“As recordações continuarão a adornar a construção das histórias inacabadas, como é suposto acontecer pois resultam da interferência de outras. Estas e as demais, fantásticas ou não, encontram-se inseridas no centro profundo, donde são sacadas, prontas a serem processadas. Para emergirem basta um simples mergulho aleatório dirigido para uma zona luminosa fictícia, onde um nome sobressai ou assim. Tudo como tem sido feito habitualmente, mas com um senão. O facto a assinalar é que esta história já foi contada, em tempos, e na primeira pessoa, e diverge substancialmente da que já se encontra na linha de produção. Na primeira, o sonho tomou, por alguns dias, conta do processo e conduziu a personagem principal a um beco sem saída com direito a um pouco de chorinho motivado por pequenas desilusões. Quanto à segunda, bem mais perto da realidade que se supõe ser a única, vem já seguir. Aconteceu no papel tal qual como me foi contado.
Mentira. Acrescentei uns pós...”
Mentira. Acrescentei uns pós...”
Naquela manhã azarada o Mário não devia ter saído de casa rumo à sua "vila de ontem". Mesmo que pensasse em ausentar-se, a última alternativa a tomar era pegar no carro. Admitindo esta hipótese como inevitável, uma vez que percorrer cerca de cinquenta quilómetros a pé era o mesmo que ser um maratonista e deslocar-se de comboio ou de autocarro estava posto fora de causa (tinha o carro e a dependência do mesmo era coisa mais que assente), então ele devia ter seguido pela estrada nacional e não pela autoestrada. Mas o comodismo tê-lo-ia levado fatalmente a escolher a via menos aconselhada.
Tudo bem. Aconteceu porque tinha que acontecer. Se acaso acontecesse um acidente fatal não estaria cá para contar a história, bem como muitas outras. Seguiu até Loures pelo velho troço gratuito e quando avistou a zona da portagem o seu destino consolidou-se. Tinha ainda uma última chance, daquelas parecidas com as que podem mudar radicalmente a caminhada sem regresso de um condenado à morte.
Na portagem devia ter encostado o seu carro o mais possível à margem esquerda para premir em segurança o botão mágico que fazia sair o ticket comprovativo de viagem e, ao mesmo tempo, acender a luz verde para subir a cancela.
Esticou o braço esquerdo para fora e sentiu de imediato uma dor intensa na zona do sovaco. Como parar é morrer, mas não neste caso, lá seguiu viagem depois de não ter acontecido o que vinha a seguir a muitos “if... then” já mencionados. A solidão dói, mas já desta vez não foi sozinho. Levava como companheira clandestina uma invisível e bem sentida dor debaixo do braço, principalmente quando fazia qualquer movimento brusco com o dito cujo.
«Vai passar.» Pensou.
Bondoso e tolerante o seu pensamento. De facto a dor não passou nas horas mais próximas nem ao longo dos dias que se seguiram. Em boa verdade, se é que essa verdade era boa, a situação no braço agravou-se a ponto de nada de útil poder fazer com ele. A começar pelo tempo que demorava a vestir, por exemplo, uma camisa. E, nem de propósito, aconteceram-lhe todos os percalços, possíveis e inimagináveis.
Um dia pôs um pé num buraco dum passeio e desequilibrou-se de imediato. Instintivamente procurou o equilíbrio e a solução imediata foi abrir os braços. Mas ó, Mário!, que triste instinto! Nesse movimento grotesco mais parecias uma bailarina fora de prazo que não aterrou no chão por mero acaso. A dor sim, essa ele não conseguiu evitar. Bem como alguns palavrões que lhe saíram espontaneamente pela boca.
Ou refreou o vocabulário e limitou-o a um simples “porra”?
Porra, Mário! Mais parecias o soldado-cadete Pincariço-macaco-peludo a apanhar o sol da tarde, deitado na cama, de papo para o ar e com as mãos na nuca, a reagir depois do danado do Fonseca lhe ter arrancado do peito um tufo de pêlos. Era o tempo da recruta dos cadetes no Porto, quando Mário, de repente, foi atirado para um "congelador"
«Par ou ímpar?»
«Está… quie…to, Fonseca.»
Ah, alentejano das calmarias, alentejano dum cabrão!
Quando ocorreu o acidente que lhe provocou a incapacidade no braço esquerdo corria o tempo em que tinha por companheira uma mulher que consumia muita água de garrafões do Luso.
Ou era do Alardo?
Bem, não interessava. O que interessava, para complementar os desastres, era dizer que numa certa manhã foi sozinho ao supermercado. Levava uma extensa lista de compras a fazer, entre elas quatro garrafões de cinco litros de Luso ou Alardo, um pacote de doze litros de leite Mimosa (ou era Feira Nova?), azeite, açúcar, farinha, ovos, e ainda outras coisas. Quanto mais enchia o carrinho mais este se denunciava nas suas tendências esquerdistas e Mário ia perdendo energias à medida que o tempo passava, sentindo crescentes dificuldades em dominar a fera cada vez mais rebelde e pesada. Finalmente fez a última compra e dirigiu-se com o carro para o recinto onde tinha aparcado, usando apenas a força do braço direito. Tudo bem a princípio. Faltava só atingir o topo do tapete rolante. Obstáculo transposto à entrada com relativa facilidade e iniciada uma subida lenta, como de costume. Subida lenta e sem atribulações a princípio. Só que no cimo as rodas da frente encravaram e ele não conseguiu dar o esticão final para sair do maldito tapete. Nem para a frente nem para trás. O braço esquerdo bem quis ajudar, mas a dor que sentiu de imediato foi desmoralizadora. Num instante passou a acontecer o indesejado mais para trás que para a frente e Mário começou a suar com abundância desusada e a proferir mentalmente os alhos e bugalhos que se impunham face às circunstâncias. Valeu-lhe a pronta ajuda de uma jovem mulher que vinha atrás dele. Uma trinca-espinhas que nem sequer praticava pesos e alteres para a categoria de peso-mosca ou coisa similar.
