(Um conto extraído do meu romance "Manuela". Se quiser ler o romance, clique, atrás.,em Manuela)
Primeiros dias de setembro. Em Portalegre, algures no espaço-tempo de quatro dimensões...
Foi há muito tempo, mas lembro-me, como se fosse ontem, que a manhã estava encoberta e ameaçava chover. Pelo sim, pelo não, fiz-me acompanhar de um chapéu de chuva, além do meu primeiro Justino, inseparável lugar-tenente.
A paragem do autocarro situava-se num largo de terra batida e algo inclinado.
«Que horas tens?»
«Acalma-te que ainda é cedo, Mário. São onze e um quarto. Que ideia é essa que tens de chegar sempre muito antes da hora prevista?»
Tinha carradas de razão.
«Deixa. Foi bom chegar mais cedo. Fiquei a conhecer o terreno que piso e assim posso preparar a minha estratégia.»
«Estratégia, uma ova! É só esperares que chegue a tua querida e depois vocês caem nos braços um do outro. Não precisas de estratégia alguma.»
«Quem me dera que fosse assim tão simples como estás a dizer. E se acontecer algum imponderável?»
«Lá estás tu a complicar as coisas. Verás que dentro de cinco minutos o teu sol interior vai brilhar.»
«Então já não falta muito! Deixa-me confirmar no meu Regines. Tens razão. Mas estou nervoso. Não sei o que vou dizer-lhe.»
«Olha, por exemplo, diz-lhe que o tempo está a fazer caretas. Também podes dizer que ela fica muito gira com o seu vestido branco. Ou então, bla, bla, bla.»
«Claro que ela não vai aparecer de vestido branco. Traz uma saia plissada cinzenta e uma blusa branca. Foi assim que combinámos. Mas com este tempo de chuva, acrescento eu agora, também deve trazer vestido um casaco de malha. A cor, essa não sei.»
«Mas bem gostavas de saber. Era sinal que tinhas visto o seu guarda-vestidos.»
«Que engraçado! Ainda te caem os dentes, grande espertalhão.»
Silêncio absoluto durante dois ou três minutos. Ânsia enorme. Nervoso miudinho. Andava de trás para diante e de diante para trás, sempre seguido pelo meu lugar-tenente que gozava a bom gozar com a situação.
«E se ela não vem?» perguntou.
«Não estejas a agoirar. Claro que a Nelinha vem!»
Finalmente acabou o martírio.
«Chegou o autocarro.» Disse o Justino.
«Como sabes que é aquele?»
«É que ela está a acenar para ti.»
«Não brinques com coisas sérias. Se estivesses no meu lugar...»
Não sabia o que estava para acontecer e a dúvida dava-me uma grande insegurança. Devia apresentar-me, ou perguntar-lhe apenas se tinha feito boa viagem?
Tudo resolvido. Ou melhor. Tudo adiado. Um senhor de idade estava à sua espera. Devia ser um tio ou assim. Senti duas coisas que colidiam uma com a outra. Por um lado, alívio; mas por outro, frustração.
Um reparo negativo. Ela nem sequer olhou para o nosso lado.
Entretanto começou a chuviscar e abri o chapéu. Ainda bem. Assim, o seu parente não dava por mim e podia segui-los à distância.
De novo as perseguições! Já tinha dezassete anos, porra!
A casa dos familiares situava-se junto a um arco, por baixo do qual passava a rua. Vi-os entrar e esperei alguns minutos. Resolvi passar pela casa junto ao arco e afastei o chapéu para espreitar para cima. Acertei em cheio no alvo. Nesse mesmo momento ela assomou a uma das janelas do segundo andar. Foi tudo muito rápido. Não deu para sorrir. Nem sei se me viu, pois meteu-se logo para dentro de casa.
Fatalmente o encontro ia acontecer da parte da tarde.
Um último reparo. As nuvens desapareceram e o sol brilhou no azul do céu.
Voltando ao dia em que a vi pela primeira vez...
A viagem para Portalegre era longa e aborrecida e fazia-se quase toda ela de comboio. O primeiro destino era Lisboa, seguindo pela linha do Oeste até à estação do Rossio. Depois tomávamos um táxi para Santa Apolónia onde tínhamos que esperar quase duas horas para seguir viagem. Uma seca das grandes, mas aproveitávamos o tempo para comer sandes de carne assada e ovos verdes.
Que delícia, os ovos verdes!
Finalmente a última etapa. Longa. Ou parecia longa.
«Vamos, meninos, despachem-se. Subam depressa para o comboio para arranjarem bons lugares.»
