonança. Quanto à relação com a minha companheira não passou de uma paixão doentia, nunca correspondida, até que a perseverança destruiu as barreiras. Optei pela paixão e a Manuela continuou esquecida. Até que um dia voltou. No estranho dia da cassete suspensa e da aposta mística que fiz no totoloto. Que mensagem? 
Tenho a sua fotografia na minha frente e sinto uma grande amargura de não conseguir ser ladrão do tempo. Recuar, recuar e assim poder modificar o meu destino!
Depois dos fenómenos acontecidos nos últimos dias tudo parecia tender para a normalidade. O meu estado de espírito era outro. Alterara as apostas proibidas e as palavras místicas tinham sido retiradas do programa em basic. Era tempo de parar para fazer o balanço. Sucedera muita coisa importante e estranha em pouco tempo. Não estava preparado.
Mas entretanto aconteceu que três esferográficas apareceram no bolso do blusão e horas antes não estavam lá. Talvez para desafiar o fenómeno insólito meti duas esferográficas no bolso do blusão. Uma azul e outra preta.

No intervalo entre duas aulas lembrei-me que tinha umas fichas para entregar no Conselho Diretivo. Essas fichas estavam na pasta. Abri-a e meti-as no sítio. Fechei-a e fui para dar aulas. Num gesto automático, voltei a abrir a pasta e vi no seu interior uma esferográfica azul. Pensei logo que era uma das que estavam no bolso. Mas não. Continuavam lá as duas.
Tinha quase a certeza que não havia qualquer esferográfica na pasta!
Pus a terceira esferográfica no bolso.
Ia aparecer mais alguma?
A morte da Manuela atormenta-me. Ao fim destes anos todos! 

Gravei uma cassete com música e poesias relacionadas com a Manuela. Também gravei uma prosa poética que se refere ao regresso de um espírito. Sinto, ao mesmo tempo, um grande cansaço e uma acrescida capacidade intelectual. Parece que as coisas surgem como se fossem sopradas por alguém.

Fiz uma nova descoberta para o programa de escrutínio do totoloto. Dá-me, de uma só vez, todo o escrutínio. Foram apenas cinco minutos de inspiração!
Que força superior parece querer dominar o meu cérebro?
As palavras não vão chegar para contar o que me aconteceu hoje. Começo por dizer que foi uma experiência que nunca mais esquecerei. O abrir de mais uma cortina das muitas que escondem o lado de lá, onde não posso chegar. Aí vive alguém que espera por mim há mais de vinte anos. A partir daí tempo a minha vida ficou a zeros. Tenho consciência do erro cometido e é proibido voltar atrás.
Sinto-me triste. Não é depressão. Apenas amargura. Ao mesmo tempo sou o ladrão e a vítima.
«Abstrais imenso...»
Estou de facto a abstrair, ao som da música do Fernão Capelo Gaivota. Com vontade de gritar que não sou livre.
Mas vamos ao caso...

Levantei-me cedo. Como fora combinado com a Lenita e a dona Flora, tinha por missão levar à casa da praia uma senhora chamada Ima e que morava para os lados da Estefânia.
Mal saí, começaram os contratempos. Enquanto ligava o motor do Renault, pensava no conselho que me tinham dado:
«Enquanto fores a conduzir não fales com ela sobre coisas estra­nhas. Pode ser perigoso...»
Podia ser perigoso, disseram. Entrava em transe, levava as mãos ao volante e íamos por uma ribanceira abaixo.
Sorri ante aquele cenário macabro. Mas que se passava com o carro? Não queria pegar. Achei estranho porque o tempo não estava húmido. Impressão minha? Pegou. Sol de pouca dura. O motor ia-se abaixo sempre que o carro parava num sinal vermelho. Ligava a ignição e lá seguia. Novo sinal vermelho, novo desligar.
Era proibido continuar?
Pensei em desistir do carro e tomar um táxi. Mas tinha que levar a dona Ima à casa da praia onde havia pessoas à espera. O carro foi andando e parando, como se forças opostas se degladiassem. Tudo normalizou quando cheguei perto da casa dela. Outras influências mais fortes, pensei. Aí, sim. O motor deixou de falhar. Estava intrigado com o fenómeno. Fenómeno?
Parecia ser.
Ela estava já preparada para sair quando toquei à campainha, pois apareceu logo no patamar. Já na rua, depois de me apresentar, contei-lhe o estranho caso do motor ir-se abaixo sempre que parava num sinal vermelho. Antes de entrarmos no carro, claro.
«Parecia que não queria vir...»
A sua reação traduziu-se num sorriso largo. Não teceu comentários.
Pouco falámos pelo caminho. Aconteceu uma coisa que não posso deixar de relatar. Numa descida perto de Montachique, começou a es­ticar os braços para a frente. Talvez fosse um gesto nervoso, mas não deixei de a vigiar pelo canto do olho. Julguei ver uma alteração no rosto da dona Ima. Logo de seguida, deu um arroto e voltou a esticar os braços. Comecei a ficar ansioso.
Ia agarrar no volante?
Mas eu tinha ficado calado! Que diabo! Cumpri as ordens à risca.
Procurei não perder o controlo. Ela continuava de braços esticados e voltou a arrotar. Os arrotos eram cavernosos. Vinham bem dos fun­dos. Nunca ouvira coisa igual!         
«Eles não querem que eu diga...»
Não queriam o quê...?
E quem eram eles?
Achei por bem não per­guntar. Podia arranjar um sarilho dos grandes. Nunca se sabia. Notei alteração na voz. O tom era mais grave.
Estaria mesmo na presença de uma médium?
Era a primeira vez que me via metido em assados de tal natureza. Uma médium nunca se encontrava todos os dias.
«Como?» perguntei.
Voltou-se para mim. Tinha os olhos esquisitos.
«Eles não querem que eu diga mas eu digo! Vai escrever um livro?»       
Fiquei estarrecido. Esperava tudo menos aquela pergunta.
«Não. Por acaso já escrevi um livro...»

Menti e o Ildefonso que me perdoasse pela usurpação. De certeza que ele me ia perdoar. Por vezes até parecia que éramos um só.
Perdi o medo e perguntei:
«Quem são eles?»
«Não posso dizer.»
Ficámos por aqui. Era melhor dar atenção à condução na estrada, não fosse o diabo tecê-las.
Recomeçou a arrotar quando entrámos na rua onde eu morava. Ao mesmo tempo que avançávamos, ia perguntando, fazendo lembrar um cego experimentando sensações:
«É aqui?»
Frio. Tinha pressa de chegar. Pouco depois, morno. Entrámos na rua onde eu morava.
A minha prima Lenita, o marido e a minha irmã estavam à nossa espera. Houve uma sinfo­nia de arrotos pelas escadas acima. Desta vez, quente. De certeza que o prédio estava muito habitado.
«Nunca a vi assim!» disse a minha prima.
Foi com alívio que a vi entrar em casa. Que diriam os vizinhos se tivessem ouvido toda aquela flatulência cavernosa da dona Ima?
Não pude evitar um sorriso perante tais pensamentos. Mas estava um pouco preocupado. Os vizinhos podiam ter ouvido aqueles arrotos da vidente.
Almoçámos no terraço. Nada aconteceu de especial, a não ser numa altura em que alguém evocou uma tia já falecida. Foi o bastante para a dona Ima sair de si e começar a falar e a fazer gestos que logo interpretei como sendo da minha tia Clarinha. Parecia criticar a nora. Pelo menos foi a im­pressão de quem estava presente.
Só começou a trabalhar depois do almoço. A primeira pessoa a ser atendida foi a minha prima. Depois fui eu. Por acaso estávamos em volta de uma mesa circular de pé de galo. Só por acaso.
Ficámos frente a frente. Enquanto conversámos, não deixou de ar­rotar. A casa estava possuída pelos espíritos, pensei. Mas também podia ser encenação. Iria ficar atento. Tinham-me alertando para todos os truques, possíveis e impossíveis.
Mostrei-lhe várias fotografias de pessoas. Mortos misturados com vivos, para lançar a confusão. Ela usava óculos de ver ao perto, mas tinha-os em cima da mesa.
«Esta mulher desviou-lhe o destino!»
Era uma fotografia da Simone. Uma coincidência curiosa, pensei. Logo a seguir a vidente pôs-se, de seguida, a descrever uma casa que tinha uma cercadura de arbustos e mais coisas que esqueci por desinteresse. Por certo estava a improvisar. Nunca tinha visto tal casa. Bem me tinham dito para ficar atento aos truques.
«Não conheço essa casa...»
Indiferente, continuou a descrever a casa. Então a minha irmã exclamou, com convicção:
«É a casa de campo da Simone!»
A Simone foi fumo de verão na minha vida. Apareceu e desapareceu como um meteoro. Teve um grande choque quando decidi acabar o namoro e emagreceu muito. Se pequei, ela pecou mais. Esse namoro foi só um obstáculo para me afastar da Manuela. A própria vidente falou de uma rapariga (não disse mulher) loura que gos­tava muito de mim e que desviou o meu destino. Acabava de meter o dedo na ferida.
O tema Simone esgotou-se rapidamente. Era o momento de mostrar uma fotografia da Manuela. Parece que leu o meu pensamento. Sem qualquer hesitação, afirmou:
«Essa, sim... essa fazia-o feliz...»
Fiquei abismado. Os óculos continuavam sobre a mesa. Não havia hipótese de fraude. E mesmo que visse bem ao perto sem óculos, certamente que não conheceu a Manuela. O caso começava a tornar-se sério e tinha que rever o ceticismo com que encarara aquela reunião. 
Houve uma altura em que foi até ao curto corredor, onde esteve a ver um quadro com fotografias. Depois voltou à sala e, inesperadamente, caiu no sobrado. Fiquei preocupado, mas a Lenita acalmou-me logo.
«É costume ela cair.»
«Mas pode ter caído mal! Vamos levantar a senhora...»
Impossível. Parecia chumbo. Só conseguimos levantá-la quando pediu.

Outra vez em Estremoz...
Estou a dois passos de ti, perto da casa em ruínas. Oiço a música de Fernão Capelo Gaivota, mas são andorinhas que, às centenas, voam à volta do carro. No prédio do antigo clube há imensos ninhos. Foi aí que os nossos corpos, enquanto dançávamos boleros românticos da época, estiveram muito próximos. Os rostos tocaram-se em promessas que nunca foram cumpridas. Sonhámos um mundo diferente, só nosso. Um mundo que não passou do sonho. Mas nessa noite foi diferente. Nem a dança das vassouras nos separou. Agarraste-me obsessivamente e não deixaste que outra mulher me levasse na tal dança. Era Carnaval. No Carnaval nada parecia mal. Mas tu receavas perder-me. Afinal tanto receio para nada. O que fizeste para me reconquistares foi pouco. O mesmo aconteceu da minha parte. Ficámos empatados. 
Conseguira juntar dinheiro das explicações de Matemática e Física para ir ver-te a Estremoz. Foram dias maravilhosos. Hoje tento recordar-me de pequenas passagens do pouco que ainda conservo na memória. Recordo-me apenas do dia do baile e do acordar mal disposto na manhã seguinte por ter dormido cerca de uma hora. Alugaste um dominó que não cheguei a vestir, pois ninguém do teu grupo de amigos se mascarou. Ao anoitecer foste à cabeleireira e eu fiquei ao frio, à tua espera. O tempo ia passando. O frio apertava. Mas eu já estava habituado a esperar por ti. Acontecia o mesmo em Portalegre. Danava-me por tanto esperar e só tinha vontade de explodir. Quando aparecias, muito bonita, sorridente, esquecia tudo e sorria também.
Gostavas do meu sorriso?
Nunca o disseste.
«Está frio!»
«Não, está fresco.»
«Fresco?»
Foi este curto diálogo que se repetiu muitas vezes. Tu dizias que estava frio e eu sugeria, logo de seguida, que estava fresco. E tudo acabava num sorriso que nos aquecia a alma.
Fiquei de facto ao frio. Mas não o sentia. O tempo é que custava muito a passar. Eram as saudades de não estares ao pé de mim.
Chegou a hora do baile. O contacto dos nossos corpos, do teu rosto de veludo. O apertar das nossas mãos. Foi a única noite que passámos juntos até quase ao amanhecer. Nessa noite do baile disseste-me quem era o Melícias. Um rapaz que te perseguia com insistência, que odiavas e com quem casaste quando soubeste que eu vivia com outra mulher.
Ostensivamente fomos ao bar do seu pai para ele nos ver bem. Estava a atender ao balcão.
Como tu o odiavas! Dizias que te perseguia. Achavas abominável e foste casar com o homem que mais odiavas.
E já estavam separados antes de morreres...
Deixaste filhos?
Creio que não. Na mensagem da tua campa não existe a mínima referência a filhos nem ao teu marido oficial. É um facto incontestável.
Hoje estou aqui para recordar a rapariga do vestido branco e olhar triste. Já fui ao cemitério. Pouco passava das oito. Havia malmequeres na tua campa. Deviam ter sido postos há cerca de uma semana. Senti uma forte comoção ao ler as palavras de apreço deixadas pelos familiares. Quantas saudades a tua mãe deve ter de ti! Não. Tu não desejas o meu mal. A dona Flora está errada. E sabes uma coisa? Não vim aqui como um estranho. Vim prestar homenagem ao nosso amor. Um amor não conseguido marcado para toda a vida. Alguém nos afastou. Podíamos ter sido muito felizes, amor!
Não fui bem recebido nesta cidade que te viu crescer.
Não queres que esteja cá amanhã?
As cólicas intestinais voltaram.
São sinais de repúdio?
Começaram perto de Estremoz. Tive de parar o carro na berma da estrada e acocorar-me num silvado. E foi então que vi, a pouca distância, dois polícias de trânsito. Felizmente eles não me viram nem ao carro que tinha dois pneus na estrada.
Foi na Torre que escrevemos, algures nas escadas em caracol, os nossos nomes, lembras-te?
Agora há uma pousada na zona da Torre.
Quando cheguei ao cimo, fui acometido por uma súbita dor de barriga. Correste comigo da Torre. Não aconteceu o mesmo no tempo em que éramos jovens. Aconteceu tudo menos poesia. Desci apressadamente a escada, quase chocando no escuro com uns turistas que vinham a subir. Nem me deste tempo de recordar.
Para quê mostrares tanto ódio? 
Um dia, no verão, fui à boleia para Estremoz. Levei sanduíches para comer pelo caminho. Uma viagem que podia ter demorado cerca de uma hora, acabou por ser feita em cerca de três. Apanhei três boleias. Uma até Monforte. Outra até Veiros e, finalmente, a última levou-me a Estremoz. Claro que, enquanto esperava por boleia na estrada, ia comendo o meu farnel.
Arranjaste-me um quarto em casa de uns amigos. De noite, acordei com suores frios. Tinha uma enorme dor de barriga. Lembrei-me logo das sanduíches. Ou então foi do jantar. Não conhecia a casa. Também não queria abrir as luzes. Depois de deambular no escuro pela casa, cada vez mais aflito, já nos limites da resistência, encontrei uma pia num anexo da cozinha. Que alívio!
No dia seguinte andei sempre com problemas intestinais. Mas o amor era mais forte. Nem as dores de barriga me podiam separar de ti, embora andasse sempre de olho nas casas de banho. Será um sinal? Estás mesmo presente, estrela?
Fui eu quem te destruiu?
E a destruição lenta que me transformou neste mutante que perdeu o verdadeiro sentido da vida?
Já não sou o mesmo. Devo a ti a mutação. Os primeiros sinais vêm mais de trás, quando tive falsos problemas nas coronárias. Um eletrocardiograma trocado acusou insuficiência coronária.
Hoje os meus pensamentos dizem que faço mais parte de ti que de mim. A minha vida nunca mais teve sentido. Sei tardiamente, é certo. Há sinais de mudança, mas é tarde. Vim pelo nosso amor destroçado. Sei que não é possível trazê-lo de volta. Mas vim beber a dor dos teus últimos dias. Sofrer o teu martírio. Vim para estar junto de ti. Em espírito. Se quiseres, em espírito. Não me repudies. Ouve. Sei que é loucura. Mas alguém disse-me um dia. Tenho o cofre aberto. Quero receber-te. Vem. Não tenho medo. Dá-me um sinal. Nem que seja uma carícia gélida.
Como era a tua voz?
Só oiço o gorjeio das andorinhas que esvoaçam à minha volta. Talvez sejas uma delas. Não consigo descodificar a mensagem. Não te sinto. Não te vejo.
Qual delas...?, és todas?
A música voltou ao princípio. É bela. Há uma mensagem no voo da gaivota e eu vou atrás dela. Nem que seja para encontrar os anos-luz do nosso afastamento. Não sou mais aquela pessoa amorfa e inibida a quem cortaram as asas. Quero aprender de novo a voar. Ensina-me, estrela. Desce ao meu mundo. Não tenhas medo, estrela! Desce ao meu mundo que eu subo ao teu. Encontramo-nos a meio. Assim, nem um nem outro cede. Será uma vitória dos dois.
Onde devo ir agora?
Foi na estação do caminho de ferro que se deu a despedida. Ia triste de partir. Amargurado. Deixei-te no cais e rumei para novas madrugadas. Mas a verdadeira utopia eras tu. O futuro que nunca chegou. No cais, o sonho premonitório deixava notícias terríveis. Não acreditei nos teus olhos tristes que diziam adeus.

Também não te vi na estação. No ar, apenas ar. No chão, apenas chão. Sinais de fumo. Não o fumo negro das locomotivas antigas. Sinais de fumo da última paixão que não se extinguiu e há de persistir até que o pensamento voe para lá da consciência. Fui enviado para noivar o amor. Um amor que durará até à eternidade.
A imagem que está na tua campa é bela. É talvez uma réplica da imagem da Senhora de Fátima. Vejo-te nela. Tem o teu rosto sereno e triste. Lembra-me a imagem que vi na igreja de Fátima, perto do altar. Um dia, ao olhar para essa imagem, vi-te. Talvez não passasse de uma alucinação. Vi-te.
Aqui, em Estremoz, os meus olhos quase que adivinham o que viram os teus no tempo em que viveste aqui. Sigo os passos que deste. Os odores de hoje misturam-se no céu das gaivotas com odores que foram teus. Quase alucinado, pressinto a tua presença. Estás invisível, mas existes. É impossível esquecer que vivemos um amor impossível. Existes, sim. Na eternidade. E existes também na magia das palavras da jovem alentejana que trabalhava no restaurante onde fui almoçar. Porque não sei fazer magia, procuro-te nos olhos da jovem que parecem “falar-me” de ti. Vejo-a procurar os pratos, os talheres, os copos. Coloca-os sobre a mesa. Volta atrás. Falta qualquer. Faltas tu. Traz dois guardanapos de papel.
«Está só?»
(O corpo frio de Manuela...)
Adivinhou. Como de costume. Mário também ficou só.
«É verdade...»
«Vou tirar o outro prato para se sentir mais à vontade.»
Hesito. Sinto uma enorme vontade de pedir para não levantar o prato. Mas é só simbolismo. Para quê?, se tu não vens?
Almoço com o passado e, paradoxo, o passado nunca volta. Na minha frente, vejo apenas um copo meio de cerveja e um caroço de azeitona que já não é azeitona. Depois, virá o futuro. Talvez na jovem que não és tu e que há de trazer o almoço. Julgo que não. Desesperadamente, procurarei no rosto dela o sinal que nunca aparecerá. Patetices. Não passam de patetices estes pensamentos. É melhor esquecer as conjeturas que estava construindo. No domínio do paranormal estas seriam certezas.
Mas o quê?
Imaginemos que podia ter acontecido uma transferência de espíritos quando a jovem do restaurante me informou que frutas havia para a sobremesa. O seu olhar era firme. Estava debruçada sobre mim e os olhos não fugiram dos meus. Eram castanhos. Bonitos. Gostei deles. Por uns momentos pareceu-me ver outros olhos que nada tinham a ver, por exemplo, com uma vulgar Patrícia. Foi um instante.
Seria que...?
Conjeturas. Apenas conjeturas.
Jantei bem. Bifinhos com cogumelos. A sobremesa também estava saborosa. Era pudim..
«Obrigadinho...» Agradeceu a gratificação.
(«De quem são esses olhos?»)
Foi uma despedida. Por momentos vivi a ilusão.
Que forças terei de acumular para atingir tal grau de poder?
Preciso da tua ajuda, estrela. Se foste tu a autora de muitos dos fenómenos que aconteceram à minha volta, não entendo a razão de ser dos mesmos. Para quê, se continuas distante? Tenta, ao menos uma vez, uma transferência de espíritos e dá-me sinais que és tu. Só depende de ti, estrela. Tu que estás presente nas noites das gravações insólitas, quando o silêncio me canta ao ouvido os desesperantes queixumes do teu afastamento. Nessa altura, julgo que apareces, furtivamente, roubando o tempo que parece parar, por detrás de outros rostos, disfarçada. Por exemplo, a empregada do restaurante, por momentos imagino que tenhas sido tu.
E se vivêssemos aqueles romances que imaginei nas muitas cartas apaixonadas que te escrevi?, lembras-te?
Não davas seguimento às histórias que eu criava e sentia-me agastado. Frustrante! A mulher única desinteressada das obras da minha imaginação criadora.
«Está frio.»
«Não. Está fresco...»
«Apesar de não o conhecer agradeço e retribuo as Boas-Festas enviadas.»
«Quase igual...»
«Igual!»
«Não. Escreveste “retribuio”.»
«Meu Deus! Se eu pudesse...»
«Essas palavras são tuas? É só quereres.»
«Não é assim tão fácil. Ainda és uma barreira...»
«Que queres que faça?»
«Perde o medo. Deixa que entre em ti.»
«Há muito que estou preparado. Já lá vai o tempo. Ensina-me. Diz o que é preciso fazer. Será que estamos em mundos paralelos?»
«O nosso mundo é o mesmo. O modo de ver é que é paralelo. Eu vejo-te. Tu não. Uma vez por outra há uma oportunidade. E tu ainda não sabes aproveitar as oportunidades.»
Era verdade. Nunca aproveitei as oportunidades que tive na vida. Fui sempre levado pela maré vazia.
«A jovem do restaurante podias ser tu! Tenta de novo...»
«Nunca mais a vais ver.»
Certeza.
«Ela falou de uma procissão aos dois casais que estavam ao meu lado no jardim.»
«Ingénuo.»
«Vamos encontrar-nos outra vez?»
«Como posso saber?»
«Ainda não dominas o amanhã? Eu consigo alterar o amanhã! Somos nós que construímos o futuro.»
«Talvez tenhas razão.»
«Bem sabes que na minha vida só um homem me interessou. Mas preferiste a Simone. Era uma mulher atraente.»
«Não tive intenção de te trocar pela Simone. Foi uma coisa estranha que me passou pela cabeça. Que me dominou e fez com que esquecesse o compromisso assumido. Um sonho mau de que acordei pouco depois. Mas tu também nunca ajudaste. Sabias onde encontrar-me.»
Fugiu. Ou melhor: fui eu que não quis continuar o diálogo que afinal era um monólogo.

«        Daqui a pouco vou tomar ar, mas não aquela mistura invisível de propano-butano que receitei no livro à Manuela. Vou tomar ar e talvez encontre o passado. Imagens do meu passado remoto.
Aspirei, sequioso, o ar escaldante habitual das tardes de verão em Estremoz e constatei que já não era o mesmo ar que não respiraste quando o teu corpo, de transição nesta Terra onde estamos, imergiu no mundo dos vermes.
Agora estou no jardim perto da casa onde moraste. Não podia ficar mais tempo no café. Talvez fosse influenciado pela presença estranha de um homem que ocupava uma mesa ao lado. Aparentava a minha idade, usava óculos e tinha qualquer problema numa perna. As canadianas encostadas a uma cadeira faziam prova disso.
Tive a impressão que o homem conhecia-me. Comecei a sentir-me mal. Nauseava-me a presença do homem.
Não era má ideia se vomitasse em cima da mesa. Melhor ainda: em cima dele.
Saí com alguma pressa. Aquele homem pôs-me fora dos carretos.
O jardim está diferente. Olho para o sítio onde costumávamos ficar. Agora só encontro baloiços. Para falar verdade, não sei o que havia antes. Só sei que está diferente. A sensação de mau estar desapareceu. A própria dor de estômago. Num momento tudo passou.
Onde era o colégio?
Ainda está calor para procurar. Mas tenho um palpite. Talvez em frente à zona dos baloiços. Há pouco imaginei ter por companheira, no banco onde estou sentado, a dona dos olhos mais tristes do mundo. Castanhos. Puros. Lembro-me do dia em que fui ter com ela ao colégio. Tinha vindo à boleia de Portalegre. Com tanto azar - já nessa altura tudo se conjugava para nos dificultar a vida - que só consegui chegar a Estremoz ao fim da terceira boleia.
Acabo de ver aranhas. São minúsculas. Sinal de boa sorte. Para os outros.
O colégio estava pintado com um rosa carregado e tinha um gradeamento em frente. Viam-se algumas salas de aula. Perguntei a uma aluna que saía se a tinha visto. Voltou para trás. Minutos depois, a Manuela estava na minha frente. Vestia uma bata de colegial. Penso que a bata era preta. Havia qualquer peça de vestuário nela de cor vermelha. Um cinto. Talvez sapatos vermelhos. Não seriam os brincos?
Definitivamente era o cinto.
O ar de felicidade da Manuela fez o meu coração transbordar de luz. Era sempre assim. Sentia-me feliz ao pé dela.
«Já tem luz...» Afirmou uma vidente.
Um casal sentou-se num banco ao lado. Eram talvez da minha idade. Ele olhou com uma certa ironia para os meus pés. Só então reparei que tinha descalçado os sapatos. Os pés doíam-me. Tinha andado muito nesse dia e havia ainda mais ruas para palmilhar.
Era forçoso relembrar aquela tarde em que a encontrei à saída do colégio. Como ela estava bonita naquela tarde! Nunca a tinha visto vestida de colegial. Não posso esquecer do seu cabelo em rabo de cavalo sempre muito bem cuidado.
E a voz?... A doçura da sua voz de alentejana genuína que nunca mais ouvi?
Três horas e o calor não dá sinal de abrandar. Aproveito para tirar uma fotografia ao jardim, mais precisamente à zona oposta ao lago do Gadanha. A casa onde ela morava está agora em ruínas. Sonhei mais que uma vez com a casa, em ruínas. Talvez fosse mais do que coincidência. Ainda hoje pergunto a mim mesmo e não consigo encontrar explicação. Ruínas. Talvez também a minha vida esteja arruinada e ainda não tenha dado conta.
Meia hora mais tarde resolvi procurar o colégio. Parece que a memória não falhou, apesar das “histórias mal contadas”. Era em frente ao jardim. Não tinha dúvidas, embora agora fosse um quartel ou messe de um quartel.
Começou a festa. A alergia está a atacar com força. Ela também tinha esta alergia e nessa altura eu não sonhava com espirros e comichões de nariz que se repetem, todos os anos em fins de maio e na primeira quinzena de junho.
Aparentemente, estou constipado. Tudo é ilusão. A única verdade é que neste momento estou deitado na cama, de barriga para baixo, escrevendo, espirrando e fungando, ao mesmo tempo. O ataque começou, por coincidência, quando falei de “histórias mal contadas”.
Julgava que o colégio não era tão perto da casa dela. Estava em frente ao jardim. O gradeamento e os pormenores de uma janela do primeiro andar, situada centralmente, avivaram-me  a memória. O prédio sofrera alterações.
Tenho tosse. Que se passa com esta tosse? É um desafio. Se existe alguém presente, que se manifeste. Ótimo. Só o silêncio me responde. Posso então continuar...
Quanto mais olhava para o edifício, mais me convencia que existira ali um externato. Há mais de vinte anos.
Outra vez a tosse.
Voltando ao externato, só à terceira tentativa encontrei a pessoa certa e a minha hipótese foi confirmada. O indivíduo que contactei falou mesmo do doutor Cotta, o diretor do externato. Lembro-me ainda do contencioso que houve com ele por causa de uma carta que escrevi para o externato e endereçada a ela. Acontece que a carta foi parar às mãos do doutor Cotta e houve problemas. Mas a mãe da Manuela estava do nosso lado. Só não compreendo por que motivo escrevi para lá. Talvez por causa do avô. Lembro-me que era uma pessoa muito agressiva. Devia ser da bebida. Ou então já estava esclerosado.
Posteriormente o edifício foi vendido ao Exército.
«Quando as coisas estão bem encaminhadas, quando estou quase a descobrir... aparecem logo os obstáculos. Tudo começou com a diarreia (não rias). Depois, o mal estar no café e o agravamento do problema que tenho no pé direito (um vaso dilatado que me causa apreensão; apareceu ontem, à noite). Outra “história mal contada”, minha querida, foram os cães a ladrar para mim, incessantemente, antes de subir à Torre.»
«...»
«Continuas a não responder. Passa das sete. Daqui a pouco cai a noite e é altura de voltar à rua. O calor abrandou. Já não és um corpo negro e frio. Tens luz. Quero uma pista. Dá-me o calor infinitesimal da tua mente. Ao menos uma vibração. Vou ao restaurante procurar a jovem. Espero que o pé não me dê problemas.»

Escrevo de Lisboa
          Voltemos ao dia de ontem. Quando fui alugar o quarto, dei de caras com um homem mal encarado que me olhou com certa desconfiança. Era o dono da pensão. Não sei o que se passava na sua cabeça, mas a imagem que fazia de mim parecia não ser muito abonatória. Talvez pensasse que eu fosse um criminoso em fuga. Mentira. Fui a Estremoz com vontade de encontrar uma verdade que há muito me escapava. Verdade essa que continua por descobrir. Inclusivamente vim de Estremoz com mais dúvidas do que aquelas com que tinha chegado. E tudo começou quando aluguei o quarto. Quando passei a porta principal dei de caras com o dono que estava por detrás de um balcão. Havia três portas: uma delas dava entrada para os quartos do primeiro andar; a outra, para a sala de refeições; a terceira, não descobri para onde. Além do balcão, vi um frigorífico e duas ou três mesas. Digamos que aquela entrada funcionava como taberna. Ainda havia uma outra porta que comunicava com a cozinha.
Depois das formalidades do registo tentei meter conversa com o homem. Não resultou. O homem não gostava mesmo de mim. Valeu-me a presença na altura um velhote simpático que estava presente. Seguiu-se a conversa já referida atrás e que não me convenceu.
Jantei no Alentejano, conforme já referi. Comi bifinhos com cogumelos que foram acompanhados com vinho tinto Reguengos. Vinho da colheita do ano passado. Mentira de há pouco em que falei de imperiais. Nada de cerveja. Os bifes estavam saborosos. Depois de pagar a conta, despedi-me da jovem.
«Então até para o ano...»
«Vem só para o ano?»
«Pois é, venho de seis em seis meses...»
Menti, sem saber porquê.
Fui tomar um descafeinado na esplanada ao lado. Frente a frente com quem? Claro que com o tal homem das canadianas. Curiosamente, notei um certo ar de contrariedade nele. Não se fez velho lá. Nem eu, também. Soprava uma brisa forte, desagradável e, inevitavelmente, veio a alergia. Não pude evitar um acesso de espirros e comichões, ao mesmo tempo que me assoei por várias vezes. Era um convite para abandonar a esplanada.
No jardim senti-me ainda mais atacado pela alergia e só parei em frente ao edifício do antigo externato. Pensei nas afirmações categóricas do homem que me alugou o quarto. Segui em frente.
Senti a alergia apossar-se de mim ainda com mais força. Parecia que estava anestesiado. Deslocava-me como um autómato. O sono atacava forte. Queria resistir. Não conseguia. Fui forçado a voltar para trás. Já perto do externato, em  vez de seguir para a pensão, onde me esperava uma cama acolhedora, meti por uma rua à direita. Cada vez mais o sono era dono e senhor. Duas crianças cruzaram-se comigo. Vinham de uma travessa de nome S. Pedro. Tentei chamá-los. A voz saiu rouca, quase impercetível. Foi só à terceira tentativa que um deles correspondeu ao chamamento feito com dificuldade. Queria saber onde era a rua de S. Pedro. Fácil. Se continuasse pela travessa encontraria a rua.
Era uma rua estreita e mal iluminada. Várias pessoas apreciavam, à janela, o ar morno da noite. Caminhando ao longo da rua, ia olhando alternadamente para um e outro lado sem encontrar vestígios do externato.
Um externato ali?!...
Passei pela praça de touros. Fui encontrando ruas cada vez menos iluminadas, até que cheguei de novo ao local de partida. Experimentei a voz. Estava cada vez mais rouca.
«Bonito... Estou quase afónico!» pensei.
Já na pensão tentei dizer duas ou três palavras que não saíram. Ficara mesmo afónico.
Mal entrei no quarto, despi-me e enfiei o pijama. Nem fui à casa de banho. Deitei-me então sobre a cama e ali fiquei, sem reagir. Precisava de raciocinar.
Aquilo não era normal. Donde viera a sonolência irresistível?
Devo ter adormecido a pensar na sonolência. Meia hora mais tarde meti-me entre os lençóis e apaguei logo a luz.
Acordei às quatro horas para ir à casa de banho. Adormeci de novo. Eram sete horas quando me levantei. Tinha a sensação que o sono fora muito agitado.
Agora, o mais importante...
A certa altura da noite julgo que acordei com uma visão. Do meu lado direito, entre a cama e a parede, havia uma espécie de tabuleiro algo profundo. Digamos que era uma caixa de forma prismática. Aberta. Talvez fosse um caixão. Mas um caixão com muita, muita luz. Uma luz branca, intensa, que não deixava ver mais senão... luz!
Voltei-me para o outro lado. A luz intensa ofuscava-me. Não senti medo. Adormeci de imediato.
Que se passara? Apenas fora um sonho?
De manhã, ainda na cama, tentei rever a visão. Um tabuleiro vazio e muito iluminado que não deixava ver mais nada além da luz. Um caixão talvez à espera de alguém ou abandonado por alguém que já tinha muita luz.
De qualquer das formas, que significado dar?
E outra coisa de que me estava a esquecer: já não estava afónico!
Dirigi-me muito cedo ao cemitério e levei meia dúzia de rosas vermelhas. As flores que estavam na campa eram as mesmas de ontem. De certeza que ninguém lá tinha ido. Coloquei as rosas sem tirar as outras flores. Havia um rosário. A imagem redonda da senhora de Fátima que deixara da última vez já lá não estava. Talvez a mãe ainda fosse viva e viesse na rodoviária. Estávamos a 3 de junho e fazia anos que morrera.
Informei-me do horário. Chegou de Évora um autocarro. Trazia meia hora de atraso e não vi a mãe dela. Dei mais algumas voltas pela cidade e voltei ao cemitério por volta das dez. De novo tudo igual. Fui para o carro e dispus-me a esperar. Talvez que aparecesse alguém. Manobrei o carro para a sombra. O calor começava a apertar. Enquanto esperava por alguém que certamente não prometera vir, o corpo prismático inundado de luz não me saía da cabeça. Inundado... Era isso! A Manuela já não precisava de mim. Tinha luz. Só estava materialmente naquela campa onde havia um amontoado de ossos. Ossos sobre ossos. Mais nada. O resto estava comigo. Talvez para toda a vida.

