quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Os vermes

Na realidade é assim ou quase assim...


Era forçoso acontecer. Os fatos escuros. As gravatas pretas. O caixão. Tudo devidamente tratado, à espera duma oportunidade.
Entretanto o velho ainda vivia. Teimava em sobreviver. Mas tinha os minutos contados. Que diabo!, já com mais de oitenta anos... era tempo. Se fosse focada uma das teorias da reencarnação, alguém do outro mundo estaria há muito aguardando pela sua morte. Nessas circuns­tâncias, o tempo de vida do velho estava por um fio. Coisa momentânea. O espectro da morte preparava o último assalto.
Eles sabiam. Não fora o acaso que os levara a comprar os fatos, a encomendar o caixão em mogno e a sonhar com o ouro que ele tinha guardado no cofre ferrugento e tudo mais. O velho ia morrer. Ficava-se. Era um absurdo pensarem em melhoras. Não, nada havia a fazer. Aquele velho era objeto impraticável duma medicina sem sobressalentes. Caso arrumado. Mas seria curioso ver as peças gastas dum organismo bem fabricado, fora de série, daqueles que duravam mais que as pilhas duracell aaa. O que o médico legista ia pensar quando visse aquela obra prima! Tanto para retalhar e aprender!
Eis senão quando chega o médico.

«Faz favor, senhor doutor...»
Os médicos e os advogados faziam valer o título nos seus postos de trabalho e também e os outros licenciados pecavam por defeito, principalmente fora dos seus postos de trabalho. Malhas que o império tece...
«Se não se importam ficam lá fora.»
Os familiares obedeceram, solícitos.
«Importam-se de fechar a porta?»
E a porta desempenhou a sua missão isoladora. Por outras palavras, fechou-se.
O velho parecia dormitar.
«Como se sente?»
Entreabriu os olhos. Por pouco tempo.
«Temos morto.» Pensou o médico.
Tirou o estetoscópio da maleta e começou a auscultar o doente. Os atos de circunstância. Rotinas e isso. 
Guardou o estetos­cópio na maleta e saiu do quarto. Os familiares do velho fitaram-no, ansiosos. Queriam uma resposta que viesse ao encontro dos seus desejos. Contudo, ficaram em silêncio. 
Após um silêncio que pareceu durar uma eternidade, disse, com ar grave:
«A máquina vai parar.»
Diagnóstico?
«Ferrugem.»

Ah sim... ferrugem que um dia será pó.
Recebeu o dinheiro da consulta e saiu. Por mero acaso cruzou-se com o padre nas escadas do prédio. Na saudação silenciosa que trocaram estava patente o manto gelado da rotina.

O médico saiu de cena e o padre continuou a subida, sem pressas. Deteve-se na porta fechada recente­mente e premiu, com suavidade, o botão da campainha. Alguém, com o ar contristado número um, abriu a porta.
«É aqui...?»

Pergunta desnecessária, mas foi a que fez.
«Sim, mora aqui o finado.»

«Finou-se?»
«Ou melhor: está a finar-se.»
«Ainda bem.» 
Olharam para ele, simulando desagrado. 
«Ops!» comentou em surdina.
«Ainda bem. Só está a sofrer. Faz favor de entrar, senhor prior.» 
Ainda bem que os familiares do futuro defunto emendaram-lhe a mão.
«Obrigado. Eu vou entrando.»
E entrou. Um dos familiares, mais compenetrado do seu papel indicou-lhe o caminho.
«Por aqui, senhor prior...»
Deixou-se conduzir. Pelo caminho foi distribuindo palavras de conforto. Era parte da sua missão. Cada um tinha neste mundo algo a cumprir. Uns cumpriam bem. Outros cumpriam mal. Se o Céu existia, era lógico que também existisse o Inferno.
Neste mundo cumpre-se; no outro paga-se.

