quarta-feira, 5 de agosto de 2020

O anjo e a besta


Esta noite dormi que nem um justo, talvez compensando a noite branca anterior.
Além de dormir bem, sonhei com uma mulher que gostava de mim, que me dispensava carinhos, sem pudor. Este encontro amoroso foi secreto, o que me traz algumas pistas que não vêm para aqui. Mas um sonho é sempre um sonho. De qualquer forma, vou deixá-lo adormecido. Pode ser que me lembre de mais pormenores. O desconhecimento da identidade da mulher é um desafio para a mente. E, a propósito de mente, a chamada mente reativa inconsciente, até prova em contrário afirmo que tem o poder absoluto de comandar os movimentos do pêndulo.
Pêndulo?
Já me esquecia. Tenho andado a fazer experiências com um pêndulo e não sei se sou eu que lhe dou ordens, se há alguma força oculta. O certo é que responde às perguntas que faço, chegando quase a acreditar que existe uma presença que faz rodar o pêndulo sempre faço alguma pergunta. Se oscila no sentido dos ponteiros do relógio, a resposta é afirmativa. No caso contrário, ou se faz o movimento pendular normal, então a resposta é negativa. Ainda estou numa fase incipiente e não quero adiantar mais. Vou continuar com as experiências até que tenha a certeza da origem dessa força que faz rodar o pêndulo. Se é uma causa externa, se está ligada ao poder inconsciente da mente. Por enquanto aposto em cinquenta por cento para cada lado.
Que mais posso dizer?
Tudo parece mexer à minha volta e pressinto que vem a caminho uma nova viragem dos tempos.
Se tiver que acontecer alguma coisa, agarro a oportunidade com as duas mãos.
Mas quem sabe se não estou numa rampa de lançamento, à espera dum empurrão para tomar um novo rumo?
Ainda não sei porquê, mas pensei nisto:

“Estou preparado para receber a besta ou o Anjo. O meu ponto de partida está localizado. Ainda não parti. Vou estar atento à menor variação à minha volta. Sei que vou sair do escuro e caminhar para a luz. O poder está comigo, até que a besta e o Anjo (1)...; daí eu convencer-me que a vida está em mudança.”

(1) A frase está incompleta; não sei o que queria dizer...
Parece que vem aí uma atração fatal perigosa e nada tem a ver com qualquer retorno ao passado.
O pêndulo nunca me dará certezas. As probabilidades de ser o poder da mente que o controla vão oscilar, alternadamente, acima e abaixo dos cinquenta por cento.

