terça-feira, 26 de novembro de 2019

Quem atira o comandante pela borda fora?



 
(… sobre a fase final duma época que todos nós conhecemos muito bem; ficámos no limite da linha vermelha, para lá da qual havia um abismo que se chamava bancarrota!

Já lá vão mais de oito anos, muita gente esqueceu-se, outros nem por isso e o mais importante, e negativo de tudo, é que ainda vamos ver o comandante a escapar no intervalo da água da chuva...)


Vamos nisso! Metralha metafórica.
O homem que está ao leme tem febre, delira. E não é bom porque, normalmente, os delírios são agitados e trazem consequências graves para quem é acometido por eles. Mas neste caso, parece que funcionam ao contrário. Por vezes até se ouvem vozes e veem-se coisas, embora não pareça ser o caso do homem que está ao leme no momento. O mar está calmo, tão calmo que lembra um lago. E ele, mais calmo ainda, tem tudo sob controle. Os marinheiros canhotos e os não canhotos. Os mais reguilas e também os espertos que gostam de armar aos cágados, mas que não chegam aos calcanhares dos reguilas genuínos. Quanto ao chefe dos marinheiros não é motivo de preocupação, pois só quer que todos se entendam e encontrem o tratamento mais eficaz para curar a doença contagiosa que se generalizou entretanto, embora em mudo de surdez. Assim, se não houver sobressaltos de monta, o barco que dirige vai chegar a bom porto. Mas dizem certas vozes abalizadas que o homem delira. Senão, vejamos:
«Ó senhor marinheiro, o senhor compara-se a um moinho de vento, pois já admitiu há anos precisamente o contrário. Quero dizer-lhe uma coisa que vai ser importante para se sentar e meditar. Isto se conseguir convencê-lo. Quanto mim, sou e fui sempre coerente. Por exemplo, ontem resolvi dar ordens na cozinha para não aumentarem o custo das refeições. E é muito simples fazer cumprir esta ordem, porque, hoje mesmo vou mandar reduzir as doses por marinheiro. É a lei do equilíbrio, senhor marinheiro. Tira-se num sítio e põe-se noutro.»

O marinheiro-chefe-da-cozinha diz que sim, embora para ele seja talvez.
«Mas, onde fica guardado o capital subtraído, ou melhor… retirado, meu comandante?»
«Isso é cá comigo. Ou melhor, vou dizer-lhe porque pode servir para memória futura. Tenho um amigo de infância que vai ser o fiel depositário do capital em questão e garante exclusivo quando precisar dele no futuro.»
«Ah! É uma ideia genial.»
«E quem sou eu, senão um génio? A médio prazo, ele vai emprestar-me, parcela a parcela, esse espólio. Agora pode ir ao seu trabalho.»
«Emprestar?»
«Sim, abécula. Ainda não percebeste?»
No momento não existem à vista escolhos na rota que traçou. Até porque se especializou a anular as vicissitudes desde que tirou aquele curso muito importante, segundo as más línguas, aos fins de semana e em tempo recorde. Não senhor, o curso é válido. Mais que válido. Outros já fizeram o mesmo e lixaram-se. Ele não, porque é o comandante e um comandante vale pelo que vale. Por estas e por não ter pruridos em cortar, fininho, a direito, seguiu sempre em frente na senda do êxito.
«Queres um lugar ao sol? Faz como eu.»

«E como faz o senhor comandante?»
«Olha, conquista-o a qualquer preço.»
No princípio da viagem que iniciou há mais ou menos cinco anos tudo rolou sobre esferas. Ou melhor: o barco flutuou sempre como se impunha, as “ratazanas” suas amigas não se inquietaram em momento algum porque, conforme o previsto, ninguém lhes fazia caça e a “carga acumulada” manteve-se sempre nos locais seguros, ideais para lhe dar a necessária segurança de modo a tornar efetiva a viagem fantástica, à volta da Terra em tempo inimaginável, levado pelo sonho de ser implementada em breve a nova aposta TGV (ah!, maldito mito!) no barco.

«No barco?»
«Sim, é preciso ter imaginação. O resto vem por acréscimo.»
«Não compreendo, mas está bem.»
Aliás, investir obsessivamente nas novas tecnologias foi sempre com ele. Só ele e o imediato bastaram para que essa viagem levasse sempre o azimute certo, sem terem que fazer o mínimo desvio. Foram quatro anos coroados de êxito e premiados com visitas históricas e produtivas a destinos há muito sonhados, obviamente com gastos substanciais em benesses e honrarias destinados a marinheiros-boys/objectos-chave contratados a bem do interesse do seu barco. Foram tão bons os anos que até deu para fazer várias benfeitorias no barco, planear novas rotas,  remunerar com generosidade alguns dos seus marinheiros. Tudo isto aconteceu entre o fim da viagem e a planificação para outra que se avizinhava um pouco mais complicada, mas para ele, homem que ia ao leme, não havia obstáculos que não pudessem ser contornados.