Os acidentes multiplicaram-se. Todas as “más notícias” vinham ter com ele e contribuíam para aumentar a dor, tanto ou tão pouco que acabou por marcar uma consulta para o ortopedista.
Ah, Mário! Quantos porras e asneiras saíram dessa boca por causa de uma dor aguda que um dia sentiste depois de não teres seguido um conjunto de condições (se a minha avô não tivesse morrido ainda hoje era viva). Foi azar.
Mas sabes...?, meu amigo, que uma desgraça nunca vem só?
Talvez que o pior ainda estivesse para vir quando marcou uma consulta de ortopedia.
O ortopedista observou demoradamente a radiografia, virou-se para o desditoso Mário e abanou a cabeça.
«Vai ter que fazer fisioterapia...»
«Melhora, mas o problema voltará, acredite.»
Talvez que nesta altura o ortopedista já tenha deixado de fumar, mas certamente nem Deus nem o diabo o quiseram. O grande sacana que nem sequer fez um prognóstico reservado! O profeta da m... (pi)!
Perante aquele sinistro diagnóstico o Mário viu-se logo incapacitado para todo o sempre ante uma hipotética verdade nua e crua.
Boa, ortopedista. O teu diagnóstico premonitório até teve graça...
«Tem a certeza doutor?» perguntou a mulher que tinha o nome de uma flor delicada e que, mais tarde Mário constatou que afinal não era flor que se cheirasse. Anabela era. o seu nome,
Ficou a olhar para ele, mais apalermado do que ciente de uma verdade nua e crua vinda da boca de um ortopedista competente, segundo a sua companheira que tinha um nome de flor delicada e bebia muita água do Luso. Ou era do Alardo?
A “Simone para sempre" ficava bem cheirosa depois dos seus frequentes banhos virtuais. Talvez hoje já não tenha pele depois de tanta esfregadela.
O ortopedista encolheu os ombros. Perante a evidência daquele encolher de ombros, aí vai o Mário, porta fora, o homem que, quando pensava a fundo, se sentia superior aos próprios gregos. Aí vai ele, carregado com as suas reencarnações sofridas, mal vividas e mal amadas. A dor que sente agora é bem diferente. Não vem da alma onde se instala permanentemente outro tipo de dor que lhe mostra um futuro pouco azul. Mas tudo isso não lhe importa no momento. O que sonhou ter e não teve. Tudo o que há de vir e está no segredo dos deuses. No momento, a dor física ocupa todo o espaço e a fisioterapia é agora a última esperança de a fazer desaparecer, apesar do diagnóstico do ortopedista magister dixit.
Já fez calor húmido, massagem terapêutica e ultra-sons e agora segue-se o ginásio.
«Senhor Mário Fonseca?»
«Sou o próprio.»
«Chamo-me Carla e vou tratar de si.»
Mário não está só no ginásio com a sua dor. Há mais doentes, o que é natural. O que não é natural é que a Carla, fisioterapeuta que lhe calhou na rifa, tem grandes problemas nas cervicais e parece estar mais doente do que ele. Má sorte a da fisioterapeuta Carla e também má sorte a sua, por tabela.
«Tenho aqui a sua ficha» disse, torcendo o nariz. «Periartrite no ombro esquerdo. Que grande problema o senhor tem!»
«Pois é. O ortopedista também disse o mesmo. Só que deu outro nome.»
«Que nome?»
«Artrose, se não me engano.»
«Erro crasso, mas não interessa. Por agora, vai fazer roldana e bastão.»
Que simpática é ela, Mário! Já reparaste que aquele gnomo nem sequer é capaz de sorrir. Azar duplo o teu. Com a doença e a assistente à doença que te destinaram. Vais ficar ainda mais incapacitado. É mau destino, sim. Os dias passam. As sessões passam. Mário não vê melhoras, nem para si nem para a fisioterapeuta que, por esse motivo, mal toca nele. Fora do ginásio, a Cidália faz o melhor que pode e sabe, fala com ele e sorri. Calor húmido e depois uma massagem agradável que o descontrai um pouco. E também ultra-sons. A propósito, num dos próximos dias ele vai ficar queimado no peito, numa zona próxima do ombro.
«Senhor Mário, porque não me chamou?»
«Chamei sim. Três vezes.»
Ah... o vício do tabaco! Cinco minutos são o bastante para dar lugar à entrada da tragédia.
«Desculpe. Vamos já tratar disso. Não queimou muito.»
Ou queimou? estás apreensiva, Cidália! Não o negues.
«Ainda me cheira a carne queimada.» Disse para si.
Foi buscar um creme e besuntou-lhe a zona queimada.
«Pode vestir-se. Até amanhã.»
«Até amanhã, Cidália.»
«E desculpe.»
