Na realidade é assim ou quase assim...
Era forçoso acontecer. Os fatos escuros. As gravatas pretas. O caixão. Tudo devidamente tratado, à espera duma oportunidade.
Entretanto o velho ainda vivia. Teimava em sobreviver. Mas tinha os minutos contados. Que diabo!, já com mais de oitenta anos... era tempo. Se fosse focada uma das teorias da reencarnação, alguém do outro mundo estaria há muito aguardando pela sua morte. Nessas circunstâncias, o tempo de vida do velho estava por um fio. Coisa momentânea. O espectro da morte preparava o último assalto.
Eles sabiam. Não fora o acaso que os levara a comprar os fatos, a encomendar o caixão em mogno e a sonhar com o ouro que ele tinha guardado no cofre ferrugento e tudo mais. O velho ia morrer. Ficava-se. Era um absurdo pensarem em melhoras. Não, nada havia a fazer. Aquele velho era objeto impraticável duma medicina sem sobressalentes. Caso arrumado. Mas seria curioso ver as peças gastas dum organismo bem fabricado, fora de série, daqueles que duravam mais que as pilhas duracell aaa. O que o médico legista ia pensar quando visse aquela obra prima! Tanto para retalhar e aprender!
Eis senão quando chega o médico.
«Faz favor, senhor doutor...»
Os médicos e os advogados faziam valer o título nos seus postos de trabalho e também e os outros licenciados pecavam por defeito, principalmente fora dos seus postos de trabalho. Malhas que o império tece...
«Se não se importam ficam lá fora.»
Os familiares obedeceram, solícitos.
«Importam-se de fechar a porta?»
E a porta desempenhou a sua missão isoladora. Por outras palavras, fechou-se.
O velho parecia dormitar.
«Como se sente?»
Entreabriu os olhos. Por pouco tempo.
«Temos morto.» Pensou o médico.
Tirou o estetoscópio da maleta e começou a auscultar o doente. Os atos de circunstância. Rotinas e isso.
Guardou o estetoscópio na maleta e saiu do quarto. Os familiares do velho fitaram-no, ansiosos. Queriam uma resposta que viesse ao encontro dos seus desejos. Contudo, ficaram em silêncio.
Após um silêncio que pareceu durar uma eternidade, disse, com ar grave:
«A máquina vai parar.»
Diagnóstico?
«Ferrugem.»
Ah sim... ferrugem que um dia será pó.
Recebeu o dinheiro da consulta e saiu. Por mero acaso cruzou-se com o padre nas escadas do prédio. Na saudação silenciosa que trocaram estava patente o manto gelado da rotina.
O médico saiu de cena e o padre continuou a subida, sem pressas. Deteve-se na porta fechada recentemente e premiu, com suavidade, o botão da campainha. Alguém, com o ar contristado número um, abriu a porta.
«É aqui...?»
Pergunta desnecessária, mas foi a que fez.
«Sim, mora aqui o finado.»
«Finou-se?»
«Ou melhor: está a finar-se.»
«Ainda bem.»
Olharam para ele, simulando desagrado.
«Ops!» comentou em surdina.
«Ainda bem. Só está a sofrer. Faz favor de entrar, senhor prior.»
Ainda bem que os familiares do futuro defunto emendaram-lhe a mão.
«Obrigado. Eu vou entrando.»
E entrou. Um dos familiares, mais compenetrado do seu papel indicou-lhe o caminho.
«Por aqui, senhor prior...»
Deixou-se conduzir. Pelo caminho foi distribuindo palavras de conforto. Era parte da sua missão. Cada um tinha neste mundo algo a cumprir. Uns cumpriam bem. Outros cumpriam mal. Se o Céu existia, era lógico que também existisse o Inferno.
Neste mundo cumpre-se; no outro paga-se.
Quem paga a quem?
«Estou na minha prestação de serviços.» Pensou.