Foi então que o mundo mudou de uma semana para outra, após a ocorrência de um cataclismo, por exemplo comparado a um sismo de grau altamente destruidor, de preferência seguido de tsunami, ou então um super vulcão que entrou em atividade, devastador até dizer basta. Foi a explicação que deu e o seu imediato secundou-o porque também sabia do cataclismo. Isto é, assobiaram os dois para o lado. Um dom especial que têm marinheiros de categoria manhosa de alto lá com o charuto. Tudo bem, o cataclismo fora motivado por causas externas. Só que omitiu que esse sismo era uma das muitas réplicas já “sentidas” pelo seu sismógrafo que, por sinal, não mostrara ser muito sensível, por motivos obscuros, aos fenómenos mundiais. É que o grande, o poderoso, o decisivo, já tinha ocorrido há meses atrás, ainda antes do início da segunda viagem fantástica. Amordaçou a verdade tão bem amordaçada que nem o Pinóquio, criado magistralmente em madeira com muito carinho pelo pai Gepeto, teria arte e engenho para esconder semelhante mentira sem que lhe crescesse o nariz.
Como não procedeu no momento à reparação do casco do barco, após o embate violento provocado pelo cataclismo, que até podia ter sido um icebergue, viu-se a braços com um rombo enorme (leia-se dívida soberana duplicada) que não parou de alargar e o barco começou a meter água, mesmo muita água.
Que fazer?
Precisava de encontrar um culpado para se safar em beleza, como de costume, assacando a culpa para cima dos outros. Obra perfeita de um magnífico vendedor de ilusões.
«Ó senhores marinheiros!, mostrem mais dignidade no trabalho. Ensinem os mais novos. Sabem muito bem que temos que tapar a todo o custo este buraco no casco. É enorme e pode levar o barco ao fundo. Mais dignidade e afinco no trabalho. Preciso a todo o custo da vossa colaboração. Se não chegarmos a acordo é pior para vocês. Ficarão para toda a vida com um pesado fardo na consciência por não terem colaborado comigo.»
Lá em baixo, os marinheiros, canhotos e os não canhotos, culparam-se de imediato uns aos outros pelo desastre acontecido naquele barco adornado perigosamente para a esquerda, até então desconhecido, desastre que provocou o buraco colossal no casco do barco do homem que ia ao leme, embora pressentissem quem era o verdadeiro responsável. Não o enfrentaram porque o perigo consequente era grande, maior, bem maior que o rombo. Ele tinha-os na mão. Quanto ao chefe dos marinheiros, canhotos e não canhotos, não podia decidir nada. Não. E porquê? Porque não. Somente porque não e estava tudo dito.
Virou-se para o imediato e apontou o dedo:
«Como vamos de cálculos, António?»

«Bom... não é?»
«Achas que temos margem de manobra para o problema do barco?»
«Há muitos escolhos nesta zona, comandante. O barco está lento e desafinado e a nossa viagem começa a tornar-se perigosa. Por outro lado, não há peças sobressalentes e o combustível escasseia. Já enviei um SOS e disseram que não havia nada para ninguém, a não ser que concordássemos com as suas condições.»

«Condições? Ninguém impõe condições. E para disfarçar, só para disfarçar vamos continuar a manter os nossos projetos megalómanos.»
«Mas ainda podemos navegar se o mostrengo, que nos atemoriza e parece que está no fim do mar, não fizer mais ondas por enquanto e deixar engordar ainda um pouco a despesa para os projetos. E quais são essas condições?»
O imediato foi convincente.
«Bem, apertar o cinto e fazer cortes nas despesas. E concordo com a simulação dos grandes projetos. Por exemplo, insistir nos dois super barcos sem fundo.»

«TGV e Aeroporto? Ah!, escapou-me. Estamos a falar dos super barcos. Quanto ao mostrengo…?»
«Por enquanto esse mostrengo não nos vai engolir. Temos dois meses para sobreviver ao seu abraço final.»
«Só dois meses? Mas eu é que devia dizer isto. Trocámos as deixas.»
«Não faz mal. Estamos os dois no mesmo barco e nas mesmas contas.»
«Isto é que é uma porra!»
«Que porra, pá?»