Antes de vestir a camisa olha-se ao espelho e vê uma mancha vermelha que tem no centro um pequeno buraco.
«Porra!»
De futuro devia evitar os buracos negros, sugadores de energia. Teoricamente falando, claro. Mas naquele caso foi diferente. A energia excessiva queimou-lhe a pele e originou um outro tipo de buraco.
Demorou a vestir-se. Como de costume desde que apareceu a dor.
«Bom, vamos lá então para o ginásio.»
Naquela manhã fria de dezembro está mais pessimista do que nunca. Já vai na décima terceira sessão e os resultados são palpáveis. A dor continua fixa que nem uma carraça e é natural que só pense nas aves agoirentas que são o infalível ortopedista magister dixit e a simpática fisioterapeuta que mal consegue mover a cabeça para o lado.
«Agora segue-se o gnomo. Onde é que ela está?»
Baptizou-a com esse inquietante nome. De facto assusta-se quando os olhares se cruzam. Se existissem gnomos, ela seria um deles. Ou prima afastada.
A sua atenção fixa-se na secretária.
«Ah, lá está ela. Hoje tem companhia. Bata com outra cor. Mas é muito nova!»
Deixa-se ficar à distância, esperando que o chamem. Ao mesmo tempo observa a jovem desconhecida que está a falar com o gnomo. O cabelo curto, castanho-escuro, ainda a faz mais jovem. E os olhos... Desiste da observação e tenta disfarçar. Chegou a vez de ser observado.
Ela troca algumas palavras com o gnomo e ambas olham na sua direção.
«Será que vai pedir para lhe ler a mão?» interroga-se.
«A partir de agora sou eu quem vai tomar conta de si.»
Estende-lhe a mão.
«Chamo-me Sónia. A minha colega vai entrar de baixa.»
Bem lhe parecia. Mas aquela jovem...?
«Muito prazer. Eu sou o Mário. De facto a sua colega está muito incapacitada.»
Tem um olhar doce.
Mais uma vez ele e os olhares das mulheres. São muito importantes para ele, porquê?»
«O olhar é o espelho da alma.»
«E...?»
«Para mim é quase decisivo, Odete...»
Pensa que tudo vai de mal a pior. Em função da sua tenra idade, certamente que a fisioterapeuta ainda não ganhou experiência suficiente. Ele vai ser uma segunda ou terceira cobaia e desejava tudo menos isso e o gnomo, claro está.
«Pode deitar-se em cima da marquesa. Só tira os sapatos e fica de barriga para cima.»
Deitar-se em cima da marquesa, salvo seja...
Fica na expectativa, de braços estendidos ao longo do corpo.
«Como se sente?»
«Nada bem.» Admitiu.
«Cuidado, Mário!» teria dito a Odete.
«Que está ela a tramar?» pensou.
A jovem aproxima-se mais.
«Bem, não tendo em conta a dor, mal movo o braço para cima.»
«Não pertenço a esta clínica. Só venho substituir temporariamente a minha amiga. Vamos lá a ver como está esse braço.»
«Falou a esse respeito com a Carla?»
«Sim. Mas é irrelevante a sua opinião. Agora sou eu quem vai fazer a avaliação.»
«A avaliação dela foi muito animadora. E de falta de tato, nem se fala.»
Não comentou.
«Descontraia-se, senhor Mário. Bem me disse a Cidália que fica com os músculos todos tensos.»
«Não estou nervoso. E, por favor, trate-me só por Mário.»
«Ok, Mário. E vice-versa. É tudo medo ou receio?» tenta ironizar.
«Como assim?»
«Não lhe vou provocar mais dores do que as que já tem. Por isso, relaxe...»
«Farei os possíveis.»
Pegou no braço esquerdo e ergueu-o lentamente para trás.
«Quando doer faça um sinal com o braço direito.»
A viagem do braço foi curta.
«De facto isto está um pouco mal. Não prometo milagres, mas acredite que vai melhorar. Talvez até o ponha bom. Para isso tem que colaborar.»
«Deus a oiça, Sónia.»
«Mudando de assunto, que faz na vida?»
«Sou professor de Matemática.»
«Afaste para lá esse cálice!»
«Estou a ver o filme...»
«Ou tive uma professora péssima, ou então nunca dei uma para a caixa.»
Mário começou a dissecar mentalmente as causas do insucesso da Sónia na Matemática enquanto ela fazia o seu trabalho.
«Tente respirar pela barriga.»
«Como assim?»
«Faça um respirar mais profundo, como se viesse do abdómen. Vai ver que é fácil. É só uma questão de tempo.»
A fisioterapeuta pegou no braço e começou a movimentá-lo de baixo para cima e de cima para baixo como se fosse uma alavanca de trasfega de vinho.
«Se sentir dor...»
«Já sei. Grito em altos berros.»
O movimento incessante de vaivém prolongou-se indefinidamente, segundo a óptica de Mário. Ficou sempre do seu lado esquerdo, encostada à marquesa e perto dele, tão perto que sentia o contacto dos seus seios no braço. Ao mesmo tempo olhava muito séria para ele, talvez ausente ou talvez não. Estaria a fazer de propósito ao encostar-se, ou distraiu-se? Sentia-se bem a respirar pela barriga. Entretanto o seu braço ia aumentando o raio de ação sem que Mário sentisse a mínima dor.
«Pode fechar os olhos...»