O velho sobreviveu a todos os flagelos. Esteve na guerra. Foi alvo das febres. Amou e odiou. Ouviu falar da superbomba, das poeiras radioativas e do efeito de estufa. Mas, paradoxo, ia morrer. Ia morrer porque tinha que morrer.
Os herdeiros debruçaram-se sobre ele e adivinharam a chegada da morte. Mas ele ainda lutava. Não na ânsia de a afastar, mas tentando retardar o fim.
E se o velho não morresse desta?
Pobre do velho. Não pode sofrer mais. Vai morrer, vai! Morre depressa, velho!
Faces cavadas, cor de âmbar. Respiração difícil, angustiosamente difícil. Olhos cerrados como janelas solitárias que foram corroídas pela invernia.
Vai morrer. O padre também tem essa convicção. Imagina mesmo o momento em que há de encaminhá-lo até à última morada. No fundo é um bem supremo para um corpo massacrado e coberto de chagas. O velho está... velho. A cova espera-o. Os vermes resolverão entre si uma refeição leve, porque só lhe restam os osso. Sem embargo na voz deu-lhe as extrema unção.
Quando o padre saiu do quarto do velho, acompanharam-no, ansiosos. Nos seus olhos brilhava a esperança cínica da morte.«Então?» perguntou um dos familiares.
«Está encaminhado para o reino de Deus.»
«Não é isso, senhor prior. Acha que ele está por pouco?»
Abanou a cabeça.«Voltarei brevemente.»
«Já tratámos tudo com o cangalheiro.»
Pessoas previdentes, embora não faltassem os caixões, pensou.
Os familiares sentiram-se mais aliviados. O velho não ia morrer em pecado. Deus estaria com ele até ao último momento.
E pronto. Amanhã eles vestirão os fatos negros para o funeral. Depois, como hienas esfaimadas, irão ao cofre esfregar as mãos no ouro. Um de cada vez e desconfiados uns dos outros.
O ouro será dividido em partes iguais. Com os prédios e os terrenos é que a coisa vai ficar ruim. Por um metro quadrado se mata. Mas isso dá para outra história.
Ou já começou antes do velho esticar o pernil?
Idiotas! Dentro em breve o caldo vai entornar-se começará uma guerra sem quartel. Entretanto, esperam pacientemente que feche os olhos para se lançarem na eterna luta que lhes há de aniquilar a bondade do coração e revigorar a mente materialista.
Olhos ávidos espreitam-lhe a respiração. Ainda não morreu. Debate-se já frouxamente. A morte vai construindo a sua teia, num berço de sonolência irreversível.
«Irra. Nunca mais morre!»
Alguém põe a mão na testa do velho. Está fria. Está fria, mas ele ainda reage. Num derradeiro esforço, desfaz alguns fios e atrasa a consumação duma evidência.
As recordações vêm, rápidas, desde o tempo de criança até ao momento derradeiro em que caiu à cama. Bla bla bla. E à cama vai seguir-se o caixão em mogno de terceira. Depois, o acompanhamento patético. O padre a encomendar mais uma vez a alma a Deus. As carpideiras. A cova aberta à espera que o caixão deslize até ao fundo. Os torrões que se atiram. A terra que já não lhe vai pesar. O choro e o riso interior dos herdeiros que, ávidos, já pensam em mergulhar as mãos no ouro maldito.
E pronto. Assunto arrumado. Morreu o velho. Os vermes tomaram conta do resto que os outros, naturalmente, não quiseram tirar.
Ah!, se pudesse rir-se deles!
Mas não pode. Está morto. Só se mais tarde lhes fizer umas "visitas" para os ver borrados de pavor...
E sobre os efeitos envenenados que causará o cofre deixado aos herdeiros, bem como os prédios e os terrenos, disso não vale a pena falar. Mais tarde ou mais cedo também estarão com o velho.
Fatalmente... os vermes comerão os “vermes”.