«Estamos os dois no mesmo barco, mas serei eu quem, num futuro próximo, vou dar a má notícia.»
«E quem querias que fosse? Deixa comigo. Contudo, acho que temos que emagrecer o barco para se tornar mais leve. Manda deitar já a carga ao mar. Só assim vamos conseguir aumentar a velocidade. De nós, percebo eu. Nós cegos e isso tudo.»
«Também eu.»
«Porreiro, pá! E como vamos de rasteiras?»
«Na melhor…»
Enquanto o comandante cofiava o bigode que não tinha, o seu imediato, profeta com visão de longo alcance, traçava as linhas básicas da sucessão. As colossais dificuldades, "vulgo favas", que se avizinhavam ficavam para o futuro comandante e seus seguidores. Depois, era simples. Rasteira aqui, rasteira ali, muita manha, alianças imprevisíveis e o futuro era seu.
«Mas já o fizemos e o resultado foi nicles, bofes, pregadeiras.» Mentiu, ou fez que não fez.
«Como pôde acontecer este descalabro, ó António?»
«Aconteceu. Pronto, meu comandante. Mas já sei o que fazer para tapar o buraco. Como não me lembrei mais cedo?»
«Então diz lá.»
O imediato esfregou as mãos de contente ao ser iluminado por um pensamento sinistro, incandescente, que até ameaçava deitar lume.
«Baixamos os salários aos safados dos marinheiros que não fazem nenhum e com o dinheiro sacado paramos no próximo porto para comprar um motor novo e mais potente para o barco e também mais combustível, não vá o diabo tecê-las. E também alguns víveres para adoçar a boca aos nossos boys que começam a estar inquietos.»
«Isso, isso, os boys-marinheiros. Mas com esta situação grave, sem porto que nos acolha e subsidie, lá vou ter que apontar o dedo acusador de mestre-escola para qualquer lado que me vire. Que lado? Tanto faz. Diz-me uma coisa, António… achas que nos safamos com este novo pacote de emagrecimento?»
«Que pacote, comandante?»
«As medidas que precisamos para sairmos desta crise, asno.»
«Não me chames asno que afino.» Pensou, mas não disse.
«Não podemos demorar mais tempo neste embuste. Há mais buracos no casco, bem sabes. E outros ainda estão por formar-se. Se ficarmos aqui vamos ao fundo num fósforo. Temos que ir quanto antes buscar um motor novo e combustível.»
«E a verba?»
«Pois é. Só nos resta fugir.»
«Abandonar o barco neste mar que se adivinha alteroso? E o comandante até já disse uma vez: “fugir, nunca!”»
«Isso foi noutro contexto, minha grande abécula. O mundo deu uma volta muito grande de repente. Fazemos uma fuga para a frente, cretino. Vamos lá a todo o vapor para o porto de reabastecimento.»
«Demasiado tarde, comandante.» Disse o imediato, apreensivo. «Olhe!»
«Estou a olhar. Mas os alemães o quê?»
Largou o leme por momentos e pegou nos binóculos que tinha à mão de semear.
«Não vejo nada.»
«Pudera, comandante. Pôs os binóculos ao contrário...»
«Ah sim.»
«Sabe o que estou a ver?»
«Não, diz depressa que preciso de ir mijar com urgência.»
«Um grupo de marinheiros está a acenar para a corveta FMI.»
«São os sacanas dos canhotos, ou os cabrões dos não canhotos?»
«Nestas circunstâncias tanto faz. Olhe, comandante, até já lançaram um tiro de aviso. A situação é crítica, muito crítica. Rendemo-nos?»
«Sim, é melhor. Vai buscar a bandeira branca. Sei como dar a volta ao texto.»
Ou ele não fosse o comandante que ia ao leme.
«O comandante é o máximo.»
«E vamos lá a ver uma coisa... A culpa não é dos marinheiros que estão lá em baixo?»
O imediato coçou a cabeça.
«Também pode ser. Então já estou a perceber o filme. Trago duas bandeiras brancas em vez de uma. Rendemo-nos ao inimigo que vem na corveta e também aos canhotos, por exemplo. Não é nada connosco, diremos. Não é mesmo nada connosco quando o comando do barco passar para os canhotos ou os não canhotos que, entretanto, terão que se haver com o FMI.»
«Anda, vamos fugir no escaler de luxo.»
«Então vamos. Mas para onde?»
«Sei de um paraíso onde vou aproveitar para desenvolver uma tese e também viver à grande e à norueguesa. Tu, desenrasca-te.»
«À grande e quê?»
«Estou a disfarçar, meu otário.»
«Então está bem.»
«Vamos então para o escaler de luxo. E se também tiver um rombo?»
«Não se preocupe, comandante porque tenho uma cunha para o diabo.»
«Também é boa ideia. Ouvi dizer que dantes fazia muito calor lá, mas agora está tudo em greve porque o diabo já não tem mão em ninguém. Quando há lenha faltam as acendalhas e quando chegam as acendalhas alguém escondeu a lenha. Assim não há volta a dar.» Concluiu o comandante.
«Deu-me uma boa notícia, comandante.»
«Oui! O escaler de luxo já está no mar.»
«Avante!» incitou o imediato.
«Avante, não.»
«Então em frente.»
«Em frente também não.»
Novo coçar de cabeça, desta vez em simultâneo.
«Não te lembravas, pois não, não te lembravas...»
«Que bronca, comandante. Não é que me esqueci de lhe dizer uma coisa?»
«De quê?»
«Isto é tudo uma farsa. O barco está na doca seca para tapar o buraco e não temos dinheiro sequer para fazer cantar um cego...»
«Isso é o que tu julgas. Não esqueças que estou ao leme. Temos que continuar a fingir, embora não saiba para onde vou. E também sei que não vou por aqui, a partir deste beco sem saída. E olha uma coisa, agora falo para ti, mostrengo que treme com todos os dentes que tens, contando com os postiços. Enquanto estiver ao leme não há mostrengo que me abata. Já outro homem o enfrentou e não passava de um simples marinheiro às ordens de El-Rei D. João Segundo que, segundo se sabe, não tinha as novas tecnologias do Magalhães.»
«Ah, pois. O Magalhães. Uma lança em África. Eu sei, comandante. Mas não foi num país da América do sul?»


O homem que está ao leme tem febre, delira. E não é bom porque, normalmente, os delírios são agitados. Por vezes até se ouvem vozes e veem coisas. Mas parece não ser o caso do homem ao leme. O mar está calmo, tão calmo que lembra um lago. E ele, mais calmo ainda, tem tudo sob controle. Os marinheiros canhotos e os não canhotos. Os mais reguilas e os espertos que gostam de armar aos cágados e não chegam aos calcanhares dos ditos reguilas. Quanto ao chefe dos marinheiros não é motivo de preocupação, pois só quer que todos se entendam. Assim, se não houver sobressaltos de monta, o barco que dirige vai chegar a bom porto. Mas dizem certas vozes abalizadas que o homem delira. Ai delira, delira e há muito tempo. E quem está a pagar as favas são os mexilhões de calibre médio e também os de calibre médio baixo. Como de costume os de maior calibre safaram-se. Os ditos tubarões. Como aquele que simulou uma chifrada num local público.
Entretanto os sindicatos do barco em terra...
«Ao ataque, companheiros... vamos a ele. Onde está esse tal comandante mestre-escola, que gosta de apontar com o indicador, para o empurrar pela borda fora?» perguntou um sindicalista, deveras irritado. «Se o apanho se o agarro...»
O homem do leme pensou três vezes e três vezes teve a mesma ideia.
«Olha o capuchinho vermelho! E que nariz tão comprido! Sabes onde se escondeu o manhoso do comandante?» perguntou um outro à personagem do imaginário das crianças do meu tempo.
«Não, não sei. Ó senhor marinheiro! Procure noutro sítio e talvez o descubra.»
«Que grande porra! E tu?, por acaso sabes?» perguntou à avozinha.
Esta tinha a resposta na ponta da língua.
«Frio frio como a pedra do rio.»
Claro que a avozinha era o imediato a sair de fininho do barco.
Só com esta simulação do tipo das “histórias da carochinha” é que o comandante se safou no último momento de ser linchado. E, quer acreditem quer não, uma história metafórica como esta aconteceu num país real que se afundou lentamente por teimosia e inépcia do seu “comandante mestre-escola ambicioso e gabarola” que não soube (ou não quis) enfrentar a tempestade que há muito se avizinhava no “horizonte”.
«Está tudo bem. Vamos afundar-nos, mas adiante... que atrás vem gente para fechar a porta!»
Ilusionista de primeira água, iludiu a maioria dos marinheiros e ignorou os avisos à navegação daqueles que retratou como sendo os novos e maldosos velhos do Restelo, vindo infelizmente a acontecer o naufrágio tal qual como estes tinham previsto.
«Lá vai ele! Atirem-no pela borda fora...» Disse um.
«Demasiado tarde! Este que agarrei é o Pinóquio mascarado de Capuchinho Vermelho. O outro bem nos enganou.»
Até ao fim do fim, acrescenta o narrador.
«Ah sim. A esta hora o comandante já está bem longe a estudar "a maneira de tornar as coisas fáceis em difíceis"...»
«Paris já está a arder?»
«Não.»
«E quem vai sair bem desta história?»