Não sei se estás comigo. Apenas sei que me senti bem a recordar o nosso passado e era isso que tu querias, julgo. Só não gostaste que fosse à Torre. Mal cheguei ao cimo senti fortes cólicas intestinais e desci as escadas a correr. Precisava de encontrar com urgência uma casa de banho. Felizmente que as cólicas se atenuaram quando desci os últimos degraus. Coincidência? Não sei. Tive tempo de entrar no carro e voltar ao Rossio. Encontrei uma casa de banho providencial no café onde tinha estado antes. Mas voltando ao nosso passado. Tivemos uma relação curta. Nunca amei nem amarei como te amei. Quis-te muito e ainda te quero, estrela. É um absurdo, bem sei, mas o amor é assim.
Agora não te vejo. Nem te oiço. Apetece-me recordar mais. Lembras-te quando fomos à Torre e escreveste os nossos nomes algures, na parede da escadaria? Desta vez, quando comecei a subir as escadas, lembrei-me, mas estava muito escuro. Só ouvia o zumbido das varejeiras e de moscas mais pequenas. Certamente que os nomes continuam lá se a caliça não caiu. O estado de conservação da parede que flanqueia a escada em caracol não é o melhor e também não vi indícios de obras.
Nunca mais te vi e nunca mais te verei. Embora te oiçam chorar e estejas tão perto!

A história do cão

Estás diferente e, paradoxalmente, tão parecida, quando percorro as ruelas que sussurram a mesma história que já vivi noutros tempos. És a cidade do “Alto Alentejo cercada” e os teus murmúrios são recordações que voltam no ressoar das minhas passadas pelas pedras gastas das ruas íngremes e estreitas, onde, um dia, caminhei ao lado da rapariga do vestido branco e olhos tristes. Foi há muitos anos.
Obsessão?
Talvez. Ao fim de tantos anos e de coincidências in­críveis, dá para pensar. As recordações são tão fortes e obsessivas que têm calor suficiente para destruir o próprio presente que parece nada valer. Não resisto aos chamamentos que o passado me faz. E o passado reflete-se, fa­tal­mente, no presente e no futuro.
Não consigo concentrar-me porque aconteceu um fenómeno es­tranho. Posso chamar-lhe coisa. Também foi um amor à primeira vista.

Saí de casa dos meus tios por volta das oito da manhã. O calor prometia apertar. Antes de me dirigir para o jardim da Corredoura, tirei uma foto­grafia à Sé e outra ao monte da Senhora da Penha. Dei conta de um casal de jovens sentados num banco de tijoleira, virados para o monte, em contemplação e não só. Era cedo. Os namorados não se cansavam de trocar carícias. Podíamos ter sido eu e ela, pensei. Noutro tempo também estivemos ali e no miradouro de São Cristóvão.
A ideia fez-me sorrir. Era absurdo. Não podia estar a ver o passado. A máquina de viajar ao passado ainda não tinha sido inven­tada.
Mas o absurdo estava ainda para acontecer. 
Vi dois cães quando ia a atravessar o Arco do Bispo. Um deles aproximou-se. Pensei que o animal ia rosnar, tal como tinha acon­tecido, estranhamente (mas, o que é que não foi estranho?), em Estre­moz, no dia dois deste mês. Todos os cães que vi na zona da Torre antipatizaram comigo. Ladraram, raivosamente, à minha passagem, como que querendo dizer:
«Não és bem-vindo...»
Um dos cães aproximou-se. Era amarelo. De pelo luzidio, bem tratado. Via-se que tinha dono. Observei-o, cauteloso. Cheirou-me as calças e logo abanou a meia cauda. Fiquei descansado. Parece que tinha pas­sado no exame. Achei que o cão era simpático e disse-lhe duas pa­lavras amigáveis, justificando que não lhe fazia festas por ter as mãos ocupadas: numa tinha o dossier e na outra a máquina fotográfica.
Falar com um cão... Não estava bom da cabeça!
A resmungar, lá segui o meu caminho. E ele fez o mesmo. Com uma diferença. Resolveu ir atrás de mim. Como um cão que se prezava.
Parei.
«Não tenho nada para te dar...»
O animal também parou. Continuei a andar. E ele continuou a se­guir-me.
Como entrar na cabeça do cão e adivinhar os motivos que o levavam a seguir os meus passos?
Aquilo... era mesmo um cão?
O objetivo era a Corredoura, onde ia recordar o passado que me fugiu. Ver, de novo, o banco do jardim onde, tantas horas, eu e ela, estivemos sentados, entregues a contemplações apaixonadas. Foi nesse banco que o nosso amor ganhou raízes profundas e os olhares criaram os mais belos poemas que nunca consegui escrever. Foi aí que o céu virou azul para os dois. Definitivamente, adotámos o azul como estado de alma quando estávamos juntos.
Meti-me por atalhos. Tinha pressa de chegar. O passado estava à minha espera, sem ser preciso usar a máquina do tempo. De vez em quando, olhava para trás. Estranhamente, o cão seguia-me a poucos metros de distância. Sempre que parava, imitava-me e ficava a olhar para mim. Submisso. Talvez à espera de uma carícia. Talvez esperando um doce. Talvez...
Esqueci o cão. Estava a chegar à Corredoura.
Seria que encontrava o banco?
Reconheci a zona. Havia dois bancos, lado a lado.
Qual deles?
Talvez fosse o que estava mais próximo.
Ou era o outro?
Sentei-me unicamente por intuição. Mas o cão, esse não esteve com dúvidas metafísicas. Encostou o focinho às minhas calças e levantou as patas, tentando saltar para o banco. Admoestei-o, sorrindo.
«Não é lugar para cães...» Disse, apontando para o chão.
Insistiu.
«Sim, o chão...»
Ficou decepcionado, a olhar-me com um ar suplicante e doce. Mas não contemporizei. Que diabo! Não passava de um cão rafeiro. Nem sequer tinha pedigree...
Obedeceu. Mas, sempre que havia um ruído anor­mal à sua volta, levantava-se, corria a investigar, tentava de novo sal­tar para o banco e, resignado, deitava-se aos meus pés. Tantas vezes tentou que acabei por ceder. Deixei-o fazer o que queria. Ganhara todo o direito do mundo. E assim ficou deitado a meu lado, de focinho encostado às calças e olhando meigamente para cima. Pouco depois dormia a sono solto.

A alergia voltou. Comichão no nariz, na garganta. No outro tempo, ela tinha a alergia no fim da primavera e eu não. Só a tive mais tarde. E uma alergia não se pegava. Aparecia. Apenas aparecia. Mas porque me apareceu a mesma alergia que tinha a Manuela?
O cão adormeceu. Ainda não são nove horas da manhã e sinto-me bem. O ar vai aquecer mais. Tudo é silêncio. Oiço apenas o chilrear dos pássaros.
Olho o cão amarelo e sou apossado de uma ideia maluca. Penso que estou a ser castigado. Ter um cão por companhia, quando, noutro tempo, a mulher única, que sempre vi jovem, estava ali, a meu lado. O sonho da companhia imaginada eterna de uns olhos tristes e meigos que ainda hoje não esqueci e os olhos meigos de um cão que veio, não sei de onde, para seguir, fielmente, os meus passos. Coisa surreal esta última, Um cão que me seguiu e que agora dormia ao meu lado direito.
Como era no tempo que nos fugiu?
Ela ficava do lado esquerdo. Julgo que era assim. Era mesmo. Tenho a certeza.
E depois?
Depois parti para outras madrugadas. E tu também, estrela. Mas as tuas madrugadas acabaram cedo. Tinhas trinta e dois anos quando caíste na penumbra e ficaste a flutuar durante longos anos no éter, desorien­tada, até que me encontraste. Hoje talvez vivas cá dentro. Sangrando neurónios. Dia após dia. Descobri-te mais tarde, entre os neurónios que sangravam. Tentei dar-te luz. Penso que era o teu desejo. Mas não quiseste partir. Continuas ainda à minha volta. Por vezes, dentro de mim. Tens medo de partir para uma viagem sem regresso. E choras... dizem que choras com pena de não me teres! Nunca te ouvi chorar. Mas há quem oiça.
Algo veio alterar a situação. Dois cães de pêlo castanho e focinhos alongados, de uma beleza canina nada comparável ao rafeiro deitado ao meu lado, fixaram os olhos no banco. Penso que chegou a hora da partida. O cão já deu conta da presença. Levantou o focinho. Trava-se um diálogo telepático que não atinjo. A seguir, m dos cães afasta-se. O meu salta para o chão.
«Quieto!»
Olha meigamente para mim e parece dizer:
«Tenho que ir...»
Entendi. O outro cão... é uma cadela. Mudou de posição e pude identificar o seu sexo. Cheiram-se. Trocam carícias. Mais uma linguagem que não entendo. Talvez se trate também de um amor à primeira vista. Tudo se passa de forma rápida. Lá vão, Corredoura acima, e eu fico sozinho, tentando estabelecer um paralelismo entre a súbita e nobre amizade de um animal e a paixão que senti um dia por uma mulher especial.
Quando a vi pela primeira, numa noite cálida de setembro, tive a intuição certa. Era a mulher única que estava a ver nos olhos, tristes e ternos, de uma adolescente.

Agora veio um sinal mais forte e o cão esqueceu o dono, par­tindo para um novo rumo. Aconteceu o mesmo comigo. Mas nunca te esqueci. As cartas que trocámos ontem, fizeram-se em cinza. O teu corpo é pó. Hoje só a recordação arde em chama lenta. Mais nada. Tenta compreender. Deves partir. Já és livre. Tens luz!
Na sexta-feira levei-te rosas vermelhas. Ainda estavam as outras rosas do dia três. Secas.
Continuo sem saber como morreste.
É esse o segredo...?, não podes partir porque...?
O teu silêncio dilacera-me a alma. Sinto as garras da culpa. Quando te vi pela primeira vez acendeu-se logo uma luz. Eras tão frágil!
Continuando a pensar no paralelismo entre o cão e o que aconteceu connosco, um dia decidi seguir outro caminho. Agora é o cão que se afeiçoa. Mas um outro valor, mais poderoso, leva o animal a afastar-se em definitivo. De certo modo, fui também um cão para ti. Errei e estou a pagar. Mas tenta compreender. A liberdade é a única coisa que é dona de todos os seres vivos e ninguém deve impedir que cada um siga o seu caminho. Mesmo que não seja o caminho certo.
Também não te posso prender desse lado da porta!

Ontem fui com a Olinda e o tio Carolino a uma "soldadora" do Caia que vivia numa terrinha a poucos quilómetros de Por­talegre. Queria fazer uma experiência. Testar se os meus dons sempre existiam ou se, pelo contrário, em nada evoluíra.
O que viu ela em mim? Uma pessoa nervosa (coisa fácil de desco­brir) e com a boca do estômago inflamada. Nada de grave. Depois, havia a inveja de uma mulher. Tentei obter mais dados. Primeiro eu fazia o trata­mento. Depois se descobriria. Se a situação se inver­tesse, seria mau para mim. Jamais me curaria.
Boa maneira de fugir à informação e de me impingir medicamentos naturais.
Sugeri que talvez fosse um encosto. Nada de espíritos mortos. O meu mal vinha de uma pessoa viva que me invejava muito. E, surpresa das surpresas! Era uma mulher!
Então contei-lhe uma história ligada a uma mulher de vermelho. Não comentou. A fase da medicação tinha chegado. Era sagrado, admiti. Inevitável como um dia seguir a outro. Escreveu numa folha tudo o que devia fazer. Depois, levantou-se para ir buscar os remédios. Descobri um deles antes de ela o recolher. 
«Nervite.»
Sorri, ao ver que tinha acertado. 
«O senhor tem uma corrente muito boa!»
Fiquei a pensar. Tinha uma corrente muito boa. E para que servia se não passava de um canal por onde tudo passava e não podia intervir?

Foi bom retornar ao passado. Recordar. Foi bom encontrar o cão que me seguiu. E não precisei de descobrir. Mas a minha intuição disse-me. O que tem que acon­tecer, acontece mesmo.
Quando um dia te vi, envolta num manto negro de tristeza e fatalidade, acreditei que os meus passos acompanhariam os teus a vida inteira. Enganei-me. O nosso caminho não foi o mesmo. Mas aconteceu amor. De­pois, desencontro. Frustração. E agora, que es­tás do lado de lá, recordo o passado com saudade. Mas não te tenho nem me tens. Nem sei se o que sinto agora é a tua presença. Só me resta o poder do pensamento que é livre. Sonhar.
Como será o amanhã sem ti?
Na véspera da sua morte, Fernando Pessoa disse:
«Não sei o que me reserva o amanhã...»
Também eu não. Apenas tenho a certeza que um dia destes estarei contigo. Pode demorar muito tempo, mas esta premonição vai cumprir-se.

Oiço o ladrar desesperado dos cães. Talvez seja o aproximar do auge sexual. Com os outros animais está o cão amarelo. Um cão que apenas existiu para fazer paralelismo com o passado. Um cão que não foi miragem. Tirei-lhe uma fotografia no jardim da Corredoura. Ficou a olhar para mim, junto ao banco. Que cão tão estranho para ser o que era. E o que era? Um cão que queria, à viva força, deitar-se ao meu lado. E tanto tentou, que conseguiu, ador­mecendo encostado às minhas pernas. Um simples animal irracional concretizou tudo o que foi impossível para nós.
Agora estou neste banco à espera que nada aconteça. Só. Com as imagens do passado. Com o vazio do presente e com a promessa absurda do futuro voltar tal como o sonhámos e que nunca será.
«Está frio!»
«Não, está fresco...»
Lembras-te das nossas vozes?
O banco do jardim está vazio. Não vejo os teus olhos tristes. Não sinto o odor que emanava do teu corpo. Não estás presente, nem nunca mais te verei, Manuela!
Mas como foi que te conheci?

PORTALEGRE




A viagem para Portalegre era longa e aborrecida e fazia-se quase toda ela de comboio. O primeiro destino era Lisboa, seguindo pela linha do Oeste até à estação do Rossio. Depois tomávamos um táxi para Santa Apolónia onde tínhamos que esperar quase duas horas para seguir viagem. Uma seca das grandes, mas aproveitávamos o tempo para comer sandes de carne assada e ovos verdes.
Que delícia, os ovos verdes!
Finalmente a última etapa. Longa. Ou parecia longa.
«Vamos, meninos, despachem-se. Subam depressa para o comboio para arranjarem bons lugares.»
«Eu fico à janela, avó.» Gritou o Necas, um primo.
Condescendemos porque era o mais novo de todos. Depois a minha irmã Olinda teimou que não queria ir de costas porque enjoava. Houve um acordo tácito não fosse ela vomitar mesmo, e pior que tudo, para a nossa frente.
Lá nos arrumámos e a avó Maria começou a contar uma das suas muitas histórias cómicas para afastar o fantasma do nervosismo ou a excitação que pairava à nossa volta, e logo todo o mundo acalmou e ficou preso nas palavras mágicas que até tinham o dom de criar imagens animadas.
«Avó, conta aquela história em que uma vez deste partida ao comboio. É muito gira.» Pediu o Justino, irmão do Necas.
«Estava a pensar na outra, a do padre e o sacristão, mas está bem, pode ser. Depois conto esta que é também muito engraçada. Então lá vai a do comboio. E vem mesmo a propósito.»
«Vá, avó, deixe-se de introduções.»
«Não sejas enfrenesiado, Mário» disse o Justino. «Tem calma que a viagem é longa.»
«Um certo dia fiz uma viagem de Portalegre até Lisboa. De comboio, claro...»
«Ó mãe, veja lá como vai contar a outra história aos pequenos. Essa é demasiado picante. Francamente! Nem parece seu. Desista e conte outras. Tem tantas engraçadas!» avisou a tia Albina.
«Está bem, deixa. Ou queres que conte a triste história do sapateiro mouco?»
Pior a emenda que o soneto.
«Ó mãe!»
«Está bem. Eu sei como dar a volta. Mas agora vou contar esta.»
«Entusiasma-se e depois é tarde quando dá conta.»
«Posso continuar?» abespinhou-se com a filha.
«Tal não está a moenga! Nós já somos crescidos e o Necas vai dar uma volta pelo corredor, quando chegar a altura certa. A avó faz só um sinal no momento certo e fica tudo resolvido.»
«Isso não é justo!» queixou-se o Necas.
«Nem parece teu, Mário! A criança pode cair com os solavancos do comboio.»
«Então tapamos os ouvidos ao miúdo.»
«Boa ideia, Mário. És um perfeito idiota.»
«Vê lá se queres levar um carolo.» Disse, a brincar, para o Justino.
O pessoal começou a ficar impaciente.
«Continue, avó!» gritámos, em uníssono.
E assim a longa viagem custava menos a passar. Quando as histórias chegavam ao fim, porque a minha avó adormecia, de cansaço ou saturação, inventavam-se brincadeiras. O pior era quando alguém decidia apanhar ar fresco deitando a cabeça de fora por uma das tradicionais janelas de guilhotina. E esse alguém fui eu, por exemplo. Os meus quinze anos já o permitiam mas os outros logo queriam imitar. Situação complicada. Depois de ouvir ralhar, desistia de repetir a ação, embora refilasse que estava muito calor e isso. E tinha razão. Estava mesmo muito calor. Calor. Sinal de corrida à água. Todos queriam beber ao mesmo tempo e era um desassossego.
Chegava então a altura das cantorias. Não podiam faltar, claro. Eu cantava e o Justino encarregava-se dos ritmos, improvisando logo uma bateria ao utilizar um encosto de braço do assento. O Zeca, que eu considerava a ovelha ronhosa do grupo, queria também entrar no conjunto musical, mas só com a intenção de fazer palhaçada. Claro que foi excluído ao fim de cinco minutos com um carolo bem dado. Eu tinha boa voz e não queria desafinação. Mas agora que passara para o sexto ano, adeus Canto Coral que já não constava do currículo do próximo ano. E com as nossas cantorias o tempo parecia correr mais depressa.
Entroncamento. Nova mudança de comboio. A lentidão era notória e a paisagem tornava-me melancólico, sem que entendesse a razão. Uma planície infindável, semeada principalmente de sobreiros, azinheiros e oliveiras. O trigo já fora colhido e viam-se imensos fardos de palha espalhados pela planície. Não sabia se eram reminiscências da costela alentejana que tinha, se sentia que estava cada vez mais longe do meu torrão natal. O certo é que fiquei triste sem ter motivo à vista.
«Canta mais, Mário. Uma daquelas canções latino-americanas que sabes cantar muito bem.»
«Já não me apetece. Estou chateado.»
«Uma italiana.» Pediu a Olinda.
Entretanto chegámos a Abrantes, onde o comboio esteve parado quase vinte minutos. Em má hora tive a triste ideia de espreitar pela janela para a frente, debruçando-me o mais possível para tentar ver a máquina a vapor causadora de tanta lentidão. Um cisco entrou-me na vista e, quanto mais esfregava, mais comichão tinha na vista. Então lancei uma imprecação que, logicamente, não foi remédio para fazer desaparecer a vermelhidão da vista, inflamada de tanto ser esfregada.
«Quem te mandou espreitar? Quanto mais esfregas, pior é. Nunca te disseram que os olhos só se devem esfregar com os cotovelos?»
«Cala o bico, Zeca, que ainda levas um caldo!» impus-me, agastado.
De facto o Zeca era pessoa não grata. Eu cá tinha as minhas razões, mas não são para aqui chamadas.
Na gare, as mulheres afadigavam-se a tentar vender água fresca em bilhas de barro ornamentadas com pedrinhas brancas. Gabei a paciência sem limites dos artífices que tinham executado aquelas obras-primas.
«Palha de Abrantes! Palha de Abrantes!»
«Palha! Chamam por ti, Zeca...»
Sobressaltou-se. Estava distraído.
«Quem me chama?»
«A palha, meu burro!» continuei a zombar.
«Que palha?»
Risada geral.
Tive uma sensação imediata de água na boca. Comprar! Comprar! Mas pus logo a sugestão de parte. Com pena, diga-se. As vendedoras não sabiam com quem se estavam a meter. Um capitalista do tostão como eu era só se podia dar ao luxo de sonhar. Uma qualidade ou defeito, conforme a perspetiva. Aliás, tinha que gerir muito bem o dinheiro que o meu pai me dera para gastar em extras. Não tinha feito pé-de-meia porque o meu lema era chapa ganha, chapa gasta. Nunca tive jeito para aforrar. A semanada era uma moeda de prata de dez escudos. Dinheiro volátil. Diga-se que, se tivesse poupado algumas moedas de prata e convertido depois em ouro, hoje estaria rico.
Após dez longos minutos de espera o ronceiro do comboio lá partiu e continuaram as cantigas e as brincadeiras. Cheirava cada vez mais ao Alentejo à medida que nos aproximávamos do fim da viagem. Mais umas sandes e o resto dos ovos verdes. A água começou a ser racionada, o que foi uma tragédia porque o calor não dava sinal de abrandar. Entretanto o céu começou a ficar menos claro. Aquela mudança de tonalidade da luz quebrou as últimas resistências e a rapaziada acalmou de vez. Foi bom porque senti uma tranquilidade e sensação de nostalgia só explicável porque tinha uma costela alentejana. Guardei para mim aquele bem-estar que me envolvia e fiquei à espera que acontecesse qualquer coisa de mágico. Mas foi em vão.
Talvez ainda fosse cedo. Mas tinha cá uma destas sensações! Não queria forçar, mas acreditava que qualquer coisa boa estava para acontecer.
A sensação de paz cedo se transformou numa monotonia que quase levou ao sono. Mas as coisas ainda iam aquecer. E não faltava muito.
Noite cerrada. Finalmente a estação de Portalegre.
«Maldição e morte!»
«Que viste, Mário?» perguntou o Justino.
«Olha...»
«Estou a ver, mas não vejo nada.»
«E agora?»
«Pois.»
A verdade nua e crua estava na nossa frente. Só um cego não via. Íamos mudar para uma camioneta muito velha. Num momento vi o filme todo. Não augurava nada de bom.
«Este calhambeque é do tempo da outra senhora. Isto não se admite. Vamos ficar todos pelo caminho! Ou não me chame Mário.» Agoirei.
«Quem é a outra senhora?» perguntou ingenuamente o Necas.
Rimos em uníssono e claro que amuou logo.
«Deixa-os rir, Necas, que ainda vai ser pior do que julgam.» Disse, sabiamente, a avó Maria.
Pior em que sentido?
«Toca a correr rapaziada!»
Obedecemos à ordem da nossa avó. Compreendi logo a razão da ordem, ao dar conta que havia gente a mais para uma única chocolateira. Todo o corredor ficou ocupado num instante e senti-me espremido com um limão. O Necas choramingava. A minha avó chamava velho a um velho mais novo que ela, como era costume, ao mesmo tempo que o empurrava com a sua barriga proeminente. Nós ríamos e o Necas continuava a choramingar. Aquilo até tinha graça. Depois, começaram todos a gritar, em fúria, que devia haver outra camioneta, que era uma vergonha para a empresa, que não havia direito, etc e tal, onde estavam incluídas outras expressões mais incisivas que não conto aqui. Uma questão de bom senso.
«É o que há, pessoal. Quem quiser vai a pé. São só dez quilómetros.»
Resmungou o condutor.
Estava farto do barulho e cansado de colocar malas e outras bagagens no tejadilho e de dar voltas e mais voltas com a corda para prender tudo muito bem não fosse alguma mala cair pelo caminho. Até seria giro desde não fosse nenhuma das nossas, claro. Os meus quinze anos, feitos recentemente, davam-me um certo à-vontade para não me preocupar com coisas de somenos importância.
«Então partimos ou não partimos?»
O pessoal começava a ficar impaciente.
«Já disse. Quem não está satisfeito pode ir a pé.»
«São só dez quilómetros.» Disse eu, subindo a voz.
«Quem foi o engraçado?»
«Eu.»
«Eu.»
«E eu.»
Finalmente a camioneta pôs-se em marcha e reparei então que o estado do piso era péssimo, o que não ajudava. Felizmente que estávamos como sardinha em lata e assim ninguém se desequilibrava. Coisa divertida ouvir palavrões de fazer corar. Depois, as crianças choramingavam, as mães ralhavam, os velhos protestavam e o condutor ia pelos cabelos, muito preocupado com a carga excessiva que a camioneta levava, quase parando nas subidas. Nesses momentos o ruído das vozes baixava a zero. A estrada, segundo a minha modesta e talvez fantasiosa opinião, era uma montanha russa que, ainda por cima, serpenteava. Muito pior que a da Feira Popular de Lisboa.
Uma subida mais íngreme e eis que a vetusta camioneta recusou-se a continuar a marcha. Ao mesmo tempo o motor foi-se abaixo.
«Aselha!» gritaram alguns.
O condutor ignorou o insulto, acionou a ignição e nada. Motor calado.
«Bonito serviço!» exclamou.
«Bonito serviço é o que a empresa está a prestar aos viajantes!»
«A culpa é do Murta que só pensa em lucros!»
Alguém opinou que o motor aqueceu de mais. Outro disse que era um furo. Ainda outro que tinha faltado a gasolina.
«Essa rosca anda ou não anda?»
O motor lá pegou.
«Vá, desçam os homens para ver se esta geringonça tem força para arrancar.»
«E depois?» perguntou um inteligente.
Depois iam todos a pé para a cidade.
Assobios dos homens e gritos histéricos das mulheres perante a decisão do motorista.
«Espero no cimo da ladeira, não acham?»
Bem me parecia que o motorista estava no gozo.
«Ah!, seu filho de uma magana...»
«Alto lá com o charuto. A minha santa mãe não é para aqui chamada. Agora, sim, tenho a impressão que vão mesmo a pé para a cidade.»
Lá chegámos a casa dos meus tios, sãos e salvos.
Jantámos no quintal. A mesa já estava posta e o jantar pronto a ser servido. Tinha uma fome terrível. Os deliciosos ovos verdes e as sandes de carne assada já lá iam. Naquela idade o muito era sempre pouco.
Lembro-me ainda de um pormenor. A mesa estava bem iluminada com meia dúzia de lâmpadas que pendiam de um fio que circundava uma das três laranjeiras que existiam no quintal.
Não vou falar do jantar. Foi bom, mas o melhor ainda estava para vir.

