Aquilo deu-me a impressão de um gemido. No entanto não queria fazer uma suposição definitiva sem ter a certeza do que seria. Não arrisquei, ao contrário do que costumava fazer nos jogos de póquer fechado, com mais precisão, o bluff. As dúvidas eram mais que muitas. Como aquela que me assaltava o espírito naquele momento. Se havia lógica ou não andar pelo campo àquela hora da noite. O melhor era deixar-me de medos que não tinham importância para aquela altura. Mas o medo era mais premente. Estava ligado ao canavial de silhuetas mudas, quedas e fantasmagóricas que tinha na minha frente. Naquela noite sem luar, não se notava a amplitude da sua extensão, abraçando sempre um caminho estreito e irregular, de altos e baixos. Mas parecia que começava perto para acabar logo em frente. A seguir era o desconhecido.
Dei mais meia dúzia de passos cuidadosos e estaquei. Tinha na minha frente um moinho arruinado, algo comparável a um monstro de cinco ou seis braços que agarravam em círculo tudo o que passasse nos seus domínios. Sabia do velho moinho que ficava perto da aldeia, agora mergulhada na escuridão. Os benefícios da civilização tinham passado ao lado, excetuando a vinda recente da eletricidade. Além do mais, os seus habitantes tinham por hábito deitar-se muito cedo, como costumava dizer-se, logo que as galinhas tomavam as suas posições hierárquicas nos poleiros. Eu não era propriamente da aldeia, nem laços minimamente me prendiam àquele meio rural. Talvez o acaso, mas também de propósito. Na aparência, era difícil de compreender, como eu, amante cem por cento do bulício duma grande cidade, sem dar atenção aos malefícios já mais que rebatidos que advinham do meu desejo de ter sido sempre, ou para sempre, citadino, me fora enterrar naquele ermo onde se respirava saúde e corria o risco de adoecer. De certa maneira, abandonara o meio viciado para me contaminar (e era a minha ideia) na pureza e simplicidade do campo. Mas costuma dizer-se que...
Fui interrompido nas minhas cogitações.
Agora o gemido fora mais intenso. E havia uma razão: estava mais perto. Deitaria as mãos no lume se ele não viesse do moinho.
A primeira ideia que me ocorreu é que torturavam alguém. Torturavam.
Como podia saber que havia mais do que um bandido no interior do moinho?
Se tivesse comigo uma lanterna o caso mudava de figura. Assim, estava a jogar no escuro (de novo o famigerado jogo do bluff). A jogar no escuro, não seria. Mas que me movimentava no escuro era uma verdade indubitável.
Ouvi um novo lamento. Desta vez não restavam dúvidas. O som vinha mesmo dos lados do moinho. A ideia de que torturavam alguém tomou forte consistência e senti os cabelos eriçarem-se.
E a aldeia que dormia pacatamente!
Comecei a ficar nervoso. Não podia descontrolar-me. Um homem era um homem e um bicho era um bicho.
Mas porque estava àquelas horas naquelas paragens sinistras?
Muito simples. A Lígia, minha nova namorada, foi passar férias a casa dos avós e convidou-me para passar uns dias com ela. Nada de dormirmos na mesma cama, entenda-se. Os hábitos conservadores dos avós assim o impunham. Mas na cidade, a nossa relação era igual.
Gostei da mudança de ambiente, embora acreditasse que nada adiantava para consolidar a minha relação com a Lígia. Ao fim de uma meia dúzia de meses de namoro estávamos quase no ponto de partida. Ela justificava-se que precisávamos de conhecer-nos melhor e eu, porque não queria deitar tudo a perder, pelo menos naquele momento, estava expectante, à mercê dos seus muitos travões que considerava ilógicos. A minha forma de estar na vida era outra e de certeza que o tempo se encarregaria de dar uma solução.
Isso pensava eu. De repente tudo mudou numa noite de uma forma radical quando fomos ao baile de fim-de-semana da aldeia. Uma boa ocasião para os nossos corpos se aproximarem mais um pouco e, de certa maneira, um desafio às leis nada flexíveis da Lígia.
Quando dançávamos uma música lenta, de súbito as luzes tinham-se apagado.
«Oportunidade de ouro!» pensei.
Contra todas as expectativas ela atacou primeiro. Senti-me agarrado. O contacto do seu corpo quase que me descontrolou. A situação piorou quando ouvi a sua voz doce, sussurrando-me ao ouvido:
«Tenho medo, Mário!»
Cheguei-a mais para mim, aproveitando o momento raro. O primeiro naqueles seis meses de um namoro insípido.
«Eu estou aqui, Lígia. Nada receies. Chega-te mais a mim. Assim, minha querida.»
Erro de cálculo. Um beliscão chamou-me de imediato à realidade. A magia do momento tinha durado só um momento. Depois, a luz voltou.
Senti que me olhava em ar de censura, mas dei comigo a pensar se, de facto, ela teve medo do escuro quando a luz se foi.
«Não imaginei que pudesses chegar onde chegaste, Mário!»
«Bem, Lígia. De facto cheguei muito longe. Ou melhor: ficámos ainda mais longe...»
E deixei-a no meio da sala.
Mas não posso pensar mais neste caso que parece encerrado. Até porque os malditos gemidos me perseguem. Estou convencido que são gemidos. Ou será o piar de qualquer ave agoirenta?
Ave agoirenta que devia ter piado ontem, antes da luz se apagar no baile.
Volto a olhar para os caniços e agora com desconfiança redobrada. Num eventual momento ventoso, o agitar grotesco dos caniços daria uma ideia mais ampla do ambiente criado pela escuridão de uma noite de lua nova.