A voz da jovem começou a vir de longe. Longeeeeeeee.
«Olhos bonitos, Odete.»
«De quem?»
A sua colega talvez sentisse ciúmes quando fazia alusão aos olhos das outras mulheres.
Teria querido alguma vez ir para a cama com ele?
Nunca lhe perguntou. Considerava-a uma mulher interessante, mas só pensava na Maria. E ele era como os touros que só viam a crença.
E o caso do punhal?
Quase de certeza que a Odete tinha culpas no cartório. Ele e a Maria foram traídos por ela.
Abriu os olhos.
«Há quanto tempo estamos na trasfega, Sónia?»
«Como assim?»
«No vaivém do braço.»
Sorriu.
«Vinte e cinco minutos. Sim, senhor, isso é que foi dormir!»
«Não me disse para fechar os olhos?»
«E relaxou. Foi muito bom.»
«Muito bom?»
«Para si.»
«Ah sim. Hipnotizou-me?»
«Credo!, amigo...»
«É que de repente senti os pés frios. Não pode parar por um momento?»
«Foi muito bom sentir os pés frios. Sinal que afastou a dor de si. Só mais cinco minutos.»
Vinte e cinco minutos. Com o gnomo não estava mais do que cinco minutos. E já era muito tempo.
Olhou em volta. Havia cinco pessoas à espera. Ela deu conta da sua observação e sossegou-o.
«Não se preocupe, Mário. Eles não estão à minha espera.»
«Não estão? Porquê?»
«São pacientes de outros colegas.»
«Quem és tu?» perguntou para dentro de si.
Ela continuava no seu trabalho rotineiro, sempre a olhar muito séria para ele.
«Pronto, por hoje chega. Experimente levantar o braço.»
Nem queria acreditar!
«Agora continue com o exercício do bastão, mas não se esforce muito.»
«Quanto tempo?»
«Cinco minutos. É quanto basta. Então até amanhã, Mário. Não tropece com o braço em nenhum lado.»
«É o meu maior desejo. Até amanhã, Sónia. Olhe uma coisa...»
«Sim?»
«Obrigado. Do fundo do coração.»
Despenteou-lhe o cabelo e sorriu. Sentiu-se embaraçado.
«Não é o que pensa. Foi só um gesto de ternura.»
E afastou-se. Os outros pacientes continuavam à espera que alguém os chamasse para o tratamento, aparentemente alheados de Mário e da eficiente fisioterapeuta que lhe caíra misteriosamente do céu.
Os dias passaram-se sempre iguais no ginásio e no gabinete de tratamento. Quanto à Cidália não voltou a deixar que ele se queimasse. E deu-lhe um conselho. Que não comprasse uma bicicleta estática para trabalhar os músculos das pernas e tudo o mais.
Mário perguntou porquê.
«Se a tiver no quarto, que é o local mais habitual para guardar um mamarracho que não se consegue esconder, desiste rapidamente de a usar e vai descobrir qual será a sua utilidade futura.»
«E qual será?»
«O sítio ideal para pendurar, ao fim do dia, o casaco e a camisola.»
«Acha que sim?»
«Compre uma bicicleta de montanha e desloque-se dez quilómetros por dia nos primeiros tempos. Depois, vá aumentando a distância em função da sua resistência física. Ou então, ande a pé. Vai ver que melhora a sua capacidade cardiorrespiratória.»
«Vou pensar nisso. De qualquer forma agradeço-lhe o conselho.»
«Conselho de amiga.»
«Acredito.»
Mário melhorou muito graças à competência e dedicação extrema da Sónia. Quase conseguia mover o braço como dantes. Só faltava o quase.
«Quantas sessões ainda tem, Mário?»
«Apenas duas.»
«Não precisa de mais, penso. De qualquer forma marque uma consulta para a médica fisiatra.»
«Vou marcar.»
«Ainda vai ter uns pequenos problemas depois dos tratamentos.»
«Então...?»
«Não se preocupe que tudo desaparece de um momento para o outro. Olhe, não posso estar presente depois de amanhã.»
«Mas amanhã vem...?»
«Penso vir.»
Foi como se um anjo tivesse caído do céu. Enquanto as outras fisioterapeutas estavam com ele no máximo três minutos, esta jovem que veio substituir a infeliz Carla ultrapassava os vinte. Além disso, era muito meiga, insinuante e demasiado interessada nas suas melhoras e também na vida profissional, pois perguntou-lhe se estava de baixa.
Disse-lhe que não.
«Pois... é o braço esquerdo.» Rematou.
Ensinou-o a descontrair, insistindo que respirasse pela barriga e que se concentrasse na respiração. Era uma forma de relaxar os músculos. Admitiu que deu algum resultado. O braço já ia mais atrás e praticamente não sentia dores. Ela movimentava-o para a frente e para trás como se estivesse procedendo à trasfega de vinho de um barril para outro. Deitado sobre um colchão fitava o seu rosto sereno, muito sério, aparentemente a olhar para ele.
«És bonita, Sónia. Estás a pensar no teu namorado?» perguntou só para mim.
«Queres almoçar comigo?» voltou a perguntar.
«Passa-se alguma coisa? Dói-lhe?»
«Nada, nada. Não me dói nada. Mas parece que tenho os pés gelados.»
«É natural. Não se preocupe. Vê que já está mais descontraído?»
«Toma juízo, Mário. Até podias ser pai dela...»