«Eu fico à janela, avó.» Gritou o Necas, um primo.
Condescendemos porque era o mais novo de todos. Depois a minha irmã Olinda teimou que não queria ir de costas porque enjoava. Houve um acordo tácito não fosse ela vomitar mesmo, e pior que tudo, para a nossa frente.
Lá nos arrumámos e a avó Maria começou a contar uma das suas muitas histórias cómicas para afastar o fantasma do nervosismo ou a excitação que pairava à nossa volta, e logo todo o mundo acalmou e ficou preso nas palavras mágicas que até tinham o dom de criar imagens animadas.
«Avó, conta aquela história em que uma vez deste partida ao comboio. É muito gira.» Pediu o Justino, irmão do Necas.
«Estava a pensar na outra, a do padre e o sacristão, mas está bem, pode ser. Depois conto esta que é também muito engraçada. Então lá vai a do comboio. E vem mesmo a propósito.»
«Vá, avó, deixe-se de introduções.»
«Não sejas enfrenesiado, Mário» disse o Justino. «Tem calma que a viagem é longa.»
«Um certo dia fiz uma viagem de Portalegre até Lisboa. De comboio, claro...»
«Ó mãe, veja lá como vai contar a outra história aos pequenos. Essa é demasiado picante. Francamente! Nem parece seu. Desista e conte outras. Tem tantas engraçadas!» avisou a tia Albina.
«Está bem, deixa. Ou queres que conte a triste história do sapateiro mouco?»
Pior a emenda que o soneto.
«Ó mãe!»
«Está bem. Eu sei como dar a volta. Mas agora vou contar esta.»
«Entusiasma-se e depois é tarde quando dá conta.»
«Posso continuar?» abespinhou-se com a filha.
«Tal não está a moenga! Nós já somos crescidos e o Necas vai dar uma volta pelo corredor, quando chegar a altura certa. A avó faz só um sinal no momento certo e fica tudo resolvido.»
«Isso não é justo!» queixou-se o Necas.
«Nem parece teu, Mário! A criança pode cair com os solavancos do comboio.»
«Então tapamos os ouvidos ao miúdo.»
«Boa ideia, Mário. És um perfeito idiota.»
«Vê lá se queres levar um carolo.» Disse, a brincar, para o Justino.
O pessoal começou a ficar impaciente.
«Continue, avó!» gritámos, em uníssono.
E assim a longa viagem custava menos a passar. Quando as histórias chegavam ao fim, porque a minha avó adormecia, de cansaço ou saturação, inventavam-se brincadeiras. O pior era quando alguém decidia apanhar ar fresco deitando a cabeça de fora por uma das tradicionais janelas de guilhotina. E esse alguém fui eu, por exemplo. Os meus quinze anos já o permitiam mas os outros logo queriam imitar. Situação complicada. Depois de ouvir ralhar, desistia de repetir a ação, embora refilasse que estava muito calor e isso. E tinha razão. Estava mesmo muito calor. Calor. Sinal de corrida à água. Todos queriam beber ao mesmo tempo e era um desassossego.
Chegava então a altura das cantorias. Não podiam faltar, claro. Eu cantava e o Justino encarregava-se dos ritmos, improvisando logo uma bateria ao utilizar um encosto de braço do assento. O Zeca, que eu considerava a ovelha ronhosa do grupo, queria também entrar no conjunto musical, mas só com a intenção de fazer palhaçada. Claro que foi excluído ao fim de cinco minutos com um carolo bem dado. Eu tinha boa voz e não queria desafinação. Mas agora que passara para o sexto ano, adeus Canto Coral que já não constava do currículo do próximo ano. E com as nossas cantorias o tempo parecia correr mais depressa.
Entroncamento. Nova mudança de comboio. A lentidão era notória e a paisagem tornava-me melancólico, sem que entendesse a razão. Uma planície infindável, semeada principalmente de sobreiros, azinheiros e oliveiras. O trigo já fora colhido e viam-se imensos fardos de palha espalhados pela planície. Não sabia se eram reminiscências da costela alentejana que tinha, se sentia que estava cada vez mais longe do meu torrão natal. O certo é que fiquei triste sem ter motivo à vista.
«Canta mais, Mário. Uma daquelas canções latino-americanas que sabes cantar muito bem.»
«Já não me apetece. Estou chateado.»
«Uma italiana.» Pediu a Olinda.
