"Alvalade foi uma das doze freguesias criadas pela reorganização administrativa da cidade de Lisboa de 7 de Fevereiro de 1959, por desanexação da freguesia de Campo Grande.
O Bairro tem por base o “Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro”, que actualmente se designa de Avenida do Brasil, cuja autoria foi do arquitecto Faria da Costa. Este arquitecto sugeria um desenho urbano baseado nas tipologias de quarteirão fechado, circunscritos por ruas contínuas, assentes num sistema pouco hierarquizado. Previa ainda duas grandes avenidas que partiam de um único ponto, o cruzamento da Avenida de Roma com o caminho-de-ferro, e que eram o prolongar da Avenida de Roma até à Avenida Alferes Malheiro (actual Avenida do Brasil) junto do Hospital Júlio de Matos. Este plano aconteceu devido à carência de oferta de habitação da cidade, devido ao crescimento populacional, principalmente nas habitações de renda económica."
O Bairro tem por base o “Plano de Urbanização da Zona a Sul da Avenida Alferes Malheiro”, que actualmente se designa de Avenida do Brasil, cuja autoria foi do arquitecto Faria da Costa. Este arquitecto sugeria um desenho urbano baseado nas tipologias de quarteirão fechado, circunscritos por ruas contínuas, assentes num sistema pouco hierarquizado. Previa ainda duas grandes avenidas que partiam de um único ponto, o cruzamento da Avenida de Roma com o caminho-de-ferro, e que eram o prolongar da Avenida de Roma até à Avenida Alferes Malheiro (actual Avenida do Brasil) junto do Hospital Júlio de Matos. Este plano aconteceu devido à carência de oferta de habitação da cidade, devido ao crescimento populacional, principalmente nas habitações de renda económica."
Não me perguntem porquê. O meu sonho de sempre foi morar na Avenida de Roma. Tive a aproximação por duas vezes. Uma, foi na Avenida do Brasil; a outra, na Avenida Estados Unidos da América, a dez metros…
Mas, em boa verdade, vivi durante muitos anos, de alma e coração, na Avenida de Roma.
Porquê Avenida de Roma e não, por exemplo, Avenida da Liberdade?
Talvez porque conheci esta avenida desde que em 1959 (ainda não me habituei à ideia de não conseguir fazer parar as engrenagens do tempo, corroídas e que corroem) troquei a minha terra natal por Lisboa, onde me perdi e aprendi a crescer. Até que o destino me levou para Alvalade, mais precisamente para a Avenida de Roma.
As fotografias mostram o professor esforçado em tempo de estágio. Talvez seja eu, o quadro em ardósia e, claro, os alunos que estão aos lados. Eram os melhores alunos da turma e o professor ofereceu um livro a cada um dos cinco. Bem mereceram o prémio. Tempos difíceis, os do estágio. A luta contra quatro mulheres para a nota final não foi coisa fácil. Tempos de afirmação. O professor conseguiu a segunda melhor nota. Também aqui, na profissão que escolheu, não montou o cavalo da coragem, mas desta vez para ascender ao poder. E porquê? Talvez porque não quis.
Por agora... vou partir. Até amanhã ou quando puder ser. Nunca direi adeus.
Porque adeus é para sempre, como dizia a "Fadinha da Lagoa Azul" e desejo andar por cá mais uns tempos. A Avenida de Roma espera por mim. Curiosamente, o local onde sempre desejei morar e nunca se proporcionou e tive duas aproximações, a primeira na Avenida do Brasil e a segunda na Estados Unidos, nesta, a dois passos do meu sonho. Ainda não chegou o momento de mergulhar nas recordações da minha vivência na Avenida do Brasil. São mais difíceis de emergirem. De momento, estão guardadas nos escaninhos mais profundos, desorganizados e quase apagados da memória. A seu tempo virão. Por agora vieram estas, mais recentes...
Avenida de Roma. Anos noventa...
Ia olhando para os prédios do lado oposto do passeio por onde caminhava, indeciso, até que me quedava a olhar a fachada do andar modelo escolhido naquela manhã. Tinha que ter uma varanda, era sempre a primeira ideia que me assaltava. Não sabia explicar porquê, mas tinha que ter. Depois, seguia-se o costume. Ganhava asas e elevava-me até ficar pairando ao nível da varanda que, como que por milagre, tinha aparecido aos meus olhos.
Sortudo! Nem de propósito. Havia sempre uma porta aberta.
Num segundo via-me no interior de um apartamento onde existiam apenas um soalho de tacos encerados, paredes e tetos brancos.
«Vejamos» imaginava. «Aqui pode ser um quarto. E cá está, virado para poente e a comunicar com a varanda. Olha, e aqui temos a sala. Bem ampla. E onde fica a lareira? Não que seja friorento. Mas uma lareira dá sempre jeito nem que sirva de fachada. Engrandece o nível social.»
Olhei em redor e sorri de imediato.
«Parece que estou cego! Tenho a lareira na frente dos olhos. Como já disse, não sou friorento, mas a minha futura companheira pode ser. Nunca se sabe. Por enquanto é só futurologia. Vejamos o outro quarto. Talvez ainda não. A varanda. Sim, a varanda. É larga. Como se impõe. Vou trazer para aqui parte da minha coleção de catos. Fica nos dois cantos. Quero espaço suficiente para poder encostar-me às grades e ver o que se passa lá fora. Sou um observador especializado nas coisas que os outros não conseguem ver.»
O trânsito era intenso a qualquer hora do dia e sentia-me perfeitamente integrado no movimento inusitado daquela artéria, ouvindo os motores dos carros (quanto mais potentes, melhor), as travagens bruscas, as buzinadelas a obedecerem ao efeito Doppler, ora o som agudo, ora grave. Mas era só um instante. Encolhia os ombros e prosseguia a caminhada. A observação do resto da casa ficava para depois.
«É impossível» pensei em voz alta. «Nunca vai acontecer.»
Profecia quase errada. Um dia aconteceu. Quando menos esperava. Mas por aproximação.
«A manhã está ótima.»
«Olá, António. Onde vais a esta hora? E a falar sozinho... Está bonita a brincadeira!»
«Ah!, és tu, Lina. Está tudo bem contigo?»
Era a minha colega do quarto grupo e companheira do serviço de horários. Enquanto os outros iam de férias ficávamos os dois encerrados numa sala a resolver problemas que, às vezes, eram autênticas missões impossíveis. Se fosse hoje, com o que já sei, bem podiam esperar por mim, e de preferência sentados, para o serviço de horários. Que se lixasse o Estado dos "boys e girls", qualquer que fosse o partido que alternava no poder. Nem mais uma hora de trabalho além das que tinha de cumprir.
Porquê não sermos compensados?
Pergunta a todos os que se sacrificaram a fazer horários. Ponto final.
«Sabes bem que não.»
«Já desconfiava pela cara de enterro que trazes.»
Problemas insanáveis com o marido que estava amantizado com uma gaja, segundo etiqueta que ela pôs à mulher sua concorrente de momento.
Um dia, quando estávamos noutra escola numa ação de formação, num programa informático que girava à volta de uma tartaruga virtual que obedecia a comandos específicos e acreditávamos que faria as delícias dos alunos, com consequente melhoria nos seus fracos conhecimentos de Geometria, perguntou-me abruptamente:
«Queres conhecer a ordinária da fulana que o meu marido arranjou?»
«Agora?»
«Pois. Almoçamos num instante e vamos lá. É perto daqui.»
Não respondi e ela interpretou como um sim.
«Tenho o jipe aqui perto. Vamos.»
E fomos. A mulher era mesmo uma gaja. Trabalhava num supermercado. Sem desprimor de todas as mulheres que trabalhavam nos supermercados, claro. Notava-se pela pinta.
«Não te disse que ela era ordinária? Olha-me só. Que mau gosto o dele!»
«Deixa que não vai longe com um estafermo daqueles.»
E ele não seria também um estafermo?
Pelo menos estava a comportar-se como tal.
Fez-me mal a ida ao supermercado. Quem pagou as favas foi a tartaruga que não obedeceu aos comandos porque as linhas de programação estavam cheias de gafes. Na altura era o responsável por um projeto informático ligado à Geometria.
«Já pensaste em deixá-lo?»
Olhou para mim, estranhamente.
Não é o que estás a pensar, Lina!
A esse respeito já o Raul, um colega da escola, me tinha perguntado:
«Vocês... tu e ela...?»
«Deixa-te de ideias tolas!»
«É o que consta por aí.»
«Que conste. É preciso ter muita lata!»
Constava, mas nada havia senão amizade.
Voltei a mim.
«Então, onde vais todo lampeiro?»
Sorri.
«Olha, vou até à Mexicana beber um café. Queres acompanhar-me?»
«Obrigada. Tenho aulas, meu menino.»
«Também eu» consultou o relógio. «Falta ainda meia hora para o intervalo.»
Pôs uma mão sobre o meu ombro.
«Já devia estar na escola.»
«Compreendo. É a tua direção de turma.»
«Sim. Então, boa passeata.»
«Obrigado.»
Fiquei a vê-la afastar-se. De costas também não era desinteressante de todo. Se passávamos horas fechados dentro de uma sala, só os dois, lado a lado, não compreendia porque nunca tivera o mínimo impulso depois de um contacto das pernas, não premeditado. Da parte da Lina ainda se percebia. Afinal era mulher e as mulheres esperavam sempre que os homens tomassem a iniciativa.
«Se até agora não pegou, então nunca vai pegar.»
Dias mais tarde sonhei com a Lina.
Andávamos à procura do marido infiel. Era um campo aberto, de terra batida, árido, sem o mínimo vestígio de arvoredo.
«Olha, Mário, lá estão eles. E a dengosa toda derretida com o sacana. De braço pelo ombro. O maldito nunca fez tal carinho comigo.»
«Queres que lhe dê uma reprimenda?»
«A ele? Não vale a pena. Vou deixá-lo.»
Mas já avançava na direção dos amantes infames. Em poucos segundos alcancei-os.
«Não tem vergonha na cara?»
«Quem é você, seu badameco?»
«Veja lá como fala!»