«Senhor Mário...»
«Ah sim, desculpe. Mas trate-me por Mário.»
«Adormeceu, Mário.»
«Sim?»
«Até sonhou alto.» Disse, sorrindo.
Seria que tinha ouvido aquilo que jogava serem os seus pensamentos?
Platão e o mundo primário das sombras. Qual era a realidade em relação à Sónia? . Nunca conseguiria ter sabedoria suficiente para seduzir aquela mulher que parecia ter caído do céu.
Seria um anjo? Mas os anjos que caíam na Terra tornavam-se mortais.
Raios! Até onde estava a ir a sua imaginação...
«Disse alguma coisa, Mário?»
«Não, não. Foi impressão sua, Sónia.»
Pôs-lhe uma mão sobre o ombro.
«Sente-me mais aliviado, Mário?»
Aquele olhar doce!
«Olhe, aviso-o que isto só passa de todo uns dias depois da última sessão.»
«Ótimo. Diga-me uma coisa, Sónia. Afinal como se chama isto que tenho?»
Não hesitou.
«É uma periartrite.»
«O bronco do ortopedista não deu esse nome. E disse que este problema voltava...»
«Nunca se sabe. Mas no seu caso acho que não. Lembra-se como aconteceu?»
Se se lembrava! Aconteceu na portagem de Loures quando esticou o braço esquerdo para premir o botão e retirar o tichet. Sentiu de imediato uma dor aguda. Entretanto passou. Aparentemente. À noite, ao despir-se, voltou para ficar e agravou-se com o passar dos dias.
«Estive quase três meses com esta coisa.»
«Foi demasiado tempo. Desleixou-se, Mário. Bom, tenho que ir à vida...»
«Sónia?»
«Sim?»
«Obrigado. Não desejo o mal de ninguém, mas ainda bem que substituiu a sua colega...»
«Ela está com grandes problemas nas cervicais. Até amanhã.»
«Até amanhã, Sónia.»
«Tal como aconteceu com a Maria. Não consegues montar o cavalo da coragem, Mário.»
Desta vez vez não lhe perguntou se tinha falado.
«Não se esqueça de fazer os exercícios com o bastão.»
«Não perdoa nada, Sónia.»
«Mesmo nada.»
Como nas outras sessões tinha voltado a adormecer, e a falar com o Ernesto, quando ela começou o exercício simulando a trasfega do vinho de um depósito para outro. Exercício que deu resultados surpreendentes logo a partir do primeiro dia que tomou conta dele
«Que frio!» tinha dito.
«Bom sinal, Mário. Está a descontrair...»
O seu problema principal residia na contração dos músculos.
«Já não sinto dores.»
«Deve continuar em casa o treino da respiração pela barriga.»
«Prometo.»
Prometeu e cumpriu. Pelo menos durante uns dias.
«Tem a certeza doutor?» perguntou a mulher que tinha o nome de uma flor delicada e que, mais tarde Mário constatou que afinal não era flor que se cheirasse. Anabela era. o seu nome,
Ficou a olhar para ele, mais apalermado do que ciente de uma verdade nua e crua vinda da boca de um ortopedista competente, segundo a sua companheira que tinha um nome de flor delicada e bebia muita água do Luso. Ou era do Alardo?
A “Simone para sempre" ficava bem cheirosa depois dos seus frequentes banhos virtuais. Talvez hoje já não tenha pele depois de tanta esfregadela.
O ortopedista encolheu os ombros. Perante a evidência daquele encolher de ombros, aí vai o Mário, porta fora, o homem que, quando pensava a fundo, se sentia superior aos próprios gregos. Aí vai ele, carregado com as suas reencarnações sofridas, mal vividas e mal amadas. A dor que sente agora é bem diferente. Não vem da alma onde se instala permanentemente outro tipo de dor que lhe mostra um futuro pouco azul. Mas tudo isso não lhe importa no momento. O que sonhou ter e não teve. Tudo o que há de vir e está no segredo dos deuses. No momento, a dor física ocupa todo o espaço e a fisioterapia é agora a última esperança de a fazer desaparecer, apesar do diagnóstico do ortopedista magister dixit.
Já fez calor húmido, massagem terapêutica e ultra-sons e agora segue-se o ginásio.
«Senhor Mário Fonseca?»
«Sou o próprio.»
«Chamo-me Carla e vou tratar de si.»
Mário não está só no ginásio com a sua dor. Há mais doentes, o que é natural. O que não é natural é que a Carla, fisioterapeuta que lhe calhou na rifa, tem grandes problemas nas cervicais e parece estar mais doente do que ele. Má sorte a da fisioterapeuta Carla e também má sorte a sua, por tabela.
«Tenho aqui a sua ficha» disse, torcendo o nariz. «Periartrite no ombro esquerdo. Que grande problema o senhor tem!»
«Pois é. O ortopedista também disse o mesmo. Só que deu outro nome.»
«Que nome?»
«Artrose, se não me engano.»
«Erro crasso, mas não interessa. Por agora, vai fazer roldana e bastão.»