Talvez aquela noite fosse dedicada às almas perdidas que se juntavam para não terem medo.
Sorri.
Teriam medo dos mortais?
Brincariam com lençóis e correntes com o fim de se convencerem que tirariam proveito desse modo de intervenção?
Ataca primeiro. Ficas sempre em vantagem.
Viu-se o resultado. A Lígia atacou primeiro mas desistiu logo.
Voltei a sorrir e arrependi-me de imediato ao fixar o olhar no monstro de braços radiais. E de novo os sons estranhos. Tinha que descobrir a sua origem, convenci-me de vez. De súbito, ouvi passos. Lérias. O meu espírito criava alucinações. Era certo. Gemidos, passos na vereda, silhuetas imóveis que pareciam avançar, monstros, outra vez gemidos, passos...
ALUCINAÇÃO!
E afastei-me daquelas paragens, como se fugisse de um dragão. Mas os dragões não existiam, senão naquele momento no meu inconsciente que parecia apostado e desestabilizar o seu censor, o todo-poderoso consciente.
Era uma borboleta impressionantemente bela, favorecida com a quase totalidade das sete cores do arco-íris. Não sei porquê, mas soou-me falsa a sua presença naquela paisagem agreste. No conjunto de um caminho tortuoso, abraçado estreitamente pelo canavial de guardas serenos e urzes que ocupavam os espaços despidos, não havia um motivo campestre que se aproximasse da vivacidade graciosa do inseto. As árvores eram raras e esguias. Tudo à minha volta transpirava aridez.
Pouco ou nada dormi. Deixei-me sugestionar pelas emoções sentidas na véspera, naquela noite cem por cento negativa. Primeiro, foi a tragédia ocorrida no baile. Depois, o caso do hipotético homem, mais a apontar para fantasma, cujos gemidos pareciam vir dos lados do velho moinho abandonado.
O sol já despontava no horizonte quando voltei às proximidades do moinho. Lá estava ele, agora sem a aparência de monstro horrendo. De dia, não era mais que um velho moinho em ruínas, abandonado. Os caniços emprestavam apenas a aparência duma fragilidade que não partia com facilidade. Vergava. Como o espírito que ia à terra erguer a sua outra parte. Ou como o vencido que buscava elementos para desculpar a derrota e que acabava por vencer. A Lígia derrotou-me com o seu conservadorismo duvidoso. A sua reação não passou de um subterfúgio para me experimentar. Mas que diabo! Não tinha lógica. Assim, acabei com a minha ação de apaixonado expectante e rompi com ela. Quanto à Lígia derrotou-se a si própria. Destruiu talvez a sorte, se eu era a sua sorte. E duvidava que fosse.
«Quando pensares melhor, volta. Podes crer que fico à tua espera, Mário. Reconsidera. Apesar do que aconteceu...» Disse-me hoje ao pequeno almoço.
E o que é que aconteceu?
Nada. Não se passou absolutamente nada. Nunca aconteceu nada para nos aproximar. Apenas cansei-me de esperar.
Foi uma noite diferente. Estou convencido que somos nós que fazemos o destino. A Lígia não aproveitou o momento para se libertar das suas defesas púdicas. Aliás, já nem me interessava saber se gostava dela ou se estava movido pelo espírito da conquista difícil. Não tinha qualquer interesse para mim.
O nosso destino tinha desaparecido ontem.
Caso curioso, pareceu-me ouvir um gemido.
E as alucinações também podem voltar?
Aproximei-me do moinho. A borboleta de cores garridas atravessou o espaço na minha frente, como que a desafiar-me. Senti inveja de não poder ser como ela, de não conseguir galgar o desconhecido sempre em plena liberdade. Senti inveja de não ter o que queria, de não ser senhor absoluto do meu egoísmo. Infelizmente desejava mais sorte aos outros do que a mim.
Lá estava a borboleta pousada numa alcachofra, abrindo e fechando as asas, ritmadamente. Duas belezas em choque: a do “verdadeiro belo” e a do “feio belo”.
E porque não destroçá-las?
Claro que a ideia não vingou.
Um gemido perto.
Alucinação?
Resoluto, entrei no moinho. Lá dentro estava escuro. Aliás, não contava com outro cenário.
Acendi o isqueiro, estendi-o em todas as direções e foi então que vi. Um vagabundo dormia. Fiquei a observá-lo, não conseguindo evitar um sorriso de frustração. De facto os dragões não existiam, a tortura tinha sido fruto da minha imaginação, os caniços não passavam de simples caniços e não foi desta vez que enfrentei um fantasma.
De vez em quando, o vagabundo soltava algo semelhante a um queixume.
O curioso é que, no fim de tudo, dormia tranquilamente.
E porque não?
O infeliz-vagabundo-felizardo não pagava IRS, nem tinha compromissos de qualquer monta.
Saí do moinho. O sol bateu-me de chapa e semicerrei os olhos.
«Caso arrumado.» Pensei.
Ou casos arrumados. O do gemido e também o da Lígia. Não queria saber se tinha esticado mais a corda para me atrair, ou se a sua reação fora de alguém que afinal não gostava de mim o suficiente para a nossa relação insípida ir para a frente. Não queria saber da sua pele macia nem especular sobre o sabor dos seus lábios. A indiferença ditava leis. Irreversíveis.
E como não queria saber, talvez por analogia, talvez porque sim... talvez porque não, dispus-me a destruir simbolicamente a borboleta e a alcachofra...