Quem paga a quem?
«Estou na minha prestação de serviços.» Pensou.
O velho sobreviveu a todos os flagelos. Esteve na guerra. Foi alvo das febres. Amou e odiou. Ouviu falar da superbomba, das poeiras radioativas e do efeito de estufa. Mas, paradoxo, ia morrer. Ia morrer porque tinha que morrer.
Os herdeiros debruçaram-se sobre ele e adivinharam a chegada da morte. Mas ele ainda lutava. Não na ânsia de a afastar, mas tentando retardar o fim.
E se o velho não morresse desta?
Pobre do velho. Não pode sofrer mais. Vai morrer, vai! Morre depressa, velho!
Faces cavadas, cor de âmbar. Respiração difícil, angustiosamente difícil. Olhos cerrados como janelas solitárias que foram corroídas pela invernia.


Vai morrer. O padre também tem essa convicção. Imagina mesmo o momento em que há de encaminhá-lo até à última morada. No fundo é um bem supremo para um corpo massacrado e coberto de chagas. O velho está... velho. A cova espera-o. Os vermes resolverão entre si uma refeição leve, porque só lhe restam os osso. Sem embargo na voz deu-lhe as extrema unção.
Quando o padre saiu do quarto do velho, acompanharam-no, ansiosos. Nos seus olhos brilhava a esperança cínica da morte.
«Então?» perguntou um dos familiares. 
«Está encaminhado para o reino de Deus.»
 «Não é isso, senhor prior. Acha que ele está por pouco?»
Abanou a cabeça.
«Voltarei brevemente.» 

«Já tratámos tudo com o cangalheiro.»
Pessoas previdentes, embora não faltassem os caixões, pensou.
Os familiares sentiram-se mais aliviados. O velho não ia morrer em pecado. Deus estaria com ele até ao último momento.
E pronto. Amanhã eles vestirão os fatos negros para o funeral. Depois, como hienas esfaimadas, irão ao cofre esfre­gar as mãos no ouro. Um de cada vez e desconfiados uns dos outros.

O ouro será dividido em partes iguais. Com os prédios e os terrenos é que a coisa vai ficar ruim. Por um metro quadrado se mata. Mas isso dá para outra história.
Ou já começou antes do velho esticar o pernil?
Idiotas! Dentro em breve o caldo vai entornar-se começará uma guerra sem quartel. Entretanto, esperam pa­cientemente que feche os olhos para se lançarem na eterna luta que lhes há de aniquilar a bondade do coração e revigorar a mente materialista.
Olhos ávidos espreitam-lhe a respiração. Ainda não morreu. Debate-se já frouxamente. A morte vai construindo a sua teia, num berço de sonolência irreversível. 

«Irra. Nunca mais morre!»
Alguém põe a mão na testa do velho. Está fria. Está fria, mas ele ainda reage. Num derradeiro esforço, desfaz alguns fios e atrasa a consuma­ção duma evidência.

As recordações vêm, rápidas, desde o tempo de criança até ao momento derradeiro em que caiu à cama. Bla bla bla. E à cama vai seguir-se o caixão em mogno de terceira. Depois, o acompanhamento patético. O padre a encomendar mais uma vez a alma a Deus. As carpi­deiras. A cova aberta à espera que o caixão deslize até ao fundo. Os torrões que se atiram. A terra que já não lhe vai pesar. O choro e o riso interior dos herdeiros que, ávidos, já pensam em mergulhar as mãos no ouro maldito.
E pronto. Assunto arrumado. Morreu o velho. Os vermes tomaram conta do resto que os outros, naturalmente, não quiseram tirar.
Ah!, se pudesse rir-se deles!

Mas não pode. Está morto. Só se mais tarde lhes fizer umas "visitas" para os ver borrados de pavor...
E sobre os efeitos envenenados que causará o cofre dei­xado aos herdeiros, bem como os prédios e os terrenos, disso não vale a pena falar. Mais tarde ou mais cedo também estarão com o velho.

Fatalmente... os vermes comerão os “vermes”.

