sábado, 11 de fevereiro de 2023

A maldição


Rodrigo levantou-se cedo naquele dia. Não que tivesse necessidade. Uma reunião no escritório. Um encontro formal. Uma chamada telefónica por engano que o fez acordar. Nem o já mais que instalado "ou assim". Nada disso. Acordou e levantou-se da cama sem outro motivo senão o de satisfazer uma necessidade fisiológica. Depois, achou por bem tratar da higiene habitual, vestir-se e tomar o pequeno almoço. Só então teve a ideia de fazer um passeio ao longo da marginal, coisa que não fazia há mais que uma semana. E a ideia tinha a sua razão de ser. Precisava de emagrecer meia dúzia de quilos e de baixar nos glúcidos e na ingestão de carnes gordas. Mas nem sempre "galinha, nem sempre rainha". O rei D. João V tinha, de certa maneira, razão no reparo que fez ao padre confessor da rainha. Quanto a ele, a sua digníssima pessoa estava livre da obrigação de "comer sempre rainha". Vivia só e no momento não tinha qualquer relação fixa. Quanto a "comer galinha", lá teria que ser, desse lá para onde desse. Nada de feijoadas e outras ementas à base de porco. Ia conseguir? O futuro a Deus pertencia, desde que Satã não o tentasse. A clássica luta com muitos crentes.
Antes de calçar os ténis foi "ver" o tempo à marquise das traseiras. O céu tinha poucas nuvens e não ameaçava chuva. 
Mas o que estavam a ver os seus olhos?
Não! A bela nespereira, situada ao fundo do terraço, na margem esquerda, estava a ser cortada. Longe de ser uma poda. Da folhagem que compunha uma árvore frondosa já pouco restava. O destino estava traçado.
«Maldita senhoria!»
E nem sequer a nespereira pertencia aos seus domínios. Sabia da história há já algum tempo. Parte da nespereira estendia-se pelo telhado das arrecadações e, segundo a senhoria. as folhas caídas da nespereira acumulavam-se a ponto de travar o caminho da água da chuva e esta acabava por infiltrar-se pelas paredes. Puro disparate. As infiltrações já vinham de longe e nada tinham a ver com as folhas porque, a partir da segunda arrecadação já não havia folhas depositadas no telhado. Mesmo sem razão, a senhoria tanto se queixou à proprietária do quintal onde se localizava a nespereira que esta acabou por ceder às suas estúpidas e obsessivas exigências.
Sobre quem ia recair a maldição da nespereira?
Já rua tomou o caminho para a marginal. A passada era lenta, compassada, como se impunha a princípio, só por uma questão de aquecimento dos músculos.
Não conseguia esquecer-se da pobre nespereira que tinha os dias contados. Ainda por cima estava a ser cortada em plena floração. Ah, sim. Alguém ia pagar por isso. Todos os envolvidos. O trabalhador encarregado da missão do abate. A dona da nespereira e a senhoria do seu prédio. Só restava saber sobre quem ia recair o ónus mais alto da maldição.
«Tretas.» Pensou.
A senhoria, pessoa de maus fígados, ia sair incólume daquela situação de que era a principal responsável. O inferno era cá, diziam. Diziam e ele não acreditava. Quem lhe impingiu a história da maldição de certa maneira estava fora da realidade. E o que aconteceu ao cultivador de couves, alfaces e afins, não passou de pura coincidência. Tinha a certeza. Inclusivamente consultou o Google e não encontrou qualquer referência à maldição das nespereiras que quase definhou por causa de uma hipotética incompetência do dito cultivador. A história que lhe venderam era verídica, contudo, não passava de uma história.
Só uma história?
Palavras e só palavras construídas?, sem sumo?
Ou escondiam um aviso? Um fundo moral?
Não sabia.