A rapariga do vestido branco
Nunca mais esqueceria essa noite quente de 9 de setembro...
Acabámos de jantar já depois das nove. A noite estava agradável para fazer a primeira exploração na cidade. Ficou combinado que íamos até ao Rossio. Estilo peregrinação, o que não me agradou. Os meus quinze anos exigiam liberdade. Além do mais não estava para aturar as parvoíces do Zeca. Logo se veria.
Saímos todos ao mesmo tempo, mas resolvi logo apressar o passo, não sem antes combinarmos que às onze, o mais tardar roçando as onze e meia, encontrávamo-nos todos na esplanada do Facha.
«Não te afastes sem saberes onde é o local do encontro.»
«No Facha, tia. Eu depois pergunto onde fica.»
Chegado ao Rossio, parei por momentos para apreciar o enorme plátano, o cartão de visita da cidade. Era na verdade grandioso. Depois, fui subindo pelo campo térreo para onde vi as pessoas encaminharem-se. O célebre Passeio de que muitas vezes o Justino me falou.
«Chama-se Passeio porque as pessoas costumam passear ali.»
Lógico. Claro como a água.
A meio, do lado direito, vi uma esplanada literalmente cheia de clientes que se dessedentavam, defendendo-se do calor da noite, e cavaqueavam animadamente. Observei o conteúdo das mesas e vi pirolitos, cervejas, gasosas, laranjadas. Alguns clientes tomavam café. Observei com mais pormenor e vi ainda vários pratos com bolos e outros com tremoços e amendoins, também chamados alcagoitas. Para mim, o único líquido capaz de matar a sede era a água. Cerveja não bebia ainda nos meus tenros quinze anos. Mas não tardaria a acontecer. Com moderação, claro. Salvo nalguns dias que, por força das circunstâncias, se tornaram excecionais.
Havia também outro plátano no centro da esplanada, de dimensões mais modestas que o primeiro. De dia devia ser um bem precioso para bloquear a passagem dos raios solares que tanto agrediam a pele das pessoas nos dias soalheiros e quentes alentejanos. Nessa altura falava-se pouco do perigo que representava uma exposição prolongada aos raios solares, talvez por pura ignorância, talvez porque não se falava ainda do buraco do ozono.
E um capilé fresquinho?
Por motivos óbvios pensaria nisso nos próximos dias se gerisse bem o capital disponível que, em boa verdade, não era muito. Os tempos de então eram difíceis e o meu pai tinha outras prioridades bem mais prementes.
Relativamente à gestão do dinheiro, aproximavam-se os dias de feira com os tradicionais carrosséis, pistas de carrinhos de choques e de corridas, poço da morte, robertos, tanto do meu agrado, não podendo esquecer as guloseimas como o torrão que quase estoirava com os dentes e também as farturas, bem embebidas em óleo refervido e cobertas de açúcar loiro, que eram de comer e chorar por mais. O pior vinha depois. As malditas dores de barriga, vulgo caganeiras.
Era muita coisa para tão pouco dinheiro, admiti. Quanto ao inevitável poço da morte, gostava muito das exibições dos profissionais das motos desafiando o equilíbrio sobre os cilindros rolantes. Mas arrepiante, arrepiante era tudo o que se passava no interior do poço, rotulado com muito realismo de poço da morte.
Mas que estava a fazer parado em frente à esplanada já que tinha decidido não fazer a mínima despesa?
Continuei Passeio acima, ainda com as imagens de tudo o que vira na esplanada e a antevisão da feira das cebolas que estava para breve, dando conta que a iluminação era ótima e assim podia apreciar bem as pessoas que passeavam para baixo no momento em que subia, especialmente as raparigas. À medida que ia subindo e a cascata ficava mais próxima, o ajuntamento de pessoas crescia, formando pequenas bolsas de obstrução a quem queria deslocar-se, pois conversavam em grupo e não deixavam a mínima margem de manobra. A culpa era da noite que estava morna.
Comecei a ficar farto de impasses e choques e mudei de estratégia. Ia procurar um lugar sentado nos muitos bancos que via, dispostos em espinha. Assim, olhei em volta. Ingenuidade a minha. Não vi um único lugar disponível. Mas vi outra coisa bem mais agradável quando descobri, num dos muitos bancos existentes e ocupados pelas pessoas, um rosto que me hipnotizou logo. Fixei-a e fiquei encantado. Que sensação estranha ao ver aquela jovem vestida de branco! 
Mas quem era ela e o que tinha acontecido comigo?
Se eu nunca a tinha visto nesta encarnação, como acreditei naquele momento que era a desejada?
Estranho pressentimento para quem vinha de longe. Não sei explicar melhor. Aconteceu.
Pouco depois levantou-se do banco e esperou pelas outras pessoas que a acompanhavam. O seu olhar alinhou-se com o meu. Sim. A expressão do olhar, muito triste, impressionou-me bastante e a primeira ideia que tive é que ela era infeliz. Depois, parecia mergulhada no passado porque o seu olhar estendia-se para lá do horizonte. O que mais me chocava era o seu ar de circunstância, à espera dos outros e sem sequer descobrir que estava a ser observada. Tinha uns olhos muito tristes.
Só então dei conta que era ainda muito jovem. Admiti que não devia ter mais que treze anos. Disparate o meu quando pensei que aquela jovem parecia mergulhada no passado. Estava bem presente na minha frente. Bem viva. Bem real.
Observei-a com mais detalhe. Era bonita, de rosto alongado, traços finos. Cabelo castanho comprido, apanhado numa única trança.
Hipnotizado por aquele momento único, continuei a minha observação. Assim, olhei para o vestido branco com a bainha um pouco abaixo do joelho. O peito estava ainda em embrião.
Treze anos, Mário? Ganha juízo nessa tua cabeça de alho chocho…
Foi inevitável voltar a fixar-me na expressão do seu olhar.
Tanta tristeza, porquê?
Tinha a certeza que os nossos olhares se cruzaram. Mas foi só por um momento. Não era o bastante para se lembrar de mim se não a voltasse a ver. Ou talvez não. Não foi por acaso que a encontrei e me apaixonei logo por ela.
Paixoneta de verão?
Finalmente as pessoas que a acompanhavam levantaram-se do banco e este foi de imediato tomado de assalto. Também já não me interessava um banco. O meu interesse era outro e não acreditava que se fossem embora. A melodia não podia ser interrompida assim, sem mais nem menos.
E se nunca mais a visse?
Não queria que ficasse na memória a imagem derradeira da expressão dos seus olhos doces e tristes. Queria mais. Para tal era preciso voltar a vê-la.
Passou ao meu lado. Foi a vez de ficar triste porque confesso que não me viu. Bem quis transmitir-lhe a mensagem que tinha em mente:
«Estou aqui, jovem desconhecida, para te oferecer uma rosa. Este encontro não foi um acaso porque nós fomos destinados um para o outro. Acredita que está escrito há muito nas estrelas…»
Andava com o carro à frente dos bois mas não me importava. Durasse o que durasse o tempo a passar, este encontro não acontecera por acaso.
De onde veio aquela premonição?
A sua resposta provável:
«O mundo está cheio de sonhadores.»
Fiquei a vê-la a descer o Passeio em direção ao Rossio. Sempre era verdade que ela se ia embora e a melodia ainda estava por compor.
Acompanhei à distância os seus passos. Sentia-me feliz e nem sequer aconteceu qualquer coisa de especial, a não ser ter visto aqueles olhos tristes e belos. Não importava que ela nem sequer tivesse dado por mim. A paixão nasceu no próprio instante em que a descobri e nesse instante cheguei à conclusão, sem admitir contraditório, que nunca mais deixaria de gostar dela.
Foi muito estranho!
Nem um olhar cúmplice, nem o clássico truque do lenço que podia ter apanhado para poder ouvir a sua voz:
«Obrigada.»
Devia ter uma voz bonita, uma voz corrida e límpida que mais parecia cantar.
«Não tem de quê. Foi um prazer. É de cá? Julgo que não. Mas não se vá já embora. Quero acreditar que não se vai já embora...»
«Porquê?»
«Pela simples razão de que assim não valia a pena tê-la encontrado. Não se perde um grande amor logo no primeiro dia que se encontra.»
«Mas... um grande amor?, assim, tão de repente?»
«Não diga nada. Ou melhor: diga-me só o seu nome que eu faço-lhe um poema.»
Ah!, meus pobres quinze anos que não mais voltaram!
Já mais abaixo, perto da esplanada onde tinha combinado o encontro com os meus familiares, vi-a infletir para a esquerda.
O relógio! Era isso. Dez para as onze. Já não tinha mais tempo para a seguir. Se Deus quisesse, havia mais dias. Deus era meu amigo. Não ia deixá-la partir sem lhe dirigir uma palavra.
Suspirei profundamente e fui ter com os meus primos e com a Olinda. Já me esperavam na esplanada. Também estavam a tia Albina e a avó Maria, afilhada da mãe do infeliz poeta José Duro. A minha avó era uma contadora de histórias sem igual, embora muito repetidas, mas sempre com o mesmo enredo, sem uma falha. E já me esquecia do patife do Zeca, a quem dava frequentemente surras merecidas. Ou talvez exagerasse. Não sei bem. Perdia a cabeça quando o grande sacana me provocava.
Chamei a minha tia de lado e sussurrei:
«Estou apaixonado, tia!»
«Que aconteceu, rapaz?»
E contei-lhe como aconteceu, sempre em voz baixa. Receava que os outros ouvissem.
«Mas nem sequer chegaste à fala com ela!»
«Isso não quer dizer nada, tia. Como posso explicar? Senti uma coisa estranha cá dentro. É como ter uma doença sem estar doente. Entende?»
«Sim, Mário.»
«Nunca estive assim.»
«Pronto, acredito. Mas acalma-te, que isso faz-te mal. Agora vamos para cima. Amanhã ou depois vais dizer-me quem é a gaiata. Talvez o teu tio a conheça, ou alguém da sua família. Ele conhece toda a gente da cidade, acredita.»
«E se ela não é da cidade, tia?»
Foi uma fatalidade tê-la encontrado naquela noite de setembro. Nunca mais esqueceria o dia nove.
«Ó tia, eu só a encontrei há bocadinho e é como se a conhecesse de sempre. É muito bonita. Tem uns olhos castanhos que são um sonho! Mas é uma rapariga muito triste. Que é que lhe fizeram, tia?»
«Estás mesmo apanhado! Já estou a ver que vais ainda hoje escrever no diário tudo o que aconteceu esta noite, depois de veres essa moça.»
«Moça?» indignei-me.
«Sim, moça.»
«Ó tia!»
«O quê?»
 «Moça não é uma palavra apropriada para ela. Moça é uma mulher de mau porte. E ela é... é pura!»
«Essa palavra tem um outro significado cá no Alentejo. Quer dizer, simplesmente, rapariga. Não estejas a fazer leituras erradas, Mário.»
«Ah! Mas como é que adivinhou que vou escrever no diário? Depois a tia guarda-mo?»
«Fica descansado.»
«Pode lê-lo. Mas não mostre a ninguém! Muito menos ao cusca do Zeca. É preciso ter muito cuidado com esse manhoso.»
«Não sejas assim com ele, Mário!»
Estavam todos sentados a uma mesa da esplanada, mas nem sequer havia um pirolito visível. Fregueses do cuspo, pensei.
«Estão todos?» perguntou a avó.
«Falta o Justino. Foi mesmo agora à casa de banho.» Disse a Olinda.
«O café já fechou.» Informou o Zeca.
Entretanto apareceu o Justino. Tinha urinado no beco contra a parede, aproveitado a escuridão, boa conselheira para um ato de aflição com aquele.
Assim foi a primeira noite que passei em Portalegre.
Quando chegámos a casa não consegui escrever no diário mais que meia dúzia de linhas, decidindo guardar o resto da inspiração para o dia seguinte. É que o sono era muito e venceu a batalha. O tal João Pestana, de decisões irreversíveis, e de quem falava o meu amigo invisível que se chamava Ernesto. Mas aconteceu noutros dias que o tempo impiedoso já tragou.
Resolvi deixar o diário debaixo do travesseiro para ninguém o roubar. Era tão secreto, tão secreto que só a tia Albina o podia ler. Nem sequer a minha irmã Olinda tinha autorização.
Claro que voltei a pensar na jovem desconhecida antes de adormecer. Já a inversa não era verdadeira, embora o sonho fosse rei e me desse o poder de imaginar que, também já deitada na cama, pensava no desconhecido que ousara olhar para ela de uma maneira tão diferente, tão apaixonada!
«Aquele rapaz que vestia uma camisola azul olhou para mim de uma forma tão intensa que até corei. Mas amanhã, se o vir, vou tentar encará-lo mais frontalmente. Não vejo mal algum em falar-lhe, se ele me dirigir a palavra. É muito simpático! Nunca se sabe. Talvez seja o príncipe encantado que aparece nos meus sonhos e foge quando o encaro de frente.»

Dorme, dorme... que ela também já está a dormir e deixa-te de ilusões que não vai sonhar contigo, pela simples razão de que nem sequer deu pela tua presença hoje à noite, meu grande paspalhão. Toca mas é a dormir que amanhã é outro dia e, se calhar, vais logo esquecer o "grande amor da tua vida".
Quantos outros grandes amores terás, pinga-amor?
Não me venhas com conversas que não me convences. Serás sempre o eterno romântico!
Sonhos cor-de-rosa, Mário.
«Até amanhã, diário!»

Os dias que estive em Portalegre, de 9 de setembro a 5 de outubro, tiveram pouca história. Ainda era muito novo para tomar decisões em relação a casos amorosos, como foi o que aconteceu com a rapariga de Castelo de Vide, tal como a batizou o tio Carolino. Acrescia, em meu abono, que foram poucas as oportunidades que tive para a abordar, uma vez que saiu sempre acompanhada por alguém. Limitei-me a segui-la, prudentemente, à distância. Ao mesmo tempo, sem dar conta, o vulcão adormecido foi ameaçado pelo aumento de pulsação da câmara magmática para um nível altamente perigo. Num instante, a lava podia romper entre os estratos e tornar-se incontrolável, provocando alguns estragos no meu coração inexperiente. Sem entender porquê, sentia-me cada vez mais apaixonado pela jovem desconhecida e enchi páginas e mais páginas do diário com palavras obsessivamente repetidas, onde deixei a descoberto um estado de alma quase paranoico. Com uma certa ingenuidade deixei que a própria teia que teci me envolvesse, a ponto de ficar prisioneiro do seu abraço fatal.
E o que podia fazer?
Apesar do fracasso amoroso, considero que foram dias bem passados, em especial os que coincidiram com a feira. Soltei os cordões à bolsa e vinguei-me nos carrinhos de pista e de choque, no carrossel, no torrão, nas farturas, e etc, etc, a ponto de ir à falência enquanto o diabo esfrega um olho. Valeu-me a ajuda bondosa do tio Carolino, sempre atento aos meus baixios financeiros.
Tinha como companheiro o Justino. Dava-me às mil maravilhas com ele e fazíamos também uma barreira à tentativa de infiltração do Zeca. Não gostava dele porque um dia fez uma patifaria. Partiu um vidro a jogar à bola e escondeu-se por detrás do meu nome.
Apareceu um polícia na loja do meu pai a dizer que eu tinha partido um vidro.
«O meu filho? Não acredito!»
Facilmente tudo foi deslindado, mas não me livrei de alguns momentos de angústia. Assim, não me arrependo das várias surras que dei no meu primo, por tudo e por nada. Mas adiante, que ele não faz parte desta história.
As férias chegaram ao fim e regressei ao meu torrão natal. Começaram as aulas e voltei à rotina. Aulas, livros, trabalhos de casa e perseguição à distância das jovens que me despertavam paixões repentinas, nuvens passageiras das quais, rapidamente, perdia o rasto.
Nunca me esqueci da rapariga do vestido branco, embora não tivesse deixado de olhar para um ou outro rabo de saias. Simples episódios que não deixaram rasto. Era o tempo das descobertas, de aprender com as paixões passageiras, alimentadas por fogos oriundos de vulcões pouco perigosos. Entretanto o vulcão não dava quaisquer sinais da sua existência ameaçadora, a não ser nos sonhos que tinha com a desconhecida que esperava rever no verão seguinte.

Voltei a Portalegre outra vez em setembro. Mas, deceção, ela não apareceu. Fiquei muito triste e talvez por isso o tio Carolino teve pena de mim e fez algumas diligências que acabaram por dar resultado. Como tinha uma loja de comércio e a criada da casa onde a jovem esteve hospedada costumava fazer aí as compras, conseguiu que esta lhe desse alguns dados. Primeira coisa: afinal a rapariga do vestido branco não era de Castelo de Vide, mas sim de Estremoz. E segunda coisa, esta muito importante: conseguiu uma fotografia da jovem, o que me deixou quase louco, tal a emoção. Finalmente a terceira coisa: chamava-se Manuela.
Consegui entrar num grupo de rapazes da minha idade e divertimo-nos a valer, não só nos jogos de futebol que fazíamos no pátio da Mocidade Portuguesa, como nas tentativas de meter conversa com as raparigas que nos davam troco.
Os sábados eram sagrados no mercado recentemente inaugurado, onde as raparigas tinham por hábito passear-se em pequenos grupos, sempre muito bem vestidas e exuberantes nos sorrisos que distribuíam, à direita e à esquerda dos ajuntamentos de rapazes que não as perdiam de vista. Não comprávamos sequer uma couve, mas fazíamos figura a perguntar o preço disto e daquilo. Nem tudo eram rosas. Passávamos também por torturas odoríferas quando as raparigas se dirigiam para a zona de venda dos queijos que primavam pelo mau cheiro, apesar de serem muito apreciados.
Quanto às manhãs de domingo, essas eram destinadas ao santo sacrifício da saída da missa, onde as trocas de olhares e sorrisos se repetiam.
Ainda nesse ano conheci um rapaz com quem travei uma amizade. Apesar dos vários avisos do meu tio Carolino, deixei-me embalar pela conversa "interessante" desse meu novo amigo.
Não sei como tudo começou, nem me lembro da maior parte dos detalhes. É lógico, pois aconteceu há muito tempo. Só me lembro da técnica que usou para me sacar algum do pouco dinheiro que tinha disponível para gastar na feira que se aproximava. Por esse motivo, andei menos nos carrosséis e nos carrinhos de pista e de choques. Comi também menos farturas e não cheguei a provar o saboroso torrão. Limitei-me mais a ver do que a intervir.
Mas como aconteceu?
O Alberto era um rapaz muito experiente em "burras de saias" e conversas insinuantes que me prometiam a própria lua. E eu, feito lobo tolo, deixei-me levar pelas promessas da raposa. Deve ter havido mais casos, mas só me lembro de dois.
Vejamos o primeiro…
O Alberto namorava secretamente uma rapariga que morava no último andar de um prédio da rua do Comércio. No topo havia um terraço onde aparecia uma jovem que acenava para ele e que não ficava sem resposta. Era fatal acontecer sempre que passávamos na rua e não foram duas nem três vezes.
Um dia, depois de acontecer a cena dos acenos, já quando íamos ao fundo da rua, ele perguntou-me se trazia dinheiro.
«Porquê?»
«É que combinei com a Dores e uma amiga irmos ao Cine Parque e só agora me lembrei e não trago dinheiro comigo. Podes emprestar-me algum até amanhã?»
Demorei a responder, pois pensei logo nas recomendações do tio Carolino.
«Olha, Mário, tem cuidado que ele é aldrabão e caloteiro...»
Pareceu adivinhar a minha hesitação e disse, quase de imediato:
«Deixa estar. Eu cá me arranjo. Mas apresentava-te a amiga da Dores e talvez se entendessem. Ela é gira e moderna. Se não namorasse a Dores, garanto-te que não me escapava...»
Quem podia resistir?
Resposta: todos, menos o burro do Mário... que não tinha burro, entenda-se.
«E de quanto precisas?» perguntei, já alvoraçado, de pensamento na amiga da namorada do Alberto.
«Aí de uns trinta, trinta e cinco...»
«Tanto?»
«Lembra-te que no intervalo temos que as levar ao bufete!»
«Ah sim. É conveniente.»
Tirei da carteira uma nota de alface e o resto foi em trocos.
«Olha, já são seis e meia. Ainda tenho que fazer um recado ao meu pai e depois vou comprar os bilhetes.»
«Ok. Encontramo-nos no Cine Parque a que horas?»
«Está bem às dez para as nove?»
«Certo. E não te esqueças dos selos.»
«Não me esqueci. A coleção é também da minha irmã e já consegui convencê-la. Se te perguntar, diz que compraste por trinta escudos. O mais tardar será depois de amanhã, está bem? É uma coleção fabulosa. Acredita que fazes um bom negócio.»
Às oito e meia já estava junto à entrada do Cine Parque, lá para os lados da Corredoura.
Dez para as nove. Foi pontual.
«Sempre quero ver como é essa amiga da tua namorada.»
«Bom, é um grande azar. Ela não pode vir.»
«Não pode vir?»
«Não. Adoeceu o pai e já foi para os Fortios na camioneta das oito.»
«E o dinheiro?»
«Comprei só três bilhetes. Vai o irmão da Dores a fazer de pau de cabeleira. Claro que não comprei bilhete para ti.»
Achei que o Alberto tinha feito bem. Quanto ao resto…
«Dá-me ao menos hoje quinze escudos.»
«Pode ser amanhã?»
«Dava-me jeito hoje.»
«Pode acontecer um imprevisto.»
Escusado será dizer que fiquei a arder com os trinta e cinco escudos e mais cinquenta por conta dos selos, porque só vi o dinheiro quando D. Sebastião se dignou a aparecer!
Agora vou confessar uma coisa que decerto a minha tenra idade serviu de atenuante. Acontece que cometi uma pequena traição na ausência da minha apaixonada quando comecei a interessar-me por uma miúda muito gira. Uma chinesinha de olhos bonitos que se chamava Joana e era filha de um médico conceituado da cidade, não sei se pelas provas dadas ao serviço da Medicina, se pela riqueza visível que fora acumulando, fruto da profissão e também de uma herança. Vivia num solar situado numa rua perpendicular àquela onde a minha avó morava.
Sempre que passava pela rua do solar não deixava de visitar a minha avó, aproveitando para me deliciar com uma colher de sopa de geleia e uma generosa fatia de boleima recheada com marmelada.
«Então viste a Joana?»
«Hoje não tive essa sorte, avó. E olhe que passei pelo solar três vezes. Nem mais, nem menos.»
«E a Manuela?»
«Ora! Isto com a Joana é só um passatempo. Sabe, avó que já tenho uma fotografia dela?»
«Da filha do doutor Geraldo? Vê lá onde estás a meter-te, Mário. Olha que é gente muito fina!»
«Claro que não! A fotografia é da Manuela.»
«Ah!, ainda bem. E quem foi que te arranjou a fotografia?»
Sorri. Era segredo de estado.
«Já sei quem foi a pessoa. O meu genro. É mesmo coisa dele.»
Voltei a sorrir e mudei de assunto.
«E quando a avó me conta a história do sapateiro mouco (1)
«Ah... o sapateiro.»
«Lembrei-me porque estou a vê-lo sentado no banco. Olhe, sorri para nós. Por que razão está sempre a sorrir, avó?»
«Ora, porque é tonto.»
«É verdade que a mulher se porta mal?»
Não respondeu. Ficámos por ali.
Escreveria mais tarde uma história dedicada ao sapateiro mouco.
Fui mais arrojado com a Joana nas perseguições que fiz do que com a Manuela.
E havia uma diferença em relação ao outro ano: tinha a certeza que ela sabia e a troca de olhares era prometedora. Tão prometedora que resolvi escrever-lhe uma carta de declaração de amor. Comprei uma revista, meti a carta entre as folhas de uma revista e o Justino, que era colega dela no liceu, foi o pombo-correio.
Dois dias mais tarde tive a resposta. A revista voltou às minhas mãos e também tinha uma carta no interior.
Abri-a logo, um pouco nervoso. Foi muito simpática em responder-me. Basicamente lamentava não poder corresponder à minha paixão porque namorava outro rapaz. Assim morria uma paixão na praia, sem que a primeira onda chegasse a tempo de beijar as suas areias. Talvez tivesse resultado se insistisse. Mas as férias estavam a chegar ao fim e pouco ou nada havia a fazer. Até porque, em boa verdade, a Joana não era a coisa amada.
Quando acabaram as férias e regressei a casa reacendeu-se a paixão pela Manuela, com tanta intensidade que até já dormia com a sua fotografia debaixo do travesseiro. Antes de adormecer, sozinho, deitado na cama, passava minutos a fio a olhar para a fotografia, a sonhar com aventuras em que era o herói que ia salvar a apaixonada, derrotando todos os adversários com golpes certeiros de espada. Depois, olhava-a intensamente e perguntava-lhe por que estava sempre tão triste. Como nos sonhos que tive com ela mais tarde, não conseguia ouvir a resposta.
Deixara definitivamente as brincadeiras dos catorze e quinze anos e o próprio jogo da bola, em que era uma estrela de primeira grandeza na escola, passou para segundo plano depois de uma experiência negativa no campo de jogos do clube da minha terra quando o treinador disse para passar por lá. Achei o convite algo circunstancial e de pouco ou quase nenhum interesse da sua parte. Acresce que a apresentação correu mal e nunca mais meti os pés no campo de futebol. Digamos que fui uma supernova que deu tudo no minúsculo campo de jogos da escola e que se extinguiu mal pontapeei a primeira bola num campo de futebol a sério.
Na época do Natal tive uma agradável surpresa. O meu tio escreveu-me a dar a morada da Manuela. Com essa oportunidade a órbita do nosso acontecer aumentou significativamente a sua probabilidade.
Não perdi a oportunidade que recebi de mão beijada e aproveitei na época do Natal para lhe enviar votos de Boas-Festas, criando uma expectativa que podia dar mau resultado. As probabilidades dela não responder eram elevadas. Mas quem não deve, não teme. Só tem azar quem não procura a sorte. E capitalizei. Poucos dias volvidos, respondeu a agradecer-me. E mais: retribuiu. Apesar de não me conhecer, teve o cuidado de sublinhar, resolveu responder à carta.
Entrei numa euforia extrema. A nossa relação não ia ficar por uma simples troca de cartões de Boas-Festas. Tinha agora hipótese de alargar o âmbito das minhas possibilidades se escrevesse uma carta convincente. Resolvi ir direito ao âmago da questão. Ser ou não ser capaz de revelar de chofre os meus sentimentos por ela e sem ambiguidade. Contar o que aconteceu desde que a vi pela primeira vez. sentada num banco do Passeio. Como desejei ardentemente voltar a vê-la no ano seguinte e também como vi frustrado esse sonho. Como consegui a sua morada de Estremoz. Enfim, confessar que nunca me esqueci dela. Só não lhe contei o caso do meu desvario com a chinesinha que se chamava Joana e que não aceitou namorar comigo porque já estava comprometida.
Só me restava rezar aos santinhos que a carta fosse recebida com um mínimo de interesse da sua parte.
E esperei. Fui esperando. Dia após dia perguntava à minha mãe se o carteiro tinha trazido alguma carta.
«Credo. É assim uma coisa tão importante para estares nessa excitação, rapaz? Nunca te vi assim, Mário. Aqui anda rapariga!»
«Não diga mais nada, mãe. Só depois de receber uma carta é que lhe conto.»
«Não tens a certeza?»
«Pois não.»
«Então está bem. Mas só uma pergunta. Onde foi que conheceste a rapariga? Sim, porque é uma rapariga, não é?»
«Claro que é uma rapariga, mãe! E muito bonita. Queria que fosse a Maria Cachucha? Conheci-a em Portalegre. Não digo mais nada.»
«Pronto, já cá não estou.»
Importantíssimo. Um caso de vida ou de morte. Não disse. Só pensei. Era tão importante que ela respondesse!
Até que um dia aconteceu.
«Escusas de perguntar mais. Toma lá a tão desejada carta. Vem de longe. Quem conheces em Estremoz? Afinal ela não é de Portalegre...»
Os meus olhos brilharam, mas a boca fechou-se. Segredo absoluto.
Fechei-me no quarto.
«Temos paixão!» ouvi a minha mãe dizer.
Li e reli a carta. Principalmente aquela parte em que dizia lamentar não ter dado por mim na noite em que a vi no "Passeio".
Era uma gaiata e ainda não olhava para a minha sombra, compreende?
Agora já tenho quase quinze anos e se fosse hoje teria dado conta. Não leve a mal por não ter dado pela sua presença.
Começámos a trocar cartas quinzenalmente. Depois, semanalmente. A curiosidade que lhe despertei transformou-se em interesse. Não deixou de vincar que nada mais havia entre nós senão uma simples amizade. As frases apaixonadas que lhe escrevia pareciam não ter retorno, mas sempre ia dizendo que simpatizava comigo e gostava de conhecer-me pessoalmente.
Ia passar férias a Portalegre. Em setembro, como nos dois anos anteriores. No mês de agosto tinha um convite para ir para a praia.

Aqueles longos dias na Nazaré!
Nos tempos da minha infância os verões eram muito quentes e secos, por vezes impiedosamente quentes, e as quatro estações estavam bem definidas.
Hoje a situação é outra e o principal culpado é o homem desde que a revolução industrial começou a dar os primeiros passos. Quer se queira, quer não, o progresso não trouxe só coisas boas. Como exemplo principal, aí temos em força as alterações climáticas motivadas pelo efeito de estufa com origem, por sua vez, na incúria e ganância do homem. O ano de dois mil e trinta é o limite. Mesmo que os países mais poluidores tomem medidas drásticas para impedirem que a poluição progrida, será um marco fatídico de não retorno. E dois mil e cinquenta talvez traga o fim da vida humana neste planeta azul que o homem tem vindo a maltratar cada vez mais. Quem vier atrás que feche a porta que já não deve existir para fechar. A metáfora não fará sentido.
Neste tempo recuado, sou um jovem introvertido, com o meu temperamento específico, a teimosia que herdei dos familiares por parte da minha mãe, e muito mais, como ser bom aluno e ter jeito para o futebol e para as canções latino-americanas. Como tal, é lógico estar potencialmente em vias de ser lançado no tal palco que traça o destino de cada um e que sonha alcançar o seu lugar ao sol, custe o que custar. Não será no futebol e muito menos nas canções. Aliás, estou longe de adivinhar o futuro que me espera. E depois, alguém lá em cima mal me quer, pouco ou nada.
Acabo de passar por uma situação algo complicada que me baralhou um pouco a vida. Um azar do caraças obrigou-me a repetir uma das secções do antigo quinto ano do Liceu. Digo azar porque com médias altas a Letras e a Ciências, mas com uma deficiência a Inglês e outra a Físico-Químicas tive que repetir o exame de uma da secções, neste caso Ciências. Com toda a naturalidade dispensei do exame oral mas fico coxo para enfrentar o futuro sétimo ano. E porquê? Muito simples. No primeiro e no segundo períodos frequentei o sexto ano e no terceiro período regressei ao quinto e enfrento de novo o incompetente Caça Aviões no célebre problema dos comboios.
Nessa manhã a aula foi insípida e prolongou-se por quase uma hora no quadro preto. O Caça debateu-se, atormentado, com o dito cujo problema dos comboios que não conseguiu resolver. Com velocidades diferentes, um partia do Porto e o outro de Lisboa e encontravam-se ao fim de uma hora e tantos minutos. Pretendia-se saber a que distância das duas cidades se daria o encontro dos ditos comboios. Para baralhar mais as coisas, o arguto Prudente tinha-se juntado ao professor no quadro e tentava semear confusão a seguir a confusão. O Caça coçava a cabeça e a solução não aparecia. Até que a campainha tocou para a saída e o professor de Física, por sinal também diretor da Escola Secundária (e nesse cargo era pessoa eficiente, embora temperamentalmente violento), teve que render-se à evidência. Por outras palavras, deu-se por vencido.
«Na próxima aula acabamos. Podem sair.»
Foi então que o tímido Mário, que eu era, se aproximou do quadro, ele e a sua sebenta, e interpelou o professor.
«Creio que resolvi o problema por um sistema de equações, senhor diretor.»
Virou-se para mim, deitou um olhar rápido para sebenta de folhas creme e disse:
«Também podia ter sido assim, Mário. Mas há outra maneira. Na próxima aula digo-te como é.»
E mais nada. Já estava noutra. Melhor dizendo, em fuga para a frente ou para qualquer outro sentido longe de mim e dos meus colegas.
Encolhi os ombros e saí da sala. No quinto ano o problema dos comboios não podia ser resolvido por um sistema de equações, embora estes fossem matéria dada na Matemática. Quanto ao outro processo de resolver o problema, sempre era verdade que havia. Mas o Caça Aviões esqueceu-se de explicar-me como era a outra forma de chegar à solução, bem como à turma.
Como já disse, saí-me bem nas provas escritas que tive que fazer no Passos Manuel, perto da Calçada do Combro. Com toda a naturalidade, dispensei da oral, mas o desgaste intelectual e psicológica ficou latente. Contudo, jovem como era, umas férias retemperadoras seriam o remédio que nem sequer precisava de ser santo. Pois não. Só que entrou em cena outra variável. 
Eu e a minha irmã recebemos um convite dos pais do Sérgio para fazermos férias na Nazaré, aliás um sonho de uma meia dúzia de anos que agora se tornava realidade. E a presença do Sérgio, o meu herói dos tempos de criança, herói sem pés de barro, era um fator a ter em conta, pelo que disse logo que sim. Recuando mais no tempo, convém lembrar as duas irmãs de Sérgio, que praticamente me viram nascer. Foram elas que me contaram histórias de bruxas, princesas encantadas e dos jovens aventureiros vindos do nada para salvarem das garras das bruxas as ditas princesas encantadas, depois casarem com elas e serem felizes até uma eternidade limitada.
Como é natural os objetivos das duas partes nada tinham a ver um com o outro. Nessa altura, o Marinho adorava essas histórias que tinham muito de românticas, embora a minha tenra idade apontasse mais as baterias para o místico das fadas, duendes e outras entidades afins. Mas, por coincidência ou não, no futuro seria o eterno romântico de vivências amorosas que nunca tinham o fim desejado. Porquê? Se fosse dotado de clarividência nos meus talvez quatro anos de existência teria feito essa pergunta. Ficaria para mais tarde. Quanto às amiguinhas apenas pretendiam, com a sua santa paciência, que o Marinho comesse a sopa toda e não ficasse no prato qualquer vestígios do peixe cozido e das batatas, quiçá da cenoura que fazia os olhos bonitos.
Chegou agosto e lá fomos todos para a Nazaré. Os vizinhos e nós. Ah!, já me esquecia. O três cães caçadores, da história verídica "Perdiz Estufada", que não conheciam o que era uma perdiz, bem como o "Mar Lindo", outro cão, de cor branca com escassas malhas pretas arredondadas, que fora a última adoção da família. Quanto aos muitos gatos ficaram em casa e quem tratou deles foi a minha mãe.
Havia também um coelho domesticado, de seu nome Tótó, que corria em liberdade pela casa e pelo quintal, em paz e sossego com os cães e os gatos. Fez a alegria de todos até que um dia foi dado com desaparecido e causou um desgosto imenso à família. Não sei se foi antes ou depois da ida para a Nazaré. Pouco interessa. O mais importante é que nunca mais se soube do paradeiro do lapin Tótó. A desconfiança centrou-se na Palmira, a mulher a dias dos vizinhos do primeiro andar, uma mulher horrível que tossia muito e escarrava, com intensidade, das escadas de serviço para o quintal, o bastante para me enojar e também fazer o diagnóstico clínico que a dava como tuberculosa. Essa mulher era mãe da Dorinda, uma personagem mal cheirosa e piolhosa que se fez minha amiga no tempo em que apanhava no quintal, com a boina que já não tinha os três vinténs, as pobres borboletas brancas, portadoras, segundo diziam, de boas notícias. Pobres, talvez não. Procurava com cuidado as borboletas aprisionadas debaixo da boina para não as deixar fugir, agarrava-as por uma das asas, mirava-as, via um pó branco soltar-se ao vento, depois emocionava-me com a sua beleza e deixava que partissem em liberdade (2).
E foi num desses dias de caça que aconteceu o célebre encontro na cave com a Dorinda mal cheirosa.
Voltando…
A casa que nos esperava, de cor amarela, resumia-se a um rês-do-chão. Havia três quartos e um deles foi destinado ao Sérgio e a mim. Quando se entrava, um grande hall que era mais sala que hall, mostrava tudo o que havia para ver. Os três quartos, a casa de banho e a cozinha. Essa sala improvisada funcionava como sala de jantar.
Desde o primeiro dia fizemos vida à parte. O Sérgio não queria que fôssemos tomados como artistas de circo. E estava-se mesmo a ver. Quatro cães levados pela trela por três jovens que tentavam controlá-los...
Éramos sempre os primeiros a chegar à praia. Só por volta do meio-dia chegavam as duas irmãs do Sérgio, bem como a Olinda. O casal ficava em casa. Ele a ler o jornal. Ela a preparar o almoço que nunca começava antes das três da tarde, o que para mim era um sério problema pois transtornava a minha vida cheia de rotinas. Com o passar dos dias comecei a ficar estranho, irritadiço, crítico inclemente, com uma crescente perda de apetite.
Voltando à praia, dávamos longas caminhadas à beira-mar, às vezes aventurávamo-nos um pouco na turbulência das ondas, evitando, engolir "pirolitos", o que nem sempre era possível. Como mais velho que era, o Sérgio era também um pouco mais aventureiro. Quanto à minha pessoa, de máquina fotográfica em punho, não perdia uma ocasião para fotografar à distância uma ou outra jovem do meu agrado. Numa dessas sessões fotográficas tirei um instantâneo que foi gáudio de todos. Uma dessas jovens levou em cheio com uma onda e o calção de banho quase se foi mar adentro. Com toda a sorte do mundo, apanhei-a de costas, com o rabo muito branco ao léu. Por sinal era uma das miúdas que seguíamos à distância. Até lhes tínhamos dado uma alcunha: as meninas sans doute. Embora fossem portuguesas, quando nos cruzávamos com elas rara era a vez que não ouvíamos uma delas dizer:
«Sans doute.»
Talvez a propósito de um comentário como: 
«Hoje o dia está mais quente que ontem, não achas?» 
E a resposta: 
«Sans doute
Havia também a menina cheia e com essa até fizemos um campeonato para concluirmos com qual dos dois ela mais trocava o olhar. A alcunha tinha a sua lógica. A miúda era avantajada para a idade nos seios e tal causava-nos um inusitado interesse a pender para o erótico.
«Avanças tu ou avanço eu?» perguntou o Sérgio.
Limitei-me a sorrir.
«Olha que escrevo uma carta à Manuela!»
«Pois escreve. Mas precisas de ter a morada…»
«Vem aí o circo!»
Eram as irmãs do Sérgio com a Olinda. E os inseparáveis cães. Já eram conhecidas como as meninas do circo.
«Já nos viram?»
«Não, Sérgio. Raspemo-nos. Rápido!»
«Vamos.»
Não me lembro quem ganhou o campeonato dos olhares e se o vencedor recebeu algum prémio. Eu, não. De certeza. Quanto ao Sérgio, se conseguiu alguma coisa ficou no segredo dos deuses. Por vezes, cada um seguia o seu rumo. A ter acontecido só podia ter sido num desses momentos. Aposto no Sérgio que era oito anos mais velho que eu e tal fazia a diferença. Até porque entretanto eu navegava noutra onda que se chamava Manuela. Não tardaria muito tempo que chegasse setembro. E em setembro ia encontrar-me com a Manuela pela primeira vez. Até lá, havia apenas a troca de cartas, mas como se fôssemos apenas dois bons amigos.
«Tu gostas mesmo dela!»
«Da menina cheia
«Claro que não, sonso. Sabes muito bem de quem estou a falar. Gostava muito de ler uma das vossas cartas…»
«Tira o cavalinho da chuva. Olha, vamos para a praia?»
«E elas?»
«Estão com os cães. Descansa que primeiro têm que levar os animais para casa.»
«Tens razão, Mário. Mas hoje ainda não podes ir ao mar.»
«É verdade.»
Lembrei-me do que aconteceu na véspera, de manhã, quando fazia a barba na casa de banho. Falávamos sobre não sei de quê e voltei-me para trás. Nesses tempos ainda fazia a barba com navalha.
«Não percebi o que disseste.»
E virei-me para a frente com intenção de continuar a tarefa diária. Mas esqueci-me que tinha a navalha no local onde já não estava o queixo mas ia voltar a estar. E zás! Fiz um corte profundo que me levou à farmácia, já que o sangue não dava mostras de estancar.
Chegados à praia, o Sérgio opinou:
«Vamos dar uma volta a ver o ambiente?»
«Vai tu. Não sei porquê, mas hoje doem-me as pernas.»
O Sérgio não deu conta que eu, Mário, estava a mentir.
«Não demoro. Vou ver o ambiente.»
«Certo.»
«Se encontrar a mulher dos bolos queres uma arrufada? Como de costume o almoço é tarde e tu és todo de horários. Precisas de qualquer coisa para enganar a fome.»
«Se não te importas…»