O anjo e a besta


Esta noite dormi que nem um justo, talvez compensando a noite branca anterior.
Além de dormir bem, sonhei com uma mulher que gostava de mim, que me dispensava carinhos, sem pudor. Este encontro amoroso foi secreto, o que me traz algumas pistas que não vêm para aqui. Mas um sonho é sempre um sonho. De qualquer forma, vou deixá-lo adormecido. Pode ser que me lembre de mais pormenores. O desconhecimento da identidade da mulher é um desafio para a mente. E, a propósito de mente, a chamada mente reativa inconsciente, até prova em contrário afirmo que tem o poder absoluto de comandar os movimentos do pêndulo.
Pêndulo?
Já me esquecia. Tenho andado a fazer experiências com um pêndulo e não sei se sou eu que lhe dou ordens, se há alguma força oculta. O certo é que responde às perguntas que faço, chegando quase a acreditar que existe uma presença que faz rodar o pêndulo sempre faço alguma pergunta. Se oscila no sentido dos ponteiros do relógio, a resposta é afirmativa. No caso contrário, ou se faz o movimento pendular normal, então a resposta é negativa. Ainda estou numa fase incipiente e não quero adiantar mais. Vou continuar com as experiências até que tenha a certeza da origem dessa força que faz rodar o pêndulo. Se é uma causa externa, se está ligada ao poder inconsciente da mente. Por enquanto aposto em cinquenta por cento para cada lado.
Que mais posso dizer?
Tudo parece mexer à minha volta e pressinto que vem a caminho uma nova viragem dos tempos.
Se tiver que acontecer alguma coisa, agarro a oportunidade com as duas mãos.
Mas quem sabe se não estou numa rampa de lançamento, à espera dum empurrão para tomar um novo rumo?
Ainda não sei porquê, mas pensei nisto:

“Estou preparado para receber a besta ou o Anjo. O meu ponto de partida está localizado. Ainda não parti. Vou estar atento à menor variação à minha volta. Sei que vou sair do escuro e caminhar para a luz. O poder está comigo, até que a besta e o Anjo (1)...; daí eu convencer-me que a vida está em mudança.”

(1) A frase está incompleta; não sei o que queria dizer...
Parece que vem aí uma atração fatal perigosa e nada tem a ver com qualquer retorno ao passado.
O pêndulo nunca me dará certezas. As probabilidades de ser o poder da mente que o controla vão oscilar, alternadamente, acima e abaixo dos cinquenta por cento.