Entretanto chegámos a Abrantes, onde o comboio esteve parado quase vinte minutos. Em má hora tive a triste ideia de espreitar pela janela para a frente, debruçando-me o mais possível para tentar ver a máquina a vapor causadora de tanta lentidão. Um cisco entrou-me na vista e, quanto mais esfregava, mais comichão tinha na vista. Então lancei uma imprecação que, logicamente, não foi remédio para fazer desaparecer a vermelhidão da vista, inflamada de tanto ser esfregada.
«Quem te mandou espreitar? Quanto mais esfregas, pior é. Nunca te disseram que os olhos só se devem esfregar com os cotovelos?»
«Cala o bico, Zeca, que ainda levas um caldo!» impus-me, agastado.
De facto o Zeca era pessoa não grata. Eu cá tinha as minhas razões, mas não são para aqui chamadas.
Na gare, as mulheres afadigavam-se a tentar vender água fresca em bilhas de barro ornamentadas com pedrinhas brancas. Gabei a paciência sem limites dos artífices que tinham executado aquelas obras-primas.
«Palha de Abrantes! Palha de Abrantes!»
«Palha! Chamam por ti, Zeca...»
Sobressaltou-se. Estava distraído.
«Quem me chama?»
«A palha, meu burro!» continuei a zombar.
«Que palha?»
Risada geral.
Tive uma sensação imediata de água na boca. Comprar! Comprar! Mas pus logo a sugestão de parte. Com pena, diga-se. As vendedoras não sabiam com quem se estavam a meter. Um capitalista do tostão como eu era só se podia dar ao luxo de sonhar. Uma qualidade ou defeito, conforme a perspetiva. Aliás, tinha que gerir muito bem o dinheiro que o meu pai me dera para gastar em extras. Não tinha feito pé-de-meia porque o meu lema era chapa ganha, chapa gasta. Nunca tive jeito para aforrar. A semanada era uma moeda de prata de dez escudos. Dinheiro volátil. Diga-se que, se tivesse poupado algumas moedas de prata e convertido depois em ouro, hoje estaria rico…
Após dez longos minutos de espera o ronceiro do comboio lá partiu e continuaram as cantigas e as brincadeiras. Cheirava cada vez mais ao Alentejo à medida que nos aproximávamos do fim da viagem. Mais umas sandes e o resto dos ovos verdes. A água começou a ser racionada, o que foi uma tragédia porque o calor não dava sinal de abrandar. Entretanto o céu começou a ficar menos claro. Aquela mudança de tonalidade da luz quebrou as últimas resistências e a rapaziada acalmou de vez. Foi bom porque senti uma tranquilidade e sensação de nostalgia só explicável porque tinha uma costela alentejana. Guardei para mim aquele bem-estar que me envolvia e fiquei à espera que acontecesse qualquer coisa de mágico. Mas foi em vão.
Talvez ainda fosse cedo. Mas tinha cá uma destas sensações! Não queria forçar, mas acreditava que qualquer coisa boa estava para acontecer.
A sensação de paz cedo se transformou numa monotonia que quase levou ao sono. Mas as coisas ainda iam aquecer. E não faltava muito.
Noite cerrada. Finalmente a estação de Portalegre.
«Maldição e morte!»
«Que viste, Mário?» perguntou o Justino.
«Olha...»
«Estou a ver, mas não vejo nada.»
«E agora?»
«Pois.»
A verdade nua e crua estava na nossa frente. Só um cego não via. Íamos mudar para uma camioneta muito velha. Num momento vi o filme todo. Não augurava nada de bom.
«Este calhambeque é do tempo da outra senhora. Isto não se admite. Vamos ficar todos pelo caminho! Ou não me chame Mário.» Agoirei.«Quem é a outra senhora?» perguntou ingenuamente o Necas.
Rimos em uníssono e claro que amuou logo.
«Deixa-os rir, Necas, que ainda vai ser pior do que julgam.» Disse, sabiamente, a avó Maria.
Pior em que sentido?
«Toca a correr rapaziada!»
Obedecemos à ordem da nossa avó. Compreendi logo a razão da ordem, ao dar conta que havia gente a mais para uma única chocolateira. Todo o corredor ficou ocupado num instante e senti-me espremido com um limão. O Necas choramingava. A minha avó chamava velho a um velho mais novo que ela, como era costume, ao mesmo tempo que o empurrava com a sua barriga proeminente. Nós ríamos e o Necas continuava a choramingar. Aquilo até tinha graça. Depois, começaram todos a gritar, em fúria, que devia haver outra camioneta, que era uma vergonha para a empresa, que não havia direito, etc e tal, onde estavam incluídas outras expressões mais incisivas que não conto aqui. Uma questão de bom senso.
«É o que há, pessoal. Quem quiser vai a pé. São só dez quilómetros.»