O outro cresceu na minha direção. Olhou para trás. A minha amiga já não estava visível. Tanto melhor. Agarrei nele como se fosse um boneco de trapo e atirei-o ao chão. O amante da gaja levantou-se de imediato e cresceu para mim. A cena repetiu-se.
«Mau!»
O caso complicava-se. O outro apontava-me agora uma pistola de guerra. Como militar que era, desse verme não se podia esperar outra coisa.
«Pode atirar à vontade, seu pulha, que sou feito à prova de bala.
Pelo sim pelo não, o subconsciente disse-me que era o momento oportuno para acordar.
Voltei a concentrar a atenção no prédio. Só então reparei que estava pintado de amarelo torrado, o que me fez franzir o sobrolho.
«Quatro andares. Terá elevador? Gosto do último, mas deve ser muito quente no verão.»
Consultei o relógio. Se queria tomar o café na Mexicana então devia apressar-me. Mas não bebia café! Café na verdadeira aceção da palavra. A cafeína punha-me mais nervoso que uma pescada. E afinal menti à Lina. Pior ainda porque ela sabia que não bebia café. Mas o caso da Laura ocupara toda a atenção da minha colega.
«Bom» decidi. «Vou até à praça de Londres. A casa fica para depois. Logo se vê.»
Alarguei a passada e segui que nem uma seta até ao próximo destino.
A avenida de Roma seduzia-me. Tinha mais encanto do que "Coimbra na hora da despedida".
Dei conta da analogia. Contra todos os prognósticos, no presente, estava de pedra e cal na antiga avenida nº 19 que nunca chegou a conhecer com tal designação (1928).
Salto no futuro. Mais de duas mãos cheias de anos depois...
Agora morava na Estados Unidos, num edifício a vinte metros da avenida de Roma. Curiosamente, conhecera uma antiga secretária de Salazar que morava no mesmo prédio que eu. Sempre que me cruzava com a vetusta senhora não conseguia escapar à descrição em que ela, no patamar, prestes a entrar no elevador de portas metálicas que abriam com estrondo, da esquerda para a direita, quer se fizesse força ou não, se esforçava para que não faltasse uma única palavra para abrilhantar o cargo que desempenhou provavelmente com muita dedicação e a bem do "Estado Novo".
«Sabe, fui secretária do Salazar.»
«Ah sim?»
«Pois fui, durante alguns anos. Mais tarde trabalhei no Banco Português do Atlântico, até que me reformei. O senhor é o novo vizinho. Gosta do ambiente do prédio?»
Procurei algumas palavras para elogiar a velhota que, segundo a senhoria do prédio, pagava de renda vinte e nove euros, mas esta não se calou.
«Venho muito incomodada da rua. Um indivíduo idoso pediu-me uma esmola e eu não lhe dei porque vi logo que era para a droga. Só lhe fazia mal, não acha?»
«Estava embriagado?»
«Cambaleava.»
«Sim. O álcool é uma droga muito perigosa quando tomado em excesso. É permitida por lei, mas nos casos extremos pode provocar alucinações, isto para não falar nos danos físicos e psíquicos que causa no organismo da pessoa alcoolizada.»
Foi então que me lembrei da Esfinge e da discussão que um dia tive com ela a propósito do LSD, um alucinogénio sintético muito poderoso que provocava pesadelos tais ao drogado que as tomava que este só queria sair deles, custasse o que custasse. Era impressionante. Ficava como um farrapo depois de gritar, implorar, que o fizessem sair da viagem. Uma reação oposta à do heroinómano, que, após tomar a dose, se deixava embalar no seu mundo isolado dos outros mundos.
Lembrava-me de um caso clássico que costumava contar aos alunos da Formação Complementar.
«Imaginem que uns tantos amigos se reúnem numa sala para confraternizar.
Estão bem dispostos à exceção de um, sentado a um canto da sala. Entretanto alguém faz uma descoberta importante ao espreitar acidentalmente pelo buraco da fechadura de uma porta. O que se passa do outro lado excita-o.
Uma mulher a despir-se e a deitar para o chão as peças do vestuário, uma a uma, até ficar como Eva (sem parra) no Paraíso. De imediato chama os amigos que observam, um a um, o que se passa do outro lado da porta. Mas há mais: sublime!, a mulher nua a acariciar-se! É de loucos!»
«Humberto, anda ver isto.»
«O heroinómano faz de imediato um gesto de deixa para lá. O único mundo que lhe interessa é o seu. Aquilo sim, é maravilhoso. Não tem comparação possível. Um sonho de que não quer acordar...»
Se não bebia café, podia pedir um chá de limão.
«És um idiota. Tens sempre grandes ideias, Mário!»
E sentei-me na esplanada da Mexicana a matar o tempo.
Podia ter acontecido nesse dia, mas na realidade só faltava a uma aula por um motivo de força maior. E não era o caso, pois, Se bem me lembro, estava a beber um chá de limão na Mexicana. Depois, regressava à escola.
«Sabe, fui secretária do Salazar.»
«Ah sim?»
«Pois fui, durante alguns anos. Mais tarde trabalhei no Banco Português do Atlântico, até que me reformei. O senhor é o novo vizinho. Gosta do ambiente do prédio?»
Procurei algumas palavras para elogiar a velhota que, segundo a senhoria do prédio, pagava de renda vinte e nove euros, mas esta não se calou.
«Venho muito incomodada da rua. Um indivíduo idoso pediu-me uma esmola e eu não lhe dei porque vi logo que era para a droga. Só lhe fazia mal, não acha?»
«Estava embriagado?»
«Cambaleava.»
«Sim. O álcool é uma droga muito perigosa quando tomado em excesso. É permitida por lei, mas nos casos extremos pode provocar alucinações, isto para não falar nos danos físicos e psíquicos que causa no organismo da pessoa alcoolizada.»
Foi então que me lembrei da Esfinge e da discussão que um dia tive com ela a propósito do LSD, um alucinogénio sintético muito poderoso que provocava pesadelos tais ao drogado que as tomava que este só queria sair deles, custasse o que custasse. Era impressionante. Ficava como um farrapo depois de gritar, implorar, que o fizessem sair da viagem. Uma reação oposta à do heroinómano, que, após tomar a dose, se deixava embalar no seu mundo isolado dos outros mundos.
Lembrava-me de um caso clássico que costumava contar aos alunos da Formação Complementar.
«Imaginem que uns tantos amigos se reúnem numa sala para confraternizar.
Estão bem dispostos à exceção de um, sentado a um canto da sala. Entretanto alguém faz uma descoberta importante ao espreitar acidentalmente pelo buraco da fechadura de uma porta. O que se passa do outro lado excita-o.
Uma mulher a despir-se e a deitar para o chão as peças do vestuário, uma a uma, até ficar como Eva (sem parra) no Paraíso. De imediato chama os amigos que observam, um a um, o que se passa do outro lado da porta. Mas há mais: sublime!, a mulher nua a acariciar-se! É de loucos!»
«Humberto, anda ver isto.»
«O heroinómano faz de imediato um gesto de deixa para lá. O único mundo que lhe interessa é o seu. Aquilo sim, é maravilhoso. Não tem comparação possível. Um sonho de que não quer acordar...»
Se não bebia café, podia pedir um chá de limão.
«És um idiota. Tens sempre grandes ideias, Mário!»
E sentei-me na esplanada da Mexicana a matar o tempo.
Podia ter acontecido nesse dia, mas na realidade só faltava a uma aula por um motivo de força maior. E não era o caso, pois, Se bem me lembro, estava a beber um chá de limão na Mexicana. Depois, regressava à escola.
Abri a janela da sala e debrucei-me sobre o parapeito de pedra calcária.
Devia levar chapéu de chuva?
Pergunta estranha se tivesse sido feita alguns dias atrás. Foram dias e dias de céu azul. Mais de três meses. Longos dias azuis.
E os dias de hoje também eram azuis?
«Porque andas triste, Mário?» perguntou o meu amigo imaginário.
«Engano o teu, Ernesto.»
Fechei a janela, contornei o sofá de pano cinzento e dirigi-me para a porta de saída. Antes de sair, voltei-me para trás.
«Até logo.»
A despedida era para o gato tigrino que dormia aconchegado na manta vermelha que cobria parcialmente o sofá. O felino abriu os olhos e voltou logo a fechá-los, continuando na sua dormideira da ordem.
«Não respondes?»
O gato miou.
«Assim está bem.»
Desta vez dirigi-me para sul, ao longo do passeio do lado esquerdo, esburacado aqui e ali, como era habitual em Lisboa. Uma forma castiça de torcer um pé.
Isto na melhor das hipóteses.
Quantas queixas foram feitas à Câmara?
Seria que os serviços camarários teriam promovido a maior parte dos seus artistas da pedra a calceteiros marítimos?
Tudo isto acontecia numa zona nobre da cidade. Ou que já tinha sido nobre. Agora estava fatalmente envelhecida.
«Nunca mais vi os motoqueiros a aspirar afanosamente os dejetos dos cães.» Pensei. «Fazem muita falta...»
Mas diziam que pisar merda dava sorte. Talvez fosse por esse motivo que os apanhadores de merda tinham sido desviados para outros serviços mais nobres.
É uma hipótese improvável de concretizar-se. Portugal e os portugueses estão a atravessar uma crise muito grave. Digamos que estão quase na merda. Desde que o grupo dos pinóquios se foi embora, depois de deixar país numa crise profunda, os sacrifícios são muitos e não se vê luz ao fundo do túnel. Por mais que se deseje não se verá tão cedo. Para agravar a situação, o manda-chuva atual tem sido mais papista que o papa. No futuro esta governança será muito mal vista e os que virão a seguir não terão dificuldade em colher os louros, quer sejam os mesmos ou outros.
Quanto às hortas, estas estavam viçosas. Medravam a olhos vistos apesar da seca implacável. O estranho é que ninguém colhia os vegetais da época, cem por cento biológicos. E o que já não era estranho residia no facto definitivamente consumado dos ecologistas camarários não quererem mobilizar para o campo os seus grupos de exterminadores implacáveis que só deixavam para trás terra queimada.