Que simpática é ela, Mário! Já reparaste que aquele gnomo nem sequer é capaz de sorrir. Azar duplo o teu. Com a doença e a assistente à doença que te destinaram. Vais ficar ainda mais incapacitado. É mau destino, sim. Os dias passam. As sessões passam. Mário não vê melhoras, nem para si nem para a fisioterapeuta que, por esse motivo, mal toca nele. Fora do ginásio, a Cidália faz o melhor que pode e sabe, fala com ele e sorri. Calor húmido e depois uma massagem agradável que o descontrai um pouco. E também ultra-sons. A propósito, num dos próximos dias ele vai ficar queimado no peito, numa zona próxima do ombro.
«Senhor Mário, porque não me chamou?»
«Chamei sim. Três vezes.»
Ah... o vício do tabaco! Cinco minutos são o bastante para dar lugar à entrada da tragédia.
«Desculpe. Vamos já tratar disso. Não queimou muito.»
Ou queimou? estás apreensiva, Cidália! Não o negues.
«Ainda me cheira a carne queimada.» Disse para si.
Foi buscar um creme e besuntou-lhe a zona queimada.
«Pode vestir-se. Até amanhã.»
«Até amanhã, Cidália.»
«E desculpe.»
Antes de vestir a camisa olha-se ao espelho e vê uma mancha vermelha que tem no centro um pequeno buraco.
«Porra!»
De futuro devia evitar os buracos negros, sugadores de energia. Teoricamente falando, claro. Mas naquele caso foi diferente. A energia excessiva queimou-lhe a pele e originou um outro tipo de buraco.
Demorou a vestir-se. Como de costume desde que apareceu a dor.
«Bom, vamos lá então para o ginásio.»
Naquela manhã fria de dezembro está mais pessimista do que nunca. Já vai na décima terceira sessão e os resultados são palpáveis. A dor continua fixa que nem uma carraça e é natural que só pense nas aves agoirentas que são o infalível ortopedista magister dixit e a simpática fisioterapeuta que mal consegue mover a cabeça para o lado.
«Agora segue-se o gnomo. Onde é que ela está?»
Baptizou-a com esse inquietante nome. De facto assusta-se quando os olhares se cruzam. Se existissem gnomos, ela seria um deles. Ou prima afastada.
A sua atenção fixa-se na secretária.
«Ah, lá está ela. Hoje tem companhia. Bata com outra cor. Mas é muito nova!»
Deixa-se ficar à distância, esperando que o chamem. Ao mesmo tempo observa a jovem desconhecida que está a falar com o gnomo. O cabelo curto, castanho-escuro, ainda a faz mais jovem. E os olhos... Desiste da observação e tenta disfarçar. Chegou a vez de ser observado.
Ela troca algumas palavras com o gnomo e ambas olham na sua direção.
«Será que vai pedir para lhe ler a mão?» interroga-se.
«A partir de agora sou eu quem vai tomar conta de si.»
Estende-lhe a mão.
«Chamo-me Sónia. A minha colega vai entrar de baixa.»
Bem lhe parecia. Mas aquela jovem...?
«Muito prazer. Eu sou o Mário. De facto a sua colega está muito incapacitada.»
Tem um olhar doce.
Mais uma vez ele e os olhares das mulheres. São muito importantes para ele, porquê?»
«O olhar é o espelho da alma.»
«E...?»
«Para mim é quase decisivo, Odete...»
Pensa que tudo vai de mal a pior. Em função da sua tenra idade, certamente que a fisioterapeuta ainda não ganhou experiência suficiente. Ele vai ser uma segunda ou terceira cobaia e desejava tudo menos isso e o gnomo, claro está.
«Pode deitar-se em cima da marquesa. Só tira os sapatos e fica de barriga para cima.»
Deitar-se em cima da marquesa, salvo seja...
Fica na expectativa, de braços estendidos ao longo do corpo.
«Como se sente?»
«Nada bem.» Admitiu.
«Cuidado, Mário!» teria dito a Odete.
«Que está ela a tramar?» pensou.
A jovem aproxima-se mais.
«Bem, não tendo em conta a dor, mal movo o braço para cima.»
«Não pertenço a esta clínica. Só venho substituir temporariamente a minha amiga. Vamos lá a ver como está esse braço.»
«Falou a esse respeito com a Carla?»
«Sim. Mas é irrelevante a sua opinião. Agora sou eu quem vai fazer a avaliação.»
«A avaliação dela foi muito animadora. E de falta de tato, nem se fala.»
Não comentou.
«Descontraia-se, senhor Mário. Bem me disse a Cidália que fica com os músculos todos tensos.»
«Não estou nervoso. E, por favor, trate-me só por Mário.»
«Ok, Mário. E vice-versa. É tudo medo ou receio?» tenta ironizar.
«Como assim?»
«Não lhe vou provocar mais dores do que as que já tem. Por isso, relaxe...»
«Farei os possíveis.»
Pegou no braço esquerdo e ergueu-o lentamente para trás.
«Quando doer faça um sinal com o braço direito.»
A viagem do braço foi curta.
«De facto isto está um pouco mal. Não prometo milagres, mas acredite que vai melhorar. Talvez até o ponha bom. Para isso tem que colaborar.»
«Deus a oiça, Sónia.»
«Mudando de assunto, que faz na vida?»
«Sou professor de Matemática.»
«Afaste para lá esse cálice!»
«Estou a ver o filme...»
«Ou tive uma professora péssima, ou então nunca dei uma para a caixa.»
Mário começou a dissecar mentalmente as causas do insucesso da Sónia na Matemática enquanto ela fazia o seu trabalho.
«Tente respirar pela barriga.»
«Como assim?»