«Quem vai sair mal, já sei.»
«Está-se mesmo a ver que o comandante e o imediato vão safar-se em beleza. Rasteira aqui, rasteira ali... Li no futuro.»
«Estão está bem.»
«Duvido que esteja.»
Voltando ao comandante...
Há comandantes como este, que não parecendo o que são, são aquilo que este pareceu ser sempre. Uma vez identificados nunca mais são esquecidos, embora muitas vezes sejam libertados porque a lei está do seu lado pelos piores motivos. Na minha modesta e leiga opinião, claro.
Finalmente, fica a pergunta:
Porque foi que ninguém teve a coragem, em devido tempo, de empurrar pela borda fora este diabólico hipnotizador de marinheiros e não marinheiros?

POSTERIORMENTE...

22 de outubro de 2020
O comandante já não navega, mas continua a escapar no intervalo dos pingos da chuva. Quase afundou o barco que, entretanto, foi posto a flutuar pelo Segundo Comandante ou o quem quer que seja. A princípio, o mar estava calmo e ele fez façanhas que muitos fariam em tempos de vacas gordas. Até pôs o Diabo debaixo do braço, vejam lã! Mas esta criatura maléfica chateou-se e deu ordens ao mar para que as suas ondas se levantassem, alterosas, vindas do "inocente oriente". E as vacas emagreceram, continuam a emagrecer e vão continuar a emagrecer até terem só pele e osso. Entretanto o comandante de agora diz que não larga o "tacho", perdão, o barco, nem por nada, por mais que emagreçam as vacas. "Que se lixem! Há valores mais altos para além do défice!" 
Acontece, para mal dos nossos pecados, que tem poder até dizer chega. Nem no tempo da velha senhora tal acontecia porque essa era forreta e não distribuía benesses a quem quer que fosse. Este comandante é a antítese da velha senhora e os seus "boys" não são esquecidos. Assim, o "polígrafo" diz que é verdade que o comandante continua a ter poder, mas não consegue prever até quando.

Mas diz a profecia dos ciclos que, um dia, não muito longínquo, vai perder o seu sorriso otimista ao deparar com uma força abismal, portanto de fundo, sem retorno, a atrair o seu querido barco para o maneta. Resultado: ele e os "boys" terão que abandonar o barco, tal como fez o outro, mas por outras razões. Dúbias razões. E diz também a profecia que virá outro comandante, lá dos lados opostos ao comandante "canhoto", para tentar o resgate do barco, como aconteceu da outra vez.
Porra!, os milhares de marinheiros do navio andam cegos e os de outros navios não são capazes de lançar o "grito do Ipiranga"?
Desculpem lá alguma coisinha por este "porra", mas dá mesmo vontade de dizer. 
"O povo é sereno", dizia Pinheiro de Azevedo. 
Pois é. Mas oxalá desta vez não perca a memória...
Viva o hidrogénio! 

Até...

Um sorriso para a posteridade
para que não se esqueçam deste comandante!


terça-feira, 22 de outubro de 2019

A voz penada

 


 