Que bem ficavam as hortas na nobre avenida de Roma! Tão viçosas e tão do agrado de cães, gatos e ratos!
Cheguei à praça de Santo António e senti-me quase em casa. As recordações de muitos anos dedicados ao ensino talvez me tivessem deixado uma lágrima no canto do olho.
Devia levar chapéu de chuva?
Pergunta estranha se tivesse sido feita alguns dias atrás. Foram dias e dias de céu azul. Mais de três meses. Longos dias azuis.
E os dias de hoje também eram azuis?
«Porque andas triste, Mário?» perguntou o meu amigo imaginário.
«Engano o teu, Ernesto.»
Fechei a janela, contornei o sofá de pano cinzento e dirigi-me para a porta de saída. Antes de sair, voltei-me para trás.
«Até logo.»
A despedida era para o gato tigrino que dormia aconchegado na manta vermelha que cobria parcialmente o sofá. O felino abriu os olhos e voltou logo a fechá-los, continuando na sua dormideira da ordem.
«Não respondes?»
O gato miou.
«Assim está bem.»
Desta vez dirigi-me para sul, ao longo do passeio do lado esquerdo, esburacado aqui e ali, como era habitual em Lisboa. Uma forma castiça de torcer um pé.
Isto na melhor das hipóteses.
Quantas queixas foram feitas à Câmara?
Seria que os serviços camarários teriam promovido a maior parte dos seus artistas da pedra a calceteiros marítimos?
Tudo isto acontecia numa zona nobre da cidade. Ou que já tinha sido nobre. Agora estava fatalmente envelhecida.
«Nunca mais vi os motoqueiros a aspirar afanosamente os dejetos dos cães.» Pensei. «Fazem muita falta...»
Mas diziam que pisar merda dava sorte. Talvez fosse por esse motivo que os apanhadores de merda tinham sido desviados para outros serviços mais nobres.
É uma hipótese improvável de concretizar-se. Portugal e os portugueses estão a atravessar uma crise muito grave. Digamos que estão quase na merda. Desde que o grupo dos pinóquios se foi embora, depois de deixar país numa crise profunda, os sacrifícios são muitos e não se vê luz ao fundo do túnel. Por mais que se deseje não se verá tão cedo. Para agravar a situação, o manda-chuva atual tem sido mais papista que o papa. No futuro esta governança será muito mal vista e os que virão a seguir não terão dificuldade em colher os louros, quer sejam os mesmos ou outros.
Quanto às hortas, estas estavam viçosas. Medravam a olhos vistos apesar da seca implacável. O estranho é que ninguém colhia os vegetais da época, cem por cento biológicos. E o que já não era estranho residia no facto definitivamente consumado dos ecologistas camarários não quererem mobilizar para o campo os seus grupos de exterminadores implacáveis que só deixavam para trás terra queimada.
Que bem ficavam as hortas na nobre avenida de Roma! Tão viçosas e tão do agrado de cães, gatos e ratos!
Cheguei à praça de Santo António e senti-me quase em casa. As recordações de muitos anos dedicados ao ensino talvez me tivessem deixado uma lágrima no canto do olho.
Encarei a estátua de vários ângulos, tirei umas tantas fotos e depois deixei-me ficar em contemplação durante alguns segundos.
«Estás zangado comigo, Santo António? Olha que nunca te pendurei de pernas para o ar. Mas se um dia ignorares algum pedido que faça...»
Havia quem o fizesse quando ele não satisfazia um pedido feito.
Por momentos pareceu-me vislumbrar um sorriso no rosto sempre sério do santo que trazia ao colo Jesus.
«De nada vale, Santo António. Tu lá sabes quando queres e porque queres.»
«Ora, estás sempre a ver coisas, Mário!» teria dito o Alfredo.
«Mas eu não trago o menino comigo!»
Fixei melhor o olhar na estátua.
«Tens razão. De facto estou sempre a ver coisas que não existem. Mas olha que os buracos nos passeios, a merda dos cães que dá sorte a quem a pisar que a pisar, isto para não falar dos pombos, a quem alguém chamou um dia "ratos com asas".
«Estás zangado comigo, Santo António? Olha que nunca te pendurei de pernas para o ar. Mas se um dia ignorares algum pedido que faça...»
Havia quem o fizesse quando ele não satisfazia um pedido feito.
Por momentos pareceu-me vislumbrar um sorriso no rosto sempre sério do santo que trazia ao colo Jesus.
«De nada vale, Santo António. Tu lá sabes quando queres e porque queres.»
«Ora, estás sempre a ver coisas, Mário!» teria dito o Alfredo.
«Mas eu não trago o menino comigo!»
Fixei melhor o olhar na estátua.
Ultrapassei a praça de Santo António e encaminhei-me para a entrada do metropolitano. Parei no cimo das escadas. Descer ou não descer, era a questão. Seduzia-me mais a avenida da Igreja. O movimento do seu comércio. O fervilhar de gente nos passeios. As esplanadas. O cheiro intenso, agora e aqui a flores, depois, e mais adiante, a frango assado na brasa. Os quiosques de construção uniforme, cinzentos, onde as pessoas paravam a ler os títulos chamativos dos jornais, mas pouco compravam porque a crise pós-socrática tinha-se instalado para ficar. As passadeiras para peões, na maioria envelhecidos, locatários dos antigos bairros de rendas económicas, eram autênticas provas de paciência para os automobilistas que circulavam sempre apressados, mesmo que não levassem pressa para os destinos.
Estava já na avenida da Igreja. De facto ao fundo, do lado nascente, erguia-se uma igreja. Recordei-me. Foi aí o velório da pobre Catarina.
Foi numa das passadeiras que a vi! Deslocava-se, graciosa, da direita para a esquerda…
Primeiro chamou-me a atenção a saia rodada, comprida, estilo anos sessenta. A seguir o cabelo curto, castanho. Depois os olhos. No olhar que me dirigiu, agarotado, algo malicioso, pareceu dizer:
«Vem ter comigo!»
«Não pode ser!» exclamei, não querendo acreditar.
Corri ao seu encontro, desejoso de a ver mais perto. Levava mil interrogações no pensamento, não querendo acreditar no que os meus olhos estavam a ver.
«Não pode ser!» repeti.
Não podia ser. E para reforçar a incredibilidade que se estampou no rosto, seguiu-se um repentino chiar de travões, a projeção de um corpo para a frente, seguida da escuridão que me envolveu de repente. O silêncio. A calmaria. E uma mistura de cores azuladas sobre a cabeça que rodopiavam incessantemente e chamavam-me de forma irresistível.
Não hesitei. Abri os braços e elevei-me no ar ao encontro das luzes que tanto me seduziam, penetrando nelas e deixando-me ir, no movimento louco de rotação daquele buraco negro colorido, para longe, sempre para cada vez mais longe. Era uma subida alucinante que não controlava.
Não conseguia encontrar o termo adequado de comparação para aquele sentimento nobre e, ao mesmo tempo, forte.
«Estou a viajar num buraco de verme?» interroguei-me. «Aonde me leva?»
Claro que não obtive resposta. E mesmo que obtivesse, o som não se propagava no vazio. Sim. Só as cores existiam e inebriavam-me. Mais nada. Por outro lado, talvez o meu corpo material se tivesse desagregado em átomos, iões e subpartículas. Talvez fosse apenas espírito.
«É isso. Neste momento só a minha alma existe. Perdi o corpo material e estou a ir para lá do tempo. Quiçá no futuro...»
Senti que planava em redor do ajuntamento de pessoas que estavam debruçadas sobre qualquer coisa que não conseguia distinguir.
«Afastem-se, seus curiosos. Deixem trabalhar quem sabe. Há a vida de uma pessoa em perigo!» ouvi alguém dizer, visivelmente irritado.
«Não se mexe!, não vê que não se mexe?»
«A pessoa está morta. Não adianta fazer massagem cardíaca.»
Os curiosos mais próximos da vítima estavam céticos.
«Não sejam estúpidos e deem-me espaço.» Exasperou-se.
De facto não era a melhor situação para ver o que se passava. Sem saber como assentei os pés no alcatrão.
«Porque será que estou tão curioso?»
Normalmente afastava-me dos sinistros que ocorriam na proximidade.
«É só um corpo estendido no chão. Provavelmente a pessoa sentiu-se mal.» Pensei.
Consegui chegar-me à frente sem a mínima dificuldade. Mas só via os pés da vítima. O homem que a assistia tapava-me parcialmente o campo de visão.
«Tem uns sapatos parecidos com os meus...» Sussurrei.
O homem voltou-se para mim.
«Se sabe primeiros socorros, ajude-me.»
No mesmo instante senti que me tocavam nas costas.
Voltei-me.
«Não adianta assistir a este triste espetáculo. Dê-me a mão. Venha comigo.»
Quem era ela para me dar ordens?
«Mas...»
«Não vinha ao meu encontro?»
Fiz um esforço para me recordar. Sim. Ela tinha razão. A saia rodada era inconfundível.
«Parece que a conheço, mas não sei donde. Nunca esqueço um rosto bonito.»
«Talvez. I'm sorry... Venha comigo. Este momento não é mesmo nada agradável.»
I'm sorry?
«Tem pena de quê?»
«Por agora só interessa que nos afastemos. Vá, dê-me a mão.»
«Não sou nenhuma criança.»
Ela sorriu.
«Dê-me a mão, repito. E não a largue que pode ser fatal.»
Obedeci. Pelo sim pelo não...
«Não se assuste. Vai sentir um choque. Mas passa depressa.»
Assim foi. Logo a seguir veio a escuridão.
Ela tentou acalmar-me de novo.
«Pronto. Foi só um instante. Agora já está a ver-me?»
Acenei com a cabeça.
«Para que foi isto? É mágica?»
«Discípula do Mandrake? Você adorava ler as revistas de banda desenhada. Tarzan. Serafim e o Malacueco. O Mistério da Grande Pirâmide. E muitos outros. Enfronhava-se de tal maneira nas aventuras que se tornava logo a personagem principal. Não, não sou mágica. Já lhe explico.»