Num momento...
Quase onze da noite. A tensão arterial ainda deve continuar em níveis
Terminei cedo o fim-de-semana. Pouco passava das duas e meia de domingo quando decidi regressar a Lisboa. Chovia pouco, mas as previsões meteorológicas apontavam para uma chuva contínua e abundante. Por essa razão achei ser mais prudente ir pela autoestrada. Para o diabo os dois euros e dez cêntimos. Em primeiro lugar estava a minha segurança.
Começou a chover intensamente depois de ver uma placa indicativa de desvio. A causa era um aluimento de terras. Logo a seguir começava uma subida acentuada. Tocada pelo vento forte, a chuva quase se tornava opaca aos olhos, quanto mais próximo me situava do carro que seguia à minha frente. As duas faixas da direita, em que os veículos se deslocavam com lentidão deixavam ver ao nível dos olhos uma nuvem de água nada convidativa, daí a razão de ter seguido pela faixa da esquerda, a maior velocidade e, paradoxalmente, sentindo-me mais seguro.
Tudo correu de forma normal até chegar à portagem.
«Quer recibo?»
Hesitei, mas acabei por responder:
«Não, obrigado.»
Cedo tomei a faixa da direita. Ao fundo vi a zona do desvio usada por quem vinha do lado Loures. Naquele momento entravam dois carros. Abrandei, aliviando o pé do acelerador. Na rádio acabavam de informar que o movimento dos carros estava mais lento nas proximidades de Olival Basto, devido a um abatimento do piso na calçada de Carriche.
Não evitei uma careta de contrariedade. Ia chegar mais tarde a casa. Pois ia.
De repente, ouvi e senti um estrondo atrás e o carro deu um esticão brusco. Perdi de imediato o controlo da situação e deixei-me ir, não sei para onde, enquanto o carro começava a ensaiar uma dança que devia estar relacionada com a morte. Uma dança perfeita, que nada tinha de grotesca. Rodeada de silêncio e sem a presença de mais carros. Uma mão misteriosa tinha-os afastado para algures, ou então eu já não estava materialmente naquela estrada que me pareceu deserta e sem ruídos.
Não sei quanto tempo se passou e quantos metros o carro se arrastou desgovernado até que a frente embateu, violentamente, no separador central. Novamente o bailado do carro a deslizar e eu sem uma única dor, indefeso, sem saber o que ia acontecer a seguir. E de novo o ruído do silêncio que, mais tarde, classifiquei de celestial.
Mas então eu vou morrer?
Ou já tinha morrido. A alma libertara-se da sua prisão natural e daí não sentir qualquer dor. Se morrer era desta forma, todo o medo que sempre sentia quando pensava na morte não tinha a mínima razão de ser. Naqueles momentos de doce incerteza, quando o carro ensaiava uma valsa descompassada, um sorriso dúbio aflorou no meu rosto. Talvez estivesse morto e tudo não passasse da manifestação do ego já fora do corpo grosseiro, preparando-se para partir em breve para a grande viagem que ninguém sabia para onde era e se tinha fim.
Morte, doce morte, que nem sequer me deste tempo para rever o bom e o mau do meu passado não conseguido! Um clássico que constava dos manuais e não estava a acontecer.
E quando acabava aquela valsa sem sons, sem intervenientes à volta, em que me sentia muito leve, numa situação de quase imponderabilidade?
Finalmente o movimento abrandou, o carro foi recuando e a traseira chocou, ao de leve, no separador da direita. E eu muito agarrado ao volante, num ato continuado a partir dos últimos segundos antes do forte embate. As mãos tensas sobre o volante eram um reflexo condicionado do corpo grosseiro, ainda a lutar pela conservação do seu estado físico. É que não sentia a mínima dor, o que era estranho, mesmo muito estranho. O embate fora fortíssimo.
Vi um rosto de mulher assomar ao vidro do carro. A mulher estava muito angustiada e nada tinha de angelical.
«O senhor está bem?»
Demorei a responder. Devia estar em estado de choque. Julgo que ela repetiu a pergunta. Não tinha a certeza de nada. A situação parecia irreal.
A minha voz saiu, ao fim de muito tempo. Para mim, claro. Provavelmente foram só alguns segundos.
«Eu estou bem... Só não sei onde estou!»
Afinal não tinha morrido. Não estava no céu. Quase de certeza. Havia outra hipótese mais viável que teimava em não admitir.
A mulher desapareceu entretanto do meu campo de visão e foram aparecendo outras pessoas à volta do carro, com a natural curiosidade de observarem o animal na gaiola que continuava apardalado, sem saber o que fazer.
Um homem novo entrou no carro e sentou-se ao meu lado, sem cerimónias, começando a explicar-me o que acontecera, que o carro fora batido por trás, etc e tais e muitos mais etc e tais. Isso já sabia, mas continuava a desconfiar das imagens que o meu cérebro transmitia. Não admirava. O impacto fora violento e tudo era de admitir. Morte instantânea e subsequente continuidade indecisa de ser ou não ser. Era tudo muito confuso. Nebuloso. O próprio homem novo que se sentou ao meu lado podia ser intemporal.
Olhei-o bem de frente, virado para mim. Talvez fosse real. Pelo menos não perguntava:
«O senhor está bem?»
Explicou então que a condutora despistou-se por causa dum lençol de água e o carro embateu de imediato na traseira do meu. Ela não era a dona do carro.
Aí cheirou-me a esturro. Um sinal positivo, próprio de quem ainda estava algures no planeta azul.
Então quem é o dono do carro?
«Queres cheirar o álcool?»
Apareceu finalmente o dono do carro. Por sinal era pai da condutora. Não estava em condições de fazer uma avaliação fria, mas pressenti que tinha sido ele quem dirigia o carro no momento do embate violento na traseira do meu. Um mero palpite.
A primeira coisa que disse foi que tinha mais de mil contos de prejuízo na frente do BMW porque só tinha seguro contra terceiros. Mas que ficasse descansado. A culpa não era minha.