Resmungou o condutor.
Estava farto do barulho e cansado de colocar malas e outras bagagens no tejadilho e de dar voltas e mais voltas com a corda para prender tudo muito bem não fosse alguma mala cair pelo caminho. Até seria giro desde não fosse nenhuma das nossas, claro. Os meus quinze anos, feitos recentemente, davam-me um certo à-vontade para não me preocupar com coisas de somenos importância.
«Então partimos ou não partimos?»
O pessoal começava a ficar impaciente.
«Já disse. Quem não está satisfeito pode ir a pé.»
«São só dez quilómetros.» Disse eu, subindo a voz.
«Quem foi o engraçado?»
«Eu.»
«Eu.»
«E eu.»
Finalmente a camioneta pôs-se em marcha e reparei então que o estado do piso era péssimo, o que não ajudava. Felizmente que estávamos como sardinha em lata e assim ninguém se desequilibrava. Coisa divertida ouvir palavrões de fazer corar. Depois, as crianças choramingavam, as mães ralhavam, os velhos protestavam e o condutor ia pelos cabelos, muito preocupado com a carga excessiva que a camioneta levava, quase parando nas subidas. Nesses momentos o ruído das vozes baixava a zero. A estrada, segundo a minha modesta e talvez fantasiosa opinião, era uma montanha russa que, ainda por cima, serpenteava. Muito pior que a da Feira Popular de Lisboa.
Uma subida mais íngreme e eis que a vetusta camioneta recusou-se a continuar a marcha. Ao mesmo tempo o motor foi-se abaixo.
«Aselha!» gritaram alguns.
O condutor ignorou o insulto, acionou a ignição e nada. Motor calado.
«Bonito serviço!» exclamou.
«Bonito serviço é o que a empresa está a prestar aos viajantes!»
«A culpa é do Murta que só pensa em lucros!»
Alguém opinou que o motor aqueceu de mais. Outro disse que era um furo. Ainda outro que tinha faltado a gasolina.
«Essa rosca anda ou não anda?»
O motor lá pegou.
«Vá, desçam os homens para ver se esta geringonça tem força para arrancar.»
«E depois?» perguntou um inteligente.
Depois iam todos a pé para a cidade.
Depois iam todos a pé para a cidade.
Assobios dos homens e gritos histéricos das mulheres perante a decisão do motorista.
«Espero no cimo da ladeira, não acham?»
Bem me parecia que o motorista estava no gozo.
«Ah!, seu filho de uma magana...»
«Alto lá com o charuto. A minha santa mãe não é para aqui chamada. Agora, sim, tenho a impressão que vão mesmo a pé para a cidade.»
Lá chegámos a casa dos meus tios, sãos e salvos.
Jantámos no quintal. A mesa já estava posta e o jantar pronto a ser servido. Tinha uma fome terrível. Os deliciosos ovos verdes e as sandes de carne assada já lá iam. Naquela idade o muito era sempre pouco.
Lembro-me ainda de um pormenor. A mesa estava bem iluminada com meia dúzia de lâmpadas que pendiam de um fio que circundava uma das três laranjeiras que existiam no quintal.
Não vou falar do jantar. Foi bom, mas o melhor ainda estava para vir.
Nunca mais esqueceria essa noite quente de 9 de setembro...
Acabámos de jantar já depois das nove. A noite estava agradável para fazer a primeira exploração na cidade. Ficou combinado que íamos até ao Rossio. Estilo peregrinação, o que não me agradou. Os meus quinze anos exigiam liberdade. Além do mais não estava para aturar as parvoíces do Zeca. Logo se veria.
Saímos todos ao mesmo tempo, mas resolvi logo apressar o passo, não sem antes combinarmos que às onze, o mais tardar roçando as onze e meia, encontrávamo-nos todos na esplanada do Facha.
«Não te afastes sem saberes onde é o local do encontro.»
«No Facha, tia. Eu depois pergunto onde fica.»
Chegado ao Rossio, parei por momentos para apreciar o enorme plátano, o cartão de visita da cidade. Era na verdade grandioso. Depois, fui subindo pelo campo térreo para onde vi as pessoas encaminharem-se. O célebre Passeio de que muitas vezes o Justino me falou.
«Chama-se Passeio porque as pessoas costumam passear ali.»
Lógico. Claro como a água.