Era uma vez uma bela e frondosa nespereira que nasceu de uma semente que, um dia, alguém enterrou num quintal. A princípio era uma insignificante planta do quintal que não despertava a mínima atenção das pessoas residentes no prédio. Cresceu e continuou a crescer e acabou por dominar tudo o que se fixava à terra, semeando inveja à sua volta, acaso as plantas pensassem, tivessem sentimentos e assim. O seu dono e senhor já mais que uma vez procurara abrigo na sua sombra acolhedora e lera vários livros que trouxera para o quintal, revira os seus escritos, meditara na porra da sua vida. Altaneira e de larga copa sentia-se até superior aos agressivos catos espanhóis que proliferavam logo à entrada do quintal. O tempo e um dia teve os primeiros momentos de grande felicidade. E porquê? Como que por magia, os seus troncos floriram em todo o perímetro e então teve os primeiros filhos. Muitos! Pintados de amarelo. Doces. Suculentos. Tentadores. Que inveja via no Cereus peruvianus e nas plantas gordas! As próprias urtigas, malvas e raras papoilas guardaram uma distância razoável, admiradas. Não sabiam muito bem o que estava a acontecer e ela não lhes podia dizer que era uma dádiva de Deus, ou um milagre da Natureza. Ao mesmo tempo tinha consciência que sabiam do seu desenvolvimento porque a amiga roseira encarregou-se de lhes transmitir a boa nova. Boa nova só para ela, claro. Estavam todos mordidos de inveja. Já bastava ser a mais altaneira de todas as plantas do quintal e também a mais bonita. Havia um senão. Certas aves, como os pardais e os melros, não deixavam em paz os seus filhos e picavam-nos constantemente, deixando feridas em chaga até aos caroços. Nada podia fazer porque estava agarrada ao solo e não tinha braços nem voz para espantar os predadores. E isso danava-a. Se ao menos o seu dono e senhor pusesse na vizinhança dois ou três espantalhos...
Mais tarde compreendeu que também que as aves eram filhas de Deus e lutavam, como ela e todas as outras plantas do quintal, pela sobrevivência.
Viveu dias e dias de inimaginável felicidade. Incontáveis. Até que aconteceu algo desagradável na sua vida, gravada como todas as vidas na fita do tempo. De um momento para o outro foi acometida de graves problemas de saúde. As suas folhas amareleceram antes de tempo e caíram. Sentia que morria aos poucos. Estranhamente foi o momento em que as urtigas, seres inferiores, se aproximaram dela, primeiro movidas pela curiosidade e depois com uma certa preocupação. O próprio Cereus abandonou o ar superior e glacial e abriu mão de um semblante pensativo, julgando adivinhar que ela estava de partida para a terra do nada e de ninguém.
Acabou por descobrir a causa da sua doença. O homem do quintal, amigo do seu dono e senhor, que tratava das couves, alfaces, feijões e demais plantas inferiores, era o culpado. Não sabia se agiu tocado pela ignorância. Até talvez tivesse boas intenções, quem sabia? Mas cheio de boas intenções estava o mundo. E mais. Dera conta que o seu olhar era estranho quando a fixava no global. Talvez pensasse que lhe estava a roubar espaço para poder ampliar a sua agricultura caseira. Assim, meteu-se em assuntos que não conhecia muito bem e desbastou-a em excesso por cima. O semblante era indefinido. Pareceu-lhe ser de raiva. Talvez estivesse enganada. Mas o certo é que não podia ter sido outra coisa a causa do seu enfraquecimento repentino. Só sabia que esteve entre a vida e a morte. As folhas continuavam a desistir de viver. Enfraquecia a olhos vistos. As próprias raízes, que sugavam o alimento, estavam definhando. O fantasma da morte andava por ali. Ao mesmo tempo, foi a partir dessa altura que as plantas inferiores começaram a vê-la com outros olhos. Sem inveja. Com pena de ela, da nespereira frondosa que estava a definhar. 
Teve a certeza que todo aquele pensamento positivo deu-lhe forças para ultrapassar a grave doença que o homem do quintal provocou, inadvertidamente ou não.
«Ressuscitei. Volto a ser nespereira que domina todo o quintal e se tornou cada vez mais forte, resistente e sedutora. À minha volta, e gratos pela sombra que proporciono, as plantas inferiores, agora amigas, dão graças à minha recuperação e acham que foi um milagre.»
A roseira defendia outra ideia. Segundo ela, havia uma coisa chamada destino que geria o desenrolar da vida de todos os seres vivos e, palavras suas, havia que deixar fluir as águas do rio, não fazer represas para que assim chegassem depressa à foz. Não percebia muito bem o alcance dos pensamentos da roseira. E mais ainda, ela também que todos estavam cá para aprender, para ganhar experiência, para aceitar sem relutância tudo o que de bom e mau acontecia. E ainda disse mais: "somos partículas de Deus e tendemos para Ele. Acaso a nossa missão não seja cumprida, temos que voltar cá para completarmos a nossa evolução."
Não percebeu muito bem a sabedoria da velha roseira, mas acreditou que era assim. 
E se um dia morresse e noutro dia voltasse para evoluir, seria que se lembrava da última vez que cá esteve?
Ah!, o homem que tratava das plantas inferiores e depois colhia-as para se alimentar, e que tanto mal fizera à bela nespereira, um dia não veio ao quintal. Nem noutro dia. Nem noutro. Na verdade nunca mais voltou...


O tempo passou. Rodrigo foi morar para outra casa. Para trás ficaram recordações que não interessam para a história. A mudança aconteceu porque tinha que acontecer. Não. Desenganem-se. Não constituiu família. Nada mudou na sua vida. Se emagreceu? Não. Se a casa para onde foi morar tinha uma marquise que dava para um terraço onde podia avistar uma frondosa nespereira que dava frutos doces e sumarentos? Também não. Nem sempre galinha, nem sempre rainha? Sim, nem sempre galinha. Sim, nem sempre rainha. Refeições, algumas pouco saudáveis.
E o que aconteceu à antiga senhoria, à dona da nespereira assassinada e ao homem que a assassinou?
Nada. Absolutamente nada.
Então o Rodrigo tinha razão. Aquelas histórias das maldições eram tretas. Aliás, o Google não referia maldições relacionadas com nespereiras. Apenas gabavam a diversidade de aplicações benéficas vindas delas, tanto no aspeto alimentar como no que se ligava à saúde. As nespereiras eram como eram. Assim como os pessegueiros. Assim como etc...
Então a história pode acabar?
Sim. Acrescentando só um pequeno pormenor. Poucos anos depois, o familiar mais chegado da senhoria foi atingido pela maldição da nespereira. Não morreu, mas foi-lhe diagnosticada a doença de Alzheimer. A tal doença maldita que transforma, lentamente, um ser humano num ser vegetal.
Foi coincidência ou maldição?