Num momento...
Quase onze da noite. A tensão arterial ainda deve continuar em níveis
Terminei cedo o fim-de-semana. Pouco passava das duas e meia de domingo quando decidi regressar a Lisboa. Chovia pouco, mas as previsões meteorológicas apontavam para uma chuva contínua e abundante. Por essa razão achei ser mais prudente ir pela autoestrada. Para o diabo os dois euros e dez cêntimos. Em primeiro lugar estava a minha segurança.
Começou a chover intensamente depois de ver uma placa indicativa de desvio. A causa era um aluimento de terras. Logo a seguir começava uma subida acentuada. Tocada pelo vento forte, a chuva quase se tornava opaca aos olhos, quanto mais próximo me situava do carro que seguia à minha frente. As duas faixas da direita, em que os veículos se deslocavam com lentidão deixavam ver ao nível dos olhos uma nuvem de água nada convidativa, daí a razão de ter seguido pela faixa da esquerda, a maior velocidade e, paradoxalmente, sentindo-me mais seguro.
Tudo correu de forma normal até chegar à portagem.
«Quer recibo?»
Hesitei, mas acabei por responder:
«Não, obrigado.»
Cedo tomei a faixa da direita. Ao fundo vi a zona do desvio usada por quem vinha do lado Loures. Naquele momento entravam dois carros. Abrandei, aliviando o pé do acelerador. Na rádio acabavam de informar que o movimento dos carros estava mais lento nas proximidades de Olival Basto, devido a um abatimento do piso na calçada de Carriche.
Não evitei uma careta de contrariedade. Ia chegar mais tarde a casa. Pois ia.
De repente, ouvi e senti um estrondo atrás e o carro deu um esticão brusco. Perdi de imediato o controlo da situação e deixei-me ir, não sei para onde, enquanto o carro começava a ensaiar uma dança que devia estar relacionada com a morte. Uma dança perfeita, que nada tinha de grotesca. Rodeada de silêncio e sem a presença de mais carros. Uma mão misteriosa tinha-os afastado para algures, ou então eu já não estava materialmente naquela estrada que me pareceu deserta e sem ruídos.
Não sei quanto tempo se passou e quantos metros o carro se arrastou desgovernado até que a frente embateu, violentamente, no separador central. Novamente o bailado do carro a deslizar e eu sem uma única dor, indefeso, sem saber o que ia acontecer a seguir. E de novo o ruído do silêncio que, mais tarde, classifiquei de celestial.
Mas então eu vou morrer?
Ou já tinha morrido. A alma libertara-se da sua prisão natural e daí não sentir qualquer dor. Se morrer era desta forma, todo o medo que sempre sentia quando pensava na morte não tinha a mínima razão de ser. Naqueles momentos de doce incerteza, quando o carro ensaiava uma valsa descompassada, um sorriso dúbio aflorou no meu rosto. Talvez estivesse morto e tudo não passasse da manifestação do ego já fora do corpo grosseiro, preparando-se para partir em breve para a grande viagem que ninguém sabia para onde era e se tinha fim.
Morte, doce morte, que nem sequer me deste tempo para rever o bom e o mau do meu passado não conseguido! Um clássico que constava dos manuais e não estava a acontecer.
E quando acabava aquela valsa sem sons, sem intervenientes à volta, em que me sentia muito leve, numa situação de quase imponderabilidade?
Finalmente o movimento abrandou, o carro foi recuando e a traseira chocou, ao de leve, no separador da direita. E eu muito agarrado ao volante, num ato continuado a partir dos últimos segundos antes do forte embate. As mãos tensas sobre o volante eram um reflexo condicionado do corpo grosseiro, ainda a lutar pela conservação do seu estado físico. É que não sentia a mínima dor, o que era estranho, mesmo muito estranho. O embate fora fortíssimo.
Vi um rosto de mulher assomar ao vidro do carro. A mulher estava muito angustiada e nada tinha de angelical.
«O senhor está bem?»
Demorei a responder. Devia estar em estado de choque. Julgo que ela repetiu a pergunta. Não tinha a certeza de nada. A situação parecia irreal.
A minha voz saiu, ao fim de muito tempo. Para mim, claro. Provavelmente foram só alguns segundos.
«Eu estou bem... Só não sei onde estou!»
Afinal não tinha morrido. Não estava no céu. Quase de certeza. Havia outra hipótese mais viável que teimava em não admitir.
A mulher desapareceu entretanto do meu campo de visão e foram aparecendo outras pessoas à volta do carro, com a natural curiosidade de observarem o animal na gaiola que continuava apardalado, sem saber o que fazer.
Um homem novo entrou no carro e sentou-se ao meu lado, sem cerimónias, começando a explicar-me o que acontecera, que o carro fora batido por trás, etc e tais e muitos mais etc e tais. Isso já sabia, mas continuava a desconfiar das imagens que o meu cérebro transmitia. Não admirava. O impacto fora violento e tudo era de admitir. Morte instantânea e subsequente continuidade indecisa de ser ou não ser. Era tudo muito confuso. Nebuloso. O próprio homem novo que se sentou ao meu lado podia ser intemporal.
Olhei-o bem de frente, virado para mim. Talvez fosse real. Pelo menos não perguntava:
«O senhor está bem?»
Explicou então que a condutora despistou-se por causa dum lençol de água e o carro embateu de imediato na traseira do meu. Ela não era a dona do carro.
Aí cheirou-me a esturro. Um sinal positivo, próprio de quem ainda estava algures no planeta azul.
Então quem é o dono do carro?
«Queres cheirar o álcool?»
Apareceu finalmente o dono do carro. Por sinal era pai da condutora. Não estava em condições de fazer uma avaliação fria, mas pressenti que tinha sido ele quem dirigia o carro no momento do embate violento na traseira do meu. Um mero palpite.