«Deve haver um motivo para me levar consigo. E agora me lembro. Vi-a atravessando a passadeira e corri logo na sua direção. Depois não sei o que aconteceu. Desconfio de uma coisa...»
«Sim?»
«Estou morto?»
«Talvez.»
«Como assim? Seja explícita.»
«I'm sorry.»
«Deve estar aí a chave. Não chega a frase. Preciso de mais dados.»
Tinha razão. Doutra forma não chegaria lá. Lá, onde?
«E vai tê-los» disse. «Está relacionado com o que lhe aconteceu em setembro de 1962. Você estava em Portalegre quando aconteceu o "I'm sorry". Concorda?»
«Como sabe?» perguntei, algo intrigado.
«Não interessa.»
Fiz um esforço de memória.
«Então... Portalegre... mil novecentos e sessenta e dois?»
De repente a neblina dissipou-se.
«Ah!, agora me lembro. O gira-discos do tio Carolino. Eu e o meu primo Justino passávamos tempos infinitos a ouvir a Brenda Lee cantando "I'm sorry". Era uma canção que estava em voga. Ainda hoje sei parte da letra de cor. "Sinto muito, sinto muito por ter sido tão tolo... não sabia que o amor poderia ser tão cruel...". E mais: "... por favor aceite a minha desculpa...". Quer continuar a ouvir?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Sim. Você estava demasiado cego para ver.»
«Pois estava. Fui enfeitiçado. "Você estava demasiado cego para ver" também fazia parte da letra.»
Aquela mulher...
«A expressão do seu olhar lembra-me a capa do disco. Mas não pode ser!»
«Não pode ser o quê?»
«A Brenda Lee é parecida com você!»
«Acha...?»
Estava já na avenida da Igreja. De facto ao fundo, do lado nascente, erguia-se uma igreja. Recordei-me. Foi aí o velório da pobre Catarina.
Foi numa das passadeiras que a vi! Deslocava-se, graciosa, da direita para a esquerda…
Primeiro chamou-me a atenção a saia rodada, comprida, estilo anos sessenta. A seguir o cabelo curto, castanho. Depois os olhos. No olhar que me dirigiu, agarotado, algo malicioso, pareceu dizer:
«Vem ter comigo!»
«Não pode ser!» exclamei, não querendo acreditar.
Corri ao seu encontro, desejoso de a ver mais perto. Levava mil interrogações no pensamento, não querendo acreditar no que os meus olhos estavam a ver.
«Não pode ser!» repeti.
Não podia ser. E para reforçar a incredibilidade que se estampou no rosto, seguiu-se um repentino chiar de travões, a projeção de um corpo para a frente, seguida da escuridão que me envolveu de repente. O silêncio. A calmaria. E uma mistura de cores azuladas sobre a cabeça que rodopiavam incessantemente e chamavam-me de forma irresistível.
Não hesitei. Abri os braços e elevei-me no ar ao encontro das luzes que tanto me seduziam, penetrando nelas e deixando-me ir, no movimento louco de rotação daquele buraco negro colorido, para longe, sempre para cada vez mais longe. Era uma subida alucinante que não controlava.
Não conseguia encontrar o termo adequado de comparação para aquele sentimento nobre e, ao mesmo tempo, forte.
«Estou a viajar num buraco de verme?» interroguei-me. «Aonde me leva?»
Claro que não obtive resposta. E mesmo que obtivesse, o som não se propagava no vazio. Sim. Só as cores existiam e inebriavam-me. Mais nada. Por outro lado, talvez o meu corpo material se tivesse desagregado em átomos, iões e subpartículas. Talvez fosse apenas espírito.
«É isso. Neste momento só a minha alma existe. Perdi o corpo material e estou a ir para lá do tempo. Quiçá no futuro...»
Senti que planava em redor do ajuntamento de pessoas que estavam debruçadas sobre qualquer coisa que não conseguia distinguir.
«Afastem-se, seus curiosos. Deixem trabalhar quem sabe. Há a vida de uma pessoa em perigo!» ouvi alguém dizer, visivelmente irritado.
«Não se mexe!, não vê que não se mexe?»
«A pessoa está morta. Não adianta fazer massagem cardíaca.»
Os curiosos mais próximos da vítima estavam céticos.
«Não sejam estúpidos e deem-me espaço.» Exasperou-se.
De facto não era a melhor situação para ver o que se passava. Sem saber como assentei os pés no alcatrão.
«Porque será que estou tão curioso?»
Normalmente afastava-me dos sinistros que ocorriam na proximidade.
«É só um corpo estendido no chão. Provavelmente a pessoa sentiu-se mal.» Pensei.
Consegui chegar-me à frente sem a mínima dificuldade. Mas só via os pés da vítima. O homem que a assistia tapava-me parcialmente o campo de visão.
«Tem uns sapatos parecidos com os meus...» Sussurrei.
O homem voltou-se para mim.
«Se sabe primeiros socorros, ajude-me.»
No mesmo instante senti que me tocavam nas costas.
Voltei-me.
«Não adianta assistir a este triste espetáculo. Dê-me a mão. Venha comigo.»
Quem era ela para me dar ordens?
«Mas...»
«Não vinha ao meu encontro?»
Fiz um esforço para me recordar. Sim. Ela tinha razão. A saia rodada era inconfundível.
«Parece que a conheço, mas não sei donde. Nunca esqueço um rosto bonito.»
«Talvez. I'm sorry... Venha comigo. Este momento não é mesmo nada agradável.»
I'm sorry?
«Tem pena de quê?»
«Por agora só interessa que nos afastemos. Vá, dê-me a mão.»
«Não sou nenhuma criança.»
Ela sorriu.
«Dê-me a mão, repito. E não a largue que pode ser fatal.»
Obedeci. Pelo sim pelo não...
«Não se assuste. Vai sentir um choque. Mas passa depressa.»
Assim foi. Logo a seguir veio a escuridão.
Ela tentou acalmar-me de novo.
«Pronto. Foi só um instante. Agora já está a ver-me?»
Acenei com a cabeça.
«Para que foi isto? É mágica?»
«Discípula do Mandrake? Você adorava ler as revistas de banda desenhada. Tarzan. Serafim e o Malacueco. O Mistério da Grande Pirâmide. E muitos outros. Enfronhava-se de tal maneira nas aventuras que se tornava logo a personagem principal. Não, não sou mágica. Já lhe explico.»
«Deve haver um motivo para me levar consigo. E agora me lembro. Vi-a atravessando a passadeira e corri logo na sua direção. Depois não sei o que aconteceu. Desconfio de uma coisa...»
«Sim?»
«Estou morto?»
«Talvez.»
«Como assim? Seja explícita.»
«I'm sorry.»
«Deve estar aí a chave. Não chega a frase. Preciso de mais dados.»
Tinha razão. Doutra forma não chegaria lá. Lá, onde?
«E vai tê-los» disse. «Está relacionado com o que lhe aconteceu em setembro de 1962. Você estava em Portalegre quando aconteceu o "I'm sorry". Concorda?»
«Como sabe?» perguntei, algo intrigado.
«Não interessa.»
Fiz um esforço de memória.
«Então... Portalegre... mil novecentos e sessenta e dois?»
De repente a neblina dissipou-se.
«Ah!, agora me lembro. O gira-discos do tio Carolino. Eu e o meu primo Justino passávamos tempos infinitos a ouvir a Brenda Lee cantando "I'm sorry". Era uma canção que estava em voga. Ainda hoje sei parte da letra de cor. "Sinto muito, sinto muito por ter sido tão tolo... não sabia que o amor poderia ser tão cruel...". E mais: "... por favor aceite a minha desculpa...". Quer continuar a ouvir?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Sim. Você estava demasiado cego para ver.»
«Pois estava. Fui enfeitiçado. "Você estava demasiado cego para ver" também fazia parte da letra.»
Aquela mulher...
«A expressão do seu olhar lembra-me a capa do disco. Mas não pode ser!»
«Não pode ser o quê?»
«A Brenda Lee é parecida com você!»
«Acha...?»
Ignorei a ironia da interrogação.
«O tempo não passou por si. Não mudou nada.»
«De que tempo está a falar?»
«Passaram-se muitos anos desde que a Simone me fez aquele cerco fatal. Inexplicavelmente esqueci o compromisso de me encontrar em Portalegre com a Manuela. Após aqueles longos meses de zanga, ela admitiu que devíamos fazer tréguas. Encontrávamo-nos em Portalegre e logo se veria. Não sei como me esqueci desse compromisso. Mas já paguei caro o esquecimento, acredite.»
Aconteceu o inesperado. Envolvi-me com a Simone e esqueci-me do encontro que eu e a Manuela tínhamos combinado por carta. Daí, arrependido ou não, ter ouvido, vezes sem conta, "I'm sorry". Uma forma indireta de lhe pedir perdão. Mas o arrependimento não passou de um verter de lágrimas de crocodilo. Dois meses depois acabei a relação com a Simone, mas não voltei para a Manuela.
«Deixemos o passado em paz e passemos ao futuro pois que nem sequer estamos no presente.»
Franzi o sobrolho.
«Não estamos no presente?»
«Não.»
«Então morri mesmo.»
«É você que o diz. Olhe em volta. Reconhece onde está?»
«Oh!... Uma avenida muito larga com arranha-céus dos dois lados!» exclamei, excitado. «Não, não faço a mínima ideia.»
Voltou a surpreender-me.
«Não saímos mais que cem metros daqui. Está a ver a avenida de Roma do futuro. Entretanto Portugal já perdeu há muito a sua identidade como nação.»
«Basta! Não quero ouvir mais porque tudo o que me está a dizer não é real! Não estou a reconhecer a minha avenida e isso choca-me. Não pertenço aqui. Quero voltar e já!»
Aquilo era um ultimato manhoso. Sem pernas para andar.
«Então o Mário acha que não morreu?»
«Se morri? Não sei. Talvez não. Está a mostrar-me como será o futuro.»
«Mas estamos no futuro!»
«Dê-me uma certeza.»
«Certo. Mas pode estar a contar a sua última história porque, penso, o sítio para onde o levei não tem regresso.»