Aquilo deu-me a impressão de um gemido. ­No entanto não queria fazer uma suposição de­finitiva sem ter a certeza do que seria. Não arrisquei, ao contrário do que costumava fazer nos jogos de póquer fechado, com mais precisão, o bluff. As dúvidas eram mais que muitas. Como aquela que me assaltava o espírito naquele momento. Se havia lógica ou não andar pelo campo àquela hora da noite. O melhor era deixar-me de medos que não tinham importância para aquela altura. Mas o medo era mais premente. Estava ligado ao canavial de silhuetas mudas, que­das e fantasmagóricas que tinha na minha frente. Naquela noite sem luar, não se notava a amplitude da sua extensão, abraçando sempre um caminho estreito e irregular, de altos e baixos. Mas parecia que come­çava perto para acabar logo em frente. A seguir era o desconhecido.
Dei mais meia dúzia de passos cuidadosos e estaquei. Tinha na minha frente um moinho arruinado, algo comparável a um monstro de cinco ou seis braços que agar­ravam em círculo tudo o que passasse nos seus domínios. Sabia do velho moinho que ficava perto da aldeia, agora mergulhada na escuridão. Os benefícios da civilização tinham passado ao lado, excetuando a vinda recente da eletricidade. Além do mais, os seus habitantes tinham por hábito deitar-se muito cedo, como costumava dizer-se, logo que as galinhas tomavam as suas posições hierárquicas nos poleiros. Eu não era propriamente da aldeia, nem laços minimamente me prendiam àquele meio rural. Talvez o acaso, mas também de propósito. Na aparência, era difícil de compreender, como eu, amante cem por cento do bulício duma grande cidade, sem dar atenção aos malefícios já mais que rebatidos que advinham do meu desejo de ter sido sempre, ou para sempre, citadino, me fora enterrar naquele ermo onde se respirava saúde e corria o risco de adoecer. De certa maneira, abandonara o meio viciado para me contaminar (e era a minha ideia) na pureza e simplicidade do campo. Mas costuma dizer-se que...
Fui interrompido nas minhas cogitações.
Agora o gemido fora mais intenso. E havia uma razão: estava mais perto. Deitaria as mãos no lume se ele não viesse do moi­nho.
A primeira ideia que me ocorreu é que torturavam alguém. Torturavam.
Como podia saber que havia mais do que um bandido no interior do moinho?
Se tivesse comigo uma lanterna o caso mudava de figura. Assim, estava a jogar no escuro (de novo o famigerado jogo do bluff). A jogar no escuro, não seria. Mas que me movimentava no escuro era uma verdade indubitável.
Ouvi um novo lamento. Desta vez não restavam dúvidas. O som vinha mesmo dos lados do moinho. A ideia de que torturavam alguém tomou forte consistência e senti os cabelos eriçarem-se.
E a aldeia que dormia pacatamente!
Comecei a ficar nervoso. Não podia descontrolar-me. Um homem era um homem e um bicho era um bicho.
Mas porque estava àquelas horas naquelas paragens sinistras?
Muito simples. A Lígia, minha nova namorada, foi passar férias a casa dos avós e convidou-me para passar uns dias com ela. Nada de dormirmos na mesma cama, entenda-se. Os hábitos conservadores dos avós assim o impunham. Mas na cidade, a nossa relação era igual.
Gostei da mudança de ambiente, embora acreditasse que nada adiantava para consolidar a minha relação com a Lígia. Ao fim de uma meia dúzia de meses de namoro estávamos quase no ponto de partida. Ela justificava-se que precisávamos de conhecer-nos melhor e eu, porque não queria deitar tudo a perder, pelo menos naquele momento, estava expectante, à mercê dos seus muitos travões que considerava ilógicos. A minha forma de estar na vida era outra e de certeza que o tempo se encarregaria de dar uma solução.
Isso pensava eu. De repente tudo mudou numa noite de uma forma radical quando fomos ao baile de fim-de-semana da aldeia. Uma boa ocasião para os nossos corpos se aproximarem mais um pouco e, de certa maneira, um desafio às leis nada flexíveis da Lígia.
Quando dançávamos uma música lenta, de súbito as luzes tinham-se apagado.
«Oportunidade de ouro!» pensei.
Contra todas as expectativas ela atacou primeiro. Senti-me agar­rado. O contacto do seu corpo quase que me descontrolou. A situação piorou quando ouvi a sua voz doce, sussurrando-me ao ouvido:
«Tenho medo, Mário!»
Cheguei-a mais para mim, aproveitando o momento raro. O primeiro naqueles seis meses de um namoro insípido.
«Eu estou aqui, Lígia. Nada receies. Chega-te mais a mim. Assim, minha querida.»
Erro de cálculo. Um beliscão chamou-me de imediato à realidade. A magia do momento tinha durado só um momento. Depois, a luz voltou.
Senti que me olhava em ar de censura, mas dei comigo a pensar se, de facto, ela teve medo do escuro quando a luz se foi.
«Não imaginei que pudesses chegar onde chegaste, Mário!»
«Bem, Lígia. De facto cheguei muito longe. Ou melhor: ficámos ainda mais longe...»
E deixei-a no meio da sala.
Mas não posso pensar mais neste caso que parece encerrado. Até porque os malditos gemidos me perseguem. Estou convencido que são gemidos. Ou será o piar de qualquer ave agoirenta?
Ave agoirenta que devia ter piado ontem, antes da luz se apagar no baile.
Volto a olhar para os caniços e agora com desconfiança redobrada. Num eventual momento ven­toso, o agitar grotesco dos caniços daria uma ideia mais ampla do ambiente criado pela escuridão de uma noite de lua nova.
Talvez aquela noite fosse dedicada às almas perdidas que se juntavam para não terem medo.
Sorri.
Teriam medo dos mortais?
Brincariam com lençóis e correntes com o fim de se convencerem que tira­riam proveito desse modo de intervenção?
Ataca primeiro. Ficas sempre em vantagem.
Viu-se o resultado. A Lígia atacou primeiro mas desistiu logo.
Voltei a sorrir e arrependi-me de imediato ao fixar o olhar no monstro de braços radiais. E de novo os sons estranhos. Tinha que descobrir a sua origem, convenci-me de vez. De súbito, ouvi passos. Lérias. O meu espírito criava alucinações. Era certo. Gemidos, passos na vereda, silhuetas imóveis que pareciam avan­çar, monstros, outra vez gemidos, passos...
ALUCINAÇÃO!
E afastei-me daquelas paragens, como se fugisse de um dragão. Mas os dragões não exis­tiam, senão naquele momento no meu inconsciente que parecia apostado e desestabilizar o seu censor, o todo-poderoso consciente.