O Sérgio afastou-se e meti-me dentro da barraca. De repente senti-me nostálgico. Não ia ter êxito com a Manuela.
Quero pensar só em ti para te ter sempre comigo…
Era isso. A Manuela. As cartas trocadas, que já revelavam alguma coisa, não eram tudo. Precisava de estar com ela frente a frente. De ver o seu sorriso. A expressão do seu olhar triste. De ver de perto o seu cabelo em rabo de cavalo. De o acariciar, quiçá. Isto se ela deixasse.
E como iria reagir a Manuela? Que química nos podia unir ou afastar?
Não. Nessa manhã tinha um pressentimento que as coisas iam correr mal.
Se pudesse adivinhar!
«Vá lá, Mário» pensei. «Nada de pessimismos. Vai tudo correr bem, acredita.»
«Que cara é essa, amigo? Assim, perdes a menina cheia.»
«Ah!, és tu» ignorei o comentário. «Demoraste pouco tempo.»
«O Sol está forte.»
«Também acho.»
«Estavas a pensar na Manuela?»
«Por acaso até estava.»
«É bonita.»
«Como sabes?»
«Não me mostraste a fotografia?»
«É verdade. Hoje estou nas nuvens. Tenho a impressão que o ar da praia faz-me mal. Qualquer coisa não bate certo.»
«Só ainda chegámos há cinco dias!»
«Tens razão. Naturalmente este mal estar que sinto é o resultado da pressão dos exames. Dei o litro e dispensei da oral. Agora vêm as consequências de tanto desgaste a trabalhar no duro.»
O Sérgio propôs que fôssemos até ao Sítio e aceitei a sugestão. Até porque elas estavam a chegar à praia. Elas e o barulho, com os cães a ajudarem à festa. Só sabiam falar alto. Então em casa era um pandemónio. Ninguém se entendia e então falavam cada vez mais alto. Os cães ladravam. A dona Francisca zangava-se com o marido e proibia-o de beber vinho tinto às refeições porque manchava a toalha quando se punha a ler o maldito jornal e ao fechá-lo dava uma traulitada no copo e arroz queimado.
«A partir de hoje, só bebes vinho branco.»
E ia com muita sorte. A mãe do Sérgio podia ter sentenciado água.
«Achas bem, Marinho?» perguntou o senhor Álvaro.
Que responder? Tinha que agradar a gregos e troianos.
«Sempre é vinho, senhor Álvaro.»
«Tens razão, filho» concordou. «Mas agora reparo numa coisa. Onde está a Laurinda?»
«Perguntas bem, pai» disse a Alcina. Olha, a mãe sabe.»
«Francisca?»
«Ora. Já sabes como ela é. Zangou-se comigo por dá cá aquela palha e está metida no quarto. Não sou eu quem a vai chamar para o almoço. A propósito, o almoço está pronto. Todos para a mesa.»
«Finalmente! Já passa das três e meia...» pensei, num desabafo.
Continuando…
«Acreditas na treta do D. Fuas de Roupinho?»
«É uma lenda, Sérgio. As lendas valem o que valem.»
«Pois. Sempre queres ir? É quase meio dia. Estamos por lá uma ou duas horas e ainda voltamos mais que a tempo para o almoço.»
Já no Sítio…
«Temos sorte. Há feira…»
«Será que têm matraquilhos?»
«Vamos ver.»
De repente tudo mudou.
«As meninas sans doute
«Onde, Mário?»
«Ali à frente. Não vês, cegueta?»
«Mas que vais fazer?»
Uma delas deixou cair no chão um lenço, daqueles que as mulheres, jovens ou não jovens, usavam à época. Foi esse o motivo da minha corrida. À distância, o Sérgio viu baixar-me para apanhar o lenço e entregá-lo à jovem. Entretanto trocámos algumas palavras que, naturalmente, não conseguiu ouvir. Tudo aconteceu em escassos segundos, mas foi o bastante para imaginar que eu tinha marcado alguns pontos.
«Sortudo!»
«Nem por isso.»
«Porquê?»
«Porque sim.»
«Ainda não namoras a Manuela. Vamos convidá-las para andar no carrossel.»
«Vais tu.»
«Tu tens mais lata que eu.»
«Prefiro uma boa matraquilhada.»
«Seja. Não se pode ter tudo.»
«A menina cheia
Como resposta tive o sorriso misterioso do Sérgio.

Décimo dia. Festa na praia ao cair da tarde. Bolos e salgados. Mãe e filhas fizeram várias amizades. O senhor Álvaro nem por isso. Limitou-se a estar presente. Ele e o imprescindível jornal. Pior ainda para nós. Gente velha? Bree!
«Marinho!»
«Sim, dona Francisca?»
«Vem lanchar. E tu também, filho.»
Olhamos um para o outro.
«Estás a pensar o mesmo que eu?» perguntou o Sérgio. «Talvez.»
Mas o olhar severo e tirânico da mãe do Sérgio fez abortar uma decisão que parecia ser quase inabalável.
Seria que o Sérgio, que não era nem bruxo, nem cartomante, nem vidente, sabia de alguma coisa?
Lá fui, contrariado. A mesa estava posta com gosto. Havia de tudo. Pastéis de bacalhau, croquetes, rissóis, carne assada, batatas fritas, doces variados, entre os quais rolo de chocolate e pudim flan, bebidas frescas não alcoólicas.
O ataque não se fez esperar. bem como os sorrisos que vieram logo a seguir.
Sorrisos? Mas porque sorriam?
A resposta veio quando escolhi um pastel de bacalhau como intróito. Estavam mesmo bonitos os pasteis!
«Que é isto?»
Azar dos Távoras!
Algodão em rama. Brincadeira parva. O pastel tinha no interior algodão em rama.
«Não estamos no Carnaval.» Pensei.
Disfarçadamente pus de parte o suposto pastel de bacalhau. Não contando com os sorrisos iniciais todos comiam com gosto. Era imperativo atacar antes que a marabunta desse volta a tudo.
Olhei em volta e não vi o meu amigo. Encolhi os ombros.
«Mais fica. Vejamos então. Aqueles croquetes estão a olhar muito para mim e estou a gostar disso» pensei, deixando escapar um esgar de gozo. «Será que querem ser comidos?»
Pior a emenda que o soneto. O croquete estava salgadíssimo e fiz tantas caretas de desagrado que não evitei de novo o estalar de risos. Risos e não sorrisos, para bom entendedor.
Foi então que fiquei enjoado e não comi mais nada.
Nessa noite só bebi água.

Décimo oitavo dia. Estou exausto e com os nervos à flor da pele. Decidi que vou regressar a casa dos meus pais. Não consigo suportar mais o barulho que ressoa nas paredes da casa resultante de subidas sucessivas de decibéis, de zangas passageiras entre pais e filhos, do ladrar dos cães em brigas uns com os outros, talvez por causa do intruso chamado "Mar Lindo" que entrou nas suas vidas caninas, das dores de barriga repentinas e com uma casa de banho para sete pessoas. Ah!, já me esquecia das festas que repetiram aquela cena do croquete carregado de sal, já que os convidados quiseram retribuir com outra festa parecida que tinha mais paródias. Desta vez armadilharam os doces. Enfim, o meu estado de espírito chegou aos limites. Sinto-me mais que exausto. Talvez que um esgotamento esteja à porta e, se for assim, não é nada bom e vou ter o setembro comprometido.
Era tão agradável passar o mês de agosto na Nazaré, enfrentar as ondas altas e fornecedoras gratuitas de pirolitos, dar passeios com o Sérgio atrás das raparigas, ficar sentado numa esplanada a beber uma groselha e a ver passar raparigas cujos destinos nunca conseguiria descobrir. Mas aquele croquete salgadíssimo fez transbordar a taça. Uma brincadeira sem importância que encarei como sendo de mau gosto. Não. Só me sentia esgotado, com o moral em baixo porque não estava bem. E quem não está bem, então muda-se.

Foi ao décimo oitavo dia que a Olinda, os meus amigos e o "Mar Lindo" me acompanharam até ao autocarro que tinha como destino a estação ferroviária. Todos lamentaram a decisão drástica que tive, mas concordaram com os meus argumentos. Precisava de descansar porque os exames tinham-me roubado as forças. E não foi ali, na Nazaré, que aqueles, que me pareceram longos dias de férias, foram longos e felizes dias de férias. O meu sonho saiu furado. Talvez que um dia voltasse a passar férias na Nazaré e então tudo acontecesse de forma diferente (2).



Entretanto os meus primos passaram o agosto em minha casa. Depois, em setembro, seguíamos todos para Portalegre, comendo os deliciosos ovos verdes pelo caminho e ouvindo as mais que conhecidas histórias da nossa avó, incluindo a do sapateiro mouco, cornudo assumido.
Finalmente ia conhecer a Manuela pessoalmente.
E depois?, onde nos encontrávamos?
Ela chegava de autocarro. Ainda não sabia o dia, mas comunicava-me com antecedência.
Disse logo que a ia esperar.
Pensei nos seus olhos tristes, perdidos para lá do horizonte, onde eu não estava.
Que tragédia escondiam?
Ficou tudo bem combinado nas últimas cartas que trocámos. Sabia da hora da sua chegada e, claro, também do local.

Primeiros dias de setembro…
Lembro-me que a manhã estava encoberta e ameaçava chover. Pelo sim, pelo não, fiz-me acompanhar de um chapéu de chuva, além do meu lugar-tenente. A paragem do autocarro situava-se num largo de terra batida e algo inclinado.
«Que horas tens?»
«Acalma-te que ainda é cedo, Mário. Onze e um quarto. Que ideia é essa que tens de chegar sempre muito antes da hora combinada?»
Tinha razão.
«Deixa. Foi bom chegar mais cedo. Fiquei a conhecer o terreno que piso e assim posso preparar a minha estratégia.»
«Estratégia, uma ova! É só esperares que chegue a tua querida e depois caem nos braços um do outro. Não precisas de estratégia...»
«Quem me dera que fosse assim tão simples como estás a dizer. E se acontecer algum imponderável?»
«Lá estás tu a complicar as coisas. Verás que dentro de cinco minutos o teu sol interior vai brilhar.»
«Então já não falta muito! Deixa-me confirmar no meu Regines. Tens razão. Mas estou nervoso. Não sei o que vou dizer-lhe.»
«Olha, por exemplo, que o tempo está a fazer caretas. Também podes dizer que ela fica muito gira com o seu vestido branco, bla, bla, bla.»
«Claro que a Manuela não vai aparecer de vestido branco. Traz uma saia plissada cinzenta e uma blusa branca. Mas com este tempo assim, acrescento eu agora, também um casaco de malha. A cor não sei.»
«Mas bem gostavas de saber. Era sinal que tinhas visto o seu guarda-vestidos.»
«Que engraçado! Ainda te caem os dentes, grande espertalhão.»
Silêncio absoluto durante dois ou três minutos. Ânsia enorme. Nervoso miudinho. Andava de trás para diante e de diante para trás, sempre seguido pelo meu lugar-tenente que gozava a bom gozar com a situação.
«E se ela não vem?» perguntou.
«Não estejas a agoirar. Claro que vem!»
Finalmente.
«Chegou o autocarro.» Disse o Justino.
«Como sabes que é aquele?»
«É que ela está a acenar para ti.»
«Não brinques com coisas sérias. Se estivesses no meu lugar...»
Não sabia o que estava para acontecer e a dúvida dava-me uma grande insegurança. Devia apresentar-me, ou perguntar-lhe apenas se tinha feito boa viagem?
Tudo resolvido. Ou melhor: adiado. Um senhor de idade estava à sua espera. Senti duas coisas que colidiam uma com a outra. Por um lado, alívio; mas por outro, frustração.
Um reparo: nem sequer olhou para o nosso lado.
Entretanto começou a chuviscar e abri o chapéu. Ainda bem. O parente da Manuela assim não dava por mim e podia segui-los à distância.
De novo as perseguições!
A casa dos familiares da Manuela situava-se junto a um arco, por baixo do qual passava a rua. Vi-os entrar e esperei alguns minutos. Resolvi passar pela casa junto ao arco e afastei o chapéu para espreitar para cima. Acertei em cheio no alvo. Nesse mesmo momento ela assomou a uma das janelas do segundo andar. Foi tudo muito rápido. Não deu para sorrir. Pôs-se logo para dentro.
Fatalmente o encontro ia acontecer da parte da tarde.
Um reparo: as nuvens desapareceram e o sol brilhou no azul do céu.

Aconteceu no tempo do rapaz da camisola azul e da rapariga do vestido branco. Lembro-me como se fosse ontem, mas não sei quem me enviou ao teu encontro. Se foi o acaso. Se por acaso foi o deus menor. Quem ler estas últimas palavras certamente ficará chocado, mas são verdadeiras. Parecem não fazer sentido, mas eu cá sei as linhas com que me coso.
Mal te conhecia quando nos encontrámos neste jardim onde estou hoje a recordar. Foi muito estranho o que aconteceu. Tudo parou para ouvir o silêncio das nossas vozes e o diálogo ensurdecedor dos pensamentos entrelaçados. O agitar suave das folhas das árvores, embaladas pela brisa morna daquela tarde. O chilrear dos pardais. Os ruídos dos motores dos carros, tão em dissonância com o resto. Tudo chega aos meus ouvidos com uma intensidade e clareza tal que não sei explicar. Parece que está a acontecer de novo. Custa a acreditar, mas até sinto o odor intenso a café, oriundo dos lados da fábrica de torrefação, que existia na altura e que foi desativada. Na altura considerava o odor enjoativo, mas agora chegava a mim como um perfume daqueles que embriagam. Chega às minhas narinas pela força das feromonas que tudo reforçam. Foi neste ambiente de silêncio e alto astral que o nosso amor aconteceu. Natural­mente, como naturalmente acontecem todas as coisas simples e belas.
Lembras-te?, o encontro estava combinado nas cartas que trocámos. Tudo muito certo. Sem uma falha. Tu saías depois do almoço para te encontrares comigo e eu estava nas imediações da casa dos teus familiares. Foi assim que combinámos e assim aconteceu. Esperei um pouco. Meia hora? Talvez sim, talvez não. Mas para quem tinha esperado, pacientemente, mais que um ano, nada significava meia hora.
Vinhas com a tua prima e o namorado. Obstáculo, pensei. Obstáculo que podia ultrapassar sem qualquer problema. Com tempo. Bastavam alguns minutos e não um momento, porque estava invisível, encostado à parede, a ver-te passar. Assim, não me viste quando passaste por mim. De certa maneira até foi bom. Pude olhar-te longamente. Fixar o teu rosto. A expressão triste do olhar. Eras muito bonita. Graciosa no andar. E o teu rosto e pernas bronzeados por um mês de praia intensa, davam-te um outro encanto e frescura. Fiz um exame completo e pus-me a pensar:
Grande obstáculo!
Pretendentes não deviam faltar-te. Ias mandar-me passear. Ou talvez não. Eu também tinha atributos. Se perderas tempo a ler as minhas cartas enviadas e se tinhas sempre respondido a elas, por alguma razão fora. Parecia estar a viver os primeiros tempos em que te conheci, quando te seguia a uma distância prudente, como mandava na altura a força da minha timidez.
E que podia fazer?
Mais nada senão continuar a seguir-te, descendo por ruas muito estreitas e empedradas em paralelepípedos de granito já um tanto gastos. O Rossio, local importante porque foi aí que te vi pela primeira vez, não estava nos nossos planos. Um desvio para a direita e uma pequena subida. À esquerda, a velha fábrica de lanifícios. À direita, o jardim da Corredoura. Era o fim da caminhada.
Sentaram-se num banco. Fiquei, a cerca de vinte metros de distância, indeciso, a ganhar coragem para avançar. Felizmente olhaste para o meu lado e viste-me logo. Então levantaste-te e sorriste. E eu sorri também, ainda um pouco embaraçado. Certamente ia trocar os pés pelas mãos, tal o nervosismo que se apossara de mim.
O tempo parou. Ficámos especados, a olhar um para o outro.
«Está a avaliar-me.» Pensei.
Impunha-se então fazer alguma coisa. Por exemplo, avançar, dar-te as boas tardes e ficar gago a cem por cento. Felizmente que vieste ao meu encontro. Senti medo de falhar, mas, ao mesmo tempo, fui invadido por uma enorme alegria interior. Foi essa alegria que me fez ir também ao teu encontro, até que ficámos frente a frente. Sorrimos de novo um para o outro e eu fiquei a sonhar. Tu, não sei. Acredito que sim, porque houve uma paragem no tempo antes de um de nós quebrar o encanto do silêncio. Era a primeira vez que estávamos juntos.
Apertámos as mãos, trocando algumas palavras de circunstância. Pois era. Faltava começar.
Mas como se começava?
Alvitrei que nos sentássemos num banco do jardim. E assim foi. Eu fiquei à tua direita e claro que tu à minha esquerda. O nosso banco do jardim. A alegria de falarmos a sós. A tua voz de alentejana que parecia cantar em cada palavra que dizias. O silêncio cúmplice de estarmos juntos num mundo feito à nossa medida, só para os dois. A magia do odor a café que excitava as feromonas em que nos entrelaçávamos.
Tinhas a pele a cair nas pernas. Disseste-me que estiveste na praia em julho. Uma justificação lógica.
Foram talvez as primeiras palavras que trocámos e num dos teus primeiros gestos tiraste das pernas morenas um ou outro resto de pele morta.
Que interessava a pele morta se estava a nascer nesse momento o nosso sonho azul?
As primeiras palavras trocadas de certeza que foram banais, mas aconteceu outro diálogo que ultrapassou as expectativas: o diálogo dos olhares trocados que não esqueci nem nunca esquecerei.
Depois, como foi?
Muito simples: eu entrei no teu mundo e tu também entraste no meu. Jurámos que esse mundo seria dos dois para sempre e de mais ninguém.
Uma ilusão aquele amanhã que foi ontem?

Finalmente abriu-se a porta onde embatiam sempre sem êxito os meus pobres sonhos. Aquele primeiro encontro marcou uma viragem importante. Os momentos que se seguiram, tendo como cenário um banco do jardim que foi quase sempre o mesmo, traduziram-se em momentos de felicidade em que só os dois existíamos e foram marcados  pela troca de olhares apaixonados e pelas palavras que prometeram amor eterno.
Quem quer que fosse que estivesse a observar-nos certamente teria feito um juízo de valor diferente. Dois jovens lamechas que passavam horas sentados num banco, esquecidos do mundo, dos seus problemas e que se esqueceriam também, mais tarde ou mais cedo, um do outro. Essa história de "até que a morte nos separe" era apenas património dos romances e dos filmes de amor. Era o que podiam pensar os outros, inclusivamente os mais chegados, mas nós não. Os olhares perdiam-se em promessas, as mãos apertavam-se, os sonhos pareciam fundir-se num único.
«Ainda estou a pensar como é que tudo aconteceu e porque, apesar de não teres dado por mim, consegui manter a chama da paixão acesa durante mais de um ano.»
«Há um mistério que envolve a nossa relação. Talvez que já tivéssemos vivido o mesmo sonho noutro tempo e noutro espaço.»
«Acreditas na reencarnação?»
«Não sei. Bem sabes que a minha religião não o permite. Mesmo assim, se procurar uma outra solução e se for impossível, então sou forçada a quebrar as leis.»
«A noite estava morna e eu procurava um banco no momento em que te vi, vestida de branco, a olhar, a olhar, sem me descobrires.»
«Já nem sei o que fiz a esse vestido. Cresci e deixou de servir-me. Devo tê-lo dado a alguém.»
«É natural. Tornaste-te numa mulher muito bonita.»
«Não exageres, Mário. Primeiro, ainda não sou uma mulher; segundo, tu é que achas que sou bonita. De qualquer maneira, sinto-me lisonjeada.»
Tentei passar uma mão pelo seu ombro, mas fugiu ao meu gesto de ternura.
«Olha lá... toma juízo!»
«Que tem de mal?»
«Ainda nos conhecemos há pouco tempo.»
O meu gesto não passou de uma atitude de ternura. Como dizer-lhe?
Não disse.
«Está bem. Mas estou para saber como é que liguei a uma fedelha de treze anos com uma trança que lhe caía pelas costas.»
«Foi o meu olhar triste, disseste tu.»
Não ousei acariciar-lhe as mãos. Os amores platónicos também tinham os seus inconvenientes. Mas quem nos podia ver? A prima e o namorado pouco se interessavam. Estavam mais interessados em tirar partido das oportunidades que tinham do que em cuscar se lhe pegava nas mãos ou tentava roubar um beijo. Mas, adiante. Era preciso ter paciência e esperar que este tempo morto passasse. Acima de tudo, respeitava-a.
«Que se passa?»
«Nada.»
«Estavas muito sério a olhar para mim.»
«Gosto muito de olhar para ti.»
«Ah!»
Fiz uma pausa e disse:
«Só tenho pena de uma coisa.»
«E de que coisa?»
«Adivinha. É um pressentimento. Não sei se bom, se mau. Seremos assim futuramente?»
«Não sou bruxa, mas às vezes gostava de ser. Quem és tu?»
«O quê?»
«Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo, Mário. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito fechado. É certo que queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?»
«Onde leste isso?»
«Porquê?»
«Não veio da tua cabeça.»
(Curioso! Hoje sinto-me retratado naquele pensamento muito estranho, certamente touché…)
«Não te conhecia com veia tão filosófica.»
«Li estas palavras num livro que tenho em casa e acho que se encaixam perfeitamente na tua personalidade. Não sei ainda quem és, mas pressinto que o teu real se esconde, por vezes, atrás do fictício. E quanto à veia filosófica, agora está tudo esclarecido.»
«Repito que nunca escondi o que sinto por ti.»
«Nem eu. Mas quem és tu de verdade?»
«Mário. Um bom rapaz que no dia nove de setembro de há dois anos vestia uma camisola azul e se apaixonou, à primeira vista, pela rapariga do vestido branco. Não escondo nada. Nem sequer os pensamentos. Estão todos dirigidos para ti.»
«E por que motivo desconfio?»
«Afinal és tu quem tem pressentimentos!»
«Oxalá não me engane.»
«Olha, a tua prima e o namorado já estão a levantar-se e dirigem-se para aqui. Vá lá, só quero ver um sorriso. Confia em mim. Acredita que nunca te vou esquecer!»
«Lá isso, não. E deixar-me?»
«Deixar-te? Nunca!»
Nunca digas nunca!
A resposta foi sincera mas não lhe revelei uma "máxima" que também tinha lido num livro.
Para um grande amor ser eterno, deve evitar-se que a sua órbita do acontecer se cruze com outra, fatalmente mais poderosa, sob pena de todos os sonhos se fragmentarem em ínfimos grãos…
«Antes deles chegarem, jura que nunca me vais deixar e que o nosso amor será eterno!»
Não tive tempo de responder.
«Vamos, pombinhos?» perguntou a prima, com uma certa ironia na expressão.
«Vocês é que são pombinhos. Bem os vimos a arrulhar. Não é verdade, Mário?»
«Eu não vi nada. Juro que não vi nada. Só tive um pouco de inveja.»
«Nelinha! Ele está a queixar-se...»
Bem o tinha visto a meter a mão por baixo da saia dela.
«Ora...»
«Bom. Agora uma coisa: não se esqueçam que logo à noite vamos ao cinema.»
Virei-me para a Manuela e sussurrei-lhe ao ouvido:
«Nunca fomos sozinhos ao cinema.»
«Nem vais ter essa sorte logo à noite...»
«Porquê?»
«Logo vês.»
Pois não. Iam a prima e o namorado, a mãe da prima e sabia lá quem mais. Só o cão não ia porque ficou em casa a ressonar como um justo.
«Então onde nos encontramos?»
«Pode ser à porta do Crisfal.»
Muito bem, assim era melhor. Em função do séquito que acompanhava a Manuela, não tinha interesse nos salamaleques das apresentações e depois ir feito mudo pela rua dos Canastreiros abaixo até à entrada do cinema.

