domingo, 15 de março de 2020

Uma estrada deserta


Sejam tolerantes e resignem-se quando o dia do fim chegar e não se arrependam de terem vivido a vida que o Criador lhes destinou.
Sigam sempre pela mesma estrada se souberem adivinhar que essa é a estrada certa. Não abandonem quando tropeçarem no primeiro buraco. E acreditem, se puderem, que ninguém pode sempre ser feliz, nem ter sempre a boa sorte consigo ou a má sorte.
Nada nem ninguém é eterno. certa  deserta

Passo todos os dias por ti e vejo-te triste, só, abandonada. Os teus gratos amigos deixaram-te, agora quando precisavas deles. Partiram todos porque deixaste de ser útil. O teu empedrado está gasto por tanto ter sido pisado. Lembras-te de muitas histórias ligadas aos dos que passaram por ti. Haverá outras que ficarão perdidas. Ecos de vivências trágicas, sem solução. Vivências que te chocaram. 
As árvores das tuas margens secaram. Estão estéreis desde que caíram as últimas folhas, amarelecidas, que desistiram de viver. Agonizam também, secas, mas de pé como tu. São as últimas companheiras que tens. Só o vento teima em visitar-te, mas esse não traz nada de bom. Cada vez que vem leva mais um pouco de ti.
Tens sede. A neve e a chuva estão a cair noutras regiões, bem perto de ti e tão longe, como uma guloseima que se oferece e não se dá. Até parece que o sol se aproximou mais e quei­mou as últimas hipóteses de sombra, tornando-te numa pai­sagem agreste e desprezível. Um vale da morte onde nem os abutres voam no alto, em voos circulares, à espera de caírem sobre os primeiros sinais de morte que já não existem. Nem eles se interessam por ti porque estás velha e inútil e já te roeram a carne e os ossos. Disseram-me que foste substituída por uma outra estrada que se estende, paralela, florida nas margens e sem pedras arrancadas, nem árvores mortas.
As fendas que se abriram são cada vez mais profundas. Dentro em breve vão atingir o mais íntimo de ti, onde ainda vive a tua alma, a única coisa que poderá sair um dia de ti.
Vais desaparecer, pedaço de terra desprezada. Quando o sol estiver de todo contigo, então serás só pó, serás nada. Retornarás ao que foste um dia.
Eram verdes, como a esperança, as folhas das tuas árvores amigas. As aves recolhiam-se nos troncos ao anoitecer, cantando alto, aconchegando-se, até que adormeciam contigo. Todos os que passavam por ti não resistiam à tentação de abrandar e saudar-te, bendizendo o teu traçado rectilíneo e hospitaleiro. E tu respondias com o mesmo abraço acolhedor, carinhoso, incitando-os sempre a continuarem em segurança, apesar de um ou outro problema que começavas a ter, as suas viagens pelo rio imenso e tranquilo que eras. Nunca conheceste o egoísmo. Envelheceste sempre com o mesmo sorriso bom.
Eu, que te conheci e conheço, sei dos sacrifícios que fizeste e das horas de desespero que passavas quando um carro capotava ou um caminhante fraquejava com o cansaço e logo acolhias debaixo das tuas árvores frondosas. As bocas famintas comiam os frutos das tuas árvores. Eras uma estrada que todos percorriam, felizes. E aconteceu sempre assim, até que foi construída a estrada nova, mais apropriada.
Acompanhei as tuas horas de desgaste. Assisti aos teus momentos de feli­cidade. Aos fracassos. Às feridas incuráveis que se abriram no teu piso. Mas pobre de ti, que tudo deste e agora nada tens. Vê o resultado da tua bondade, vê a paga que tiveste. Quando começaste a envelhecer, quando a chuva te deixou, quando as fontes secaram e não deram mais uma gota, vê o que fizeram os esses bons e gratos amigos...
Onde estão eles?
Bem te avisei, estrada deserta. Viverias duas vezes mais se não tivesses sido demasiado acolhedora, se os teus domínios verdes fossem menos verdes e acolhedores.
A tua alma sangra e vais morrer, velha estrada. És como um rio seco quase morto no meio do deserto. Dentro em breve entrarás na triste órbita do acontecer. Garras aceradas como agulhas vão penetrar nas tuas fendas até ao mais íntimo de ti. Jamais terás à volta o manto verde e acolhedor.
Passo todos os dias por ti e vejo-te triste, só, abandonada. Os sinais da morte estão cada vez mais perto. Perdoa-me, estrada, se também te abandonei.
Sabes?, não posso estar em todo o lado. Se Eu quisesse, jamais te abandonaria. Mas compreende... tinha outras opções.
Ah!, foi a primeira vez que vi em ti o esboço duma expressão de revolta.
Dizes que Eu nunca falei contigo. Que fui injusto quando deixei que construíssem a outra estrada. Perdoa-me, mas era uma opção mais realista. Um sinal do progresso. E todos têm que morrer para dar lugar a outros.
Hoje não passas de uma estrada deserta em agonia extrema. Uma estrada que vai morrer só porque nada nem ninguém morre acompanhado no momento do último suspiro...