«Faça um respirar mais profundo, como se viesse do abdómen. Vai ver que é fácil. É só uma questão de tempo.»
A fisioterapeuta pegou no braço e começou a movimentá-lo de baixo para cima e de cima para baixo como se fosse uma alavanca de trasfega de vinho.
«Se sentir dor...»
«Já sei. Grito em altos berros.»
O movimento incessante de vaivém prolongou-se indefinidamente, segundo a óptica de Mário. Ficou sempre do seu lado esquerdo, encostada à marquesa e perto dele, tão perto que sentia o contacto dos seus seios no braço. Ao mesmo tempo olhava muito séria para ele, talvez ausente ou talvez não. Estaria a fazer de propósito ao encostar-se, ou distraiu-se? Sentia-se bem a respirar pela barriga. Entretanto o seu braço ia aumentando o raio de ação sem que Mário sentisse a mínima dor.
«Pode fechar os olhos...»
A voz da jovem começou a vir de longe. Longeeeeeeee.
«Olhos bonitos, Odete.»
«De quem?»
A sua colega talvez sentisse ciúmes quando fazia alusão aos olhos das outras mulheres.
Teria querido alguma vez ir para a cama com ele?
Nunca lhe perguntou. Considerava-a uma mulher interessante, mas só pensava na Maria. E ele era como os touros que só viam a crença.
E o caso do punhal?
Quase de certeza que a Odete tinha culpas no cartório. Ele e a Maria foram traídos por ela.
Abriu os olhos.
«Há quanto tempo estamos na trasfega, Sónia?»
«Como assim?»
«No vaivém do braço.»
Sorriu.
«Vinte e cinco minutos. Sim, senhor, isso é que foi dormir!»
«Não me disse para fechar os olhos?»
«E relaxou. Foi muito bom.»
«Muito bom?»
«Para si.»
«Ah sim. Hipnotizou-me?»
«Credo!, amigo...»
«É que de repente senti os pés frios. Não pode parar por um momento?»
«Foi muito bom sentir os pés frios. Sinal que afastou a dor de si. Só mais cinco minutos.»
Vinte e cinco minutos. Com o gnomo não estava mais do que cinco minutos. E já era muito tempo.
Olhou em volta. Havia cinco pessoas à espera. Ela deu conta da sua observação e sossegou-o.
«Não se preocupe, Mário. Eles não estão à minha espera.»
«Não estão? Porquê?»
«São pacientes de outros colegas.»
«Quem és tu?» perguntou para dentro de si.
Ela continuava no seu trabalho rotineiro, sempre a olhar muito séria para ele.
«Pronto, por hoje chega. Experimente levantar o braço.»
Nem queria acreditar!
«Agora continue com o exercício do bastão, mas não se esforce muito.»
«Quanto tempo?»
«Cinco minutos. É quanto basta. Então até amanhã, Mário. Não tropece com o braço em nenhum lado.»
«É o meu maior desejo. Até amanhã, Sónia. Olhe uma coisa...»
«Sim?»
«Obrigado. Do fundo do coração.»
Despenteou-lhe o cabelo e sorriu. Sentiu-se embaraçado.
«Não é o que pensa. Foi só um gesto de ternura.»
E afastou-se. Os outros pacientes continuavam à espera que alguém os chamasse para o tratamento, aparentemente alheados de Mário e da eficiente fisioterapeuta que lhe caíra misteriosamente do céu.
Os dias passaram-se sempre iguais no ginásio e no gabinete de tratamento. Quanto à Cidália não voltou a deixar que ele se queimasse. E deu-lhe um conselho. Que não comprasse uma bicicleta estática para trabalhar os músculos das pernas e tudo o mais.
Mário perguntou porquê.
«Se a tiver no quarto, que é o local mais habitual para guardar um mamarracho que não se consegue esconder, desiste rapidamente de a usar e vai descobrir qual será a sua utilidade futura.»
«E qual será?»
«O sítio ideal para pendurar, ao fim do dia, o casaco e a camisola.»
«Acha que sim?»
«Compre uma bicicleta de montanha e desloque-se dez quilómetros por dia nos primeiros tempos. Depois, vá aumentando a distância em função da sua resistência física. Ou então, ande a pé. Vai ver que melhora a sua capacidade cardiorrespiratória.»
«Vou pensar nisso. De qualquer forma agradeço-lhe o conselho.»
«Conselho de amiga.»
«Acredito.»
Mário melhorou muito graças à competência e dedicação extrema da Sónia. Quase conseguia mover o braço como dantes. Só faltava o quase.
«Quantas sessões ainda tem, Mário?»
«Apenas duas.»
«Não precisa de mais, penso. De qualquer forma marque uma consulta para a médica fisiatra.»
«Vou marcar.»
«Ainda vai ter uns pequenos problemas depois dos tratamentos.»
«Então...?»
«Não se preocupe que tudo desaparece de um momento para o outro. Olhe, não posso estar presente depois de amanhã.»
«Mas amanhã vem...?»
«Penso vir.»
Foi como se um anjo tivesse caído do céu. Enquanto as outras fisioterapeutas estavam com ele no máximo três minutos, esta jovem que veio substituir a infeliz Carla ultrapassava os vinte. Além disso, era muito meiga, insinuante e demasiado interessada nas suas melhoras e também na vida profissional, pois perguntou-lhe se estava de baixa.
Disse-lhe que não.