Era uma borboleta impressionantemente bela, favorecida com a quase totalidade das sete cores do arco-íris. Não sei porquê, mas soou-me falsa a sua presença naquela paisagem agreste. No conjunto de um caminho tortuoso, abraçado estreitamente pelo canavial de guardas serenos e urzes que ocupavam os espaços despidos, não havia um motivo campestre que se aproximasse da vivacidade graciosa do inseto. As árvores eram raras e esguias. Tudo à minha volta transpirava aridez.
Pouco ou nada dormi. Deixei-me sugestionar pelas emoções sentidas na véspera, naquela noite cem por cento negativa. Primeiro, foi a tragédia ocorrida no baile. Depois, o caso do hipotético homem, mais a apontar para fantasma, cujos gemidos pareciam vir dos lados do velho moinho abandonado.
O sol já despontava no horizonte quando voltei às proximidades do moi­nho. Lá estava ele, agora sem a aparência de monstro horrendo. De dia, não era mais que um velho moinho em ruínas, abandonado. Os caniços emprestavam apenas a aparência duma fragilidade que não partia com facilidade. Vergava. Como o espírito que ia à terra erguer a sua outra parte. Ou como o vencido que buscava elementos para desculpar a derrota e que acabava por vencer. A Lígia derrotou-me com o seu conservadorismo duvidoso. A sua reação não passou de um subterfúgio para me experimentar. Mas que diabo! Não tinha lógica. Assim, acabei com a minha ação de apaixonado expectante e rompi com ela. Quanto à Lígia derrotou-se a si própria. Destruiu talvez a sorte, se eu era a sua sorte. E duvidava que fosse.
«Quando pensares melhor, volta. Podes crer que fico à tua espera, Mário. Reconsidera. Apesar do que aconteceu...» Disse-me hoje ao pequeno almoço.
E o que é que aconteceu?
Nada. Não se passou absolutamente nada. Nunca aconteceu nada para nos aproximar. Apenas cansei-me de esperar.
Foi uma noite diferente. Estou convencido que somos nós que fazemos o destino. A Lígia não aproveitou o momento para se libertar das suas defesas púdicas. Aliás, já nem me interessava saber se gostava dela ou se estava movido pelo espírito da conquista difícil. Não tinha qualquer interesse para mim.
O nosso destino tinha desaparecido ontem.
Caso curioso, pareceu-me ouvir um gemido.
E as alucinações também podem voltar?
Aproximei-me do moinho. A borboleta de cores garridas atravessou o espaço na minha frente, como que a desafiar-me. Senti inveja de não poder ser como ela, de não conseguir galgar o desconhecido sempre em plena liberdade. Senti inveja de não ter o que queria, de não ser senhor absoluto do meu egoísmo. Infelizmente desejava mais sorte aos outros do que a mim.
Lá estava a borboleta pousada numa alcachofra, abrindo e fechando as asas, ritmadamente. Duas belezas em choque: a do “verdadeiro belo” e a do “feio belo”.
E porque não destroçá-las?
Claro que a ideia não vingou.
Um gemido perto.
Alucinação?
Resoluto, entrei no moinho. Lá dentro estava escuro. Aliás, não contava com outro cenário.
Acendi o isqueiro, estendi-o em todas as direções e foi então que vi. Um vagabundo dormia. Fiquei a observá-lo, não conseguindo evitar um sorriso de frustração. De facto os dragões não existiam, a tortura tinha sido fruto da minha imaginação, os caniços não passavam de simples caniços e não foi desta vez que enfrentei um fantasma.
De vez em quando, o vagabundo soltava algo semelhante a um queixume.
O curioso é que, no fim de tudo, dormia tranquilamente.
E porque não?
O infeliz-vagabundo-felizardo não pagava IRS, nem tinha compromissos de qualquer monta.
Saí do moinho. O sol bateu-me de chapa e semicerrei os olhos.
«Caso arrumado.» Pensei.
Ou casos arrumados. O do gemido e também o da Lígia. Não queria saber se tinha esticado mais a corda para me atrair, ou se a sua reação fora de alguém que afinal não gostava de mim o suficiente para a nossa relação insípida ir para a frente. Não queria saber da sua pele macia nem especular sobre o sabor dos seus lábios. A indiferença ditava leis. Irreversíveis.
E como não queria saber, talvez por analogia, talvez porque sim... talvez porque não, dispus-me a destruir simbolicamente a borboleta e a alcachofra...

terça-feira, 6 de agosto de 2019

O admirável mundo de amanhã

Preocupa-me uma doença terrível que tem como objetivo único aniquilar a memória e consequentemente as funções mentais que influenciam a autonomia de qualquer pessoa. É uma doença silenciosa que se confunde com outras doenças degenerativas das funções nobres do cérebro. Manifesta-se em dois a três por cento dos indivíduos com idade superior a sessenta anos e vinte por cento dos que têm idade superior a oitenta anos. Mas podem aparecer mais cedo os sintomas que funcionam como marcadores: perda de memória de acontecimentos recentes, incapacidade de realizar tarefas tais como cozinhar, tratar da higiene, lidar com dinheiro. Como reforço negativo, à medida que a doença progride, surgem a perda de orientação, a agressividade, a incontinência de urina e fezes, o reconhecimento do parentesco que leva os doentes a chamarem pais aos filhos, chegando ao desconhecimento de reconhecer rostos familiares.
O doente acaba acamado e totalmente dependente de terceiros.
A causa desta terrível doença parece estar numa proteína que pode provocar ínfimas alterações moleculares que acabam num processo de destruição dos neurónios: a proteína p25 que se acumula no cérebro, supõe-se. É uma química do esquecimento em que as memórias de curto prazo armazenadas no cérebro se desvanecem ainda mais rapidamente se houver uma lesão numa região que faz a ligação com o hipocampo; a zona ligada à aprendizagem e memorização é tornada inativa.
Ora os cientistas americanos chegaram à conclusão que basta manipular uma proteína do cérebro da clássica Drosophila melanogaster para que este insecto consolide, com uma eficiência dez vezes superior, a sua memória permanente. Com base neste êxito sonham já entrar na bruma da memória perdida dos doentes Alzheimer.
Um gene, de nome creb é o responsável pela produção de duas formas de proteína ligada à memória: a repressora da memória e a ativadora. Esta última, quando fabricada em grande quantidade, acelera a formação da memória permanente e as duas proteínas atuam sobre o ADN como reguladoras da função de outros genes implicados na formação da memória. Elas são o sim e o não, mas, na minha modesta opinião, o terceiro excluído, talvez seja uma forma de dosear a composição que se estende ao longo do corredor “sim/não”, pois não entendo como conseguirão os investigadores fazer com que o cérebro só se lembre das coisas que valem a pena serem lembradas (e o que vale a pena para mim, valerá também a pena para outra pessoa?).