A meio, do lado direito, vi uma esplanada literalmente cheia de clientes que se dessedentavam, defendendo-se do calor da noite, e cavaqueavam animadamente. Observei o conteúdo das mesas e vi pirolitos, cervejas, gasosas, laranjadas. Alguns clientes tomavam café. Observei com mais pormenor e vi ainda vários pratos com bolos e outros com tremoços e amendoins, também chamados alcagoitas. Para mim, o único líquido capaz de matar a sede era a água. Cerveja não bebia ainda nos meus tenros quinze anos. Mas não tardaria a acontecer. Com moderação, claro. Salvo nalguns dias que, por força das circunstâncias, se tornaram excecionais.
Havia também outro plátano no centro da esplanada, de dimensões mais modestas que o primeiro. De dia devia ser um bem precioso para bloquear a passagem dos raios solares que tanto agrediam a pele das pessoas nos dias soalheiros e quentes alentejanos. Nessa altura falava-se pouco do perigo que representava uma exposição prolongada aos raios solares, talvez por pura ignorância, talvez porque não se falava ainda do buraco do ozono.
E um capilé fresquinho?
Por motivos óbvios pensaria nisso nos próximos dias se gerisse bem o capital disponível que, em boa verdade, não era muito. Os tempos de então eram difíceis e o meu pai tinha outras prioridades bem mais prementes.
Relativamente à gestão do dinheiro, aproximavam-se os dias de feira com os tradicionais carrosséis, pistas de carrinhos de choques e de corridas, poço da morte, robertos, tanto do meu agrado, não podendo esquecer as guloseimas como o torrão que quase estoirava com os dentes e também as farturas, bem embebidas em óleo refervido e cobertas de açúcar loiro, que eram de comer e chorar por mais. O pior vinha depois. As malditas dores de barriga, vulgo caganeiras.
Era muita coisa para tão pouco dinheiro, admiti. Quanto ao inevitável poço da morte, gostava muito das exibições dos profissionais das motos desafiando o equilíbrio sobre os cilindros rolantes. Mas arrepiante, arrepiante era tudo o que se passava no interior do poço, rotulado com muito realismo de poço da morte.
Mas que estava a fazer parado em frente à esplanada já que tinha decidido não fazer a mínima despesa?
Continuei Passeio acima, ainda com as imagens de tudo o que vira na esplanada e a antevisão da feira das cebolas que estava para breve, dando conta que a iluminação era ótima e assim podia apreciar bem as pessoas que passeavam para baixo no momento em que subia, especialmente as raparigas. À medida que ia subindo e a cascata ficava mais próxima, o ajuntamento de pessoas crescia, formando pequenas bolsas de obstrução a quem queria deslocar-se, pois conversavam em grupo e não deixavam a mínima margem de manobra. A culpa era da noite que estava morna.
Comecei a ficar farto de impasses e choques e mudei de estratégia. Ia procurar um lugar sentado nos muitos bancos que via, dispostos em espinha. Assim, olhei em volta. Ingenuidade a minha. Não vi um único lugar disponível. Mas vi outra coisa bem mais agradável quando descobri, num dos muitos bancos existentes e ocupados pelas pessoas, um rosto que me hipnotizou logo. Fixei-a e fiquei encantado. Que sensação estranha ao ver aquela jovem vestida de branco!
Mas quem era ela e o que tinha acontecido comigo?
Se eu nunca a tinha visto nesta encarnação, como acreditei naquele momento que era a desejada?
Estranho pressentimento para quem vinha de longe. Não sei explicar melhor. Aconteceu.
Pouco depois levantou-se do banco e esperou pelas outras pessoas que a acompanhavam. O seu olhar alinhou-se com o meu. Sim. A expressão do olhar, muito triste, impressionou-me bastante e a primeira ideia que tive é que ela era infeliz. Depois, parecia mergulhada no passado porque o seu olhar estendia-se para lá do horizonte. O que mais me chocava era o seu ar de circunstância, à espera dos outros e sem sequer descobrir que estava a ser observada. Tinha uns olhos muito tristes.
Só então dei conta que era ainda muito jovem. Admiti que não devia ter mais que treze anos. Disparate o meu quando pensei que aquela jovem parecia mergulhada no passado. Estava bem presente na minha frente. Bem viva. Bem real.
Observei-a com mais detalhe. Era bonita, de rosto alongado, traços finos. Cabelo castanho comprido, apanhado numa única trança.
Hipnotizado por aquele momento único, continuei a minha observação. Assim, olhei para o vestido branco com a bainha um pouco abaixo do joelho. O peito estava ainda em embrião.
Treze anos, Mário? Ganha juízo nessa tua cabeça de alho chocho…
Foi inevitável voltar a fixar-me na expressão do seu olhar.
Tanta tristeza, porquê?