«Só depende de si.» Pedi. «Estou nas suas mãos.»
«Mário, eu não sou essa tal Brenda que há pouco tinha no pensamento. É você que está a imaginar que sou a jovem que cantava a canção "I'm sorry" e que ouvia vezes sem conta como sinal de arrependimento pelo mal que fez ao trair o grande amor da sua vida. Não foi fiel ao amor que juraram ser eterno. Mais. O seu cinismo esteve bem presente quando deixou que ela e a outra se encontrassem ao mesmo tempo consigo naquela noite em que tentou trocar-lhes as voltas marcando um horário para cada uma. Saiu-lhe o tiro pela culatra, pois elas chegaram quase ao mesmo tempo à casa dos seus tios. Acho que essa canção é mais que uma fatalidade. Traduz o seu desespero e a falta de coragem para remediar o erro cometido. Pagou e vem pagando uma fatura cara, Mário. Ano após ano. E não sei até quando.»
«De que tempo está a falar?»
«Passaram-se muitos anos desde que a Simone me fez aquele cerco fatal. Inexplicavelmente esqueci o compromisso de me encontrar em Portalegre com a Manuela. Após aqueles longos meses de zanga, ela admitiu que devíamos fazer tréguas. Encontrávamo-nos em Portalegre e logo se veria. Não sei como me esqueci desse compromisso. Mas já paguei caro o esquecimento, acredite.»
Aconteceu o inesperado. Envolvi-me com a Simone e esqueci-me do encontro que eu e a Manuela tínhamos combinado por carta. Daí, arrependido ou não, ter ouvido, vezes sem conta, "I'm sorry". Uma forma indireta de lhe pedir perdão. Mas o arrependimento não passou de um verter de lágrimas de crocodilo. Dois meses depois acabei a relação com a Simone, mas não voltei para a Manuela.
«Deixemos o passado em paz e passemos ao futuro pois que nem sequer estamos no presente.»
Franzi o sobrolho.
«Não estamos no presente?»
«Não.»
«Então morri mesmo.»
«É você que o diz. Olhe em volta. Reconhece onde está?»
«Oh!... Uma avenida muito larga com arranha-céus dos dois lados!» exclamei, excitado. «Não, não faço a mínima ideia.»
Voltou a surpreender-me.
«Não saímos mais que cem metros daqui. Está a ver a avenida de Roma do futuro. Entretanto Portugal já perdeu há muito a sua identidade como nação.»
«Basta! Não quero ouvir mais porque tudo o que me está a dizer não é real! Não estou a reconhecer a minha avenida e isso choca-me. Não pertenço aqui. Quero voltar e já!»
Aquilo era um ultimato manhoso. Sem pernas para andar.
«Então o Mário acha que não morreu?»
«Se morri? Não sei. Talvez não. Está a mostrar-me como será o futuro.»
«Mas estamos no futuro!»
«Dê-me uma certeza.»
«Certo. Mas pode estar a contar a sua última história porque, penso, o sítio para onde o levei não tem regresso.»
«Só depende de si.» Pedi. «Estou nas suas mãos.»
«Mário, eu não sou essa tal Brenda que há pouco tinha no pensamento. É você que está a imaginar que sou a jovem que cantava a canção "I'm sorry" e que ouvia vezes sem conta como sinal de arrependimento pelo mal que fez ao trair o grande amor da sua vida. Não foi fiel ao amor que juraram ser eterno. Mais. O seu cinismo esteve bem presente quando deixou que ela e a outra se encontrassem ao mesmo tempo consigo naquela noite em que tentou trocar-lhes as voltas marcando um horário para cada uma. Saiu-lhe o tiro pela culatra, pois elas chegaram quase ao mesmo tempo à casa dos seus tios. Acho que essa canção é mais que uma fatalidade. Traduz o seu desespero e a falta de coragem para remediar o erro cometido. Pagou e vem pagando uma fatura cara, Mário. Ano após ano. E não sei até quando.»
Até quando?
«Disse que não era a Brenda. Então quem é?»
«Ninguém. Sou uma invenção sua. É você que está a contar esta história. Invente um nome para ela.»
Parecia que era tudo irreal.
Por que motivo não podia regressar ao presente?
«Mas digo-lhe uma coisa, Mário. Se ainda existe um resto de felicidade para si, só pode ser aqui, ao virar da esquina, no futuro. Adivinhe quem vai encontrar?»
«Não quero encontrar ninguém. Já encontrei! E mais: se sou o dono da história, então vou voltar para trás.»
A mulher guardou um silêncio prolongado. Só então decidiu.
«Cumpra-se o destino que não lhe estava destinado. Há sempre um tempo para amar e encontrou-o no seu limitado tempo atual. I'm sorry. Você perdeu mais uma vez a oportunidade de apanhar uma maré cheia. Não entendo porquê, mas continua a ser o campeão das marés vazias. E, sabe uma coisa?, não lhe garanto um regresso seguro ao presente. Se qualquer pormenor falhar, ponha as barbas de molho porque esta poderá ser a sua última história.»
«É assim tão perigoso o regresso?»
«Uma última vez: quer aproveitar a oportunidade de apagar da sua vida a maré vazia de ontem?»
Não me lembrava de nada. Aceitar era como dar um tiro no escuro. Ao virar da esquina ia encontrar alguém. Tão simples como isso.
Mas quem?
«Não sei.»
«Decida-se. Já tem pouco tempo. Definitivamente?»
«Sim. Definitivamente. Oh!»
Estava junto ao homem que tentava reanimar um corpo de mulher já cadáver.
«Não há mais nada a fazer.» Lamentou-se o socorrista.
«Pois não. O senhor fez os possíveis e os impossíveis para a salvar.»
«Tem lágrimas no rosto, amigo. Impressionou-o a morte ou conhecia-a?»
Não respondi. O outro insistiu.
«Esteve sempre aqui, ao seu lado.»
«Estive?»
O meu olhar fixou-se num objeto caído no alcatrão ao lado do corpo da mulher.
«Um CD...»
«Sim.» Afirmou o socorrista. «Soltou-se da mão dela no momento em que foi atropelada. Só por milagre ficou intacto.»
Baixei-me para agarrar o CD.
«Brenda Lee...»
«Conhece?»
«É meu tempo em que era jovem.»
«E também do meu. A sua canção mais conhecida é "I'm sorry".» Disse o socorrista. «Recorda-se?»
Acenei afirmativamente com a cabeça.
«É uma mensagem para os que cometem erros de amor.»
«Por acaso não. Importa-se que fique com o CD?»
«Disse que não era a Brenda. Então quem é?»
«Ninguém. Sou uma invenção sua. É você que está a contar esta história. Invente um nome para ela.»
Parecia que era tudo irreal.
Por que motivo não podia regressar ao presente?
«Mas digo-lhe uma coisa, Mário. Se ainda existe um resto de felicidade para si, só pode ser aqui, ao virar da esquina, no futuro. Adivinhe quem vai encontrar?»
«Não quero encontrar ninguém. Já encontrei! E mais: se sou o dono da história, então vou voltar para trás.»
A mulher guardou um silêncio prolongado. Só então decidiu.
«Cumpra-se o destino que não lhe estava destinado. Há sempre um tempo para amar e encontrou-o no seu limitado tempo atual. I'm sorry. Você perdeu mais uma vez a oportunidade de apanhar uma maré cheia. Não entendo porquê, mas continua a ser o campeão das marés vazias. E, sabe uma coisa?, não lhe garanto um regresso seguro ao presente. Se qualquer pormenor falhar, ponha as barbas de molho porque esta poderá ser a sua última história.»
«É assim tão perigoso o regresso?»
«Uma última vez: quer aproveitar a oportunidade de apagar da sua vida a maré vazia de ontem?»
Não me lembrava de nada. Aceitar era como dar um tiro no escuro. Ao virar da esquina ia encontrar alguém. Tão simples como isso.
Mas quem?
«Não sei.»
«Decida-se. Já tem pouco tempo. Definitivamente?»
«Sim. Definitivamente. Oh!»
Estava junto ao homem que tentava reanimar um corpo de mulher já cadáver.
«Não há mais nada a fazer.» Lamentou-se o socorrista.
«Pois não. O senhor fez os possíveis e os impossíveis para a salvar.»
«Tem lágrimas no rosto, amigo. Impressionou-o a morte ou conhecia-a?»
Não respondi. O outro insistiu.
«Esteve sempre aqui, ao seu lado.»
«Estive?»
O meu olhar fixou-se num objeto caído no alcatrão ao lado do corpo da mulher.
«Um CD...»
«Sim.» Afirmou o socorrista. «Soltou-se da mão dela no momento em que foi atropelada. Só por milagre ficou intacto.»
Baixei-me para agarrar o CD.
«Brenda Lee...»
«Conhece?»
«É meu tempo em que era jovem.»
«E também do meu. A sua canção mais conhecida é "I'm sorry".» Disse o socorrista. «Recorda-se?»
Acenei afirmativamente com a cabeça.
«É uma mensagem para os que cometem erros de amor.»
«Por acaso não. Importa-se que fique com o CD?»
Continuava sentado na esplanada da Mexicana e tinha na minha frente duas chávenas de café, uma delas, não a que estava junto a mim, meio cheia. Não se tratava de uma bica curta, mas sim de café que ficara por beber. E adivinhava o motivo. Um café mal tirado, ou então alguém que saíra apressado por um motivo qualquer. Quanto ao outro... bom, até podiam ter sido duas mulheres.
«Vamos, Ricardo?»
Era comigo?
A mulher estava de mãos na ilharga e parecia impaciente. Alguma coisa não estava bem com ela e mais alguém.
Era comigo?
A mulher estava de mãos na ilharga e parecia impaciente. Alguma coisa não estava bem com ela e mais alguém.
«Vens ou não vens?»
«Desculpe?»
Antes permanecesse calado por mais uns segundos. Afinal ele falava para um indivíduo que estava por trás de mim.
«Às vezes parece que és estúpido. Não vês que é tarde?»
«Que se lixe.»