Desconheço o estado em que estão as investigações nos tempos atuais. Esta descrição atrás mencionada reporta-se aos anos noventa.

Especulando, e se o cérebro dos sábios idiotas produzir em excesso as tais proteínas ativadoras?, será que passarão a ser os sábios idiotas mais?
O objetivo final dos cientistas é talvez uma utopia: manipular [1] as proteínas humanas das pessoas que sofrem de doenças que destroem a memória, como a doença de
Alzheimer, dando-lhes a possibilidade de recuperarem a memória perdida. Parece que há estudo atuais promissores.
Mas a utopia não é algo que se concretizará no futuro, infinitamente distante ou não?
Esta descoberta admirável que os cientistas americanos fizeram numa proteína do cérebro da mosca-vinagreira talvez que faça acordar os iluminados que querem abolir as longas viagens que se faziam, no meu tempo de menino e moço, pelos rios, afluentes das margens esquerda e direita, linhas de caminhos de ferro (com todas as estações e apeadeiros), datas da História, tabuada, etc, etc..., processos agora considerados traumatizantes para as crianças que nunca foram agredidas psicologicamente tanto como agora, não tomando em linha de conta as alterações climáticas, com as surpreendentes evoluções tecnológicas de efeitos imprevisíveis no futuro.
Mas a tabuada... Que coisa abominável!
Abaixo a tabuada que tanto cansa e traumatiza as pobres criancinhas! Um joguinho de computador, sim. Mil e muito mais, se for preciso, e aí tempos uma dependência tão terrível ou mais que as drogas ilícitas mais poderosas!
Oh!, senhores do Magalhães (2)
! Que delícia!, negociatas à parte (está atento, Pinóquio, que um dia podes ir a "votos" na praça pública sobre a tua pessoa!), os reflexos desenvolvem-se muito com os joguinhos...
Epilepsia?... o que é isso?
Ouvi dizer que não tem nada a ver nos jovens com o uso excessivo dos jogos de computador.
Ou será que é precisamente o contrário?
Que vontade tenho de rebolar no chão a rir!
Não importa. Já me esqueci. Talvez seja melhor deixar as torturas do treino da memória e "preparar com consciência" os Alzheimer precoces, que os surdos das discotecas já cá estão e muito bem instalados. Quantos mais decibéis, melhor, não é? Não é? Julgava que sim.
«O quê? Não ouvi peva do que disseste. Esquece. É bué da fixe esta curtição dos martelos!»
Tudo isto acerca da memória permanente daquela mosquinha do vinagre, com que objetivo?
Fico a pensar, a pensar...
Ah!, já me lembrei. Que bom! Falta a história.

O Octávio e a Mariazinha eram meus alunos e, à parte isso, formavam um par harmonioso. Ambos casados e com filhos, mas não casados um com o outro. Eram dois alunos do curso noturno dos anos 80, ainda do tempo em que a memória permanente tinha espaço de manobra de forma a permitir aos alunos fixarem quatro ou cinco palavras do sumário da lição sem que fosse preciso repetir, palavra por palavra, como começa a acontecer agora. Nesse tempo remoto, a Matemática ainda se alicerçava no cálculo mental e os alunos traziam consigo restos daquele treino tão traumatizante, tão ingloriamente eficaz para atrasar a chegada da falta de memória.
Pois foi nessa época dos anos 80 que dei aulas de Matemática a esses dois alunos: o Octávio, porteiro de olhar perspicaz e femeeiro atávico, e a Mariazinha, ajudante de boticária com alguns anos de tarimba e toda cheia de sensualidade. Por acaso ficaram sentados lado a lado, se é que alguma coisa acontece por acaso. Ambos vinham cheios de boa vontade de acabarem o ano letivo na posse do almejado certificado de habilitações, tão importante para progredirem nas suas vidas profissionais.
Tiveram muito tempo para treinar o cálculo mental, uma forma de ginástica que no futuro deixaria de ser feita.
Está escrito e tem muita força. Mal ou bem, a máquina de calcular (3) liquidará o cálculo mental, que matará a memória, que vai abrir o caminho glorioso aos
Alzheimer prematuros.
Porque fiz sempre cálculo mental, os esquecimentos que mencionei atrás são jocosos. Ponto final, parágrafo.
Lembro-me perfeitamente do Octávio e da Mariazinha que se conheceram acidentalmente por serem da mesma turma e que conheci, também acidentalmente, por terem sido meus alunos do curso noturno. Tive muito prazer em contribuir para a sua formação, nem que tenha sido só porque tinham a tabuada na ponta da língua, como era uso dizer-se.
Num futuro não muito longínquo a Matemática terá outros suportes. Os raciocínios serão mais puros. Já sem as redes protetoras e repousantes do cálculo mental, os resultados aparecerão inexoravelmente certos. Os alunos introduzirão os dados no computador e darão ordem para este perguntar aos seus circuitos que rotinas serão usadas. Em instantes têm o resultado.
Mas... resultado de quê?
«Anselmo... qual é a questão?»
«Isso gostava de saber, Tiago. Também não me lembro!»
Perguntaram ao professor, que procurou o enunciado num monte de folhas.
Qual delas?
(Um pouco de ficção não tem nada de mal. Faz de conta que também me esqueci. Estou a brincar. Sou doutra geração.)
Perante tal condicionante, faça-se luz. Sempre. Para que o sucesso seja de 100%, como o desejam os governantes que vigiam a oposição que está sempre a sabotar os circuitos elétricos ligados aos cálculos estatísticos do sucesso educativo.
Mas estava a falar do Octávio-porteiro e da Mariazinha-boticária, que se conheceram acidentalmente por serem da mesma turma, e que conheci, também, acidentalmente, por terem sido meus alunos, no tempo em que a Matemática não dependia, em última análise, dos sabotadores da corrente elétrica. Estes alunos tiveram a felicidade de aprender os segredos do cálculo mental, trabalhando nas profundezas secretas onde a memória permanente se expandira por mais uns megabytes, e também de contarem, um ao outro, segredos que a Matemática não abrangia. A esse respeito, não sei se o sentimento que nutriam um pelo outro era puro, ou apenas aproveitaram a monotonia das suas vidas para experimentarem novas sensações. Adultos que era, viveram o seu romance como puderam. Viveram eles e os colegas. A tal ponto, que conhecedores da realidade inibidora de cada um, não deixaram de os ajudar quando foi preciso. Como naquela noite em que o marido da Mariazinha surgiu desabridamente na escola com uma criança ao colo. Não sei bem o motivo, mas o certo é que os colegas "esconderam" o Octávio-porteiro das vistas do homem traído e só o trouxeram à luz da noite quando o perigo passou. O tempo correu e tudo voltou à normalidade. Afinal a relação entre os dois não passou de um simples escape às suas vidas rotineiras.   