À noite, no cinema
Como de costume cheguei antes da hora. Para matar o tempo, pus-me a andar para trás e para diante na rua do cinema. Era no que dava a mania de chegar cedo. Ou contava até mil, dois mil, por aí adiante, ou então devia chegar em cima da hora.
Pensei no conto de fadas que estava a viver, na relação que era cada vez mais intensa, na saudade que ia ter quando chegasse o inevitável tempo das aulas. Não queria pensar que a separação abria feridas que doíam.
«Estavas aí há muito tempo?»
«Não» menti. «Cheguei há pouco.»
Há pouco podia ser meia hora, mas claro que preferi mentir. Olhei para ela, incrédulo. Estava um espanto!
«Que foi?» perguntou, algo embaraçada.
Vi-a muito bem vestida e pintada, mas parece que a tinha despido com o olhar.
«Depois eu conto-te.»
Não ia contar, claro.
Cumprimentei então a prima e o namorado. A seguir apresentou-me a prima Josefa.
«É a mãe da Anabela.»
«Muito prazer...»
Não tinha conseguido evitar os salamaleques.
Começámos a atravessar o átrio do cinema.
«Estás um sonho, Nelinha!»
«Oh!»
«Estou a falar verdade. Tu já és bonita e então com esse penteado e com os lábios pintados, não sei o que te diga.»
«É a primeira vez que pinto os lábios. Gostas da cor? Espero bem que sim. Tive um trabalhão em escolher o tom. Vá lá, diz alguma coisa.»
«Gosto muito. Ao mesmo tempo a pintura serve de defesa, não achas?»
«Oh!... Brincalhão. Atreve-te! Mas diz-me uma coisa: gostas mais de ver-me com o cabelo apanhado atrás, ou com o rabo de cavalo?»
«Assim ficas mais mulher. Mas não deixes de usar o cabelo em rabo de cavalo, prometes?»
«Estou a pensar noutra coisa. Cortá-lo...»
«Nem penses nisso!»
Sorrimos. Por momentos não vi o seu olhar triste.
Fui sempre atrás, a fechar o cortejo, na esperança de poder ficar na coxia central. O cabelo apanhado também lhe ficava bem. De facto fazia-a mais mulher.
Houve uma pequena confusão com os lugares e sempre acabei por ficar onde queria. Nunca gostei de ocupar o meio da fila. Não porque fosse claustrófobo. A razão era outra. Não gostava de incomodar as pessoas se tivesse que levantar-me.
Olhei para ela disfarçadamente e senti orgulho de estar ao seu lado.
«O que é?»
«Gosto muito de ti.»
«Que mentiroso! Como o nariz está a crescer!»
«Não vês bem no escuro. A sério que falo verdade. Parece que estou ainda a viver um sonho.»
Apertou-me a mão.
«E eu também, Mário.»
«Vamos fugir?»
«Para onde?»
«Para uma ilha deserta.»
«Já tens os bilhetes?»
«Acho que para vivermos no nosso mundo não é preciso comprar bilhetes. Basta esquecermos que estamos rodeados por outro mundo que nos tira identidade própria, que nos põe grilhetas.»
«E como se consegue isso, Mário? Mas cala-te. As luzes apagaram-se de vez.»
Não me calei. Sussurrei.
«Tens medo do escuro?»
Não se calou. Sussurrou.
«Não. E tu?»
«Só quando era pequeno. Mas o meu amigo Ernesto aparecia e contava-me histórias fantásticas de princesas encantadas e bruxas ruins, até que adormecia.»
«Quem era esse Ernesto?»
«Um bom amigo.»
«Morreu?»
«Matei-o.»
«O quê?!...»
«Claro que não. Era um amigo imaginário que vinha ter comigo nos momentos mais difíceis. Foi ele que me ensinou a contar histórias que deliciavam os meus amigos.»
«Não sabia que tinhas esse dom.»
«Quem me dera! Apenas gosto de contar histórias.»
«Não sejas modesto. E esse teu amigo era mesmo imaginário?»
«Sim. Desapareceu quando eu já não precisava dele. Disse que ia ajudar outras crianças mais necessitadas.»
«Muito comovente. Mas agora toma juízo que vai começar o filme.»
Aviso à navegação. Pus-me ao largo. Os primeiros tempos estavam a ser complicados. Era preciso ter paciência para não aproveitar os conselhos da escuridão.
 Enquanto a trama do filme se desenrolava na nossa frente (mais um dramalhão de "faca e alguidar"), outro filme corria pela minha mente. Tentava recuar uns minutos no tempo e ver de novo o seu sorriso doce, o olhar menos triste e agora iluminado pelo sonho, os lábios pintados que a faziam mais mulher, o ligeiro toque de rouge nas maçãs do rosto.
Nunca esqueceria esta noite, apesar de não poder acariciar-lhe as mãos e o rosto, de não a ter minha. Ao mesmo tempo não consegui adivinhar o que ia na sua mente. Se ela se sentia também orgulhosa comigo a seu lado, um vulgar rapaz de camisola azul que, por acaso, nessa noite vestia um casaco cinzento.
Só então reparei na música do filme, triste, nada a condizer a imensa alegria que me inundava a alma.
Mas era grande a tortura de estar ao seu lado no escuro, completamente bloqueado, sem poder roubar-lhe um simples beijo.
E se tentasse?
Acenderam-se as luzes.
«Estás a gostar do filme?» perguntou-me.
«Preferia uma comédia. Ou então um filme de ação. Mas contigo a meu lado...»
Ignorou as últimas palavras. Ou fingiu ignorar?
«Pois eu gosto.»
«Ainda bem. Queres ir até ao bar, Nelinha?»
«Obrigada. Prefiro ficar sentada. Vai tu que não me importo.»
Levantei-me, contrariado. Não queria acompanhar-me.
Acabei por não beber nada pois havia muita gente concentrada à volta do balcão. Fiquei lá atrás, à espera que as luzes se apagassem. Olhou uma vez para trás mas não me viu.
Que amor era aquele onde havia limitações até dizer basta?
«Julguei que já não vinhas...»
Não respondi. Acabava de amarrar os burros.
«Então?» perguntou, baixinho.
«Então o quê?»
«Nada.»
Quando saímos do cinema pensei ainda em ir direto para casa, mas acabei por acompanhá-la.
Tivemos uma conversa lacónica. Depois veio o silêncio.
«Amanhã vemo-nos?»
«Não sei.» Foi a resposta.
«Está bem.»
Seguiram-se os salamaleques da despedida e apossou-se de mim nova hesitação. Ficar ou não ficar nas imediações. Resolvi esperar e tive um prémio de consolação quando a vi aparecer numa janela do segundo andar e fazer um gesto de despedida. Estava outra vez tudo bem. As nossas tempestades eram passageiras. Felizmente.

Continuámos a ir para a Corredoura onde tínhamos à espera o nosso banco acolhedor, o cheiro intenso a café vindo da fábrica de torrefação, o chilrear constante dos pardais, o olhar curioso das poucas pessoas que passavam. Enfim, tudo e todos estavam à nossa espera.
Uma vez levei a máquina fotográfica que deixava muito a desejar pela qualidade de instantâneos tirados e tirei várias fotografias à Manuela.


Numa delas, uma quinta pessoa tirou uma fotografia aos dois pares de namorados no banco que tinha a efígie do infeliz poeta que falava só das caveiras e de quem a avó Maria se orgulhava muito porque a mãe deste foi sua madrinha. Ainda muito novo, José Duro morreu em Lisboa, derrotado pela tuberculose e desiludido com a vida. Deixou uma única obra a que deu o nome de Fel, um espelho do seu sofrimento e desencanto pela vida que viu fugir, aos poucos.
Na fotografia fiquei a olhar para ela. Parecia pensativa e mais triste do que o costume.
«Que se passou naquele momento, Manuela? Devias estar feliz comigo ao teu lado...»
Levantou os seus olhos expressivos para mim e não deu qualquer resposta.
Insisti.
«Há outro na tua vida?»
«Claro que não, Mário. Não penso em mais ninguém senão em ti. Foi outra a causa. Lembrei-me do meu pai. Morreu quando eu tinha ainda quatro anos. Estou a pensar numa coisa que não te vou dizer ainda. Tem confiança em mim.»
«Respeito o teu desgosto. Um pai é sempre um pai e um só. Não sei como reagiria se perdesse o meu.»
«Olha, no dia vinte e oito podíamos ir até ao Senhor do Bonfim.»
«Porquê?»
«Porque sim.»
O seu desejo tornou-se lei.
«Pronto. Não se fala mais nisso.»
«Agora que tirámos as fotografias podemos ir para o nosso banco. Só me sinto bem lá.»
«Vou dizer à minha prima que vamos andando.»
Nesse dia achei-a mais carinhosa do que o costume. Demos as mãos e prometemos fidelidade um ao outro.
«Até à eternidade?» perguntou ela.
«Até à eternidade, meu amor.»
«O que disseste?»
«Aquilo que ouviste.»
Pedro e Inês juraram amor eterno mas a infelicidade caiu sobre eles. Ela foi cruelmente assassinada e ele vingou-se dos verdugos na mesma moeda. O amor, esse seguiu o seu rumo para além da morte.
Porque foi que me lembrei deles?
«Sabes uma coisa, Nelinha? Tenho a certeza que tu és a mulher única.»
Franziu o sobrolho.
«Não digas isso que pode dar azar.»
«És supersticiosa?»
«Sou.»
«Eu também. Mas tenho fé que vai tudo correr bem connosco. E ouve uma coisa: mesmo que as voltas do destino nos sejam desfavoráveis, juro-te que serás sempre para mim a mulher única.»
Retirou bruscamente a mão.
«Que foi, magoei-te?»
«Não.»
«Que cara é essa?»
«Acho que foste ordinário...»
Fiquei a olhar para ela com cara de parvo.
«Não compreendo a reação que tiveste depois de ter dito o que disse. Foi um hino ao amor, entendes? E tu, como retribuição, afirmas que fui ordinário.»
«Escusas de disfarçar com essas falas mansas. Bem sabes o que fizeste!»
«E posso saber o que fiz?»
«Claro que podes e deves. Não te armes em santinho porque de santinho nada tens. Acariciaste com as unhas a palma da minha mão!»
«E que tem isso de mal? Foi um gesto de carinho.»
«Ou um convite para ir para a cama contigo?»
«O quê?!...»
Vontade não me faltava. Mas estava inocente.
«O que ouviste dizer.»
«Isso é coisa nova para mim. Juro que não sabia. Não me baixava a tal ponto. Parece que me conheces mal. Então o melhor...»
Esbocei um gesto de levantar-me. Impediu-me, segurando-me o braço esquerdo com ambas as mãos.
«Desculpa, Mário. Acredito que não tiveste intenção de ofender-me.»
«É tudo uma questão de cultura regional. Para os alentejanos pode chamar-se moça a uma rapariga. Para nós, uma moça é uma mulher de comportamento duvidoso, uma mulher de todos e de ninguém.»
«Agora sou eu a dizer que não sabia.»
Mas que gostava de fazer amor com ela, ai isso gostava!
Nessa noite não saiu. Pela primeira vez na minha vida namorei da rua para uma janela do segundo andar. Só nos ouvíamos, gritando. Mais parecia uma conversa de surdos. De qualquer forma a experiência foi agradável.

Senhora da Penha
Fomos à Senhora da Penha e desta vez tivemos por companhia a mãe dela, uma senhora com quem simpatizei logo à primeira vista.
Disse-me pessoalmente que dava toda a liberdade à filha porque tinha confiança sem limites no seu carácter. E era verdade. A Manuela era sensata até demais.
Tivemos que subir uma infindável escadaria. Para nós, jovens, pouco custou. A senhora ficou-se pela igreja. Continuámos, de mãos dadas, a subida até à cruz.
Quando chegámos ao topo do monte dei conta que estava ofegante. Olhei para a Manuela. Não parecia melhor.
Sugeri que nos sentássemos na base da enorme cruz que marcava praticamente o fim da subida. Concordou comigo. Sentia-se, tal como eu, cansada o bastante para não pensar numa hipótese alternativa. Dali podia avistar-se uma panorâmica magnifica da cidade onde viveu José Régio, o poeta do "Cântico Negro".
«Tens um horizonte na tua frente, para lá da cidade. Como todos os horizontes que observamos sentimos sempre o desejo de alcançar o infinito. Em vão, Nelinha, o horizonte é uma linha imaginária que se afasta à medida que nos aproximamos dela. É por isso que não tenho horizonte apesar de sonhar a todo o momento que um dia serás minha.»
«Sinto receio por ti. És precoce. Diria que insatisfeito. A pensares como pensas, nunca serás feliz. E eu não consigo encontrar argumentos para contrariar o teu estilo de vida que, por vezes, parece negativo. Um dia vais rejeitar quem mais amas.»
Premonição?
Calei-me. A mente continuou o seu trabalho na escuridão. Acreditava que ia ser fiel ao nosso amor. Fiel até que o céu caísse em cima de nós. Nada nem ninguém nos podia separar. Nem a morte!
Outra premonição?
Estávamos sentados na base da cruz, símbolo do sofrimento de Cristo também para o bem dos homens degenerados. Um absurdo. A soberba nunca arrepiaria caminho. Foi um erro.
De repente, senti-me inspirado. Alguém soprou-me palavras estranhas que pareciam não ser minhas.
«Isto aqui não é o teto do mundo, mas sinto que atingi o topo de um sonho. Nós dois, os eternos, estamos mais próximos de Deus e somos um só. É isto que sinto neste momento, Nelinha.»
«Sempre estivemos próximos de Deus. Pelo menos eu. Guio-me pelas Suas leis. Acredito na Sua infinita bondade e sei que posso contar com Ele nos momentos de aflição.»
«Estamos os dois sozinhos e ninguém nos pode ouvir. Provavelmente nem Ele. Deve ter mais que fazer do que espiar o nosso amor sem mácula. Mas li umas frases que me fizeram pensar muito. Escuta.»
«Sou toda ouvidos...»
«Há quem acredite que Deus existe, que é justo e infinitamente bom. Acredito em Deus, mas questiono-O porque Ele não consegue evitar que a desgraça no mundo se multiplique, o mal prolifere cada vez mais, a morte seja, inevitavelmente, o destino dos bons e dos maus, e porque provavelmente não há um julgamento final. Se Deus não me der uma resposta, então Ele não existe para mim.»
«"Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem." Foi mais ou menos assim que Ele falou em fase de agonia. O lugar de todos, pecadores e não pecadores, devia ser o "Reino dos Céus", segundo Jesus. Mas Deus estabeleceu uma bifurcação: Céu e inferno.»
«Ou vamos para o Céu, ou vamos para o inferno. É a tua crença. Mas eu acredito que o inferno é cá na Terra. Destina-se a todos. Aos justos e aos maus. Ninguém sabe o que se passa na mente de cada um, que pode estar, num momento, a contas com o Inferno. E há outra coisa que queria acrescentar. Não se sabe o que existe para lá da porta. Até prova em contrário ninguém voltou para contar como foi a vida que teve lá. Se há reencarnação, repito o que ouvi dizer de outro: não me lembro da última vez que cá estive.»
«Porquê esta disputa, Mário? Sabes muito bem que estás a ganhar. Mas não me convenceste. No entanto, digo que faltam-me argumentos. Só queria saber uma coisa. Uma só. Depois acabamos com este labirinto de palavras que não levam ao lugar que queremos. Quem falou?»
«Não percebo.»
Mas sabia o que ela ia dizer. Adiando, talvez que enveredasse por outro caminho. Engano o meu. Atacou o cerne da questão.
«Penso que não foi o teu real que falou desta vez. Tenho quase a certeza que foi o fictício.»
«Abstraio imenso, já sei. E tens toda a razão. Mas deixemo-nos destas discussões filosóficas que não levam a parte alguma. Acho melhor apreciarmos a vista fantástica que se desfruta cá do alto.»
«Pode ser que nunca mais haja uma oportunidade como esta. É um pressentimento.»
Ficámos um momento em meditação, olhando para baixo, onde era a cidade, mas para além do próprio horizonte.
«Vamos?»
Demos de novo as mãos e começámos a descer o monte. Nem sequer aproveitámos a solidão do momento, a poesia da paisagem que tínhamos à nossa volta, enfim, toda uma envolvência mágica para fazermos aquilo que devíamos ter feito.
Alguém que talvez não gostasse de nós desviou-nos para um diálogo a simular o transcendente e foi assim que perdemos mais uma oportunidade para consolidarmos os fracos elos que ainda nos uniam. Assim, não nos beijámos nem sequer a apertei nos meus braços e perdi uma oportunidade daquelas que não se iam repetir muitas vezes.
Foi castigo divino. Questionei Deus e tive a resposta ao entrar em rota de colisão com Ele.
Aprendi a lição?
Dias depois fomos ao Senhor do Bonfim. Desta vez acompanhavam-nos a Olinda, os meus primos, a avó Maria e a mãe da Manuela. Era um grupo  divertido.

Entrou sozinha na igreja
Já em frente à igreja pediu-me para esperar cá fora. Pôs um lenço branco, de seda, sobre a cabeça. A minha irmã ajudou-a a compor o lenço. Depois, sorriu para mim e entrou sozinha na igreja.
Fiquei intrigado.
«Porquê?»
«Depois digo-te.»
Esteve dez minutos no interior da igreja. Para mim, foi uma eternidade não ter a sua presença.
Quando regressou notei um brilho diferente nos olhos. Em silêncio, apertou-me muito a mão e vi desprender-se deles uma lágrima furtiva. Senti desejo de lhe secar a lágrima com um beijo, mas fiquei-me, claro, pela intenção. 
«Agora vais dizer-me...?»
«Entre outras coisas, rezei por ti.»
«E as outras coisas?»
Colocou o indicador direito sobre os meus lábios. Mordisquei-o.
«Olha lá!»
Sorrimos.
«Nelinha...»
«É um segredo que só vou revelar-te por carta.»
Não consegui arrancar-lhe nem mais uma palavra sobre o seu segredo.
Era assim tão importante?

Regressou a Estremoz no dia seguinte.
A saudade foi tão grande que, dias depois, pedi à tia Albina para me fazer um farnel e meti-me à estrada, à boleia. O saco com quatro sandes foi providencial porque a história das boleias não correu nada bem. Precisei de três boleias para fazer cinquenta quilómetros e assim chegar a Estremoz. De automóvel até Monforte; de moto até Veiros; finalmente de furgoneta até à cidade.
Passava já das quatro quando cheguei. Era inacreditável. É que tinha demorado cerca de quatro horas nesta atribulada viagem.
Àquela hora devia estar no colégio. Não foi difícil chegar lá depois de ter perguntado a uma mulher.
O colégio era um edifício grande, pintado com um rosa carregado e havia um gradeamento a rodeá-lo em todo o perímetro. Via-se no rés-do-chão o interior de algumas salas de aula mas não podia adivinhar onde ela estava.
Perguntei a uma aluna que saía se a tinha visto.
«A Nelinha?»
«Vou chamá-la.» Disse, esboçando um sorriso cúmplice.
Oxalá não houvesse outra Nelinha no colégio!
Minutos depois ela estava na minha frente, exibindo um ar entre o feliz e o espantado.
«Tu?!... És louco!»
«Louco por ti...»
Vestia uma bata preta, de colegial que lhe dava um ar gaiato. Havia qualquer acessório de vestuário de cor vermelha. Um cinto. Também. Mas estava a pensar nuns sapatos vermelhos. Brincos? Tudo vermelho.
O ar de felicidade da Manuela inundou-me o coração com uma luz intensa, muito branca.
«Só tenho mais uma aula. Aproveita para passear pela cidade e depois vem esperar-me aqui. Está bem?»
«Sim. Sabes uma coisa?»
«Sim?»
«Já tinha saudades tuas.»
«E eu também. Olha, aproveita para ver o Gadanha.»
«O que é o Gadanha?»
«Um lago. Tem cisnes muito bonitos. Fica perto da casa onde moro.»
«Está bem.»
«Agora tenho que ir senão apanho falta.»
«Vai lá, meu amor.»
«Que disseste?»
«O que ouviste.»
Limitou-se a sorrir.
Fui à procura do lago. O pensamento estava todo noutro sítio. Achei-a mais graciosa. Nunca a tinha visto vestida de colegial. No momento apeteceu-me acariciar o cabelo sedoso, em rabo de cavalo, comprido. E a voz? Já não me lembrava dela. Por vezes brincava, tentando imitá-la na voz que parecia cantar.
Saímos à noite, acompanhados pela mãe. As noites eram já mais frias e ela queixou-se:
«Está frio!»
E eu respondi:
«Não, está fresco...»
Fiquei num quarto, em casa de uns amigos dela. Só me lembro de uma cama com cabeceira de ferro.
A meio da noite acordei, alagado em suor, e descobri logo porquê. Tinha uma enorme dor de barriga com cólicas constantes que atribuí a gases.
Só gases?
Nada disso. Era muito mais. As cólicas aumentaram de intensidade e de frequência e maldisse a minha vida, as sandes de pastéis de bacalhau e os ovos verdes. Mas a culpa foi daquela caldeirada ao jantar, num restaurante com aspeto manhoso.
Não conhecia os cantos à casa e também não queria acordar ninguém, pelo que não acendi qualquer luz. Fui andando guiado pelo tato, à procura duma casa de banho salvadora. As cólicas eram cada vez mais frequentes e a casa de banho continuava desaparecida ou então não existia.
Que era aquilo?
A cozinha. Só queria encontrar uma pia. Ah! Uma porta. Dava para a varanda. Logo à direita havia outra porta. Abri-a. Finalmente uma pia. Já não aguentava mais. Que alívio! Uma descarga incrível!
Voltei para a cama. Adormeci quase de seguida.
Saí cedo, na calada da madrugada.
Nesse dia andámos a passear pela cidade e ela apresentou-me às amigas que achei muito simpáticas, ou não fossem alentejanas.
Continuei às voltas com a dor de barriga que ainda não tinha passado. 
Nunca vou esquecer a visita à torre, cujo acesso era feito por uma escada de caracol. A meio, algures nas paredes vetustas, ficaram gravados os nossos nomes que se juntaram a muitos outros que já lá estavam.

Já na minha terra natal, fiquei à espera da primeira carta da Manuela, ansioso por saber a razão da visita à igreja do Senhor do Bonfim.
Cumpriu a promessa. Simplesmente rezara a Deus:
«Meu Deus, agora que o encontrei, fazei com que nunca o perca! Que sejamos felizes...»
Nesse dia da prece fazia anos que o pai tinha falecido.
O nosso futuro, que vinha no tal tempo que depois tudo triturava, diria a última palavra sobre um namoro que acabava de ser oficializado, tal como ela disse na carta.
Continuámos a trocar cartas de amor.

Portalegre
A ida a Portalegre pela Páscoa foi movida pela saudade e pelo desejo de consolidação do amor que parecia ter ficado para durar.
A nossa sala de visitas continuou a ser o jardim da Corredoura e o nosso banco, testemunha muda dum amor sem barreiras ou grilhetas. A pureza dos sentimentos não necessitava de filtro. Tudo era simples e real. Tudo servia de motivo para realçar o que de mais belo existia no mundo. Depois, o ambiente que existia à nossa volta não dava outra hipótese senão glorificar o sentimento que nutríamos um pelo outro. Estávamos frequentemente em meditação, de mãos dadas, envolvidos pelo chilrear dos pardais, pelos gritos cristalinos das crianças que brincavam em liberdade naquele jardim que também era ponto de passagem e que ligava a alta da cidade com a baixa, e também pelo odor agradável a café vindo de uma fábrica de torrefação que laborava próximo. E assim eram todas as nossas manhãs, preenchidas por contemplações quase a roçar o êxtase, frases curtas e esporádicas. Sonhos longos.
Não voltámos à Senhora da Penha, nem tão pouco ao Senhor do Bonfim. Estivemos na fonte dos Amores e desse dia conservo uma fotografia em que ela está muito séria, a olhar em frente para um futuro incerto. Eu não estou presente, pois fui o repórter fotográfico e, de certa maneira, o seu futuro incerto. Digo repórter porque aquela fotografia foi tirada no momento exato, quando se estabelecia a ponte entre o presente e o futuro. Por vezes, vinham as habituais frases quase contraditórias:
«Está frio!»
«Está fresco...»
Frases que ficaram para sempre.
Mas nem tudo correu bem. O fantasma dum futuro incerto começou a pairar sobre nós.
Até ao verão a nossa relação não sofreu a mínima beliscadura. Cartas para lá. Cartas para cá. Um grande amor sem limites. Aparentemente, porque os namoros à distância têm quase sempre elos muito fracos. Basta um pequeno esticão para se quebrarem. E esses esticões são criados por um motivo banal que é empolado por acontecimentos que surgem.

Simone
Contrariamente ao que tínhamos combinado, a Manuela não esteve em Portalegre em setembro. Quase em cima do acontecimento, trocou Portalegre pelo Porto, indo passar as férias a casa de um tio. Tal contrariedade desanimou-me muito, isto para não dizer outra palavra. Mas, pensando melhor, vou dizer: revoltou-me. Depois... é bem mais que certo que "a ocasião faz o ladrão".
Acontece que a Olinda tinha três amigas em Portalegre que a acompanhavam invariavelmente quando saía para passear pela cidade. Aliás, já no verão anterior, e na companhia da Manuela, tinha-me cruzado com as quatro. Por sinal, classificara no íntimo uma delas como uma mulher atraente. Chamava-se Simone. Fiquei agastado pelo facto da minha namorada me ter trocado pelo Porto e se ter deslumbrado por qualquer coisa (chuva de verão) que deixou escapar nas poucas cartas trocadas nesse mês de Setembro, qualquer coisa que me fez ciúmes. Um rapaz de quem falou nas cartas mais que uma vez, o que me levou a questioná-la. Afirmou que era só amizade. Amizade ou não amizade, o certo é que conseguiu fazer-me ciúmes e passei a ser o quinto companheiro da minha irmã e das suas amigas nas passeatas à tarde pelas ruas de Portalegre.
Cedo notei que as três estavam em disputa por um lugar ao sol e eu sentia-me grato por tanta distinção e não evitei que a "corrida" por um troféu que era eu chegasse ao fim. Portanto, resisti.
Só para rematar, vou descrever rapidamente uma passagem que acho deliciosa pelo ridículo que simboliza e significa o vale tudo para se alcançar um fim.
Numa noite quente fomos a um cinema ao ar livre. Não me lembro do filme, nem é relevante. Apenas quero lembrar que se estabeleceu uma grande confusão na disputa a três para ficarem sentadas ao meu lado. Ganhou a Simone e na verdade não me desagradou. Apesar de tudo o pensamento continuava centrado na Manuela que considerava a ser o meu grande amor e tudo o mais não tinha o mínimo interesse senão motivo de diversão.

(Quatro anos mais tarde deu-se a reviravolta e a Simone alcançou um lugar no meu coração, mas só por três meses. Pouco ou muito tempo, serviu para me desviar o destino...)

A dança das cadeiras
Consegui juntar dinheiro das explicações de Matemática e Físico-Químicas para ir passar uns dias em Estremoz pelo Carnaval. Hoje tento lembrar-me de pequenas passa­gens do pouco que ainda conservo na memória. Recordo-me especialmente da noite do baile. Os amigos da Manuela tinham combinado mascarar-se e ela alugou para mim um dominó que não cheguei a vestir, pois afinal ninguém do grupo ia mascarado.
Ao anoitecer a Manuela foi à cabeleireira e eu fiquei ao frio, à sua espera. O tempo ia passando. O frio apertava. Mas já estava habituado a esperar por ela. Acontecia o mesmo em Portalegre. Danava-me e só tinha vontade de explodir. Quando aparecia, muito bonita, esquecia tudo e sorria.
Gostavas do meu sorriso?
«Está frio!»
«Não, está fresco.»
«Fresco?»
Foi este curto diálogo que se repetiu muitas vezes. Ela dizia que estava frio e eu sugeria, logo de seguida, que estava fresco. E tudo acaba­va num sorriso que nos aquecia a alma.
Fiquei de facto ao frio. Mas não sentia o rosto enregelar-se pelo frio cortante de fevereiro. O tempo é que custava a passar.
Finalmente chegou a hora do baile. O contacto dos nossos corpos, do seu rosto macio como veludo. O apertar forte e sentido das mãos, com os dedos entrelaçados. Nunca os nossos corpos estiveram tão próximos, com os rostos a tocaram-se, falando de pro­messas, sonhando com um mundo diferente, só nosso.
Um mundo que não passou do sonho?
Nessa noite inesquecível do baile nem a dança das vassouras foi motivo para nos separar. Era Carnaval e "no Carnaval nada parece mal". Mas a ela pareceu quando alguém teve a ideia de trazer uma vassoura para a sala de baile, como se do seu par se tratasse. Logo de seguida desencadeou-se um processo em cadeia, inocente e divertido. Quem tinha a vassoura na sua posse dava alguns passos de dança com a mesma e logo a passava para as mãos de um homem ou mulher que dançava, conforme o caso, claro.
Até que chegou a nossa vez. Uma mulher ofereceu a vassoura à minha companheira que me agarrou de imediato com força, não deixando que ela me levasse na tal dança inocente. Depois, sorriu para mim com uma ternura infinita e encostou o seu rosto ao meu.
Possessiva?
Ainda bem.
Foi uma noite maravilhosa, única, que passámos juntos até quase ao amanhecer. Se dormi uma hora foi muito. Lembro­-me de ter acordado mal disposto e ir para a rua. Passavam alguns minutos das oito. O ar fresco da manhã fez-me bem.
Também foi nessa noite que me disse quem era o Melícias, um indivíduo que ela odiava por lhe mover uma perseguição quase constante, mesmo com contornos obsessivos. Para obsessiva bastava a nossa relação.
Ostensivamente fomos ao bar para ele nos ver bem. Foi ela que quis, para lhe mostrar em concreto quem era o seu amor. E ele viu-nos. Estava a atender um cliente.
Como a Manuela o odiava!

Perdi-me em Lisboa
Em meados de outubro surgiu mais uma variável que viria a perturbar a minha rotina de vida. Entrei para a Faculdade de Ciências, concretizando um sonho antigo e também o do meu pai que se sacrificou para que tivesse um outro futuro, bem diferente do seu.
Perdi-me em Lisboa. A capital deslumbra­va-me. Era o começo de uma vida diferente. A liberdade. A independência. O desejo de me perder na cidade e cortar todos os cordões umbilicais.
A ida para a Faculdade em nada alterou a nossa relação, pelo menos enquanto existiu um compromisso mútuo de confiança. A maior parte do tempo de namoro passou-se com trocas de cartas, de cá para lá e de lá para cá, quase todos os dias. Tudo estava bem. Nunca nos cansámos de escrever, mas claro que roçámos muitas vezes a banalidade e por essa razão tentei dar a volta, inventando histórias que pedia para ela continuar. Nunca o fez. Confessava que não tinha jeito. E eu danava-me, mas era só no momento. Gostava muito dela. Dizia que era a mulher única e que nunca a ia perder. Seríamos os eternos enamorados.
Bem me enganei. A maldição caiu forte sobre nós quando aluguei um quarto na rua de S. Bento.
O serviço de refeições era requintado e cada hóspede tinha a sua mesa privativa. O pequeno-almoço era bom, à descrição. Pão com manteiga ou doce, "pãezinhos de Deus", leite do dia servido em leiteira de inox, um bule com chá, uma pequena cafeteira para o café. Tudo sobre uma toalha branca, muito limpa. As outras refeições também eram fartas e de qualidade razoável. Quanto aos hóspedes, aí torcia o nariz porque eram todos indianos e achei-os muito falsos, o que ocasionou um ou outro conflito de que saí sempre por cima.
Para amenizar o ambiente havia a Rosa Maria, uma jovem algarvia muito simpática que se tornou minha protegida quando me pediu um dia para despedir o explicador de Português.
Recebi-o à porta e disse-lhe, cara a cara, com firmeza, que a menina Rosa não queria mais explicações. Não tugiu, nem mugiu, nem sequer pediu a conta. Desapareceu sem uma palavra, com o rabo entre as pernas. Estranhei a atitude dele. Havia ali coisa grossa. Lembrei-me que a Rosa Maria estava muito nervosa quando me pediu para o despedir.
Que motivo forte levou à despedida?
Meteu-lhe as mãos nas coxas gordas ou então aconteceu outra coisa ainda pior.  Mas a Rosa Maria não me contou. Também não lhe perguntei. Estava aí o pomo da discórdia e fui um ingénuo. Caí na boca do leão, sem sequer haver um leão.
Nunca houve nada entre nós senão amizade. O mal foi contar à minha namorada tudo o que se passava na pensão e provavelmente falei muitas vezes da Rosa Maria. As cartas que trocávamos eram quase diárias e naturalmente o assunto faltava. Daí fazer uma espécie de diário de tudo o que se passava na pensão. Ela desconfiou. Por mais que insistisse que não passava de uma amiga e que se sentia deslocada de todo no ambiente em que se inseria, não acreditou nas minhas palavras sinceras. A Rosa Maria precisava de proteção porque estava rodeada de indianos que julgava não terem as melhores intenções em relação à jovem algarvia.
Foi assim que vi crescer o ciúme doentio na nossa relação e começou a roer o amor que jurámos ser eterno.
Entretanto enchi o saco por causa dos indianos que estavam a criar demasiadas intrigas em relação à Rosa Maria e decidi mudar-me no princípio do ano para um quarto na travessa de S. Sebastião. Era um terceiro andar com alguma vista sobre a parte norte da cidade. Havia uma varanda larga e alguns dos quartos davam precisamente para a dita varanda, um dos quais o que ocupava.
A pensão, com cerca de dez comensais, todos homens, era gerida pela famigerada "Aninhas-morte-lenta". Aqui as refeições nada tinham a ver com as da pensão da rua de S. Bento. Comia-se mal. Muito mal. Mas era mais do meu agrado em relação à convivência com os outros comensais, na sua maioria estudantes.
Em janeiro o veneno do ciúme, que roeu lentamente a nossa ligação por causa duma suposta relação minha com a Rosa Maria, matou de vez o mito da mulher única.
Gostávamos muito um do outro, mas não nos entendíamos. O melhor seria pararmos com as cartas e esperarmos por melhores tempos, pensei.
Propus a interrupção do namoro e ela concordou logo.
Continuei a perder-me em Lisboa, seduzido pelo prazer matreiro da liberdade.
Será que ganhei alguma coisa com os novos horizontes que se abriram e nada me deram?
Apareceu a Odete. Apareceu a Natália. Muitas outras. Mas o lugar da Manuela ficou vazio no meu coração!
O pior de tudo ainda é que não acabámos a bem. Trocámos cartas e prendas. Foi ela a primeira a fazê-lo. Fiquei revoltado e fui para o quintal, onde ateei uma grande fogueira com as cartas que me devolveu. Foi um impulso de que me arrependi logo. Até porque estava ali uma vida que durou pouco mais de dois anos e também muitas histórias que eu tinha começado e depois acabado porque a Manuela não conseguia, de forma alguma, pegar nelas. Até trocámos as alianças em prata com a flor-de-lis.
Não era eu quem deitava carta após carta para a fogueira que estava a consumir o nosso amor. Não era porque tínhamos jurado amor eterno e agora eu estava a queimar as próprias palavras do juramento escritas com tanto amor!
Quem nos afastou tão de repente?
Estivemos quase dois anos de costas voltadas, sem saber um do outro. Dois longos anos com sabor a desencanto.
Um dia, recebi uma carta sua. Queria que reatássemos em setembro, em Portalegre. Era uma oportunidade para ver se nos entendíamos, e não podíamos perdê-la. Concordei.
Mas o destino tem muita força e contra ele não se pode lutar. Foi o caso. Uma certa Julieta sem Romeu seduziu-me e esqueci estupidamente o compromisso assumido. Não sei como aconteceu. Que foi estranho, foi. Muito estranho. Esqueci-me de todo desse encontro. Não consigo encontrar uma explicação lógica.
Entretanto a Olinda convidou a Simone para passar o mês de agosto na nossa casa e ela aceitou de imediato, claro. Foi um maná que surgiu do céu, pois ela continuava vidrada em mim. Assim, não deixou perder a oportunidade e fez tudo para me conquistar de assalto. Era uma mulher atraente, insinuante e eu estava indefeso, perturbado, sem rumo definido. A liberdade que apareceu de mão beijada quando fui estudar para Lisboa em nada de positivo contribuíra para eu crescer e tornar-me um homem maduro, responsável. Antes pelo contrário.
Quanto à Simone, deixei-me seduzir pela sua beleza. Resisti durante mais tempo porque tinha a companhia do Justino e saíamos muitas vezes, para grande desespero do Necas que não tinha ainda idade para nos acompanhar.
O caso começou a complicar-se precisamente a meio do mês. Tentei não ouvir o canto da sereia, mas era muito difícil. Ela fazia-me um cerco sistemático e sabia atacar, como fêmea atraente que era. Estava quase a ceder à tentação. Era só uma questão de dias.
Uma tarde, completamente desesperado, cheguei a fazer a mala e a encaminhar-me para a estação de camionagem. Tinha que afastar-me para qualquer lado onde não sentisse a presença sedutora da Simone. Arrependi-me no último momento ao lembrar-me que os meus pais iam ficar preocupados. Desisti daquela intenção drástica e voltei para trás. Foi o canto do cisne. Caí que nem um patinho nos braços da tentação.
Julgo que foi nesse dia, em que deixei cair por terra a última resistência aos encantos da Simone, que me esqueci de vez do encontro que tinha combinado com a Manuela.
Já com o namoro oficializado, eu e a Simone fizemos, mais uma vez de comboio, a viagem para Portalegre e não posso esquecer-me da receção principesca que tive na casa mãe da Simone. Tínhamos na nossa frente uma mesa bem posta e com todos os requintes.
Olhei, desconfiado, para aquelas iguarias. Resisti, a ponto de dar, no momento, um conselho ao Justino:
«Não comas nada! Faz como eu.»
«Porquê?»
«Não discutas.» Disse, entre dentes.
Desculpei-me que estava enjoado. A razão era outra. Pensei que a mãe da bela Simone tinha posto qualquer coisa ruim na comida para fazer magia de amarração comigo. A mãe da Simone tinha ar de bruxa, ou era eu que a via como bruxa. E ainda bem que não comi nada nessa noite senão ainda teria sido mais forte a ligação que só durou enquanto ela me teve perto da vista. O feitiço, começado em agosto, consolidou-se em setembro. E aconteceu em setembro! O setembro do rapaz da camisola azul encontrou outra vez a rapariga do vestido branco. Mas corriam tempos desfavoráveis, talvez geridos pelo deus menor. Talvez, não. De certeza. Volto a repetir. Ainda hoje não consigo explicar como foi que me esqueci do compromisso que tinha assumido com a Manuela. Acho que foi foi bruxedo. O começo de uma maldição sem fim.