A primeira coisa que disse foi que tinha mais de mil contos de prejuízo na frente do BMW porque só tinha seguro contra terceiros. Mas que ficasse descansado. A culpa não era minha.
Não me senti aliviado com a sua declaração de culpa, como proprietário do carro. Tinha perante mim um longo e penoso percurso até que tudo voltasse à estaca zero. Como sensitivo que era, com pêndulo ou sem pêndulo, sabia que não estava livre de aborrecimentos a breve prazo. Isto, se a minha existência fosse real. As probabilidades aumentavam à medida que o tempo passava.
Eu e o homem novo começámos então a preencher a declaração amigável do acidente. Por qualquer motivo saímos do carro e vi pela primeira vez a frente do meu Golf, completamente destruída. Chovia copiosamente. Entrámos de novo no carro e continuámos a preencher a declaração, já muito molhada em virtude da intensidade da chuva. Ele estava calmo e eu sentia-me completamente perdido num labirinto de dúvidas e indecisões. Estar vivo ou não estar vivo. Em pleno sonho ou não. Cem por cento presente ou igualmente noutro sítio.
Entretanto chegou a brigada de trânsito e interrompemos a elaboração daquele impresso manchado pela chuva impiedosa, claramente impróprio para consumo. Mandaram-me entrar para o carro. Obedeci de imediato. A expressão do meu rosto não devia ser a melhor ao observar os seus olhares de estranheza.
«Consegue escrever?» perguntou um dos agentes da brigada de trânsito.
Estava na traseira do interior do carro, inundada de papéis e pastas. Uma confusão que não se justificava. Pelo menos para mim, o chamado “Zé organizado”. Apeteceu-me perguntar o que faziam ali tantos papéis espalhados que eram doutros tempos passados. Contive-me e fiquei à espera, não sem antes ter afastado alguns dos ditos papéis para o lado.
«Lembra-se do que se passou?»
Se me lembrava?
Contei o pouco que sabia e ele deu-me umas dicas para o preenchimento dum impresso, talvez um auto de notícia. Era a primeira vez, em quarenta anos de condução, que enfrentava uma situação tão complicada como aquela.
Preenchido e assinado o tal impresso, mandou-me sair. Era o momento de soprar o balão. Zero. Tinha bebido meio copo de tinto ao almoço porque, por coincidência, não havia mais vinho na garrafa. E, se por acaso houvesse, nunca teria passado de copo e meio. A bitola do costume, salvo quando comemorava com amigos, mesmo que não fosse comemoração, mas sim um simples encontro.
O meu pensamento circulava em torno do acidente, recordando a dança graciosa do carro por mais de cem metros, ao mesmo tempo que acreditava ter chegado a minha hora. Foi mesmo milagre. A besta tinha atacado em força, mas o Anjo segurou o carro e segurou-me também no choque brutal com o separador central. Ainda tinha alguém lá em cima que gostava muito de mim.
E não de ti, quem quer que seja!
Acusação justa?
A eterna dúvida.
Foi então que conheci a suposta causadora do acidente. Não estava muito impressionada e nem sequer me dirigiu a palavra. Achei estranho. Entretanto chegou o reboque. Vi com algum cuidado a extensão real do abalroamento enquanto o homem preparava o carro para ser rebocado, o que não foi tarefa fácil. A frente estava destruída e a traseira não sabia pois encostara totalmente ao separador. Só quando o reboque deslocou o carro é que vi a pancada no lado esquerdo da traseira. Pareceu-me ligeira. Quanto ao capot, ficou levantado e torcido como um harmónio. Que força bruta gerou o choque contra o separador?
Uma força bestial, já que não seguia a grande velocidade quando o BMW abalroou a traseira do meu Golf.
E foi assim que aconteceu. Agora segue-se um processo moroso entre companhias de seguros. O mais importante é estar vivo e ter saído ileso miraculosamente do acidente.
Mas quem é que não gostava de mim?
Voltei a consultar o pêndulo.
«Porquê? Vingança tua por admitir que não existes e o movimento do pêndulo é só obra da minha mente?»
Resposta afirmativa.
Quase que entrei de novo em estado de choque. Não conseguia entender. Ela tinha usado a besta, ou foi esta que a usou?
Se tivesse feito a viagem pela estrada nacional, tal como faço habitualmente e como tinha planeado no início da viagem, nada disto tinha acontecido. O BMW estaria mais adiantado, já noutro destino, quando entrasse na auto estrada pelo desvio de Loures.
Não vi luzes brancas intensas nem túneis de luz; não vi sombras ou vultos a acenarem-me, nem sequer tive consciência da continuidade da chuva que caía, na altura do acidente, com intensidade; não vi o lençol de água que parece ter estado na origem do acidente. Enquanto o carro seguia na sua dança sem ritmo, deslizando aleatoriamente, talvez numa valsa descompassada, ou num tango de passos largos, agarrava-me ao volante com toda a força e só desejada que a nova tormenta que substituíra a outra, da chuva intensa, acabasse antes que um carro, vindo de trás, chocasse com o meu. Então, se acontecesse, seria o fim.
Quando o carro se equilibrou e começou a recuar lentamente, até a traseira beijar o separador da direita, tive um pensamento estranho. Nada me doíam e sentira a força do embate da frente do carro no separador central.
Então... estava vivo, ou seria que era um novo inquilino dos jardins de Deus?
«O senhor está bem?»
Por mais estranho que pareça, de certeza que o embate do carro com o separador foi feito a mais de quarenta quilómetros por hora e o airbag não foi acionado.
Senti-me perdido. Muito angustiado. Como se tivesse acabado de visitar as profundezas do inferno. Sem o saber, acabava de ser objeto da luta titânica e eterna entre a besta e o Anjo. Felizmente para mim que venceu o último.
Mas ainda tenho uma dúvida: não sei se a vida que levo hoje é uma vida sonhada, momento a momento...