Tinha a certeza que os nossos olhares se cruzaram. Mas foi só por um momento. Não era o bastante para se lembrar de mim se não a voltasse a ver. Ou talvez não. Não foi por acaso que a encontrei e me apaixonei logo por ela.
Paixoneta de verão?
Finalmente as pessoas que a acompanhavam levantaram-se do banco e este foi de imediato tomado de assalto. Também já não me interessava um banco. O meu interesse era outro e não acreditava que se fossem embora. A melodia não podia ser interrompida assim, sem mais nem menos.
E se nunca mais a visse?
Não queria que ficasse na memória a imagem derradeira da expressão dos seus olhos doces e tristes. Queria mais. Para tal era preciso voltar a vê-la.
Passou ao meu lado. Foi a vez de ficar triste porque confesso que não me viu. Bem quis transmitir-lhe a mensagem que tinha em mente:
«Estou aqui, jovem desconhecida, para te oferecer uma rosa. Este encontro não foi um acaso porque nós fomos destinados um para o outro. Acredita que está escrito há muito nas estrelas…»
Andava com o carro à frente dos bois mas não me importava. Durasse o que durasse o tempo a passar, este encontro não acontecera por acaso.
De onde veio aquela premonição?
A sua resposta provável:
«O mundo está cheio de sonhadores.»
Fiquei a vê-la a descer o Passeio em direção ao Rossio. Sempre era verdade que ela se ia embora e a melodia ainda estava por compor.
Acompanhei à distância os seus passos. Sentia-me feliz e nem sequer aconteceu qualquer coisa de especial, a não ser ter visto aqueles olhos tristes e belos. Não importava que ela nem sequer tivesse dado por mim. A paixão nasceu no próprio instante em que a descobri e nesse instante cheguei à conclusão, sem admitir contraditório, que nunca mais deixaria de gostar dela.
Foi muito estranho!
Nem um olhar cúmplice, nem o clássico truque do lenço que podia ter apanhado para poder ouvir a sua voz:
«Obrigada.»
Devia ter uma voz bonita, uma voz corrida e límpida que mais parecia cantar.
«Não tem de quê. Foi um prazer. É de cá? Julgo que não. Mas não se vá já embora. Quero acreditar que não se vai já embora...»
«Porquê?»
«Pela simples razão de que assim não valia a pena tê-la encontrado. Não se perde um grande amor logo no primeiro dia que se encontra.»
«Mas... um grande amor?, assim, tão de repente?»
«Não diga nada. Ou melhor: diga-me só o seu nome que eu faço-lhe um poema.»
Ah!, meus pobres quinze anos que não mais voltaram!
Já mais abaixo, perto da esplanada onde tinha combinado o encontro com os meus familiares, vi-a infletir para a esquerda.
O relógio! Era isso. Dez para as onze. Já não tinha mais tempo para a seguir. Se Deus quisesse, havia mais dias. Deus era meu amigo. Não ia deixá-la partir sem lhe dirigir uma palavra.
Suspirei profundamente e fui ter com os meus primos e com a Olinda. Já me esperavam na esplanada. Também estavam a tia Albina e a avó Maria, afilhada da mãe do infeliz poeta José Duro. A minha avó era uma contadora de histórias sem igual, embora muito repetidas, mas sempre com o mesmo enredo, sem uma falha. E já me esquecia do patife do Zeca, a quem dava frequentemente surras merecidas. Ou talvez exagerasse. Não sei bem. Perdia a cabeça quando o grande sacana me provocava.
Chamei a minha tia de lado e sussurrei:
«Estou apaixonado, tia!»
«Que aconteceu, rapaz?»
E contei-lhe como aconteceu, sempre em voz baixa. Receava que os outros ouvissem.
«Mas nem sequer chegaste à fala com ela!»
«Isso não quer dizer nada, tia. Como posso explicar? Senti uma coisa estranha cá dentro. É como ter uma doença sem estar doente. Entende?»
«Sim, Mário.»
«Nunca estive assim.»
«Pronto, acredito. Mas acalma-te, que isso faz-te mal. Agora vamos para cima. Amanhã ou depois vais dizer-me quem é a gaiata. Talvez o teu tio a conheça, ou alguém da sua família. Ele conhece toda a gente da cidade, acredita.»
«E se ela não é da cidade, tia?»
Foi uma fatalidade tê-la encontrado naquela noite de setembro. Nunca mais esqueceria o dia nove.
«Ó tia, eu só a encontrei há bocadinho e é como se a conhecesse de sempre. É muito bonita. Tem uns olhos castanhos que são um sonho! Mas é uma rapariga muito triste. Que é que lhe fizeram, tia?»