Não me senti aliviado com a sua declaração de culpa, como proprietário do carro. Tinha perante mim um longo e penoso percurso até que tudo voltasse à estaca zero. Como sensitivo que era, com pêndulo ou sem pêndulo, sabia que não estava livre de aborrecimentos a breve prazo. Isto, se a minha existência fosse real. As probabilidades aumentavam à medida que o tempo passava.
Eu e o homem novo começámos então a preencher a declaração amigável do acidente. Por qualquer motivo saímos do carro e vi pela primeira vez a frente do meu Golf, completamente destruída. Chovia copiosamente. Entrámos de novo no carro e continuámos a preencher a declaração, já muito molhada em virtude da intensidade da chuva. Ele estava calmo e eu sentia-me completamente perdido num labirinto de dúvidas e indecisões. Estar vivo ou não estar vivo. Em pleno sonho ou não. Cem por cento presente ou igualmente noutro sítio.
Entretanto chegou a brigada de trânsito e interrompemos a elaboração daquele impresso manchado pela chuva impiedosa, claramente impróprio para consumo. Mandaram-me entrar para o carro. Obedeci de imediato. A expressão do meu rosto não devia ser a melhor ao observar os seus olhares de estranheza.
«Consegue escrever?» perguntou um dos agentes da brigada de trânsito.
Estava na traseira do interior do carro, inundada de papéis e pastas. Uma confusão que não se justificava. Pelo menos para mim, o chamado “Zé organizado”. Apeteceu-me perguntar o que faziam ali tantos papéis espalhados que eram doutros tempos passados. Contive-me e fiquei à espera, não sem antes ter afastado alguns dos ditos papéis para o lado.
«Lembra-se do que se passou?»
Se me lembrava?
Contei o pouco que sabia e ele deu-me umas dicas para o preenchimento dum impresso, talvez um auto de notícia. Era a primeira vez, em quarenta anos de condução, que enfrentava uma situação tão complicada como aquela.
Preenchido e assinado o tal impresso, mandou-me sair. Era o momento de soprar o balão. Zero. Tinha bebido meio copo de tinto ao almoço porque, por coincidência, não havia mais vinho na garrafa. E, se por acaso houvesse, nunca teria passado de copo e meio. A bitola do costume, salvo quando comemorava com amigos, mesmo que não fosse comemoração, mas sim um simples encontro.
O meu pensamento circulava em torno do acidente, recordando a dança graciosa do carro por mais de cem metros, ao mesmo tempo que acreditava ter chegado a minha hora. Foi mesmo milagre. A besta tinha atacado em força, mas o Anjo segurou o carro e segurou-me também no choque brutal com o separador central. Ainda tinha alguém lá em cima que gostava muito de mim.
E não de ti, quem quer que seja!
Acusação justa?
A eterna dúvida.
Foi então que conheci a suposta causadora do acidente. Não estava muito impressionada e nem sequer me dirigiu a palavra. Achei estranho. Entretanto chegou o reboque. Vi com algum cuidado a extensão real do abalroamento enquanto o homem preparava o carro para ser rebocado, o que não foi tarefa fácil. A frente estava destruída e a traseira não sabia pois encostara totalmente ao separador. Só quando o reboque deslocou o carro é que vi a pancada no lado esquerdo da traseira. Pareceu-me ligeira. Quanto ao capot, ficou levantado e torcido como um harmónio. Que força bruta gerou o choque contra o separador?
Uma força bestial, já que não seguia a grande velocidade quando o BMW abalroou a traseira do meu Golf.
E foi assim que aconteceu. Agora segue-se um processo moroso entre companhias de seguros. O mais importante é estar vivo e ter saído ileso miraculosamente do acidente.
Mas quem é que não gostava de mim?
Voltei a consultar o pêndulo.
«Porquê? Vingança tua por admitir que não existes e o movimento do pêndulo é só obra da minha mente?»
Resposta afirmativa.
Quase que entrei de novo em estado de choque. Não conseguia entender. Ela tinha usado a besta, ou foi esta que a usou?
Se tivesse feito a viagem pela estrada nacional, tal como faço habitualmente e como tinha planeado no início da viagem, nada disto tinha acontecido. O BMW estaria mais adiantado, já noutro destino, quando entrasse na auto estrada pelo desvio de Loures.
Não vi luzes brancas intensas nem túneis de luz; não vi sombras ou vultos a acenarem-me, nem sequer tive consciência da continuidade da chuva que caía, na altura do acidente, com intensidade; não vi o lençol de água que parece ter estado na origem do acidente. Enquanto o carro seguia na sua dança sem ritmo, deslizando aleatoriamente, talvez numa valsa descompassada, ou num tango de passos largos, agarrava-me ao volante com toda a força e só desejada que a nova tormenta que substituíra a outra, da chuva intensa, acabasse antes que um carro, vindo de trás, chocasse com o meu. Então, se acontecesse, seria o fim.
Quando o carro se equilibrou e começou a recuar lentamente, até a traseira beijar o separador da direita, tive um pensamento estranho. Nada me doíam e sentira a força do embate da frente do carro no separador central.
Então... estava vivo, ou seria que era um novo inquilino dos jardins de Deus?
«O senhor está bem?»
Por mais estranho que pareça, de certeza que o embate do carro com o separador foi feito a mais de quarenta quilómetros por hora e o airbag não foi acionado.
Senti-me perdido. Muito angustiado. Como se tivesse acabado de visitar as profundezas do inferno. Sem o saber, acabava de ser objeto da luta titânica e eterna entre a besta e o Anjo. Felizmente para mim que venceu o último.
Mas ainda tenho uma dúvida: não sei se a vida que levo hoje é uma vida sonhada, momento a momento...

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