domingo, 2 de agosto de 2020

O humanoide de Marte

Há acontecimentos que ficam tão bem guardados nos escaninhos da memória que raras vezes emergem ao nível do conhecimento. Uns porque são pouco importantes e não merecem ser recordados. Outros, porque cravaram fundo e doeram a ponto de ficarem escondidos na escuridão e daí a impossibilidade de se perfilarem para uma futura recordação. Finalmente, mais uns tantos porque se fragmentaram e foram guardados em diferentes níveis e daí ser difícil a reconstrução. É o o caso desta recordação que hoje vem à ribalta. Apenas a ponta de uma corda tão emaranhada que não consegui desenrolar no momento.
Achei curioso o modo como surgiu. Estava a ver na televisão um programa científico relacionado com a conquista do espaço, gravado previamente, como costumo fazer quando acho relevante. No momento, nesse programa mostravam algumas imagens estranhas da superfície da Lua e de Marte que, com alguma imaginação de quem as via, lembravam colunas, rostos humanos e  até corpos de animais. O objetivo final era relacionar as ditas imagens com a eventual presença de extraterrestres nesses planetas. Quem quisesse acreditar não lhe ficava mal. Quem não quisesse, talvez se limitasse a sorrir e a comentar:
«O que eles inventam para tentar lavar o cérebro de uma pessoa!»
E outros ainda:
«Se os americanos nem sequer foram à Lua, o mais certo é também viciarem essas imagens. É verdade. As filmagens do homem na Lua foram feitas na Terra!»
Mas se os pobres de espírito têm direito a expressar a sua realidade, também eu tenho de admitir a existência de vida para além da morte, por exemplo. Mas não se trata desse tema que hoje vou abordar.
Ora, por mais estranho que pareça, uma dessas imagens observadas no solo de Marte foi o motivo único que fez emergir, não uma ponto do tal emaranhado de recordações, mas pelo menos três que curiosamente se ligavam umas com as outras. E aí estão dois intervenientes: eu e o Mário. Melhor dizendo, três. A Lara, que já não é deste mundo, também tem a ver com o caso, embora indiretamente.
Não era preciso ter boa vontade para admitir que essa imagem fotografada lembrava uma cabeça humana.