O dia do desencontro
Meio da tarde. Eu e o Justino descíamos a rua do Comércio, também chamada rua Direita, mas muito torta, como é habitual acontecer nas terras que têm uma rua com esse nome. Conversávamos sobre assuntos banais. Ao mesmo tempo que falava, ia olhando em frente, aparentemente concentrado nas pessoas que subiam a rua. Um velho hábito que tinha.
«Mais pareces uma ventoinha, Mário. Fazes-me confusão.»
«Não sei de que estás a falar...»
«As pessoas do signo Escorpião é que são assim. Antes de entrarem numa sala onde está muita gente, olham para todo o lado, desconfiados. Só depois é que se aventuram a entrar.»
«Eu não estou desconfiado» desculpei-me. «É a minha forma de ser.» 
Foi então que a vi. Lembrei-me de imediato do encontro que tínhamos combinado para tentarmos reatar uma relação adormecida. Face ao que tinha acontecido com a Simone, estava já num outro jogo depois das cartas terem sido baralhadas e distribuídas. Era outro tempo e ia magoar a Manuela mais uma vez. Tempo passageiro, mas real.
Como me esqueci totalmente do encontro?
Em vez de me penitenciar, deitei as culpas para quem tinha as costas largas e não podia responder-me à letra ou então não queria. E assim lamentei a minha triste sorte. Deus não existia, ou fazia de conta, ou fora substituído pelo meus menor. O verdadeiro Deus falava comigo e não me ia abandonar num momento tão decisivo como aquele.
Desta vez não tinha o olhar triste que tanto me impressionou. Sorria, feliz, para mim e vinha ao meu encontro. Eu também me aproximei.
Pouco depois estávamos frente a frente, sorridentes e felizes de nos encontrarmos de novo. Mas foi só um momento. Foi só um momento feliz, seguido de outro horrível e eterno, como eterna será a minha sensação de culpa. Porque só então me lembrei do compromisso.
Se pudesse desaparecer por um buraco que não existia, ou se tivesse poderes para fazer desaparecer a Simone e o novo destino que veio atrás dela com o estranho envolvimento de agosto!
Passado aquele momento de sentimentos e emoções indescritíveis nada seria igual ao que estava a acontecer.
Afinal quem fui em agosto?
Se não tivesse sido seduzido pela Simone, naquele momento em que ficámos frente a frente, eu e a Manuela estaríamos envolvidos no processo de reconstrução dum futuro a que agora era impossível chegar porque agora a realidade era outra.
Os erros pagam-se caros. Ela era a mulher certa e agora namorava a mulher  errada. Não percebi que o nosso destino ia ser desviado talvez para sempre por uma mulher que me enfeitiçou. E ali estava ela. E ali estava eu. Erro fatal pensar que tinha um compromisso com a Simone quando o outro, mais antigo, falava de feromonas cujo efeito duraria até à eternidade, se é que a eternidade existe para lá da morte física.
Falhei redondamente na análise que fiz. Era tudo muito simples. Bastava substituir uma variável por outra e seguir os passos normais de resolução de uma equação possível e determinada. Tinha também que levar em conta a hipótese da amarração.
Não me lembro das frases que trocámos. Apenas sei que a Manuela quis, à viva força, visitar a minha família e não tive coragem para dizer-lhe que namorava com a Simone. Mais um erro incrível que tentei remediar propondo que a visita fosse no dia seguinte, mas ela insistiu em ir nessa noite. Então engendrei um esquema porque havia um problema bastante complexo de resolver. A Simone ia ter comigo a casa dos meus tios porque íamos ao cinema. Se ela chegasse mais tarde e a Manuela mais cedo, talvez que não se encontrassem. Talvez.
Marquei então as horas. Não deu resultado porque uma chegou mais cedo e a outra mais tarde. Mesmo assim fui um fraco, pois tentei ainda esconder-lhe a verdade.
Ela chegou e mal houve tempo para conversarmos. Tinha jogado com o tempo e falhei. A outra já estava a bater à porta, o que considerei muito estranho. Julgo que alguém a avisou. Talvez a minha irmã. Eram muito amigas. Mas porquê a minha irmã?
A Manuela compreendeu logo o que estava a passar-se e, cumpridas as formalidades dos cumprimentos aos meus tios, deu uma desculpa e saiu.
Foi assim que desapareceu da minha vida. Quanto à Simone não passou de um joguete do destino para me afastar da Manuela. Gostava de mim, mas eu não gostava dela. Tivemos um verão escaldante e pouco mais. Em fins de outubro acabou tudo. Lógico. A nossa relação foi só fumo que se esfumou. Mais nada senão fumo que me tapou o discernimento e serviu para me afastar da Manuela. Nem o dinheiro da Simone constituiu incentivo para imitar o amor.
Depois veio em força o inverno do meu descontentamento. Novas madrugadas a augurarem dias aparentemente azuis mas com umas pinceladas fortes de cinzento escuro.
A Manuela partiu para longe num barco que estava destinado a permanecer à beira-mar. Fez-se ao largo e eu não encontrei forças para a demover de seguir numa viagem que lhe tinha oferecido.
Mas a saga não acabava aqui. Vê-la-ia mais vezes e estaríamos de novo muito perto e ao mesmo tempo muito longe...

Seguiram-se mais de três longos anos a cumprir o serviço militar. Com muita história e nenhuma que envolvesse a Manuela.

O regresso à vida civil foi complicado em duas vertentes. Tinha o curso para acabar e estava desempregado. Portanto, nunca podia ter sido um bom começo. Em relação ao curso, os maus hábitos adquiridos na tropa dificultaram-me a adaptação a um ritmo de vida que deixei quatro anos antes. Nessa altura costumava estudar nos cafés. Apesar do barulho de fundo conseguia concentrar-me menos mal. Agora, era contraproducente continuar num tal esquema. Não conseguia concentrar-me mais que dez minutos. Além do mais irritava-me com facilidade. Talvez conseguisse estudar num ambiente de silêncio. Experimentei no quarto e desisti de imediato ao concluir que ainda era pior porque o sono atormentava-me.
Então que fazer?
Quando entrei para a tropa, sem dar por tal congelei e tive enormes dificuldades em continuar os estudos. Bem me dizia um amigo da Faculdade de Ciências que desesperava e não conseguia estudar por mais que tentasse. Desistiu de estudar depois de ser chamado para um emprego de seguros.
«Maldita sorte. Ainda por cima lutávamos por uma causa perdida. Há quem não pense isso, mas adiante. O que me interessa é que agora estou fora de toda essa merda e ainda não perdi a esperança de acabar a porra do curso. Ou eu não me chame Ludovino. Quando estabilizar mais, vou estudar à noite.»
«Há aulas práticas à noite?»
«Ainda não. Ouvi dizer que vai haver.»
Mas esse meu colega e amigo tinha outras razões mais fortes para não conseguir estudar, pois regressara da guerra colonial um pouco pirado. Tinha insónias. Quando não as tinha, acordava a meio da noite alagado em suor e tendo como ruído de fundo o toar dos canhões e o sibilar as balas. Ou o silêncio da noite no mato que antecedia qualquer coisa de ruim. Ou as lutas corpo a corpo, tão reais que imaginava até estar a viver os momentos trágicos que tinha vivido meses atrás. Enfim, ainda havia momentos em que julgava viver no inferno.
«Uma vez um turra fraturou-me um maxilar com uma coronhada, mas dei cabo dele. Não me perguntes o estado em que o deixei. Ainda estou muito perturbado, Mário. Tiveste muita sorte em ficar por cá.»
«Bendito o último lugar do Valdo no curso.»
«Que tem a ver esse gajo com a sorte que tiveste de não bateres com os costados no inferno do Ultramar?»
«Ele era filho do major que tratava das mobilizações, entendes? Não foi para a guerra e, sendo assim, mais ninguém do curso foi mobilizado.»
«Agora percebo. Foste um sortudo!»
Sortudo duas vezes…
Já como tenente na reserva (longe ia o agoiro de ser chamado de novo, como aconteceu ao malogrado capitão de Infantaria que era médico e estoirou com os miolos porque lhe tinham estoirado o sonho da sua vida), um mês depois encontrei o Bastos Carneiro, o alferes que chefiava a secretaria, que me contou um caso que podia ter sobrado para mim porque a escala de oficial de dia era uma espécie de um-dó-li-tá.
Foi um mês depois de ter passado à peluda. E aconteceu só isto: o quarteleiro, aquela pessoa calma e que tinha sido escolhido a dedo para desempenhar a sua missão, um dia saiu inopinadamente dos carretos, matou à queima-roupa dois soldados e sequestrou o oficial de dia, refugiando-se depois na arrecadação das armas.
Acabou por ser abatido como um cão raivoso pelos seus homónimos de graduação.
Não sei o que se passou naquela cabeça. Coisa boa não foi para fazer o que fez. Levou o segredo para o túmulo.
«Obra do maldito 666!» teria concluído o sargento Quezada.
Que o desgraçado do quarteleiro teve um mau fim, isso não nego. Agora atribuir as causas ao Mafarrico, é já outra história sem dimensões para caber aqui. Não pretendo brincar com o fogo e muito menos imaginar as labaredas, para os que acreditam, onde deve estar a arder o pobre quarteleiro que não fazia mal a uma mosca e que um dia teve um sonho ruim que substituiu a realidade do seu dia a dia discreto.
«É verdade. Podes dizer.»
Este colega de Faculdade e de curso foi a primeira pessoa a falar-me do Fel de José Duro, o poeta do infortúnio que tratava a morte por tu.
«Lembras-te, Mário quando te pedi um dos teus poemas para tentar engatar uma sopeira.»
«É verdade. E como ficou isso?»
«Resultou. Comi-a num vão de escada...»
O encontro ocasional com o meu colega foi positivo. A partir desse dia comecei a esforçar-me mais e os níveis de concentração subiram. Mas o pior é que não conseguia encontrar um emprego. Diziam-me sempre que tinha habilitações a mais. Pois era. Então modifiquei o currículo. Antigo sétimo ano. Mesmo quinto.
Na passagem do ano desejei que tudo se modificasse para melhor. 

Caixa de Abono de Família
Felizmente que em fevereiro acendeu-se uma luz para os lados da rua dos Douradores. O emprego tinha a ver com as instituições bancárias. Era um departamento de assistência onde se processavam os abonos de família e prestações complementares. Como se fosse ontem, lembro-me da manhã em que me apresentei ao serviço. Estava um sol radioso e não havia o mínimo sinal de vento. Como era meu hábito nos encontros marcados e coisas similares, cheguei meia hora mais cedo.
Logo no rés-do-chão deparei com um indivíduo que ocupava uma secretária e que entendi tratar-se do porteiro do prédio. Não me enganei, coisa fácil... mas podia ser o porteiro dos serviços onde ia empregar-me.
Fui interpelado por ele e expliquei ao que vinha.
«É já no primeiro andar, mas só abre às nove.»
«Então, espero aqui. Isto se não se importa.»
«Como queira» disse ele. «Mas toque à campainha lá em cima. Pode ser que o Cintra já tenha chegado.»
Outro como eu, pensei. Agradeci e subi as escadas. Dentro em pouco estava a premir o botão da campainha. Não esperei muito tempo.
«É o colega novo?»
«Pois sou. Muito prazer.»
Estendi a mão que ele apertou cordialmente.
«Mas entre.»
O indivíduo pareceu-me simpático. Estava muito bem vestido com um fato completo (incluindo colete) azul escuro. Sapatos pretos, clássicos, a brilhar. Era magro, baixo, usava óculos e tinha cara de garrafão. Devia ter mais de sessenta anos, pelo que o considerei velho.
Tentei descobrir que cargo exercia. Um vulgar terceiro escriturário ou mais que isso. Pelo modo de falar não devia ter muitas habilitações.
«Um enigma.»
«Como?»
«Desculpe. Falei alto sem querer. Queria... queria dizer que não sei o que me espera...»
Agora parecia o Fernando Pessoa a falar do mistério do amanhã na véspera de ser internado com uma cólica hepática fatal no hospital de S. Luís dos Franceses.»
«Não se preocupe, meu amigo. Como é a sua graça?»
«Chamo-me Mário. Mário Fonseca.»
«Muito prazer. E eu sou o Cintra. Mas é a razão seguinte...»
Razão seguinte?
«Como ia a dizer, não se preocupe. A rapaziada é fixe. Vai gostar disto. Mesmo muito. O doutor é um bocado chato, mas tem bom fundo. Não dê muita confiança à Eduarda. Posso tratá-lo por tu?»
«Acho bem. Quem é essa a Eduarda?»
«A mulher da limpeza.»
«Ah, sim. Obrigado. Nunca  esqueço um bom conselho.»
Afinal que cargo desempenhava aquele homem?
«Mas vamos entrando. Aqui é o gabinete do chefe.»
«O doutor.»
«Pois.»
Passámos para uma sala grande, toda preenchida até ao fundo por secretárias com o tampo em vidro onde certamente estaria uma à minha espera. O Cintra pareceu adivinhar os meus pensamentos.
«Esta é a tua secretária. Estás em frente ao guichet. Prepara-te que vais ser o mais sacrificado. Sempre que ouvires o besouro terás que atender, mesmo que não seja para ti.»
«Foi de propósito?»
«Claro que não foi. O colega que vais substituir ocupava esta secretária.»
«Ok.»
Começaram a aparecer os outros colegas. O Cintra apresentou-mos um a um, sempre de uma forma monocórdica.
«É o Mário Fonseca. Vem substituir o Quaresma...»
Invariavelmente disseram frases parecidas com estas:
«O ambiente é bom. Vai gostar. A rapaziada é fixe. Somos uma família.»
A chamada “rapaziada” era muito diversificada no que dizia respeito à idade, indo de uma escala de dezoito até um pouco além dos cinquenta. Curiosamente todos atiravam bocas ao Cintra. Para grande surpresa minha tive que admitir que o meu interlocutor, muito bem vestido no seu fato azul escuro, impecavelmente passado a ferro, não passava de um simples contínuo. Chefe do pessoal menor, pois claro. E o pessoal menor era constituído por ele e a tal Eduarda a quem não devia dar muita confiança.
Por volta das dez horas chegou o doutor. Era um homem de semblante muito carregado, o que me deixou uma certa apreensão.
«O trabalho que vai fazer nada tem a ver com as suas habilitações, embora possa sentir grande facilidade em desempenhar as suas funções. E não se admire do seu primeiro mês aqui. É norma da casa os caloiros desempenharem as tarefas do Cintra. O chamado “cuspo e dedo”, como eles dizem, e pouco mais.»
«Cuspo e dedo?» perguntei, cheio de dúvidas.
«Muito simples: colar selos nas cartas e entregar nos correios. Dar também a entrada e a saída da correspondência.»
«Isto no primeiro mês?»
«Sim. Ao mesmo tempo, nos momentos livres, vai juntar-se ao colega que trabalha, em acumulação, com o “Português do Atlântico”.»
«Será o meu futuro trabalho.»
«Exato. Agora vamos tomar o café e aproveita para falar com os seus colegas de trabalho. Dou-lhe um conselho. Não dê muitas largas ao Cintra. É boa pessoa, mas abusa um pouco.»
«Certo, certo, doutor Barata. E também devo ter cuidado com a empregada da limpeza, não é?»
«Quem lhe disse isso?»
«O Cintra.»
«Não ligue. Eles andam sempre às turras um com o outro. Vamos ao café?»
Disse que sim com a cabeça. Ato contínuo fez-me um gesto para o seguir. Chefe à frente, subordinado atrás, como se impunha. Empurrou a porta envidraçada com força para vencer a resistência da mola e segurou-a para eu passar. Não foram precisos muitos passos para estar em frente à mesa comprida onde esperavam, com um sorriso amistoso, os meus colegas de trabalho.
«É um local de convívio e também de reuniões de trabalho.»
Fiquei a saber que havia nove terceiros escriturários, um segundo e dois primeiros, um deles responsável pelo nosso sector e o outro, contabilista. Esqueci-me de dizer que havia duas casas de banho. Uma era para a datilógrafa e para a empregada de limpeza e a outra para os homens. Situavam-se à esquerda, logo a seguir à porta que comunicava com a sala de convívio. Dum e doutro lado, bem como na nossa sala havia armários metálicos encostados à parede.
«Quem faz o café é a Eduarda, a nossa empregada auxiliar.» Disse.
E em voz baixa:
«Cuidado! Ela é atiradiça...»
Bicho pegajoso, pensei. Então o Cintra não estava isento de razão. Fiquei também com a ideia que o doutor era elitista.
O intervalo para o café serviu para conhecer melhor os colegas que começaram com brincadeiras de gozo dirigidas para o Cintra.
«Conta lá quando estiveste na tropa a prestar serviço na Companhia do arre macho
Virei-me para o Cintra.
«Arre macho?»
«Bom... não te engasgues.» Ironizou o Germano, colocando o indicador sob o narigão do contínuo.
«Descansa o bico.»
O homem fez-se muito vermelho.
«É a razão seguinte» disse, virando-se para mim. «Estes gajos fazem-me a cabeça em água...»
Não saiu nenhuma história da boca do bom do Cintra, mas o Germano, que tratava dos assuntos do BNU, resolveu contar por ele. Entretanto ouviu-se o doutor a tossir. Já tinha saído da sala há uns segundos.
«Vamos. Já sabes, Mário» esclareceu o Vicente. «Quando o doutor tosse é o mesmo que um sinal de chamada. Todos para a sala, meninos.»
«Parece que estás a chamar as putas dum bordel.» Disse o Leonel.
Sorri.
«Vamos então.»
Já estava a ocupar a secretária quando o Cintra apareceu com ar de pessoa entendida. Trazia um maço de cartas consigo que pôs sobre a secretária.
«Olha, Mário. Vou-te explicar como se faz esta coisada. É a razão seguinte. Pegas no livro de registos, escreves a data e lanças tal como foi feito no dia anterior. Mas antes carimbas todos os documentos. Os próprios envelopes são carimbados, não te esqueças.»
«Certíssimo, chefe.»
«É pá... Desculpa estar a ensinar-te uma coisa que já sabes.»
«Claro que não sei, Cintra.»
Continuou a explicar-me a mecânica do meu trabalho.
«Primeiro vais alterar a data do carimbo...»
Ouviu-se o besouro. Alguém estava entrando na pequena sala quadrada por onde os beneficiários chegavam ao guichet.
«Faz favor de dizer, senhor...»
Colocou o cotovelo esquerdo sobre o apoio junto ao vidro, encostou um dos ouvidos e foi ouvindo, aparentemente atento, o que o beneficiário tinha a dizer de sua justiça. Não disse uma palavra. Parecia pensativo, tentando encontrar uma resposta para a dúvida posta pelo outro. Mas, fracasso total.
«Ó Alfredo. É para ti. Atende este benevisiário
Depois virou-se para o benevisiário, metendo a mão direita na anca, ao mesmo tempo que exibia o seu ar de sapiência número um.
«Sabe, meu amigo... É a razão seguinte» disse ao beneficiário. «Mas o meu colega vai explicar-lhe melhor.»
Claro que não explicou nada. Nadinha. Afastou-se, rumando para a sua secretária. Decididamente chegara ao fim a lição sobre a tarefa que eu ia desempenhar.
«Olha para ele» disse o meu colega do lado. «Está a fazer boquinhas. Hoje começou cedo.»
Era isso. Estava a fazer mil caretas.
«E ainda não o viste depois das quatro!»
Parece que o homem metia-se nos copos. Afinal adivinhei quando o “cataloguei” como tendo cara de garrafão.
Bebia por gosto ou por desgosto?
Próximo da hora do almoço já me sentia pessoa da casa. Aquele emprego não era bem o que eu desejava. O ordenado não era famoso e mal dava para pagar a renda da casa. Estava numa fase de transição que servia de ponte para voos mais altos ainda no segredo dos sonhos e dos deuses. Chegara ao fim o pesadelo do desemprego. Havia uma prioridade e ia atirar-me de cabeça. A hipótese fortalecida de acabar do curso que me daria de imediato acesso a novos horizontes. Se tivesse força de vontade, tempo não me faltava. Inclusivamente a gaveta do meio era boa conselheira, pensei. Já tinha visto o meu colega do lado utilizar a sua. Tinha camuflado na gaveta um livro que ia lendo e folheando.
O próprio Dinis aconselhou-me:
«Faz o mesmo que eu. Traz o teu livro e estuda quando não tiveres nada para fazer. Estou a tirar um curso de Contabilidade e quando chegar o momento saio imediatamente daqui.»
«Vou seguir o teu conselho. Obrigado por me teres posto à-vontade.»
A ideia era ótima.
«Olha, queres ir almoçar connosco?»
«Obrigado.»
Não concluí. O Sobral, homem de aspeto bonacheirão, que a pedido de um amigo comum me tinha facilitado o acesso ao emprego, estava na minha frente.
«Mário...»
«Olá, Sobral. Passa-se alguma coisa?»
«Nada de especial. Queres ir almoçar comigo e com o doutor?»
«O Dinis estava a convidar-me neste momento.»
«Deixa para amanhã o almoço com o Dinis e os outros gajos. É de bom tom aceitares, acredita. Foi o doutor quem fez a sugestão.» Informou.
«Prepara-te para andar um pouco.»
Esses tempos que corriam, para quem tinha deixado recentemente o serviço militar, não me metiam qualquer medo quanto a fazer exercício físico.
«Não tem problema que seja longe. Sou magro e a tropa ofereceu-me o único bem de louvar. Fisicamente estou impecável. Já corri dezassete quilómetros sem parar.»
«Não me digas, pá?»
«Com fato de macaco, Mauser e botas.»
«Ótimo. Então, vamos. Ele já está à espera.»
Seguimos pela rua de Santa Justa, a dois passos do emprego. Olhei de soslaio para o Sobral.
«Afinal a caminhada é curta.» Disse este, em voz baixa.
Depois de atravessarmos a rua do Ouro entrámos no elevador que nos levou até ao Carmo.
«Hoje não vamos à Bicaense.» Disse o doutor. «O passeio é mais curto.»
A Bicaense situava-se para os lados da Calçada do Combro. Para lá chegarmos tínhamos ainda que descer as escadas ao lado do elevador da Bica.
«Então, doutor? Vamos ao enfarta brutos?» perguntou o Sobral.
«Hoje há cozido.» Afirmou este.
«É verdade. É dia de cozido.»
«Não tem relutância em irmos a um tasco, Mário?»
«Claro que não, doutor. Até porque não estou propriamente a nadar em dinheiro.»
«Eles fazem bem o cozido.»
O Sobral voltou a olhar para mim de soslaio e torceu o nariz. O tasco era mesmo um tasco. Mesas com oleados manhosos, manchados de tinto, comida fora dos pratos e no chão, pessoas em fatos de macaco sebentos, bancos de correr para mesas compridas, bancos normais, tipo pontapé nas costas, para mesas de quatro pessoas.
Ocupámos uma dessas mesas e comemos o cozido. Nem bom, nem mau. Antes pelo contrário.
Veio-me à memória o tempo de Faculdade, antes de entrar para a tropa, quando eu e o Ludovino íamos comer à taberna do Serafim. Feijoadas, cozidos, bacalhau com grão, polvo cozido, peixe-espada frito. Quando pedia um bife com um ovo a cavalo o prato custava mais um escudo. Nada famoso. Mesmo assim um pouco melhor que os bifes de sola do Come e Bebe.
Grande desilusão! Quando cheguei a casa e despi as calças, dei conta que estas estavam sujas na zona do rabo. O barato saiu-me caro, mas foi um investimento que fiz ao ter por companhia o meu chefe. Quanto ao mês da experiência, feita no meio de cartas, carimbos, livros de registos de entrada e saída de correspondência, idas diárias aos correios e uma ou outra saída na companhia do Cintra, com entradas obrigatórias nas tascas para bebermos um copo de tinto, pareceu-me uma eternidade a passar. Valeu começar a aprender os meandros relacionados com os assuntos dos beneficiários, ocupação muito mais interessante que a tarefa rotineira ao extremo do cuspo e dedo e pouco mais.
O Cintra voltou à sua tarefa e pude confirmar que deitava a língua de fora e para o lado quando carimbava um documento ou pressionava um envelope acabado de fechar.
Entrei então em contacto direto com a classe mais arrogante do mundo. Os funcionários bancários, talvez porque se sentiam guardadores do dinheiro dos outros, porque o tratavam por tu, falavam de cima para baixo para os pobres dos meus colegas.
Comigo não pegou. Dei-lhes sempre a volta e nunca perdoei uma entrada de documentos fora de prazo.
«Mas eu tenho direito!»
«Tinha, meu amigo. Lamento. O seu pedido de subsídio entrou fora de prazo.»
«Deve haver um engano. Eu respeitei o prazo!»
«O que conta não é data da carta, mas a do carimbo dos CTT. Veja bem a data, caro senhor.»
«Tem razão. Não pode ao menos fechar os olhos?»
«Só para pestanejar.»
Era bom para a vista o ato de pestanejar.
«Boa, Mário. Esses gajos precisam de baixar a garimpa...»
«Limito-me a cumprir os regulamentos.» Comentei com o Dinis.
Voltando ao mês experimental na tarefa do cuspo e dedo, nunca imaginei que ia descobrir um tesouro. Os selos. A paixão de sempre e talvez para sempre. Nunca juntei tantos selos durante os dezoito meses em que estive ao serviço da Caixa de Abono. Mas como? Muito simples. No exterior, precisamente na sala de acesso ao guichet havia um armário que continha os sobrescritos enviados pelos beneficiários, todos com selos obliterados, registados e não registados. Havia um senão. Só se podia ter acesso aos selos seis meses passados a contar da data do envio. Não havia problema. Retirava os sobrescritos com mais de seis meses e zumba... recortava os mesmos. Eram tantos que, um dia, enchi a banheira de selos colados ao papel e fiz horas extraordinárias forçadas. Voltando a falar no Cintra, fui sempre um amigo de exceção para ele. Ao contrário dos outros, nunca brinquei com ele de forma a roçar o ofensivo. Alinhei em certas brincadeiras que não achei contundentes e essa conduta de que me orgulhei de ter criou nele uma imagem que me lisonjeou muito.
Houve um caso caricato em que intervim de forma involuntária e que o fez vacilar em relação à confiança que depositava em mim.
Aconteceu por volta das dez horas. Nessa manhã vinha de uma aula prática na Faculdade de Ciências, na altura ainda situada na rua da Escola Politécnica, quando fui recebido por uma comissão de três colegas: o Leonel, o Pedro e o Dinis.
«Estamos a preparar uma partida ao Cintra. Nada de ofensivo.» Disse o Dinis.
«E que querem da minha pessoa?»
«Ele tem muita confiança em ti. É importante que entregues este bilhete e fales com ele.»
«Vejam lá o que vão fazer ao desgraçado do homem!»
Pôs-me a mão no ombro.
«Acredita. Não é nada de mal. Só uma pequena brincadeira.»
«Pronto. Vou entregar-lhe o bilhete. Ai de vocês...»
Entrei na sala e dei os bons dias a todos. Notei logo um sorriso de cumplicidade. O próprio responsável pela secção fez-me um gesto de apoio. Ocupei o meu lugar na secretária e fingi observar os processos novos que tinha no cesto. De seguida, olhei de relance para os lados do Cintra.
Tão cedo a fazer boquinhas e a pôr a língua ao lado sempre que carimbava um papel?
Era a inocência em pessoa. Tive pena.
Vou? Não vou?
Talvez não fosse nada de mal.
Levantei-me e fui ter com ele.
«Olha o meu amigo Mário! Hoje temos entrega de ordens de pagamento. Queres ir comigo?»
«É dia grande para ti. Se o doutor deixar...»
«Já falei com o doutor e tu vais comigo depois do almoço.»
«E logo depois do almoço. Mas vou jogar à defesa, Cintra. Não tenho a tua pedalada.»
Referia-me aos copos de tinto que o esperavam nas muitas capelinhas e teria que o acompanhar em alguns.
«É a razão seguinte... bebes o que quiseres.»
«Claro, claro. Mas agora ouve uma coisa. Tenho um bilhete para ti. Estava na minha secretária.»
Fez um ar de pessoa importante.
«Dá cá. Sabes o que é?»
«Como havia de saber? Cheguei mesmo agora das aulas e vi o bilhete. Tu é que deves saber. Ouve lá, meu malandro, andas a engatar alguma contínua?»
«Bem, é a razão seguinte...»
«Pronto. A razão seguinte é uma dúvida. Quem será? Ou melhor: o que será, será...»
«Troca essa coisada por miúdos.»
«Deixa. Vê lá o que vais fazer depois de leres o bilhete.»
Coçou o queixo e mostrou um ar saudoso.
«É pá, tenho o moral muito em baixo. Não pode ser o que julgas.»
«Há quanto tempo?»
Limitou-se a encolher os ombros.
Voltei para o meu lugar. Os outros sustinham o riso. Até a dactilógrafa, introvertida por natureza, tinha suspendido o matraquear na velhinha Azerty.
Passei a observar a vítima. Olhou e voltou a olhar o bilhete e notei nele um ar de interrogação. Parecia não estar a acreditar no que lia. Pois não. Colocou o bilhete sobre a secretária. Desânimo na assembleia.
Mas a curiosidade acabou por sair vencedora. Pegou no telefone e discou o número. Estabeleceu-se um diálogo “de cá para lá e de lá para cá” que logicamente não ouvi. Só podia avaliar o evoluir da conversação através da expressão do rosto e dos gestos largos, pondo de parte as caretas nervosas e as tais inevitáveis boquinhas.
Começo: afabilidade. E a seguir: semblante sério e, segundos depois,  perplexidade.
Que se passava?
A resposta à minha dúvida foi um brusco pousar do telefonar e um ar de poucos amigos na minha direção. Tudo se passou muito rapidamente.
E então?
Tinha ligado para o Jardim Zoológico e pretendia falar com o doutor Leão.
A avaliar pelo semblante carregado e pelo aumento das boquinhas a resposta que veio do lado de lá não deve ter sido muito agradável.
Tive alguma dificuldade em convencê-lo que me limitara a entregar-lhe o maldito do bilhete. O homem estava mesmo zangado comigo. Tão zangado que nessa tarde não quis que o acompanhasse na entrega das ordens de pagamento. Mas cedo fizemos as pazes.
Poucos dias depois aconteceu mais uma cena caricata, desta vez sem ter por personagem central o desgraçado do Cintra. Alguém, que ia no momento a passar em frente à casa de banho dos homens, ouviu uma voz dizer, em tom de alívio:
«Adeus, almoço.»
E seguiu-se a descarga do autoclismo. O aliviado era o Sobral. O seu adeus, almoço esteve nas bocas do mundo durante vários dias, com tal frequência que o seu autor afinou, deveras agastado.
Aliás, passavam-se coisas estranhas naquela casa de banho. Digamos que havia visões eventualmente chocantes, do interior para o exterior.
Ao lado da sanita havia uma pequena janela que dava para as traseiras do prédio, donde se podia ver tudo o que se passava do outro lado.
Uma vez, quando me dirigia para a sala das reuniões, estranhei ver a porta da casa de banho aberto e, no seu interior, o Caldeira, espreitando à janela.
«O que se passa?» perguntei, surpreendido.
Não chegou a voltar-se para trás, limitando-se a fazer um sinal para me aproximar.
«Olha só...»
Percebi logo o que se passava nas traseiras do prédio em frente que também davam para o pátio. No rés-do-chão.
«Mas o que é isto?»
Olhou para mim e riu-se.
«Espera pelo melhor...»
Uma mulher tinha o traseiro assente sobre o tampo da sanita da casa de banho. Não entendia como se tinha descuidado ao deixar aberta a janela. Talvez que o calor fosse o responsável. Talvez um ato de provocação.
«Ela sabe...?»
«Não é a primeira vez. Olha...»
«Que está a fazer agora a gaja?»
«A tocar guitarra.»
Entendi. Dedilhava a preceito e fazia esgares estranhos, talvez de prazer.
«Esta agora!»
Uns minutos depois, levantou-se, mostrando o rabo branco durante uns segundos. Puxou as cuecas para cima e só depois fechou a janela.
«Foi mesmo de propósito! A cabra anda a provocar-me.» Disse ele.
«Talvez tenha sido. Aproveita. Vou andando. Daqui a pouco ainda temos o doutor à perna.»
O tempo que passei na Caixa de Abono foi fértil em pequenas histórias como esta, algo caricatas, na maior parte das quais o Cintra descansa o bico foi o principal visado, continuando a ser o simpático bonacheirão borracho, com muito fastio no que dizia respeito à alimentação, mas emérito bebedor de tinto à gaiola. No que dizia respeito à componente profissional talvez tivesse uma pontinha de inveja dos colegas pelos seus conhecimentos básicos e a situação hierárquica no emprego não lhe permitirem resolver os problemas dos benevisiários, mas não conseguiu evitar o desejo de assomar ao guichet, sempre que podia, para ouvir atentamente as suas reclamações, sempre de mão à cintura e a não dar qualquer seguimento ao assunto, senão perguntar:
«Disse que é do Fonsecas e Burnay? Eu já chamo o meu colega que o vai atender. Compreende...?, é a razão seguinte. Eu podia explicar-lhe, mas ele explica melhor essa coisada toda porque está mais dentro do assunto. É a razão seguinte: trata-se do seu banco.»
Quanto às partidas que lhe faziam, eram frequentes e caía sempre como um patinho.
O doutor não era má pessoa. Continuou a tossir antes de aparecer na sala principal, dando tempo a que todo o pessoal voltasse aos lugares e pegasse num processo à mão.
Tinha um comportamento peculiar no que dizia respeito aos ofícios que chegavam às suas mãos para assinar. Podiam estar corretos no que dizia respeito à resposta a dar e ao texto explicativo, mas voltavam sempre para trás da primeira vez porque, segundo ele, faltava sempre qualquer coisa ou as palavras empregadas não eram como queria. A justificação era sempre a mesma, nada pedagógica.
«Deve dar uma volta ao texto, Mário...»
A princípio irritei-me. Com o tempo habituei-me "às voltas" e até descobri uma técnica eficaz quase a cem por cento para as ditas cujas. Deixava ficar o ofício durante dois ou três dias no cesto dos pendentes e voltava a enviá-lo ao doutor, sem a mínima alteração.
Remédio santo! O homem assinava e eu respirava fundo.
Depois do serviço, isto por volta das seis da tarde, íamos quase todos os dias para o lado da rua dos Bacalhoeiros beber um licor de pêssego e conversar um pouco sobre a nossa vida. A seguir a um pêssego vinha outro, até que, por volta das sete, cada um seguia para o seu destino. Aquela aparente perda de tempo tinha outra parte boa para mim, pois permitia evitar o metropolitano na hora de ponta, menos a abarrotar de gente com cheirinho a sovaco que não conhecia o sabão.