Tenho saudades desse tempo em que ainda não adormecia de tédio, porque nas aulas sentia-se o pulsar do barulho saudável do amaldiçoado cálculo mental pelos iluminados que considero os precursores do aparecimento mais precoce da doença que Alois Alzheimer descreveu em 1906. Nunca mais vi o Octávio-porteiro. Quanto à Mariazinha-boticária, via-a durante mais algum quando visitava a farmácia onde trabalhava. Era uma mulher interessante e o Octávio soube disso, em seu tempo, melhor do que ninguém.
Reconhecida por ter-lhe ensinado os segredos do cálculo mental, e também pela sorte de ter conhecido acidentalmente, insisto, para consolidação de memória futura, o Octávio-porteiro, seu insinuante companheiro de carteira e de vãos de escada, fazia-me sempre um razoável desconto nos medicamentos não comparticipados pela A.D.S.E., debaixo do meu olhar ansioso, não fosse ela usar a maldita máquina de calcular. Até que um dia deixei de a ver, pois saí de Lisboa para a cidade que foi a minha vila de ontem.
 
Não se sabe, o que nos reserva o admirável mundo de amanhã, mas deposito uma confiança sem limites nestes dois companheiros e amantes doutros tempos e tenho quase a certeza que não morrerão com a maldita doença de Alois Alzheimer.


(1) A palavra “manipular” causa-me calafrios!
(2) Referência aos nebulosos tempos "socráticos" e aos negócios com um ditador venezuelano.
(3) Profecia dos iluminados.

sábado, 6 de julho de 2019

Ela disse que não!


Queria encher a nossa cama de brilhantes e rubis, mas não era um homem rico. Só tinha pétalas para te oferecer. Infinitas pétalas da cor da paixão.
Os primeiros raios de sol atravessaram os cortinados transparentes e tu pestanejaste. Então, com cuidado, soltei-me do teu abraço suave, saí da cama em direção à janela e corri lentamente a persiana, não fosses acordar. Voltei a olhar para o teu rosto sereno e senti-me o ladrão enamorado que acabava de roubar uma joia preciosa, continuando à espera de acordares. E estava a acontecer. Mexias-te na cama, esticavas os braços, soltavas um suspiro de agrado e procuravas com as mãos o lugar que agora estava vazio.

Ergueste-te na cama, sobressaltada.
Adivinhei a tua angústia e num salto fiquei junto a ti.
Esfregaste os olhos, espreguiçaste-te e voltaste a pestanejar.
Debrucei-me sobre ti e beijei-te levemente os olhos, o nariz, os lábios. Depois, olhei para os teus seios firmes, desnudos, e tu sorriste, com malícia.
«E o café da manhã?»
Encolheste os ombros.
«Deixa para lá. Vem fazer amor comigo, vem!»
E eu deixei para lá. O café, fumegante, que esfriasse sobre a mesa. Outros valores mais altos levantavam-se.

«Sim, meu amor, já não é preciso contarmos a passagem do tempo. Antes que ele passe por nós e nos triture, vamos enganá-lo e fugir no nosso cavalo alado que nos vai transportar para fora da galáxia, até uma distância razoável de muitos anos-luz onde ele já não pode chegar. Depois, vimos tomar o café. Já frio, que nós não damos conta.»
«Sim, amor. E um vodka gostoso…»
«Não!, porque vês voar colibri. Não te quero perder!, meu amor.»
«Seu moço bonito! Não me olhe assim! Mais um vodka não faz mal. Só mais um.»
Não fazia mal, não, se houvesse um fim para a série interminável de vodkas que ela bebia. A sua sede não tinha fim. Sede, ou um desejo de esquecer. Mas esquecer, o quê? Nunca me disse. Fazia questão em dizer em público que gostava de vodka, mas, ao mesmo tempo que dizia sentir-se infeliz, não explicava o motivo. De certeza que não era eu. Já falava de vodkas gostosos quando a ouvi pela primeira vez numa sala de conversação que descobri por acaso.
Bebeu, bebeu, viu voar milhares de colibris. Até que um dia... 


sexta-feira, 7 de junho de 2019

O dia cinzento

 







No céu cinzento vejo gaivotas. Voam baixo. Em circulo. Hoje não são livres. Qualquer coisa as desorienta. Talvez o cheiro a desencantamento. Não picam para a rebentação em busca do peixe que se aventurou à superfície das águas. Não oiço o seu grasnar excitado. Voam em silêncio. É estranho! O dia não tem ruídos. Nem sequer as ondas murmuram segredos às areias da praia. O único segredo está fechado cá dentro. Vozes de revolta abafadas, do outro eu que sabe a verdade. A náusea, enquanto vai abrindo gavetas. O desejo de fugir antes que ocupe todos os circuitos. Fugir. Continuar a fugir, mergulhando sempre mais fundo. Mas fugir para onde, se estou cercado...?