«Ricardo, porra! Sabes o que tens a fazer.»
«Está bem.»
Fiquei a vê-los afastarem-se para os lados da Alameda e depois esqueci. O empregado estava na minha frente.
«Uma bica e um pastel de nata. Não se esqueça de trazer a canela.»
«Que se passa contigo, Ricardo?»
Na verdade também se passava comigo qualquer coisa. Com o outro não sabia o que era. Comigo também não. Parecia que estava no olho de um furacão. Tinha que dar tempo ao tempo. Deixar seguir o fio do tempo para ver se chegava a alguma conclusão.
«Deixei aqui o meu maço de cigarros...»
Era a mulher das mãos à ilharga.
Sorri.
«Que eu saiba...»
«O senhor não sabe nada. E é cego.»
Pegou no maço de cigarros, olhou-me de esguelha e foi à sua vida. O estranho de tudo é que não tinha visto na mesa o maço de cigarros e ela sim. Confirmação que as coisas não iam lá muito bem comigo.
«Não vi o maço de cigarros. Devia estar num universo paralelo e voltei.»
«Desculpe?»
Antes permanecesse calado por mais uns segundos. Afinal ele falava para um indivíduo que estava por trás de mim.
«Às vezes parece que és estúpido. Não vês que é tarde?»
«Que se lixe.»
«Ricardo, porra! Sabes o que tens a fazer.»
«Está bem.»
Fiquei a vê-los afastarem-se para os lados da Alameda e depois esqueci. O empregado estava na minha frente.
«Uma bica e um pastel de nata. Não se esqueça de trazer a canela.»
«Que se passa contigo, Ricardo?»
Na verdade também se passava comigo qualquer coisa. Com o outro não sabia o que era. Comigo também não. Parecia que estava no olho de um furacão. Tinha que dar tempo ao tempo. Deixar seguir o fio do tempo para ver se chegava a alguma conclusão.
«Deixei aqui o meu maço de cigarros...»
Era a mulher das mãos à ilharga.
Sorri.
«Que eu saiba...»
«O senhor não sabe nada. E é cego.»
Pegou no maço de cigarros, olhou-me de esguelha e foi à sua vida. O estranho de tudo é que não tinha visto na mesa o maço de cigarros e ela sim. Confirmação que as coisas não iam lá muito bem comigo.
«Não vi o maço de cigarros. Devia estar num universo paralelo e voltei.»
Por vezes havia sobreposições estranhas.
«Você anda na lua. Vá-se curar!»
E afastou-se. Oxalá fosse de vez. Mas não seria assim. Sem saber porquê, levantei-me e e resolvi seguir a mulher que já se juntara ao companheiro.
«Vens ou não vens?»
Não sabia porque estava a seguir aquele casal. O empregado de mesa é que não ia gostar quando chegasse com o café e o pastel de nata e deparasse com o homem invisível. E também a canela. Se é que se tinha lembrado.
Não era habitual fazer o que estava a fazer. Seguir dois desconhecidos e, ao mesmo tempo, imaginar como seria a sua vida. Mas tinha que ter cuidado. Principalmente não me esquecer de manter uma distância razoável, imitando os detetives particulares. Até porque o tal Ricardo tinha um porte um atlético que não trazia bom augúrio. Quanto à mulher era morena, baixa, dengosa e fazia-me lembrar a Maria. Mas ela não nada tinha a ver com as regateiras da praça da Figueira. Era doce como um torrão de açúcar e fazia-me tirar do sério.
«Deixa a porra do escritório para mais logo. Agora temos que fazer uma coisa...»
Então havia um escritório. E desta vez era para mim que ela falava. Não sabia como aconteceu e porquê. Em vez do tal Ricardo.
Decidi dar corda ao novo acontecimento e perguntar:
«Que coisa?»
«Sabes muito bem que vais ter que falar com a Inês! Isto não pode continuar assim. Não passa de hoje. Tenho os nervos em franja, merda.»
«Inês...»
«Estás parvo ou quê?»
Fiquei confuso.
«Vocês têm que resolver a situação de uma vez por todas.»
Tentei entender o que estava a passar-se. Aquela interlocutora, que afinal não se chamava Inês, tinha olhado para a minha pessoa de uma forma que ainda mais lançou a confusão. Talvez andássemos a fazer um ninho atrás da orelha e a Inês tivesse uma desconfiança quase a atirar para a certeza.
Nada tinha a perder. Arrisquei e apertei-lhe a mão. Bingo! Correspondeu. Mas a expressão do seu rosto disse-me que se passava qualquer coisa estranha.
«Ricardo...»
Agora sabia que estávamos a atraiçoar a tal Inês que devia ser minha companheira ou assim. Quanto à mulher que tinha na minha frente e me lançara um olhar triste devia ser minha amante e talvez amiga da outra. Um caso clássico. Amiga que trai a amiga. Mas eu não era o Ricardo!
Lançou-me outro sorriso. Este confirmando que existia uma cumplicidade forte entre nós. Quanto ao resto, logo se via. A espuma do tempo talvez trouxesse a resposta se esta se desvanecesse.
Deixei-me ir a seu lado. De soslaio, olhei para os seus peitos cheios. Ato que não passou despercebido à minha suposta companheira que estava a atraiçoar a amiga.
«Nunca viste? Hoje podes tirar o cavalo da chuva. Ficas de castigo.»
«Então não vamos agora a tua casa?» arrisquei.
«Claro que vamos.»
«E?»
«Estava a brincar, amor.»
«E a outra?»
«Não a trates assim.»
«Você anda na lua. Vá-se curar!»
E afastou-se. Oxalá fosse de vez. Mas não seria assim. Sem saber porquê, levantei-me e e resolvi seguir a mulher que já se juntara ao companheiro.
«Vens ou não vens?»
Não sabia porque estava a seguir aquele casal. O empregado de mesa é que não ia gostar quando chegasse com o café e o pastel de nata e deparasse com o homem invisível. E também a canela. Se é que se tinha lembrado.
Não era habitual fazer o que estava a fazer. Seguir dois desconhecidos e, ao mesmo tempo, imaginar como seria a sua vida. Mas tinha que ter cuidado. Principalmente não me esquecer de manter uma distância razoável, imitando os detetives particulares. Até porque o tal Ricardo tinha um porte um atlético que não trazia bom augúrio. Quanto à mulher era morena, baixa, dengosa e fazia-me lembrar a Maria. Mas ela não nada tinha a ver com as regateiras da praça da Figueira. Era doce como um torrão de açúcar e fazia-me tirar do sério.
«Deixa a porra do escritório para mais logo. Agora temos que fazer uma coisa...»
Então havia um escritório. E desta vez era para mim que ela falava. Não sabia como aconteceu e porquê. Em vez do tal Ricardo.
Decidi dar corda ao novo acontecimento e perguntar:
«Que coisa?»
«Sabes muito bem que vais ter que falar com a Inês! Isto não pode continuar assim. Não passa de hoje. Tenho os nervos em franja, merda.»
«Inês...»
«Estás parvo ou quê?»
Fiquei confuso.
«Vocês têm que resolver a situação de uma vez por todas.»
Tentei entender o que estava a passar-se. Aquela interlocutora, que afinal não se chamava Inês, tinha olhado para a minha pessoa de uma forma que ainda mais lançou a confusão. Talvez andássemos a fazer um ninho atrás da orelha e a Inês tivesse uma desconfiança quase a atirar para a certeza.
Nada tinha a perder. Arrisquei e apertei-lhe a mão. Bingo! Correspondeu. Mas a expressão do seu rosto disse-me que se passava qualquer coisa estranha.
«Ricardo...»
Agora sabia que estávamos a atraiçoar a tal Inês que devia ser minha companheira ou assim. Quanto à mulher que tinha na minha frente e me lançara um olhar triste devia ser minha amante e talvez amiga da outra. Um caso clássico. Amiga que trai a amiga. Mas eu não era o Ricardo!
Lançou-me outro sorriso. Este confirmando que existia uma cumplicidade forte entre nós. Quanto ao resto, logo se via. A espuma do tempo talvez trouxesse a resposta se esta se desvanecesse.
Deixei-me ir a seu lado. De soslaio, olhei para os seus peitos cheios. Ato que não passou despercebido à minha suposta companheira que estava a atraiçoar a amiga.
«Nunca viste? Hoje podes tirar o cavalo da chuva. Ficas de castigo.»
«Então não vamos agora a tua casa?» arrisquei.
«Claro que vamos.»
«E?»
«Estava a brincar, amor.»
«E a outra?»
«Não a trates assim.»
É tua amiga mas estás a traí-la.
«Está bem.»
«De uma vez por todas, tens que falar com a Inês.»
Achei-a ainda mais atraente do que quando a vi pela primeira vez na esplanada. Um pequeno dado adquirido.
«E essa de tirar o cavalo da chuva…»
Limitou-se a sorrir e fiquei na dúvida.
«Não te esqueças que amanhã tenho consulta de ginecologia.»
Estaria grávida? Tudo podia acontecer.
«Ah… é verdade.»
«É verdade, o quê? Por acaso não te disse que vais fazer uma análise?»
Então ela queria saber se eu era o pai?
Não me desmanchei. Mas não gostava da brincadeira. Mesmo nada. Estava muito bem assim. Não queria assumir compromissos.
A caminhada continuou, agora em silêncio. De surpreso pelo que se estava a passar, passei a curioso. Cada segundo na presença daquela mulher que não conhecia de parte alguma, começava a ser um enigma agradável. De momento queria saber para onde íamos, se é que não a estava a acompanhar até casa. Coisa que ia descobrir em breve.
Parou junto a uma porta de um edifício amarelo e virou-se para mim. Era bonita. Finalmente o veredicto. Tinha olhos melosos, cabelo escuro apanhado atrás num pequeno rabo de cavalo que começava quase no alto da nuca.
«Deixa-te de apreciações e abre a merda da porta. Não gosto nada desse teu ar de olheiro!»
«Desculpa.»
Deixei-me ficar, tentando raciocinar. Tudo levava a crer que tinha uma relação talvez de fogo com uma desconhecida.