O encontro no autocarro
No primeiro verão foi com grande pena que não tive férias. O trabalho aumentou porque acumulei o serviço dos colegas que foram de férias.
O julho e o agosto foram meses quentes, não só em temperatura, como também em emoções.
Tinha passado o fim-de-semana em Mafra. Não me lembro o que aconteceu nesses sábado e domingo. Talvez nada. O habitual. Uma oportunidade para retemperar as forças.
Era segunda-feira e levantei-me cedo, pois tinha de ir para Lisboa. Esperava-me o trabalho. Depois dos habituais cuidados higiénicos, decidi não tomar o pequeno-almoço, peguei no saco de viagem, desci as escadas e vi-me na rua. Estava uma manhã morna e a temperatura prometia subir acima dos valores considerados normais para a época. Hesitei no caminho a seguir. A gare ficava a dois passos de casa, mas decidi ir pelo passeio, que marginava a avenida, em direção ao largo do convento. O autocarro fazia uma paragem nas imediações antes de partir em direção a Lisboa, seguindo depois pela estrada nacional  que serpenteava e serpenteava até à vila da Malveira.
Mas fui apanhar o autocarro ao largo do convento, porquê?
Muito simples. Na gare havia um cheio intenso a gasóleo e gases queimados que incomodavam o mais comum dos mortais. E como a manhã estava agradável, não hesitei em tomar essa decisão.
Contra o que era hábito não esperei muito tempo. O autocarro chegou à hora, quase cheio e lamentei no momento não ter optado por esperar na garagem. Entrei com um pouco de sorte ao conseguir um lugar no banco que se destinava, noutros tempos, à fiscalização. Não sei se havia um segundo autocarro. O certo é que ficou muita gente em terra.
Enquanto pensava na sorte que tive, o autocarro tomou o rumo de Lisboa.
Mesmo em frente ao convento, ouvi alguém gritar:
«Mário!»
«Sou eu.» Pensei.
Estava longe, muito longe do que ia acontecer nos segundos a seguir. Quem chamava por mim?
Pura coincidência. Não devia ser comigo. Havia mais Mários, mas uma mulher voltou-se para trás a reforçar a coincidência e lançou-me um olhar espantado. A tristeza na expressão do olhar, o rosto que estava a ver não me deixou dúvidas.
«Manuela!»
Emocionei-me. Não queria acreditar que era ela! A mulher única que perdi exclusivamente por minha culpa.
Apanhado de surpresa, não reagi. Julgava que estava a viver em Évora, e, talvez por motivo, nem sequer esbocei uma simples reacção, a dizer:
«Estou aqui, Manuela.»
Aqui. Preso por grilhetas invisíveis. E ela perto de mim.
O seu olhar denunciara grande surpresa e ansiedade porque, muito provavelmente, também não conseguia reagir.
A situação era delicada. A vida não estava a ser um mar de rosas. Precariedade de emprego, falta de dinheiro, desencanto. Apenas uma coisa a favor. O fim do curso estava próximo. Até lá, tinha que engolir os chamados sapos vivos ao aceitar um emprego nada consentâneo com as minhas habilitações académicas.
Fiquei sem saber o que fazer. Pela mente passavam, rápidas, mil e uma imagens negativas do passado que não conseguia evitar. Estranhamente os nossos destinos voltavam a cruzar-se, agora numa situação muito diferente. Estávamos tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe!
Devia levantar-me e cumprimentá-la?
Optei por deixar-me ficar sentado no banco da fiscalização, enquanto o autocarro seguiu o seu caminho habitual, encurtando cada vez mais a distância que nos separava de Lisboa. Logo se veria. Agora restava-me recordar todos os momentos bons que tivemos.
As ligações de curta duração foram sempre as mais marcantes. Se tivesse acontecido doutra maneira…
Não voltou a olhar para trás. Naquela hora infinita que durou a viagem imensas coisas passaram-me pela cabeça e sintetizaram-se em palavras-chave como amor, saudade, desencanto. No fundo ainda ardia a chama que julgava ter-se extinto. A sua presença trazia recordações que há muito não me vinham à memória.
E agora que podia fazer?
O mais natural era ser casada. Até podia ter filhos e uma situação amorosa estável. Mas não conseguia imaginar que vivia com outro homem. Cinismo o meu que tinha todas as culpas pela nossa relação ter fracassado.
O autocarro no momento descia a avenida da Liberdade. As grandes decisões aproximavam-se. Já não era o rapaz da camisola azul, mas o amor estava latente, como se tivesse acontecido ontem a nossa ligação.
Um mistério sem explicação lógica, o amor pela Manuela. Depois de um acontecimento que me marcou pela negativa, passei a trilhar caminhos inimagináveis que marcaram, cada vez mais, a distância do nosso afastamento. A vida que me estava destinada acabava de dar uma volta dramática ao descobrir que a Manuela continuava bem junto do meu coração, tendo emergido do subconsciente com a força própria dos grandes amores. E ela? Só podia responder por mim, embora houvesse um dado novo que considerava muito importante para os dois, já que Alguém acima de nós tinha decidido que ia acontecer um novo encontro entre duas almas condenadas por um karma impiedoso.
Pensei, pensei. Aquele encontro fortuito não podia passar ao lado. Morrer na praia, nunca!
O autocarro chegou aos Restauradores.
Levantou-se. Aguardei uns segundos e imitei-a. Deixei que saísse. A seguir apressei-me também a sair. Ouvi um resmungo do condutor por ter demorado mais do que devia.
Depois de uma ligeira indecisão, comecei a segui-la a uma distância prudente e pensei nos velhos tempos das perseguições.
Para onde ia?
Claro que para o emprego.
Mas onde trabalhava?
Espera, Mário. Tem calma que já vais saber. Não te precipites que a curiosidade não é só tua. Ela também quer saber até onde pode ir a tua audácia. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A minha parte pessimista lançou-me uma advertência que noutros tempos me obrigaria a rever a situação. Agora é diferente. Talvez esteja disposto a ir até aos limites, a correr riscos. Que diabo! Quando se perde um grande amor e num golpe de sorte se encontra de novo, temos que o agarrar com todas as forças do mundo.
Parou. Deve pressentiu a minha proximidade.
Aproximava-se o momento da verdade. Ainda não sabia quem ia atacar a presa. Se o meu real, se o fictício. Mas tinha quase a certeza que ia mesmo atacar.
Consultei o relógio. Em primeira análise ia chegar atrasado ao emprego. E se tudo corresse bem até admitia a hipótese de faltar.
«Olá, Manuela!»
Mas não foi assim que aconteceu. Desisti de lutar mal saí do autocarro.
Éramos de terras muito afastadas, mas os nossos destinos estiveram sempre à distância de estender o braço. Num banco de um jardim em que a vi, sentada, pela primeira vez e noutro banco de um jardim que a namorei. Num banco de um autocarro e noutro banco de crédito a reencontrei e num edifício que atendia os funcionários desse mesmo banco, e dos outros, a vi pela última vez. E havia tantos jardins, autocarros, edifícios, seres humanos!
As nossas vidas correram sempre em caminhos paralelos. Tantos destinos à espera e nenhum para o rapaz da camisola azul e para a rapariga do vestido branco.
As coincidências não ficaram por ali...

Casou com o homem que mais odiava
Como de costume, naquele fim de manhã dos últimos dias de agosto o besouro tocou muitas vezes a anunciar a entrada dos bancários, reformados e viúvas de bancários que iam entregar documentos, como certidões e requerimentos, e também esclarecer-se sobre as dúvidas que tinham. Inconscientemente olhava sempre a ver quem entrava no cubículo e levantava-me para atender. Se o assunto não era comigo, encaminhava a pessoa para o colega que tratava desse assunto.
Numa dessas vezes em que o besouro tocou tive uma grande surpresa. Contava com tudo menos o que estava a acontecer. Fiquei estarrecido.
Não podia ser. Era um sonho. Pior que um sonho. Um pesadelo.
Ela! 
Baixei de imediato a cabeça porque não podia fazer a outra coisa que era escorregar pela secretária abaixo. Mas os nossos olhares cruzaram-se. Inevitável!
Incrível! A Manuela vinha entregar um documento.
Numa grande cidade como era Lisboa seria possível acontecerem coisas iguais a esta?
Falei em tom baixo ao Dinis e pedi para ser ele a atender pois estava a concluir um trabalho. Coisa importante entre mãos. Esquivei-te dela, claro. Do meu grande amor. Aliás, já não era a primeira vez que me comportava como um cobarde.
Só quando saiu é que fui ver os documentos que estavam na gaveta. Uma certidão de nascimento e um requerimento para pedir o subsídio de casamento!

E se tivesse acontecido...?

(Enquanto pensava na sorte que tive, o autocarro partiu. Quase logo a seguir, ouvi alguém gritar: 
«Mário!»
Sou eu…
Estava longe, muito longe do que ia acontecer nos segundos a seguir
.Quem chamava por mim?
Pura coincidência. Não devia ser comigo. Havia mais Mários.
Uma mulher voltou-se a reforçar a coincidência e lançou-me um olhar algo espantado. Aquela tristeza na expressão do olhar, as feições que não deixavam dúvida. Não queria acreditar, mas era ela! A mulher única que perdi por culpa exclusivamente minha.)

O autocarro já entrara em Lisboa e começava no momento a descer a avenida da Liberdade. Aproximavam-se as grandes decisões. Já não era o rapaz tímido da camisola azul, mas a paixão continuava igual, em brasa, como se tivesse acontecido ontem o momento em que jurámos amor eterno. Um mistério sem explicação lógica, a paixão obsessiva pela Manuela. Depois de um acontecimento que me marcou pela negativa, passei a trilhar caminhos inimagináveis que marcaram, cada vez mais, a distância do nosso afastamento. Agora, a vida que me estava destinada acabava de dar uma volta dramática ao descobrir que a Manuela continuava ainda no meu coração.
Aquele encontro fortuito não devia passar ao lado, na estrada dos mundos paralelos.
Enfim, os Restauradores.
Levantou-se. Aguardei uns segundos e imitei-a.
Deixei que saísse. Depois, apressei-me a sair. Mesmo assim ouvi um resmungo do condutor por ter demorado a sair do autocarro mais do que devia.
Depois de uma breve indecisão, comecei a segui-la a uma distância prudente e logo pensei nos velhos tempos das perseguições.
A curiosidade era grande.
Para onde ia?
Claro que para o emprego.
E onde trabalhava?
Espera, Mário. Tem calma que já vais saber. Não te precipites…
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A minha parte pessimista lançou-me uma advertência que noutros tempos recuados me obrigaria a rever a situação. Agora era diferente. Não dei ouvidos. Estava disposto a ir até aos limites, a correr riscos inerentes à minha situação civil. Que diabo! Quando se perde um grande amor e num golpe de sorte se encontra de novo, temos que o agarrar com todas as forças do mundo, não é?
Parou. Senti que pressentiu a proximidade do perseguidor. Fiquei indeciso. Aproximava-se o momento da verdade. Ainda não sabia quem ia avançar. Se era o meu real, se era o meu fictício.
Consultei o relógio. Em primeira análise ia chegar atrasado ao emprego. Até já admitia a hipótese de faltar.
Estava ao seu lado.
«Olá, Nelinha!»
Em momentos recuados, que as engrenagens do tempo destruíram, fixava os seus olhos nos meus e eu nos seus, e ficávamos assim, esquecidos de tudo.
«Sempre eras tu há pouco, Mário!»
Ingenuidade na sua desculpa. Soube sempre que era eu.
«Quando te voltaste para trás e me viste, ficaste espantada. Notei na expressão do teu olhar.»
«Pois foi. Não queria acreditar que eras tu...»
Ao fim de oito anos. Tanto tempo perdido!
«Mas nem sequer sorriste para mim e fiquei a pensar se permitias que te dirigisse a palavra.»
«Tive motivos noutros tempos para nunca mais querer ver-te na minha frente. Não me esqueci, é certo. Mas o tempo tudo sara. Afinal estavas no teu direito de optares, embora não o tivesses feito da forma mais correcta. Humilhaste-me, Mário!»
«Procedi mal, eu sei. Mas está feito e não posso voltar atrás para remediar todo o mal que te fiz.»
«Pois não. Bom. Isso é um problema teu.»
«Tens razão. Posso fazer-te uma pergunta perigosa?»
Aceitou a pergunta.
«Que pensas deste estranho encontro?»
«Não quero responder.»
Continuei.
«Consideras, no mínimo, que este nosso encontro foi uma coincidência estranha, ou tinha mesmo que acontecer, mais tarde ou mais cedo?»
«Parece impossível...»
«Mas aconteceu.»
Aconteceu poesia. Estava longe nessa manhã, quando saí calmamente de casa, de assistir a uma reviravolta do meu mundo ao cruzar uma órbita repetida do acontecer. Bem longe, porque tinha mudado tudo, pensei. A situação social, o estilo de vida, a personalidade, o mundo muito nosso que tínhamos perdido para sempre. Agora tinha-a à minha frente, quase como uma estranha, à espera talvez de uma justificação que pecava por ser tardia. Foram oito longos anos afastados um do outro, desgastados pelos desígnios da vida que não parou, apesar de terem parado as águas do nosso rio antes de chegar à foz. Quase de certeza que queria saber o motivo porque não cumprira o compromisso assumido, embora não tivesse intenção de perguntar-me pelo menos no momento presente. O nosso sonho caiu por terra e ficou para trás, completamente esquecido.
Depois daquelas primeiras palavras ficámos frente a frente, muito sérios, à espera de um milagre, à espera que o tempo voltasse para trás e que nada se tivesse passado naquela noite em que ela e a Simone se encontraram na casa dos meus tios. Uma situação muito complicada.
Continuava linda como o luar e triste como sempre foi.
Não vi qualquer anel no dedo anelar e respirei fundo. Não valia a pena esconder a mão esquerda. Ela já tinha dado conta da aliança.
Tentei disfarçar.
«Continuas bonita. Mas que é feito daquele penteado em rabo de cavalo que te ficava tão bem?»
«Já passou muito tempo, Mário. Deixa-te de piropos e responde-me só a uma pergunta.»
«Respondo a todas que fizeres.»
«Porque me seguiste?»
Direta. Cáustica como nunca fora.
«Ora, porque já é hábito. Quando te vi pela primeira vez, quando nos encontrámos pela primeira vez, quando me descobriste no autocarro e eu olhei para ti como se fosse a primeira vez.»
«Sempre o mesmo Mário. Não mudaste nada. Sentimental. Um perigoso sedutor. Ao mesmo tempo, impenetrável.»
Ia mandar-me embora. Tinha quase a certeza. Agora consultava o relógio. Lá vinha a velha desculpa de estar atrasada.
Antecipei-me.
«Onde trabalhas, Nelinha?»
«No Nacional Ultramarino. Na sede.»
Coincidência!
«Tem piada. Eu trato dos processos de abono de família e subsídios dos bancários.»
«Já sei onde é. Na rua dos Douradores, não é?»
«Sim.»
«Casaste?»
Baixou o olhar.
«Sim. Com o Melícias...»
«Não quero acreditar! O homem que mais odiavas?!...»
A resposta foi demolidora.
«Quem és tu para julgar-me depois do que fizeste naquela noite em que te vi com aquela namoradinha? Acaso sabes o mal que me fizeste? Fiquei ferida no orgulho. Desesperada. Emagreci muito. Tive um esgotamento. Não sabia o que fazer. Depois ele não me largava. Foi persistente. Acreditei que gostava de mim. Talvez que o tempo apagasse as feridas e te esquecesse. Talvez que um dia viesse a gostar dele.»
«Lamento muito. Ceguei. Inexplicavelmente ceguei por minha única culpa. Mas tu vingaste-te e vocês casaram. Tu e o homem que mais odiavas.»
«Casámos...»
Mostrou-me o dedo anelar sem a aliança.
Como é belo o momento em que se vê o Sol a nascer!
«Assim, concluo que não foram felizes.»
«Estamos separados há três meses.»
«Ainda bem que não deu.»
«Mário!»
Fingi ignorar a sua exclamação de censura.
«Também casei, mas não foi com a Simone. Essa mulher que viste na casa dos meus tios serviu apenas para nos separar. Fui enfeitiçado, mas o namoro durou pouco mais de dois meses.»
«E...?»
«Não sou feliz. A mulher de quem gosto é outra.»
Olhou com desdém para mim.
«Tens uma amante!»
Ignorei a censura.
«Nunca deixei de gostar de ti, Nelinha.»
Não reagiu.
O meu casamento foi um conto de fadas que não teve o fim habitual. Aquilo que julgava ser amor, esvaiu-se e fez-se em nada, como um corpo em sangue depois de perfurado por uma adaga fatal. Afinal o casamento foi obra do meu fictício. O real estava com a Manuela. Esteve sempre com ela.
«É o que julgas. Nunca farás ninguém feliz. Foste sempre um sonhador, um insatisfeito. Quando alcanças o teu objectivo, começas outra vez a sonhar e tudo muda.»
«Pensavas o mesmo quando estava contigo?»
Disfarçou.
«Já vou chegar atrasada.»
«Posso acompanhar-te?»
Demorou a responder. Pareceu-me uma eternidade.
«Talvez.»
«Talvez não é sim. É talvez.»
Sorriu. O mesmo sorriso triste.
Entrámos na rua Augusta.
«E agora qual é a tua vida?»
«Que queres dizer, Mário?»
«Se tens alguém...»
«Claro que não. Nunca mais. Depois do que aconteceu, nunca mais.»
Uma boa notícia.
«Nunca digas nunca. Olha uma coisa: achas que eu não devia ter-te seguido?»
«Não sei se te referes àquela noite em que me viste com uma trança comprida a cair pelo vestido branco, ou ao nosso encontro de hoje. Em qualquer dos casos a decisão foi tua e só tu sabes se fizeste por bem.»
«Não respondeste...»
«Quem sou eu para ser senhora da verdade?»
«Dás-me uma segunda oportunidade?»
«O meu coração continua revoltado. Não quero voltar a sofrer o que sofri.»
«Nunca mais me vais perdoar.»
«Já te perdoei há muito.»
Parámos. Estávamos a meio da rua Augusta.
«Posso fazer-te mais uma pergunta?»
«Todas.»
«O que sentiste no autocarro quando me viste?»
Li angústia nos seus olhos. Como esconder o que sentira?
«Primeiro, fiquei admirada. Depois, pensei nos estranhos desígnios do destino. No passado foi diferente. Deus traçou o nosso encontro. Mas agora acho que é uma negaça que está a fazer-nos.»
«Concordo contigo. Foi um reencontro fora de tempo. Mas há sempre uma esperança. E tudo depende de nós.»
«Como assim?»
Estava a andar com a carroça à frente dos bois.
«Podíamos tentar...»
«Não deixaste de ser otimista. Mas no nosso caso não é bom. Acho que é demasiado tarde.»
Fingi ignorar o seu reparo.
«Lembras-te daquela tarde quando subimos até à cruz da Senhora da Penha? Levávamos connosco a ideia que estávamos a subir ao teto do mundo. Nada podia anular a força que nos ligava.»
«Foram outros momentos que não podem ser repetidos, Mário.»
«Achas?»
«Oxalá me engane. Quando te vi no autocarro, fiquei inquieta. Não queria que tivesse acontecido. Conservava ainda a imagem daquela noite negra em que me recebeste na casa dos teus tios. A esperança morreu quando a outra entrou e descobri uma verdade terrível que acabava de vez com o meu sonho. Foi um grande choque do qual nunca consegui recompor-me.»
«Hoje lamento o erro crasso que cometi. Mas o que está feito, está feito. Há que esquecer essa noite desastrada. Deixar para trás os fantasmas. Olha, gostava que fizéssemos tábua rasa de tudo o que aconteceu nessa noite e que nos concentrássemos em momentos como aquele da subida à Senhora da Penha.»
«Também eu gostava. Mas...»
«Não sei quem nos proporcionou esta nova oportunidade. Só sei que não devemos enjeitá-la.»
«Tenho medo de sair outra vez magoada.»
«Garanto-te que não vai repetir-se. Foste sempre muito importante para mim, Nelinha. Não quero voltar a perder-te.»
«Oxalá estejas a falar verdade. Oxalá seja o teu real quem está agora a falar. Mas façamos uma pausa. Não te perguntei ainda pela tua irmã. Gostava dela. Trocámos ainda algumas cartas. Entretanto li o livro que me enviaste para Évora.»
«Não chegaste a escrever-me, conforme tencionavas fazer.»
«Como soubeste que queria escrever-te?»
«Descobri por acaso. A minha irmã andava à procura de uma coisa e eu disse-lhe para procurar onde julgava que não podia estar. Resultou. Mas não encontrou o que procurava. Foi a tua carta que apareceu arquivada num dossier que continha faturas antigas. Incrível, não foi?»
Faturas que paguei pelo mal que lhe tinha feito. Não disse que havia também uma carta da Simone. Lado a lado com a sua.

A Carta...

Évora, 12 de Novembro...

        Boa amiga

É claro que não tenho desculpa, não só por uma falta como também por uma indelicadeza. Mas se eu lhe explicar porque o não fiz, com certeza que me desculpa.
Deve saber que tirei o curso do Magistério Primário há dois anos, mas fiquei sem colocação. Sabe também que eu pertencia ao distrito de Lisboa. Fiquei completamente desiludida quando verifiquei que não tinha possibilidade de me colocar logo no princípio do ano e, como consequência dessa desilusão, arranjei uma doença de nervos tremenda e de tal maneira que em Maio, quando fui chamada, não pude apresentar-me por estar realmente doente. Sempre fui magra, mas desta vez consegui emagrecer oito quilos em pouquíssimo tempo. Por isso senti-me muito doente e sem disposição para nada. Daí o motivo porque não lhe escrevi mais nem sequer lhe enviei os parabéns pelos seus anos.
Ainda hoje a minha situação profissional se encontra indefinida.
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Quero felicitá-la por ter um irmão escritor. Ele enviou-me um livro mas ainda não agradeci. Sente-se muito envaidecida, não? Oxalá ele continue a escrever. Por acaso eu já tinha visto o livro dele aqui numa montra em Évora e tive a certeza pois li a biografia.
E termino enviando-lhe um abraço e esperando que escreva também mais vezes.
Sua amiga
Manuela

«Gostei muito do conto principal. Sei que não é real, mas parece tirado de um drama real. Só não gostei de uma coisa.»
«Então de quê?»
«”Mataste-me” naquele conto. Podias ter dado um fim mais feliz. Mas não. Porquê tanta crueldade, Mário?»
Demorei a justificar-me.
«Nelinha, na verdade não fui eu quem escreveu esse conto. Contei-o a um amigo que é escritor. No fundo a história retrata de outra forma o nosso desencontro nesta Terra cruel em que estamos de passagem. Voltamos cá tantas vezes quantas as que forem necessárias. Temos que cumprir o karma. Pagar faturas por tudo o que de mal fizemos quando da última vez que por cá passámos. O curioso da reencarnação é, mesmo que não sejamos nós, continuamos a sê-lo. Quem fui da última vez que cá estive para ser tão castigado?»
«Tudo certo. Mas ninguém se lembra da última vez que cá esteve. Mudando de assunto e desculpa a indiscrição...»
«Sim?»
«Tens filhos?»
«Não.»
«Nem eu. Mas, fala-me mais de ti. Sobre o que aconteceu com a outra não me interessa.»
«Continuo a ser o mesmo homem sem ambições desmedidas, discreto, sonhador.»
«Cumpriste o serviço militar?»
«Tive a sorte de ser incorporado nos Serviços Auxiliares e passei uma santa tropa. Não fui mobilizado porque o último classificado do curso era filho do major que tratava das mobilizações.»
«Que sorte!»
Olhou para o relógio e teve um gesto de apreensão.
«Vais dizer que estás atrasada.»
«É verdade. Um pouco.»
«Eu também, mas não faz mal. O meu chefe é compreensivo. Deixa-me ir às práticas da Faculdade. No trabalho, depois de cumprir todas as minhas tarefas, abro a gaveta central da secretária. Estão lá as folhas da Faculdade e fico a estudar.»
«Os outros não refilam?»
«Olham de relance, mas não têm razão de queixa porque ajudo-os nas horas de aperto.»
«Tens menos trabalho que eles?»
«Não é isso. Digamos que sou mais despachado.»
«É curioso...»
«O que é curioso?»
«Trabalhamos tão perto um do outro e foi preciso encontrar-nos num autocarro, longe do local de trabalho...»
«Um acaso muito imprevisível.»
«Passei o fim-de-semana com uma amiga.»
«Ah sim.»
Olhou outra vez para o relógio.
«Mas agora tenho que ir andando. Gostei muito…»
Estou louco de alegria porque te encontrei de novo e não quero voltar a perder-te. A tua oração no Senhor do Bonfim ainda é uma esperança porque as orações não têm prazo de validade. O destino pregou-nos várias partidas, mas também contribuiu para este encontro. Não me deixes! Peço-te que não me deixes!
«Então, Mário, que se passa? Estou a despedir-me...»
«Desculpa.»
Tudo acabava ali se quiséssemos. Mas eu não queria.
E ela?
«Lembrei-me de uma coisa.»
«O que vai sair daí, Mário?»
«Não podemos perder esta oportunidade única. Não foi por acaso que nos encontrámos!»
Notei alguma hesitação nela.
«Não sei...»
«Conheço um café para os lados da Faculdade onde podemos conversar à-vontade. Temos tanto ainda para dizer um ao outro!»
«Também penso o mesmo, mas não sei se fazemos bem.»
«Estás a dizer que sim?»
Pareceu-me que o tempo parou
«Vou ter problemas no emprego.»
«Sim?»
«Mas que se lixe!»
«Nelinha!»
«O quê?»
Sorriu, embaraçada.
«Não te conheço...» Brinquei.
«Agora também falo calão. Importas-te?»
«E eu folgo muito com isso.»
Voltámos para trás e fomos andando para a Alsaciana, o tal café de que lhe tinha falado. Quando morava na Cecílio de Sousa e não queria ir para mais longe, para o Martinho ou para o café Chiado, optava pela Alsaciana, também um café quase só para estudantes. O  proprietário era tolerante. Só não podíamos estudar à hora das refeições.

Na Alsaciana

Há anos que não entrava naquele café. Passei muitas horas a queimar as pestanas, às voltas com a Química Inorgânica da professora Branca e com as Matemáticas Gerais do irascível Dias Agudo, um homem de altos e baixos em relação ao humor. Mais baixos que altos.