Recuando aos primeiros dias de Julho de 1988, o jornal "A Capital" noticiou a descoberta da imagem de um humanoide fotografada por uma sonda a orbitar Marte.
A imagem era de facto incrível! Aquilo parecia mesmo um rosto.
O mais curioso de tudo é que Mário já contou uma história passada com ele em julho de 1987. Aí falava de um rosto gravado no lençol [1].

"Num destes dias apareceu uma coisa estranha gravada no lençol da cama, do lado esquerdo. Parece um rosto de mulher índia. Notam-se os contornos da cara, dos olhos e do nariz, este de contornos grosseiros. Há também um esboço de trança ou uma espécie de uma trança. Já dei voltas e mais voltas à cabeça e não consegui encontrar qualquer explicação para esta estranha ocorrência.
Resolvi não apagar a gravação no lençol, pelo menos nos próximos dias.
Neste momento são sete horas da manhã. Vou tomar um duche, vestir-me e passar pela escola. Depois sigo direto para S. José.
Todos os dados bateram certo. A morte marcou encontro com um amigo..."


"Voltando ao rosto gravado no lençol, ainda não encontrei solução.
Naquela sexta-feira em que fui ao hospital de S. José, passei depois por casa com a Hermínia e o Sérgio, este último amigo de infância oito anos mais velho do que eu, e ela a sua mulher. A cama ainda estava por fazer. Mostrei-lhes o lençol e pedi para analisarem bem.
O Sérgio foi lento a analisar e disse que não via nada de especial. Quanto à Hermínia foi categórica e exclamou logo:
«Isto parece um rosto!»
Era o que queria ouvir.
Mas de quem é aquele rosto de índia?
Posso lançar a hipótese de “ter visto uma coisa” que a sonda Viking fotografou há cinco anos.
Tenho de novo na lembrança o sonho da casa de Manuela em ruínas. A zona do cemitério ocupada por uma feira, como mostravam caixas de sapatos, papeis e plásticos e as pedras das campas deslocadas.
Desolação?
Sim. Como a minha vida. Cada vez estou mais isolado. 
Não a oiço chorar. Dizem que chora com pena de não ter sido minha em vida.

Como posso contrariar o destino que nos juntou e que teve o desplante de nos afastar?"

O rosto que Mário viu gravado no lençol foi uma premonição em relação à imagem de Marte?
Não sei. Quem souber que se acuse.

A Lara (2) também tem uma palavra a dizer porque leu, em 9 de Julho de 1988, o "PROMONTÓRIO" de Mário, dedicado a Fernando Pessoa.
 
"Ouviu com muita atenção e no fim foi pródiga em elogios. Considerei que tais elogios só tinham a ver com delicadeza e amizade. Não podia ser outra coisa. Era uma mulher educada, de bom senso e muito sensível a lidar com as pessoas. Não queria, de forma alguma, magoar-me..."

Achei por bem transformar o meu poema em prosa poética. Não é grave. Até porque o "PROMONTÓRIO", se bem me lembro, nasceu como prosa poética. Só posteriormente se deu a transformação em poema. 

Quem eras?, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos nas paredes mudas que falavam do tédio e do álcool que ingerias porque não tinhas sede?
Alguém entrou primeiro. Perdidos lutámos com pontas aguçadas que não causam dor mas permanecem.
No céu azul as gaivotas voam no cinzento. Bem sabes... sou o promontório
 do continente imenso que foste. Não passo de uma franja do teu gigantismo. No teu Universo dominaste galáxiasesgrimiste a palavra e amaste o tédio.
A memória sangra de tanto recordar e te desconhecer...
Quem és tu deles?

A luta é feroz e sem tréguas. Estremeço mas não caio. Morro todos os dias e todos os dias renasço prisioneiro do mistério do tempo.
E os oitos?
Nesse tempo não suspeitava de ti nem via a Esfinge a fugir para outras órbitas.