«Para quê tanta hesitação?»
Então sempre era o seu amante. Mas havia outra coisa a decifrar. Parecia-me que ela estava à espera que tomasse um decisão. Que decisão? Ah! Procurei nos bolsos. Não sabia como entrar naquela casa.
«Sabes o segredo?»
«Não me digas que te esqueceste!»
«Pois foi.»
Nunca soubera o segredo. Era lógico, pensei.
«Deixa para lá. Afinal é só a segunda vez que cá vens.»
Respirei fundo. Relação recente. Outra descoberta. Mas porque tinha que fazer análises?Quanto mais calado ficasse, melhor.
«Fixa bem. Um três dois cinco. É fácil. Vá, experimenta, parolo.»
Agora chamava-me parolo.
Abacadraba! E a porta da rua abriu-se. Deixei-me guiar. Aliás, não podia ser de outra forma.
Mal entrámos em casa fui surpreendido por um abraço de duas patas grossas que quase me deitaram ao chão. E que cabeçorra tinha aquele animal de pelo castanho escuro!
«Quieto, Guilherme. Não vês que é o Ricardo? Ele é amigo.»
Pois era. Amigo que traía outro. E o Rotteweiler não estava muito convencido e agora rosnava para mim, ameaçador. Guilherme. Um mau gosto notório. Era nome de pessoa dado a um cão.
«Chama-lhe pelo nome e faz-lhe uma festa. Lembras-te como foi ontem?»
Então houve um ontem. E quantos "ontens" para trás, mesmo fora da sua casa?
«Se me lembro...» Menti.
«Vês? Ele é manso. Deixa que te lamba a cara. É um sinal de cumplicidade. O Guilherme não faz mal a uma mosca. Dá cá a mãozinha, Guilherme. Isso, amigo.»
Afinal, aquela fera era uma doçura de animal.
«Só não pode ver-nos abraçados.»
Dei conta que a expressão do seu rosto transformou-se como que por encanto.
«Ah não?»
«Querias agora, amor? Lembras-te de ontem?»
«Pois lembro-me» entrei no jogo. «Vai quanto antes fechar essa fera noutro quarto ou assim, que não estou nada descansado. Depois podemos então...»
«Não é isso que quero dizer. Foi melhor do que na tua casa.»
Mais um dado. A relação era mais antiga. E eu tive alguma amnésia repentina. Foi isso.»
«Há quanto tempo estamos juntos?»
«Juntos! Parece impossível! Que se passa contigo?» perguntou, ao mesmo tempo que encaminhava a fera para a cozinha.
Respirei fundo, mais aliviado. Mas não compreendi a sua resposta irritada.
«Logo se vê. Estou ansioso para vê-la agarrar-se a mim. Deve ser cá uma serpente de mulher!» pensei.
Aproveitei a sua ausência momentânea para chegar à varanda. Reparei que estava voltada para poente. Era ampla. Dava para colocar a minha coleção de catos. O pormenor dos ladrilhos do piso, alternados a preto e branco, chamou-me a atenção e não consegui evitar coçar a cabeça. Curiosamente constatei que havia uma espreguiçadeira e um chapéu-de-sol na varanda.
«Não estou a gostar nada disto. Bom, vamos lá então descobrir o que vai acontecer lá dentro. A coisa promete. Que sorte a tua, Mário!»
A fera já estava na jaula. Agora tinha que enfrentar a minha suposta companheira. Digamos que era uma missão agradável.
«Estou a caminho, querida.»
Pensava eu. No interior encontrei algo que foi talvez a maior surpresa da minha vida. Um apartamento despido de móveis.
«A lareira! Não quero acreditar...»
Tudo não tinha passado de um sonho. Primeiro, a esplanada da Mexicana. Depois, ela e o Ricardo. E finalmente o que aconteceu a seguir ao Ricardo que passou a ser eu.
Afinal estava fisicamente no apartamento em que imaginava ter estado. Provavelmente a conversa com a Lina nunca tinha existido neste dia. Só que algo marcava toda a diferença. O apartamento era real e desconhecia como tinha entrado nele. Porque sair foi fácil, bem como encontrar-me no passeio.
«Que pena tudo isto não ter passado de um sonho!» pensei
Encolhi os ombros e então lembrei-me da aula. Encaminhei-me para norte. Precisava de alargar o passo porque o tempo que demorava a chegar à escola não permitia veleidades. Pontualidade sempre foi o meu forte.
«Mas que se passa!»
Aquilo não era a avenida de Roma. Nem sabia onde estava, pelo que parei de imediato. A admiração foi tal que se tornou impossível evitar o choque com uma mulher. Não. Não era amiga da Inês.
«Perdão.» Disse ela.
«Eu é que peço desculpa. Mas... não nos conhecemos já?»
Um velho truque que às vezes pegava.
«Que eu me lembre...» Sorriu.
Depois, passou por mim e parou logo a seguir, em frente à porta por onde eu e a minha suposta amante tínhamos entrado.
«Será que…?»
Vi-a abrir a mala de mão e procurar algo que estava no seu interior. Uma daquelas malas de marca, maleáveis, que as senhoras usavam e que parecia ter um fundo suficiente para esconder o que uma mulher procurava e nunca descobria.
«Por acaso sei o código de entrada. É um três dois cinco.»
«Qual código?» perguntou, com voz irónica.
A porta era antiga. Tinha um batente metálico. E mais nada. Nada de teclado com números.
Finalmente descobriu a chave. Estarrecido, fiquei a vê-la rodar a chave.
Afinal onde estava?
A avenida de Roma não passava agora de uma rua estreita de um só sentido onde os carros que passavam nada tinham a ver com os do meu tempo. Decididamente voltei aos anos setenta. Nessa época tinha comprado a prestações um Datsun 1200 de cor vermelha, e preta na mala e também no capô. Por acaso não gostei das cores, mas não tive outro remédio senão ficar com o carro porque na altura havia falta de carros. Tentaram animar-me, afirmando que era um carro destinado a rallys. Não me convenci, mas na verdade tinha um arranque notável para a cilindrada.
Foi o meu primeiro carro e deixou-me boas recordações. Até na própria troca, quando começou a dar problemas de chapa e aquecimento. Foi valorizado em duzentos e cinquenta contos e tinha-me custado pouco mais de setenta.
Não podia continuar sentado num dos dois degraus da porta por onde tinha entrado a mulher com quem chocara no passeio. Um estranho numa terra estranha devia ir em frente em busca de informações. Ou então acordar de um sonho que me estava a tirar toda a margem de manobra.
«Ainda está aí?»
Estava tão absorto nos meus pensamentos quem nem dera pela mulher a abrir a porta.
«Desculpe. Estou a interromper a passagem.»
«Não faz mal.»
«Peço que não ria da pergunta que vou fazer.»
«Então, diga.»
Tinha um sorriso simpático. Nada a ver com o tom irónico com que me brindara por causa do suposto código da porta.
«Sabe onde fica a avenida de Roma?»
«Como assim?»
Mau começo. Reformulei a pergunta.
«Estou longe da Alameda?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Com essas perguntas já vi que não é de cá ou então está a fazer-se tolo.»
«Desculpe. Acho que estou perdido. Moro na Estados Unidos. Saí de casa depois do almoço e dirigi-me para a esplanada da Mexicana. Foi aí que tudo se complicou.»
Resolvi omitir as minhas manias de sonhar com casas que nunca vira e também o encontro com a Lina. Depois, havia o caso da Inês e da minha amante cujo nome desconhecia. E todo o resto.
«Bom. Vamos por partes. Sofreu algum acidente de viação ou assim?»
«Que eu saiba, não. Porquê?»
«Há a hipótese de estar amnésico.»
«Conforme já lhe disse, saí de casa logo a seguir ao almoço. Antes, conversei com o meu gato. E...»
«Conversou com o seu gato?»
«Sim. Disse-lhe para se portar bem. Quando saio, costuma arranhar as carpetes e essas coisas todas que fazem os gatos.»
«Ah sim.»
«Desculpe, ainda não me apresentei. Chamo-me Mário (2).»
«Eu sou a Regina. Tenho um cão.»
«Por acaso ele não se chama Guilherme?»
Senti que ela hesitava. Dei um tiro na mouche?
«Guilherme é nome de pessoa.»
«Pois é.»
«Micas. É uma cadela.»
Sorri.
«Não acredita?»
«Conheci na net uma pessoa que se chamava Micas.»
«O que é isso?»
«Micas pode ser, por exemplo, o diminuitivo de Miquelina.»
«Não é isso, Mário.»
Soou-me bem ela tratar-me pelo meu nome.
«Então? A "net"...?»
Coisa inesperada. De outro planeta. De outro mundo. A sua expressão de dúvida deixou-me incrédulo. Já lera tretas sobre os universos paralelos onde as pessoas tinham destinos diferentes. Mas vendo bem...
«O que é isso de "net"?»
«Não conhece?»
«Está bem.»
«De uma vez por todas, tens que falar com a Inês.»
Achei-a ainda mais atraente do que quando a vi pela primeira vez na esplanada. Um pequeno dado adquirido.
«E essa de tirar o cavalo da chuva…»
Limitou-se a sorrir e fiquei na dúvida.
«Não te esqueças que amanhã tenho consulta de ginecologia.»
Estaria grávida? Tudo podia acontecer.
«Ah… é verdade.»
«É verdade, o quê? Por acaso não te disse que vais fazer uma análise?»
Então ela queria saber se eu era o pai?
Não me desmanchei. Mas não gostava da brincadeira. Mesmo nada. Estava muito bem assim. Não queria assumir compromissos.
A caminhada continuou, agora em silêncio. De surpreso pelo que se estava a passar, passei a curioso. Cada segundo na presença daquela mulher que não conhecia de parte alguma, começava a ser um enigma agradável. De momento queria saber para onde íamos, se é que não a estava a acompanhar até casa. Coisa que ia descobrir em breve.
Parou junto a uma porta de um edifício amarelo e virou-se para mim. Era bonita. Finalmente o veredicto. Tinha olhos melosos, cabelo escuro apanhado atrás num pequeno rabo de cavalo que começava quase no alto da nuca.