«Estás mesmo apanhado! Já estou a ver que vais ainda hoje escrever no diário tudo o que aconteceu esta noite, depois de veres essa moça.»
«Moça?» indignei-me.
«Sim, moça.»
«Ó tia!»
«O quê?»
«Moça não é uma palavra apropriada para ela. Moça é uma mulher de mau porte. E ela é... é pura!»
«Essa palavra tem um outro significado cá no Alentejo. Quer dizer, simplesmente, rapariga. Não estejas a fazer leituras erradas, Mário.»
«Ah! Mas como é que adivinhou que vou escrever no diário? Depois a tia guarda-mo?»
«Fica descansado.»
«Pode lê-lo. Mas não mostre a ninguém! Muito menos ao cusca do Zeca. É preciso ter muito cuidado com esse manhoso.»
«Não sejas assim com ele, Mário!»
Estavam todos sentados a uma mesa da esplanada, mas nem sequer havia um pirolito visível. Fregueses do cuspo, pensei.
«Estão todos?» perguntou a avó.
«Falta o Justino. Foi mesmo agora à casa de banho.» Disse a Olinda.
«O café já fechou.» Informou o Zeca.
Entretanto apareceu o Justino. Tinha urinado no beco contra a parede, aproveitado a escuridão, boa conselheira para um ato de aflição com aquele.
Assim foi a primeira noite que passei em Portalegre.
Quando chegámos a casa não consegui escrever no diário mais que meia dúzia de linhas, decidindo guardar o resto da inspiração para o dia seguinte. É que o sono era muito e venceu a batalha. O tal João Pestana, de decisões irreversíveis, e de quem falava o meu amigo invisível que se chamava Ernesto. Mas aconteceu noutros dias que o tempo impiedoso já tragou.
Resolvi deixar o diário debaixo do travesseiro para ninguém o roubar. Era tão secreto, tão secreto que só a tia Albina o podia ler. Nem sequer a minha irmã Olinda tinha autorização.
Claro que voltei a pensar na jovem desconhecida antes de adormecer. Já a inversa não era verdadeira, embora o sonho fosse rei e me desse o poder de imaginar que, também já deitada na cama, pensava no desconhecido que ousara olhar para ela de uma maneira tão diferente, tão apaixonada!
«Aquele rapaz que vestia uma camisola azul olhou para mim de uma forma tão intensa que até corei. Mas amanhã, se o vir, vou tentar encará-lo mais frontalmente. Não vejo mal algum em falar-lhe, se ele me dirigir a palavra. É muito simpático! Nunca se sabe. Talvez seja o príncipe encantado que aparece nos meus sonhos e foge quando o encaro de frente.»
Dorme, dorme... que ela também já está a dormir e deixa-te de ilusões que não vai sonhar contigo, pela simples razão de que nem sequer deu pela tua presença hoje à noite, meu grande paspalhão. Toca mas é a dormir que amanhã é outro dia e, se calhar, vais logo esquecer o "grande amor da tua vida".
Quantos outros grandes amores terás, pinga-amor?
Não me venhas com conversas que não me convences. Serás sempre o eterno romântico!
Sonhos cor-de-rosa, Mário.
«Até amanhã, diário!»
Aconteceu no tempo do rapaz da camisola azul e da rapariga do vestido branco. Lembro-me como se fosse ontem, mas não sei quem me enviou ao teu encontro. Se foi o acaso. Se por acaso foi o deus menor. Quem ler estas últimas palavras certamente ficará chocado, mas são verdadeiras. Parecem não fazer sentido, mas eu cá sei as linhas com que me coso.
Mal te conhecia quando nos encontrámos neste jardim onde estou hoje a recordar. Foi muito estranho o que aconteceu. Tudo parou para ouvir o silêncio das nossas vozes e o diálogo ensurdecedor dos pensamentos entrelaçados. O agitar suave das folhas das árvores, embaladas pela brisa morna daquela tarde. O chilrear dos pardais. Os ruídos dos motores dos carros, tão em dissonância com o resto. Tudo chega aos meus ouvidos com uma intensidade e clareza tal que não sei explicar. Parece que está a acontecer de novo. Custa a acreditar, mas até sinto o odor intenso a café, oriundo dos lados da fábrica de torrefação, que existia na altura e que foi desativada. Na altura considerava o odor enjoativo, mas agora chegava a mim como um perfume daqueles que embriagam. Chega às minhas narinas pela força das feromonas que tudo reforçam. Foi neste ambiente de silêncio e alto astral que o nosso amor aconteceu. Naturalmente, como naturalmente acontecem todas as coisas simples e belas.