«Pois... é o braço esquerdo.» Rematou.
Ensinou-o a descontrair, insistindo que respirasse pela barriga e que se concentrasse na respiração. Era uma forma de relaxar os músculos. Admitiu que deu algum resultado. O braço já ia mais atrás e praticamente não sentia dores. Ela movimentava-o para a frente e para trás como se estivesse procedendo à trasfega de vinho de um barril para outro. Deitado sobre um colchão fitava o seu rosto sereno, muito sério, aparentemente a olhar para ele.
«És bonita, Sónia. Estás a pensar no teu namorado?» perguntou só para mim.
«Queres almoçar comigo?» voltou a perguntar.
«Passa-se alguma coisa? Dói-lhe?»
«Nada, nada. Não me dói nada. Mas parece que tenho os pés gelados.»
«É natural. Não se preocupe. Vê que já está mais descontraído?»
«Toma juízo, Mário. Até podias ser pai dela...»
«Senhor Mário...»
«Ah sim, desculpe. Mas trate-me por Mário.»
«Adormeceu, Mário.»
«Sim?»
«Até sonhou alto.» Disse, sorrindo.
Seria que tinha ouvido aquilo que jogava serem os seus pensamentos?
Platão e o mundo primário das sombras. Qual era a realidade em relação à Sónia? . Nunca conseguiria ter sabedoria suficiente para seduzir aquela mulher que parecia ter caído do céu.
Seria um anjo? Mas os anjos que caíam na Terra tornavam-se mortais.
Raios! Até onde estava a ir a sua imaginação...
«Disse alguma coisa, Mário?»
«Não, não. Foi impressão sua, Sónia.»
Pôs-lhe uma mão sobre o ombro.
«Sente-me mais aliviado, Mário?»
Aquele olhar doce!
«Olhe, aviso-o que isto só passa de todo uns dias depois da última sessão.»
«Ótimo. Diga-me uma coisa, Sónia. Afinal como se chama isto que tenho?»
Não hesitou.
«É uma periartrite.»
«O bronco do ortopedista não deu esse nome. E disse que este problema voltava...»
«Nunca se sabe. Mas no seu caso acho que não. Lembra-se como aconteceu?»
Se se lembrava! Aconteceu na portagem de Loures quando esticou o braço esquerdo para premir o botão e retirar o tichet. Sentiu de imediato uma dor aguda. Entretanto passou. Aparentemente. À noite, ao despir-se, voltou para ficar e agravou-se com o passar dos dias.
«Estive quase três meses com esta coisa.»
«Foi demasiado tempo. Desleixou-se, Mário. Bom, tenho que ir à vida...»
«Sónia?»
«Sim?»
«Obrigado. Não desejo o mal de ninguém, mas ainda bem que substituiu a sua colega...»
«Ela está com grandes problemas nas cervicais. Até amanhã.»
«Até amanhã, Sónia.»
«Tal como aconteceu com a Maria. Não consegues montar o cavalo da coragem, Mário.»
Desta vez vez não lhe perguntou se tinha falado.
«Não se esqueça de fazer os exercícios com o bastão.»
«Não perdoa nada, Sónia.»
«Mesmo nada.»
Como nas outras sessões tinha voltado a adormecer, e a falar com o Ernesto, quando ela começou o exercício simulando a trasfega do vinho de um depósito para outro. Exercício que deu resultados surpreendentes logo a partir do primeiro dia que tomou conta dele
«Que frio!» tinha dito.
«Bom sinal, Mário. Está a descontrair...»
O seu problema principal residia na contração dos músculos.
«Já não sinto dores.»
«Deve continuar em casa o treino da respiração pela barriga.»
«Prometo.»
Prometeu e cumpriu. Pelo menos durante uns dias.
No dia seguinte ao da última sessão, Mário levou uma caixa de bombons belgas para oferecer à Sónia.
«Será que ela aceitar almoçar comigo?»
Mas, para grande azar, ela não apareceu. Ninguém lhe deu indicações sobre o local onde trabalhava. Ainda tentou subornar a funcionária do balcão, mas sem êxito.
Mas, para grande azar, ela não apareceu. Ninguém lhe deu indicações sobre o local onde trabalhava. Ainda tentou subornar a funcionária do balcão, mas sem êxito.
«Não sei. Sinceramente, senhor Mário.»
E regressou a casa com a caixa de bombons na mão.
«São para mim?» perguntou a Anabela.
«Eram para oferecer à fisioterapeuta. Aquela mulher é um anjo. Curou-me.»
Ficou grato à Sónia. Conforme ela previu, recuperou completamente uma semana mais tarde, não se confirmando a tenebrosa previsão do cretino do ortopedista. Só se a mesma estiver a acontecer no outro mundo de Sol esplendoroso em que a realidade de Platão esmaga o mundo obscurecido da caverna onde os sonhos se desenrolam e são a realidade.
Nunca mais viu a Sónia.
Aquela mulher era um anjo?
Ficou grato à Sónia. Conforme ela previu, recuperou completamente uma semana mais tarde, não se confirmando a tenebrosa previsão do cretino do ortopedista. Só se a mesma estiver a acontecer no outro mundo de Sol esplendoroso em que a realidade de Platão esmaga o mundo obscurecido da caverna onde os sonhos se desenrolam e são a realidade.
Nunca mais viu a Sónia.
Aquela mulher era um anjo?