O dia começava cedo e acabava tarde. Por vezes não havia manhãs para estudar. Nem tardes. Nem noites. A crise instalava-se por alguns dias e então errava pela cidade, à procura de encontrar-me de novo. Passados os maus tempos tudo voltava ao normal. Foi uma época difícil que o tempo também já trucidou.
Voltei a mim. Tinha na minha frente uma mulher especial.
«Finalmente ficámos frente a frente...» Disse, rompendo o silêncio.
«Ou lado a lado.»
Entendi a metáfora.
«Não quero desculpar-me, mas foi amarração que me fizeram. Hoje não tenho sombra de dúvidas.»
«Promessas leva-as o vento. Já te esqueceste do que aconteceu?»
«Claro que não me esqueci, mas acho que não pude evitar. Foi uma força incrivelmente forte que desviou os nossos destinos.»
«Acreditas nessas coisas? Ela...?, como se chamava a minha rival?»
«Simone.»
«Essa tal Simone fazia-te o cerco há uns tempos e tu não resististe. É muito simples. Desculpa, mas estás a querer sair airosamente da teia em que caíste. Ficaste muito mal na fotografia.»
«Não o nego. Contudo, a maldita da nossa relação durou até que caí em mim. Talvez não saibas...»
«O que é que eu não sei, Mário?»
«Acabei o namoro com a Simone em Novembro desse ano. Pensa bem, Nelinha. Se gostasse dessa mulher, esse namoro não tinha acabado ali. Mal fiquei fora da sua influência, deixei-a. Sempre desconfiei que a mãe era bruxa. Calcula que conseguiu casar com um jarreta endinheirado de um estrato social superior!»
A empregada interrompeu-nos com as bicas e os pastéis de nata que tinha pedido. Esperei que se afastasse.
«Não bebias café...»
«Sim. Se não estou em erro pedia sempre um garoto claro.»
«Muito claro.»
«A cafeína desperta-me para o dia a dia. Preciso desse estimulante como do pão para a boca. A pica que tiro dela ajuda-me a ultrapassar os problemas que, doutra forma, não ia conseguir.»
«Falaste de problemas...»
«Falei?»
«Sim. Deixa para lá. Quando quiseres, fala. Deduzo que continuas a comer pouco.»
«Comer foi sempre um grande sacrifício. Gostava de ter nascido numa época em que as pessoas só se alimentassem à base de pastilhas.»
«Talvez na próxima reencarnação. E as dores de cabeça, já passaram?»
Fitou-me, algo surpreendida.
«Ainda te lembras das dores de cabeça! São enxaquecas desagradáveis que vêm e vão, como as alegrias e as tristezas. Já me habituei a viver assim. Que posso mais fazer?»
«Lamento.»
«Fala-me mais de ti.»
Fiz um gesto largo, tentando minorar o que ia dizer.
«Pouco tenho para contar. Resumindo, um dia encontrei uma segunda mulher de vestido branco. Apaixonei-me logo.»
«O que para ti é coisa fácil...»
«Não brinques. Foi talvez influência da cor do vestido. Tinha várias opções mas pu-las de parte e casei com ela. A princípio correu bem. Mas depois foi um desastre.»
«Sim? Pois é. Já me disseste que fizeste a tropa e não foste para o Ultramar. Em que curso estás?»
«Geologia.»
«Sempre gostaste dos calhaus. Lembro-me daquele dia em que fomos à mata. Andaste atrás das pedras e eu fiquei toda danada porque não me ligavas nenhuma.»
«Rochas, se não te importas. Para teu esclarecimento, nessa tarde andei a ver os xistos. Mas falando do curso, a minha primeira opção era Química.»
«E escolheste Geologia. É mesmo teu.»
«O curso era Físico-Químicas e nunca gostei de Física.»
«Muito bem, retiro o que disse. E quais são agora as tuas perspetivas? Certamente não vais para o Ultramar. É muito perigoso com a guerra instalada...»
«Não sei. Ainda não pensei bem nisso. Primeiro, acabo o curso. Depois, o que será, será. Talvez deixe apodrecer os ossos numa escola, a aturar meninos malcriados. Não estou a ver-me nessa situação, mas ainda é prematuro. Quem sabe até se não vai ser a minha vocação?»
«É curioso. Eu, que tirei o curso do Magistério Primário, entretanto acabo como empregada bancária. E tu...»
«Que achaste dos pastéis de nata?»
Mudança drástica, mas com retorno ao passado.
«Eram melhores os da Tentadora
«De Portalegre ou de Estremoz? Também havia uma pastelaria em Estremoz com o mesmo nome. Se não estou em erro ficava perto do lago.»
«Exato. Lanchámos lá várias vezes. Quanto à Tentadora de Portalegre ficava na rua Direita, à esquerda de quem desce. Fomos lá uma vez lanchar.»
«Pois fomos. O Necas serviu de pau-de-cabeleira, lembras-te?»
«Era um miúdo muito simpático, sempre com um sorriso malandro no rosto. Que é feito dele?»
«Vive em Portalegre.»
«Respondendo à tua pergunta, gostava mais dos pastéis de nata da Tentadora de Estremoz.»
«A tua companhia era, sem dúvida, o mais doce pastel de nata que podiam dar-me.»
«Agora comparas-me com os pastéis de nata!»
«Porque és uma doçura...»
«Olha que não! Às vezes sou muito azeda.»
«Achas?»
Ficámos muito sérios, em silêncio.
«Foram tempos muito bons, mas devemos ser realistas porque esses tempos já não voltam mais.»
«Estão a voltar outros, Nelinha.»
«Já alguma vez molhaste os pés duas vezes na mesma água do mesmo rio?»
«Vai abrir-se uma exceção para nós. Mas reparo que estudaste Filosofia!»
«Fiz o sétimo ano e fui para o Magistério Primário, conforme já disse.»
«Sim. E depois fizeste uma coisa inconcebível!»
«O quê?»
«Casaste com o homem que mais odiavas. Não consigo entender a motivação que te levou a dar um passo tão absurdo!»
«Não queres mudar de assunto?»
«Prefiro vergastar-me. Lembras-te do baile de Carnaval do clube?»
Acenou afirmativamente com a cabeça.
«A certa altura fomos ao bar. Não sei se estás recordada.»
Saudades desse tempo.
«Lembro-me perfeitamente.»
«E do baile, também te lembras?»
«Lembro-me de tudo.»
«Quando começou a dança da vassoura agarraste-me muito e não deixaste que a mulher gorda te desse a dita vassoura e me levasse para dançar. Encostámos ainda mais os rostos. Foi bom sentir o calor do teu corpo. Sentir-te...»
Fingiu ignorar a minha evocação.
«Conforme lembraste, fomos ao bar. Bebi um capilé e tu uma ginjinha. Sempre gostaste de beber ginjinhas. Numa das cartas que me escreveste contavas que tu e os teus amigos, quando não tinham nada para fazer andavam às voltas pela vila e, sempre que passavam por um certo bar, bebiam uma ginjinha.»
«Com elas, lembro-me.»
«Com elas?»
«Com as ginjas dentro, claro.»
«Ah... E então chamei-te a atenção para um rapaz que estava a servir no bar. Chamava-se Melícias. Lembras-te de dizer que me perseguia de uma forma obsessiva?»
«O tal que odiavas. Mas tinhas mais pretendentes.»
Certamente que tinha. A sua beleza, os traços finos, a simpatia…
«Talvez. Eu não olhava para eles. Com o Melícias era diferente. A sua insistência e o seu comportamento de cão rafeiro foram definitivamente concludentes. Talvez que, com o tempo, criasse outro sentimento.»
«E se mudássemos de assunto de uma vez por todas? Estávamos a ir tão bem e apareceram agora estas nuvens negras que nem sequer foram convidadas.»
«Tens razão.»
Ficou a olhar muito séria e julguei ler no seu olhar uma frase que escreveu numa fotografia:
«E prometia impossíveis...»
Pôs as mãos levemente sobre as minhas e disse, com doçura:
«Obrigada.»
«De quê?»
«Por me teres proporcionado este encontro.»
«Foi o destino.»
«E a tua determinação.»
Senti o contacto das suas mãos e não resisti à tentação de as acariciar. Depois, ficámos muito sérios a olhar um para o outro, talvez a ver quem cedia primeiro ao momento mágico que nos embriagava, que nos levava para longe, num daqueles voos através do éter que descrevia nos meus poemas.
Foi um súbito estilhaçar de vidros que quebrou o encanto. Olhei na direção do balcão e vi a empregada, de mãos na cabeça. Tinha deixado cair um copo e maldizia a sua sorte.
«Eu gostava muito de ti. Casei-me porque já tinhas casado. Senti-me infeliz, frustrada. Que me restava fazer?»
«Quem nos afastou assim, tão de repente? Não tenho resposta, mas que foi estranho, lá isso foi.»
«Também acho. Ainda me vou converter...»
«A quê?»
«Ao sobrenatural que tratas por tu.»
«Está bem, deixa. Nem sabes a alhada em que te vais meter. Mas diz-me uma coisa...»
«Todas.»
«Que aconteceu ao teu casamento?»
«Muito simples. Um dia apanhou-me a ler o teu diário e tivemos uma guerra maior que as outras que tínhamos com frequência.»
Eu, o eterno culpado.
«Mas espera uma coisa. Quando acabámos o namoro devolveste também o diário. Lembro-me de o ter queimado, juntamente com todas as cartas. Portanto, há aqui qualquer coisa que não rima, minha menina.»
«E se te disser que o copiei para um caderno, palavra a palavra?»
«Foste inteligente! E depois, que aconteceu?»
«Depois, o que já estava mau, péssimo ficou. Por mero acaso soube de uma ligação com uma colega de trabalho e aproveitei para o pôr na rua.»
«Valente Nelinha! E a tua mãe, que é feito dela? Foi sempre uma santa senhora para mim.»
«Mora comigo, mas ainda temos a casa de Évora. Gostava muito de ti. Fez tudo para que o gelo do meu orgulho quebrasse e fosse ter contigo. Mas conheces-me. Antes quebrar que torcer.»
«Ou não fosses do signo de Carneiro que marra até ao fim. Assim, quebraste. Quebraste sem a mínima hesitação. Entretanto eu andava metido em meandros complicados, dúvidas metafísicas. Depois... já te contei. Decidi e aconteceu o que aconteceu. Mas voltando à tua mãe: se tivesses seguido o seu conselho...»
«... não estávamos agora aqui a conversar.»
«Tens razão. É uma segunda oportunidade que nos é dada e desta vez nada nesta vida vai meter-se entre nós.»
«Acreditas em Deus, Mário?» perguntou. «Dantes mostravas um certo ceticismo.»
«Diria que sim. »
«Eu já não tanto.»
«Há também o deus menor que toma conta do destino dos homens quando o Outro não está presente. Desse, desconfio. Mas cada um pensa o que pensa e é livre de pensar. Tem as suas crenças. A sua fé. A isso chama-se liberdade de poder escolher conforme as suas convicções. Mas diz-me mais uma coisa: onde moras?»
«Em Almada.»
«És livre?»
«Já te disse há pouco.»
«Era só para confirmar...»
«Desconfiado!»
Quem diria hoje de manhã, ao acordar, o que estava para acontecer. Agora tinha na frente o grande amor da minha vida e empenhava-me, ainda cauteloso, em reconquistar a Manuela, não fosse o deus menor interferir. Se ao menos o meu amigo Ernesto ainda estivesse presente para me proteger…
«Ajuda-me, meu amigo!»
«Que estás para aí a dizer? Não sabia que agora também falavas sozinho!»
«É uma história antiga. Quando era criança tinha um amigo invisível que me contava histórias à noite, quando estava deitado na cama e não conseguia adormecer. O meu amigo Ernesto era uma espécie de anjo-da-guarda. Um dia conto-te tudo sobre ele. São histórias muito engraçadas que nunca esquecerei.»
«Nunca me falaste dele quando nos namorávamos. E passávamos tanto tempo calados no nosso banco do jardim, muitas vezes sem tema de conversa!»
«Tu eras tudo para mim.»
O nosso banco foi um pretexto para interrompermos, por momentos, o diálogo.
«Nem te quero dizer o que me passou pela cabeça. Pode dar azar. Sinto-me tão feliz em ter-te encontrado! Não admito que possa voltar a perder-te, Nelinha, a estrela que desceu lá do alto para me iluminar.»
«O homem enlouqueceu de vez...»
«Como podia enlouquecer se descobri que estás livre?»
«Livre, mas não disponível.»
«Isso resolve-se já, minha menina.»
«Achas?»
Avancei demasiado. Não se deixou levar facilmente. Continuava igual a si própria. Bela e muito segura de si.
«Mas fala-me mais de ti, Mário. Como são agora os teus dias? Casaste. Não tens filhos. E que mais?»
«Os meus dias continuam longos, mas não são azuis.»
«Impenetrável, como sempre. Mesmo que revolva montes e vales vejo-te escondido no teu fictício, ou então com o real a fazer de fictício. Ao mesmo tempo, insinuas-te, ganhas terreno, conquistas a praça que previamente desarmaste. Depois, descartas-te da praça conquistada e partes para outra luta. Nasceste assim e não serei eu quem vai mudar a tua personalidade. É por isso que receio envolver-me.»
«Agora começaste a fazer futurologia. Subestimei-te. Já não és a mesma que conheci e é lógico que assim seja. Criaste uma couraça muito dura e não tenho meios para penetrar através dela. Nem sequer encontro um ponto de fraqueza. Julgava que este encontro trazia uma nova esperança. Mas não. Já não somos os eternos e o mito das almas gémeas caiu por terra.»
A empregada estava agora junto à mesa, suspensa das nossas palavras que iam e vinham, como num jogo de pingue-pongue.
Há quanto tempo olhava para nós?
«Sim?»
«Desculpem, meus senhores, mas tenho que levantar a mesa. Daqui a pouco começamos a servir os almoços.»
Consultámos os relógios quase ao mesmo tempo.
«Céus! É quase  meio-dia...»
«Vais dizer-me que é tarde.» Disse, desanimado.
«É tarde para ti, Mário?»
«Nunca na vida. Só se te perder...»
«Alto lá!»
A empregada estava feita estátua, sem saber o que fazer. Ao mesmo tempo não perdia pitada da conversa.
«Pode levantar as chávenas e o resto. Depois, ponha a mesa para dois.»
«Que é isso?» perguntou a Manuela.
«Desculpa. Não vou deixar que te vás embora. Hoje temos o dia por nossa conta.»
«E se eu não quiser?»
«Ficas com problemas de consciência e também não vais saber como acaba este encontro. A curiosidade feminina não resiste à oferta.»
«Mesmo assim...»
Olhámo-nos em silêncio.
«Então sempre posso pôr a mesa?»
Fiz um gesto largo para a Manuela. A última palavra era sua.
«Vamos a ver se não me arrependo.»
«Que bom!» disse a empregada.
«Está-se a fazer à gorjeta?» perguntei, com ironia.
«Longe disso. Era mau se não chegassem a acordo. Vê-se mesmo que os senhores gostam muito um do outro.»
«Obrigado. Como se chama?»
«Clara.»
«Pois bem, Clara, diga-me uma coisa: será que ainda fazem aquelas deliciosas lulas guisadas com batatas fritas? Não me diga que não, que me dá uma coisa.»
«...»
«Acenou com a cabeça. Isso quer dizer que sim. Para beber, talvez meia garrafa de Reguengos e também uma água lisa.»
«Natural?»
«Natural.» Respondeu a Manuela.
«Muito bem.»
«Tomou nota de tudo, Clara? Pode trazer já um queijinho de ovelha.»
«De Nisa?»
«É mesmo de Nisa?»
«Sim, senhor.»
«Cuidado!»
Era uma vez uma chávena que se fez em cacos.
Quando a empregada se afastou, comentei:
«É uma coisa estranha, Nelinha. Acontece sempre o mesmo em todos os cafés e restaurantes onde entro. Há pouco foi um copo. Devo ser eu que interfiro com o sistema nervoso das pessoas. Sem querer, consigo sempre que as pessoas descoordenem os movimentos. Só espero desta vez não apanhar com a travessa das lulas.»
Primeiro sorriu ela e eu fui contagiado.
«Tu e o paranormal. És um convencido incorrigível.»
Voltei a sorrir.
«Lembrei-me de uma coisa. Explica-me porque é que me mataste no livro. Ainda por cima com uma mistura de... como se chamavam aqueles gases?»
Um grande problema.
«Propano-butano. Quando o livro do meu amigo foi editado já não eras minha e não queria que fosses de outro, entendes? Muito menos daquele maldito Melícias que passava a vida a vida a perseguir-te e a implorar que fosses dele. Se não eras minha, então não serias de ninguém. Foi assim que resolvi matar-te no papel...»
«Curioso. Também pensei isso. Mas não venhas com essa conversa, grande sacana. Estás a esconder a verdade.»
«E tu a dizeres asneiras. Não eras assim!»
«Choco-te?»
«Nem por isso. Gosto mais desse sabor apimentado.»
«Oh!»
«Que aconteceu?»
«Fazes-me corar. Mas se não queres responder à pergunta, ao menos diz-me o que se passa contigo.»
«Tudo bem. Não se passa nada.»
«E essa aliança?»
«Ah... a aliança. Vais ver que não tem qualquer significado. Foi uma relação que nunca devia ter começado.»
De repente tive a noção que os acontecimentos ocorridos no futuro acabavam de saltar para o presente. A sua separação do Melícias e o vazio da relação com a minha companheira…
Tirei a aliança do dedo e pu-la sobre a mesa. Sobressaltou-se com o som metálico emitido pela aliança ao chocar com o tampo da mesa. Sorri, enigmático. O momento parecia ser de suspense.
«Não te assustes. Espera só um instante e já vais ver o que acontece.»
A rapariga trouxe os pratos com os talheres e os copos em cima e começou a dispô-los sobre a mesa. Era notória a lentidão dos seus movimentos. Calámo-nos de propósito. Parou a meio do trabalho, mas por outro motivo.
«Já sei. Está a ver uma aliança em cima da mesa.»
Virei-me para ela com ar interrogador. A empregada não perdia pitada.
«É tua, Nelinha?»
Quem me dera!
«Já sei que não. Olhe, Clara, esta aliança já cá estava. Certamente que alguém se esqueceu dela. Guarde-a e fique à espera que a pessoa se acuse. Se ninguém aparecer a reclamar, é sua. Venda-a e compre para si uma coisa que lhe dê prazer.»
«Mas...»
«Não há mas nem meio mas!»
Pegou na aliança e observou-a com atenção. Depois olhou para nós, muito séria.
«Tem um nome gravado.»
«Deixe ter. Não conhece nenhuma mulher com esse nome, pois não? Então aceite a oferta. E mande desgravar esse nome ou então venda a aliança.» Insisti.
«Obrigada, senhor.»
Acabou de pôr a mesa e afastou-se.
«Então?»
«Já percebi. Pareces sincero.»
«Juro que estou a ser sincero.»
«Mário...»
«Diz, querida Nelinha.»
«Soou bem o modo como me chamaste.»
«Então vou repetir: querida Nelinha!»
«Oh...»
«Que aconteceu contigo?»
«Gostava que tivesses sido o primeiro...»
«Fui o teu primeiro amor. O resto não interessa.»
Ficámos muito sérios, numa contemplação hipnótica, como se o mundo se fechasse à nossa volta.
«Mário... Os sentimentos antigos estão outra vez connosco. Mas tenho medo, mesmo muito medo.»
Olhei-a intensamente e mantive-me em silêncio por segundos.
«Porque me olhas assim?»
«Não me vais bater?»
Sorriu.
«Depende,»
«Posso dar-te um beijo?»
Aproximou mais o rosto. Eu também. Vi-a fechar os olhos. Vi também a empregada por detrás dela, com as garrafas do vinho e da água. Desisti. Se continuássemos, mais qualquer coisa ia parar ao chão.
«Então, Mário?»
Abriu os olhos.
«Chegou o vinho. E também a água. No melhor momento. Quem é que não gosta de nós, Mário?»
«Ah sim. Pois... o vinho e a água. Pode deixar, Clara. Cuidado! Ainda bem que foi a água.»
«Desculpem, meus senhores...»
Esperámos que se afastasse. Desatámos a rir. Era mesmo desastrada.
«Estás a perturbar a pobre rapariga. É melhor não interferires mais. Deixa-me ser eu a lidar com ela.»
«Recomeçamos?»
«Recomeçamos, o quê?» perguntou.
«Ora, o que íamos fazer...»
«E o que íamos fazer?»
Finalmente. Um beijo longo e cheio de paixão. Tanto tempo de espera que já não podia ser recuperado!
Mas por que seria que todos os beijos me sabiam a morangos silvestres?
«Sei que posso fazer melhor.»
«Repete, meu amor.»
«Aqui estão as lulas.»
Naquele momento odiei a travessa, as lulas guisadas, o molho, as batatas fritas. Tudo o mais que não estava na travessa.
Podia ter chegado um minuto depois. Só um minuto. Era pedir pouco.
O momento do segundo beijo teria que esperar.
«Vais prová-las e a seguir dás a tua opinião. Posso servir-te? Esse olhar severo que mete medo. É verdade, já me esquecia que gostas de servir-te. Continuas a comer pouco. Quase que acredito que te chega o alimento da alma. Eu morria à fome.»
Serviu-me primeiro e depois quase fingiu que se servia. Sorriu ao dar conta do meu ar crítico.
«Estás com um ar de mau!»
«E tenho de razão. Vá lá, serve-te de mais. Nem que seja uma colher. Isto é um manjar dos deuses. Prova que logo vês que puseste pouco no prato.»
Fiquei à espera, expectante.
«Estão muito boas.»
«Tenho ou não tenho razão?»
«De facto as lulas são saborosas.»
«Pareces pouco convencida.»
«Verdade. Mas já reparaste numa coisa? É o nosso primeiro almoço a sós.»
«Tens razão. Será que estamos a viver um sonho?»
«Sempre vamos ao castelo de S. Jorge?»
«Foi só uma hipótese que admiti. Tu tens a última palavra, Nelinha.»
«Desde que esteja contigo.»
«E depois, onde queres ir jantar?»
Colocou os talheres sobre o prato e segurou-me docemente nas mãos.
«Desculpa, Mário. Não podemos viver toda a nossa vida num só dia. As emoções foram muitas e sinto-me um pouco cansada. Depois do castelo de S. Jorge o destino será a casa.»
«Está bem. Agora come o resto. Queres um pudim para a sobremesa?»
«Agora quero um beijo. Um beijo suave. Depois podes pedir o pudim. E depressa, depressinha, antes que a Clara sonhe que me vais beijar.»
Coisa vulgar dizer que o mundo parou à nossa volta ou que a Clara deixou cair um prato no chão. Se aconteceu a última hipótese, não demos por nada.
Palavras...? Não foram ditas porque não era preciso. Naquele momento tinha tudo o que sempre me fora negado. Finalmente ela era minha, muito minha e só desejava que aquele momento se transformasse num longo dia azul.
A propósito: de que cor era a felicidade?
«Assim... Assim... Assim! Três beijos, Mário... Foi bom. Muito bom!»
«Como vou passar esta noite sem ti?»
 «Tem paciência. Quem esperou quase uma eternidade por este dia, pode esperar pouco mais de vinte e quatro horas.»
«Longe vá o agoiro, querida!»
«Meu amor, quero espaço para não sufocar de repente. Aconteceu hoje muita coisa boa e precisamos que sobre um pouquinho para amanhã. Prometo que vou dormir a última noite sozinha e que amanhã serei toda tua.»
«E porque não hoje?»
«Preciso de tempo para arrumar as ideias.»
«Amanhã pode ser tarde...»
Premonição?
«Agora és tu quem está a agoirar.»
«Aqui temos a Clara que chegou no momento ideal. São dois pudins e duas bicas. Depois a conta, está bem?»
Vi a Manuela levar uma mão à testa.
«Que tens?»
«Apenas uma pequena dor de cabeça. Deve ser cansaço.»
«Então é melhor  não irmos ao castelo.»
«Não há problema. É só uma pequena dor...»
«Mas quero que amanhã estejas bem. Vou acompanhar-te ao Terreiro do Paço...»
«És um amor.»
«Sou o teu amor.»
«Há algo nos teus olhos. Não sei explicar. Nunca os vi assim. Nem os vi com tanto brilho nos tempos do nosso banco da Corredoura.»
«Que saudades desses momentos!»
«Olha a conta. Pagamos a meias.»
«Não, Nelinha. Paga quem convidou, se não te importas. Depois pagas tu amanhã.»
«E se não houver amanhã?»
Outra vez a premonição!
«Longe vá o agoiro! Temos que combinar como vai ser amanhã. Não sei porquê mas acho que devia ia ter contigo a Almada.»
«Não.»
«E a Cacilhas? Vínhamos de cacilheiro a ver aproximar-se a mais bela cidade do mundo...»
«Não exageres.»
«Dizem que Lisboa, vista do ar, não tem igual.»
«Nunca voei.»
«Nem eu. Só se fiz algum voo astral.»
«Não tens emenda.»
Era verdade não tinha emenda. Bem gostava de fazer um voo astral!
«Vais esperar-me ao emprego. Saio às cinco. Nem mais um minuto depois.»
«Estou lá meia hora antes.»
«Já me esquecia que chegas sempre cedo.»

Estava numa sala ampla donde se via o exterior. Não me lembro de ver móveis na sala. Havia pessoas em movimento. Provavelmente procurava a Manuela.
Alguém do exterior disse que ela tinha morrido.
«Mas não é possível! Estive com ela há dois dias...» Disse a minha irmã.
Havia ainda uma esperança!
Mas a esperança morreu. A Manuela foi atropelada por um carro militar e teve morte instantânea.
Fiquei muito estranho. Nesse momento já não havia ninguém na sala. Atirei-me para o chão, soluçando, gritando que não era possível. O meu desespero aumentou de intensidade. Sentia-me impotente. Vazio. Como vazia continuava a sala. Gritei, gritei... até acordar.

Foi talvez a meio da noite. Mais uma vez o cenário é a casa onde nasci e estou no meu quarto. Tenho uma carta dactilografada pela Manuela. Há emendas feitas a tinta. Só me lembro de algumas palavras.
«Quando leres esta carta já não estarei viva...»
Fiquei desesperado. Era um texto longo que não consegui ler até ao fim.
A Manuela estava a morrer de uma doença incurável. Can­cro. Os meus olhos toldaram-se de lágrimas.
Onde estava ela?
Alguém disse que tinha morrido. A própria carta o dizia. Uma carta datilogra­fada e com emendas que ela fizera a tinta.
Facto consumado.

Acordei sobressaltado. Que noite de sonhos!
Conforme a Manuela previu, vinte minutos antes das cinco já estava em frente à porta principal do Banco Ultramarino. O ar, anormalmente quente para a época, àquela hora rondava os trinta e três graus. Enquanto esperava por ela pensava se estava a viver um sonho ou se tinha saltado do sonho para a realidade. Mais uma vez o destino juntava-nos, certamente pela última vez e não devia perder esta última oportunidade para a compensar pelo mal que lhe tinha causado.
Quando acabámos o namoro destruí tudo. O diário, as cartas, quase todas as fotografias, inclusivamente o colar de fantasia e as prendas que lhe ofereci e que ela me tinha oferecido.
Despeito?
Se fui eu que acabei e que mais tarde não cumpri o compromisso que tinha assumido, como podia ter pensado em despeito?
Talvez por me ter sentido desacreditado quando estava  a ser sincero para ela. O seu ciúme não era consistente porque a tal Rosa Maria nada significava para mim. Era uma simples amizade. Sempre gostei de ser protector, ou não fosse Leão de signo. Depois, havia o ascendente em Escorpião que estragava sempre tudo. Observador do ínfimo pormenor, introvertido, sempre com sede de vingança quando me sentia pisado.
Nos maus momentos ficava confuso, não sabendo quem era: se eu, ou o outro que nunca perdoava e destruía, indiscriminadamente.
A Manuela reagiu de forma oposta. Conservou religiosamente todas as recordações do nosso passado. As próprias cartas, que devolvi, estavam em Évora, em casa da mãe.
Afinal o seu amor fora maior do que o meu.
Interferência repentina…
O primeiro a morrer fica à espera do outro, do lado de lá. Foi o que combinámos. Mas como nos vamos reconhecer se o corpo grosseiro se degrada, lentamente, até à destruição total?
Consultei o relógio pela enésima vez e acertei em cheio. Cinco horas em ponto. Os batimentos cardíacos tornaram-se ainda mais acelerados.
Como seria quando ficássemos frente a frente?
Os simples apertos de mão tinham sido abolidos a partir de ontem. Agora os tempos eram outros. Sim. Ia apertá-la nos meus braços e repetir a sensação do sabor dos seus lábios a morangos silvestres.
Cinco e dez. Os colegas da Manuela já não estavam a sair com tanta frequência. De quatro, cinco de cada vez, tinham passado a um, dois. Comecei a pensar que alguma coisa não estava bem.
Pouco depois dirigi-me ao porteiro e perguntei-lhe se a Manuela tinha comparecido ao trabalho.
Respondeu sem hesitação:
«Vi-a entrar, mas não sei se já saiu.»
«Há outra saída?»
«Pelo outro lado, mas só na hora de atendimento aos clientes.»
Fiquei mais tranquilo.
«Então não saiu!»
«Um momento, senhor. Vou ver se picou o ponto. É só um instante.»
«Obrigado.»
«É a minha obrigação.»
Voltou pouco depois. Não estava registada a hora de saída, o que queria dizer que ela ainda estava no interior do edifício.
Mas porquê?
Prometeu que sairia com toda a celeridade.
«Ela disse-me que saía às cinco em ponto. Estou preocupado. Pode saber se está demorada?»
«Vou já ligar para a secção onde a senhora trabalha. Quem devo anunciar?»
«Mário Fonseca.» Respondi prontamente.
«Então e só mais um momento.»
Fiquei a aguardar com uma certa ansiedade. Apareceu com um sorriso indefinido.
«O doutor Mesquita vai atendê-lo.»
«Quem é o doutor Mesquita?»
«O chefe de secção da dona Manuela.»
Segui o porteiro pela margem dos balcões em meia-lua. Havia já um princípio de obscuridade.
«É esta a porta.»
«Obrigado por toda a atenção.»
«De nada.»
Bati levemente à porta. Uma voz vinda do interior convidou-me a entrar.
Estendeu-me a mão. Era um homem de meia idade, quase calvo.
Esboçou um sorriso de circunstância.
«Muito boa tarde. Desculpe tomar o seu tempo. Vim falar com o senhor porque estranhei o atraso da Manuela. Combinei encontrar-me com ela às cinco.»
«Pois fez muito bem em vir ter comigo. Sente-se, por favor.»
«Diga-me sem rodeios o que se passa.»
Tentou ser direto.
«Aconteceu um imprevisto.»
Adoeceu e não veio e de forma alguma podia contactar comigo. Não. Não fazia sentido. O porteiro disse que a Manuela entrou e não saiu.
«A Manuela sentiu-se mal enquanto trabalhava.»
«Aí está a explicação. Então foi para casa. O senhor por acaso tem o seu endereço?»
«Não sei como hei de dizer-lhe... Deixe que lhe faça uma pergunta. Há quantos anos conhece a minha colaboradora?»
«Praticamente desde sempre. Porquê?»
«Sabia que a Manuela sofria há muito tempo de um aneurisma e que este não era operável?»
«Não. É uma grande surpresa para mim. Conheço-a desde os quinze anos. Agora relaciono o aneurisma com as constantes dores de cabeça que tinha. É isso.»
«Pois.»
Esperei o pior. O homem parecia angustiado.
«Não tenha receio. Diga a verdade...»
«Foi levada de urgência para Santa Maria.»
«Meu Deus!»
«Fui eu que dei conta da sua indisposição repentina e acudi-a logo. Senti que a situação era grave. Ela queria dizer qualquer coisa e esforcei-me por a entender. Pareceu-me ouvi-la dizer, já com voz sumida...» 
«Sim?» 
«Que ficava à sua espera no local que combinaram. Não entendi muito bem o sentido das suas palavras. De uma coisa tenho a certeza. Ela já sabia que estava muito mal. O seu destino era o hospital e dali não ia sair...»
Agora compreendia. Aconteceu numa manhã em que teve, de súbito, uma grande dor de cabeça. Mesmo assim, não quis ir para casa e continuámos no nosso banco. À tarde já não saímos.
Porque foi que nunca me disse que sofria de um aneurisma?
«Sente-se bem?»
Um nó na garganta cortava-me a respiração. Ultrapassei o momento.
«Eu aguento tudo o que tem para me dizer. Vá lá!» 
«...» 
«Pela sua expressão receio que tenha acontecido o pior...»
«Infelizmente.»


Nota final:
A Manuela faleceu em 3 de junho de 1974. Nunca consegui saber a causa da sua morte.
Que o grande amor da minha vida descanse em paz.


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