Lembras-te?, o encontro estava combinado nas cartas que trocámos. Tudo muito certo. Sem uma falha. Tu saías depois do almoço para te encontrares comigo e eu estava nas imediações da casa dos teus familiares. Foi assim que combinámos e assim aconteceu. Esperei um pouco. Meia hora? Talvez sim, talvez não. Mas para quem tinha esperado, pacientemente, mais que um ano, nada significava meia hora.
Vinhas com a tua prima e o namorado. Obstáculo, pensei. Obstáculo que podia ultrapassar sem qualquer problema. Com tempo. Bastavam alguns minutos e não um momento, porque estava invisível, encostado à parede, a ver-te passar. Assim, não me viste quando passaste por mim. De certa maneira até foi bom. Pude olhar-te longamente. Fixar o teu rosto. A expressão triste do olhar. Eras muito bonita. Graciosa no andar. E o teu rosto e pernas bronzeados por um mês de praia intensa, davam-te um outro encanto e frescura. Fiz um exame completo e pus-me a pensar:
Grande obstáculo!
Pretendentes não deviam faltar-te. Ias mandar-me passear. Ou talvez não. Eu também tinha atributos. Se perderas tempo a ler as minhas cartas enviadas e se tinhas sempre respondido a elas, por alguma razão fora. Parecia estar a viver os primeiros tempos em que te conheci, quando te seguia a uma distância prudente, como mandava na altura a força da minha timidez.
E que podia fazer?
Mais nada senão continuar a seguir-te, descendo por ruas muito estreitas e empedradas em paralelepípedos de granito já um tanto gastos. O Rossio, local importante porque foi aí que te vi pela primeira vez, não estava nos nossos planos. Um desvio para a direita e uma pequena subida. À esquerda, a velha fábrica de lanifícios. À direita, o jardim da Corredoura. Era o fim da caminhada.
Sentaram-se num banco. Fiquei, a cerca de vinte metros de distância, indeciso, a ganhar coragem para avançar. Felizmente olhaste para o meu lado e viste-me logo. Então levantaste-te e sorriste. E eu sorri também, ainda um pouco embaraçado. Certamente ia trocar os pés pelas mãos, tal o nervosismo que se apossara de mim.
O tempo parou. Ficámos especados, a olhar um para o outro.
«Está a avaliar-me.» Pensei.
Impunha-se então fazer alguma coisa. Por exemplo, avançar, dar-te as boas tardes e ficar gago a cem por cento. Felizmente que vieste ao meu encontro. Senti medo de falhar, mas, ao mesmo tempo, fui invadido por uma enorme alegria interior. Foi essa alegria que me fez ir também ao teu encontro, até que ficámos frente a frente. Sorrimos de novo um para o outro e eu fiquei a sonhar. Tu, não sei. Acredito que sim, porque houve uma paragem no tempo antes de um de nós quebrar o encanto do silêncio. Era a primeira vez que estávamos juntos.
Apertámos as mãos, trocando algumas palavras de circunstância. Pois era. Faltava começar.
Mas como se começava?
Alvitrei que nos sentássemos num banco do jardim. E assim foi. Eu fiquei à tua direita e claro que tu à minha esquerda. O nosso banco do jardim. A alegria de falarmos a sós. A tua voz de alentejana que parecia cantar em cada palavra que dizias. O silêncio cúmplice de estarmos juntos num mundo feito à nossa medida, só para os dois. A magia do odor a café que excitava as feromonas em que nos entrelaçávamos.
Tinhas a pele a cair nas pernas. Disseste-me que estiveste na praia em julho. Uma justificação lógica.
Foram talvez as primeiras palavras que trocámos e num dos teus primeiros gestos tiraste das pernas morenas um ou outro resto de pele morta.
Que interessava a pele morta se estava a nascer nesse momento o nosso sonho azul?
As primeiras palavras trocadas de certeza que foram banais, mas aconteceu outro diálogo que ultrapassou todas as expectativas. Foi o diálogo dos olhares trocados que não esqueci nem nunca esquecerei.
Depois, o que aconteceu neste nosso universo?
Muito simples. Eu entrei no teu mundo e tu também entraste no meu. Jurámos que esse mundo seria dos dois para sempre e de mais ninguém.
Uma ilusão aquele amanhã que foi ontem e que nunca aconteceu?
Talvez haja mais universos e que num deles o meu sonho tenha acontecido...
Que dizes, Manuela?
Que dizes, Manuela?


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