Nunca assumiste e a luta continuou. Os teus guerreiros multiplicaram os sinais. Pobre de mim e do sonho azul. Sou um grão ínfimo do teu gigantismo. Não sei quem és e quem trouxeste. Vejo-te em mil facetas nos palpites duma roleta que nunca mostra o número. Os meus neurónios sangram e apagam luzes aos poucos até se extinguirem todos os números de Deus.
Quem eras...?
Conheço-te no voo da gaivota
 que perdeu o rumo. No sonho do prisma 
que o corpo de luz inundou. Na mulher de vermelho que trouxe do passado uma mensagem obscura. Conheço-te na Esfinge que devora cá dentro. Na magia dos oitos. Na utopia do ImpérioNa solidão. No tédio. No oculto.
Quem eras?, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos
 a ver o mundo que não tiveste?

Vê a última verdade
 pelo promontório que sou. E... mesmo que seja utopia, lança enfim ao mar as personagens que nunca deixaram vir à superfície toda a grandiosidade que estava contigo e que não assumiste!

Nada se comprova na gravação da conversa que eu e a Lara tivemos, mas tenho uma ideia que falámos também do "rosto gravado no lençol", embora noutra altura e que ela também não conseguiu encontrar uma explicação lógica para o fenómeno.
Tudo leva a crer que há uma relação entre a fotografia de Marte tirada pela Viking e a gravação do rosto no lençol e que, quanto a mim, se resume a uma única palavra: premonição.
Mas que premonição?

Agora eu, António Ildefonso...
É preciso recuar aos tempos do projeto Apolo que levou o homem à Lua. Decorria o ano de 1970 e lecionava Matemática pela primeira vez numa escola de Lisboa. Entretanto os jornais tinham noticiado que seria feita do espaço para a Terra uma experiência telepática.
Lembro-me como se fosse ontem. Aconteceu na última aula da tarde. Como era habitual estava de pé, imóvel, um pouco à frente da secretária. Tinha abandonado o quadro momentos antes e acabava de exemplificar a decomposição de dois números num produto de fatores primos com o fim de calcular o máximo divisor comum entre eles e na altura respondia a uma pergunta de um aluno relacionada com o tema. Entretanto outro aluno, mais atrás e na primeira coluna a contar da minha direita, brincava com o lápis que segurava com o bico voltado para cima, fazendo-o rodar. Estava noutro mundo, concentrado na rotação do lápis e não no que se passava na aula.
«Botto!» chamei.
O Botto não me ouviu. Entretanto os colegas tinham-se virado na sua direção, não tecendo qualquer comentário.
Interrompi a explicação com o intuito de admoestar o aluno, de nome Botto, que não parava de fazer rodar o lápis.
Notei então que a turma ficou suspensa, à espera de uma reação minha que tardava em vir. É que limitava-me a olhar para o aluno, sem o admoestar, e entretanto também não concluíra a explicação, provavelmente sobre a regra para calcular o m.d.c. entre dois números.
«Todos os fatores primos comuns e com o menor expoente. O produto...» Dissera.
Mantive-me estático durante um intervalo de tempo indeterminado, totalmente incapacitado de reagir. Os alunos olhavam-me, em silêncio, à espera. Não é que estivesse indisposto. Apenas me sentia paralisado, aparentemente sob o efeito do movimento mágico do lápis do aluno de apelido Botto.
Até que tudo voltou ao normal e a aula continuou. Não teci qualquer comentário nem os meus alunos fizeram perguntas sobre a minha aparente ausência.
«Alguém tem dúvidas?»
Ninguém tinha dúvidas.
Durante quanto tempo se prolongou aquela situação estranha?
E o que aconteceu na realidade?
Provavelmente fui hipnotizado pelo lápis do aluno que continuava a rodar enquanto eu estava imóvel, sem reação. Ou o consciente foi bloqueado por uma atividade sub-reptícia do subconsciente. Ou apaguei-me e reacendi-me
Mais tarde ocorreu-me a tal notícia sobre a experiência telepática que foi feita no espaço, talvez (quem sabe?) na tarde em que saí da aula.

[1] "Os Anos do Deus Menor "
[2] "A Morte Não Anunciada de Lara"; "9 de Julho de 1988. A Gravação"; Adeus, Lara, Até Amanhã..."