«Deixa-te de apreciações e abre a merda da porta. Não gosto nada desse teu ar de olheiro!»
«Desculpa.»
Deixei-me ficar, tentando raciocinar. Tudo levava a crer que tinha uma relação talvez de fogo com uma desconhecida.
«Para quê tanta hesitação?»
Então sempre era o seu amante. Mas havia outra coisa a decifrar. Parecia-me que ela estava à espera que tomasse um decisão. Que decisão? Ah! Procurei nos bolsos. Não sabia como entrar naquela casa.
«Sabes o segredo?»
«Não me digas que te esqueceste!»
«Pois foi.»
Nunca soubera o segredo. Era lógico, pensei.
«Deixa para lá. Afinal é só a segunda vez que cá vens.»
Respirei fundo. Relação recente. Outra descoberta. Mas porque tinha que fazer análises?Quanto mais calado ficasse, melhor.
«Fixa bem. Um três dois cinco. É fácil. Vá, experimenta, parolo.»
Agora chamava-me parolo.
Abacadraba! E a porta da rua abriu-se. Deixei-me guiar. Aliás, não podia ser de outra forma.
Mal entrámos em casa fui surpreendido por um abraço de duas patas grossas que quase me deitaram ao chão. E que cabeçorra tinha aquele animal de pelo castanho escuro!
«Quieto, Guilherme. Não vês que é o Ricardo? Ele é amigo.»
Pois era. Amigo que traía outro. E o Rotteweiler não estava muito convencido e agora rosnava para mim, ameaçador. Guilherme. Um mau gosto notório. Era nome de pessoa dado a um cão.
«Chama-lhe pelo nome e faz-lhe uma festa. Lembras-te como foi ontem?»
Então houve um ontem. E quantos "ontens" para trás, mesmo fora da sua casa?
«Se me lembro...» Menti.
«Vês? Ele é manso. Deixa que te lamba a cara. É um sinal de cumplicidade. O Guilherme não faz mal a uma mosca. Dá cá a mãozinha, Guilherme. Isso, amigo.»
Afinal, aquela fera era uma doçura de animal.
«Só não pode ver-nos abraçados.»
Dei conta que a expressão do seu rosto transformou-se como que por encanto.
«Ah não?»
«Querias agora, amor? Lembras-te de ontem?»
«Pois lembro-me» entrei no jogo. «Vai quanto antes fechar essa fera noutro quarto ou assim, que não estou nada descansado. Depois podemos então...»
«Não é isso que quero dizer. Foi melhor do que na tua casa.»
Mais um dado. A relação era mais antiga. E eu tive alguma amnésia repentina. Foi isso.»
«Há quanto tempo estamos juntos?»
«Juntos! Parece impossível! Que se passa contigo?» perguntou, ao mesmo tempo que encaminhava a fera para a cozinha.
Respirei fundo, mais aliviado. Mas não compreendi a sua resposta irritada.
«Logo se vê. Estou ansioso para vê-la agarrar-se a mim. Deve ser cá uma serpente de mulher!» pensei.
Aproveitei a sua ausência momentânea para chegar à varanda. Reparei que estava voltada para poente. Era ampla. Dava para colocar a minha coleção de catos. O pormenor dos ladrilhos do piso, alternados a preto e branco, chamou-me a atenção e não consegui evitar coçar a cabeça. Curiosamente constatei que havia uma espreguiçadeira e um chapéu-de-sol na varanda.
«Não estou a gostar nada disto. Bom, vamos lá então descobrir o que vai acontecer lá dentro. A coisa promete. Que sorte a tua, Mário!»
A fera já estava na jaula. Agora tinha que enfrentar a minha suposta companheira. Digamos que era uma missão agradável.
«Estou a caminho, querida.»
Pensava eu. No interior encontrei algo que foi talvez a maior surpresa da minha vida. Um apartamento despido de móveis.
«A lareira! Não quero acreditar...»
Tudo não tinha passado de um sonho. Primeiro, a esplanada da Mexicana. Depois, ela e o Ricardo. E finalmente o que aconteceu a seguir ao Ricardo que passou a ser eu.
Afinal estava fisicamente no apartamento em que imaginava ter estado. Provavelmente a conversa com a Lina nunca tinha existido neste dia. Só que algo marcava toda a diferença. O apartamento era real e desconhecia como tinha entrado nele. Porque sair foi fácil, bem como encontrar-me no passeio.
«Que pena tudo isto não ter passado de um sonho!» pensei
Encolhi os ombros e então lembrei-me da aula. Encaminhei-me para norte. Precisava de alargar o passo porque o tempo que demorava a chegar à escola não permitia veleidades. Pontualidade sempre foi o meu forte.
«Mas que se passa!»
Aquilo não era a avenida de Roma. Nem sabia onde estava, pelo que parei de imediato. A admiração foi tal que se tornou impossível evitar o choque com uma mulher. Não. Não era amiga da Inês.
«Perdão.» Disse ela.
«Eu é que peço desculpa. Mas... não nos conhecemos já?»
Um velho truque que às vezes pegava.
«Que eu me lembre...» Sorriu.
Depois, passou por mim e parou logo a seguir, em frente à porta por onde eu e a minha suposta amante tínhamos entrado.
«Será que…?»
Vi-a abrir a mala de mão e procurar algo que estava no seu interior. Uma daquelas malas de marca, maleáveis, que as senhoras usavam e que parecia ter um fundo suficiente para esconder o que uma mulher procurava e nunca descobria.
«Por acaso sei o código de entrada. É um três dois cinco.»
«Qual código?» perguntou, com voz irónica.
A porta era antiga. Tinha um batente metálico. E mais nada. Nada de teclado com números.
Finalmente descobriu a chave. Estarrecido, fiquei a vê-la rodar a chave.
Afinal onde estava?
A avenida de Roma não passava agora de uma rua estreita de um só sentido onde os carros que passavam nada tinham a ver com os do meu tempo. Decididamente voltei aos anos setenta. Nessa época tinha comprado a prestações um Datsun 1200 de cor vermelha, e preta na mala e também no capô. Por acaso não gostei das cores, mas não tive outro remédio senão ficar com o carro porque na altura havia falta de carros. Tentaram animar-me, afirmando que era um carro destinado a rallys. Não me convenci, mas na verdade tinha um arranque notável para a cilindrada.
Foi o meu primeiro carro e deixou-me boas recordações. Até na própria troca, quando começou a dar problemas de chapa e aquecimento. Foi valorizado em duzentos e cinquenta contos e tinha-me custado pouco mais de setenta.
Não podia continuar sentado num dos dois degraus da porta por onde tinha entrado a mulher com quem chocara no passeio. Um estranho numa terra estranha devia ir em frente em busca de informações. Ou então acordar de um sonho que me estava a tirar toda a margem de manobra.
«Ainda está aí?»
Estava tão absorto nos meus pensamentos quem nem dera pela mulher a abrir a porta.
«Desculpe. Estou a interromper a passagem.»
«Não faz mal.»
«Peço que não ria da pergunta que vou fazer.»
«Então, diga.»
Tinha um sorriso simpático. Nada a ver com o tom irónico com que me brindara por causa do suposto código da porta.
«Sabe onde fica a avenida de Roma?»
«Como assim?»
Mau começo. Reformulei a pergunta.
«Estou longe da Alameda?»
Acenou negativamente com a cabeça.
«Com essas perguntas já vi que não é de cá ou então está a fazer-se tolo.»
«Desculpe. Acho que estou perdido. Moro na Estados Unidos. Saí de casa depois do almoço e dirigi-me para a esplanada da Mexicana. Foi aí que tudo se complicou.»
Resolvi omitir as minhas manias de sonhar com casas que nunca vira e também o encontro com a Lina. Depois, havia o caso da Inês e da minha amante cujo nome desconhecia. E todo o resto.
«Bom. Vamos por partes. Sofreu algum acidente de viação ou assim?»
«Que eu saiba, não. Porquê?»
«Há a hipótese de estar amnésico.»
«Conforme já lhe disse, saí de casa logo a seguir ao almoço. Antes, conversei com o meu gato. E...»
«Conversou com o seu gato?»
«Sim. Disse-lhe para se portar bem. Quando saio, costuma arranhar as carpetes e essas coisas todas que fazem os gatos.»
«Ah sim.»
«Desculpe, ainda não me apresentei. Chamo-me Mário (2).»
«Eu sou a Regina. Tenho um cão.»
«Por acaso ele não se chama Guilherme?»
Senti que ela hesitava. Dei um tiro na mouche?
«Guilherme é nome de pessoa.»
«Pois é.»
«Micas. É uma cadela.»
Sorri.
«Não acredita?»
«Conheci na net uma pessoa que se chamava Micas.»
«O que é isso?»
«Micas pode ser, por exemplo, o diminuitivo de Miquelina.»
«Não é isso, Mário.»
Soou-me bem ela tratar-me pelo meu nome.
«Então? A "net"...?»
Coisa inesperada. De outro planeta. De outro mundo. A sua expressão de dúvida deixou-me incrédulo. Já lera tretas sobre os universos paralelos onde as pessoas tinham destinos diferentes. Mas vendo bem...
«O que é isso de "net"?»
«Não conhece?»
«Não.»
«Em que ano estamos?» perguntei, abismado.
«Dois mil e vinte e dois. É quinta-feira, dia 5 de maio.»
Levei as mãos à cabeça. Depois havia o caso dos automóveis que tinham todo o ar de serem dos anos setenta. Definitivamente estava num universo paralelo menos evoluído que o meu.
«Dois mil e vinte e dois. É quinta-feira, dia 5 de maio.»
Levei as mãos à cabeça. Depois havia o caso dos automóveis que tinham todo o ar de serem dos anos setenta. Definitivamente estava num universo paralelo menos evoluído que o meu.
«Santo Deus!»
«Sente-se bem?»
«Sente-se bem?»
«Apenas confuso. Muito confuso.»
«Estava a ficar preocupada.»
«Posso convidá-la para tomar um café, Regina?»
«Posso convidá-la para tomar um café, Regina?»


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