sábado, 19 de fevereiro de 2022

Amanhã

 


Cardo de flor azul…
O amanhã que me espera está no vento que se levanta dos lados da planície nua.
O amanhã que adivinho é um vendaval que floresce em terras do cardo que vinga entre o rubro das papoilas.
E ao luar da noite fria há de abrir a flor azul. Pois se o branco me arrefece e o vermelho foi má sina, prefiro o orgulho do cardo. Um cardo agreste de flor azul. Pois os espinhos da rosa rubra cravaram fundo e doeram...

“A mente humana vai muito além do que vemos no nosso dia-a-dia. Se tentarmos libertar o potencial oculto nos nossos cérebros poderemos aprender coisas novas sobre nós e, talvez, melhorar a nossa consciência.”

Ele admite que quem escreveu estas palavras está a referir-se ao poder do subconsciente e procura tirar partido das suas potencialidades ocultas, talvez demasiado espartilhadas. Medo de perder o controle? Desejo de ganhar sempre a todo o custo? Tudo é possível dentro dos cenários possíveis. E acontece que ele é perfecionista se só gosta de agir dentro dos limites que a lei impõe. Mas o que é a lei dentro deste contexto democrático em que vivemos? Um simples “faça-se luz”, ou um tenebroso jogo de sombras em que domina o mais poderoso?
Não basta deixar o poderoso subconsciente à solta e deixar que faça magia. Até pode ser perigoso assistir ao extravasar de tanta força bruta e escura. Por outro lado, deve evitar-se usar a força da repressão e segui-lo de perto. Ele é capaz de fazer grandes façanhas, ou de destruir pontes que unem boas ideias e decisões.
Então?
«Vamos descobrir…»
Depois, segue-se a descoberta e só então o consciente decide se ele está certo e pode seguir-se em frente. O caminho foi desimpedido pelo super poderoso. Trouxe a solução. Não como um caldo de galinha velha que se deu ao doente convalescente e complementou os medicamentos que, entretanto, foram ministrados. Sim como um medicamento que o consciente não tinha nem teria alguma vez ao seu alcance. Cada um no seu poleiro para que não haja interferências. Por outras palavras, em caso de ineficiência do consciente, há que dar espaço ao seu companheiro que vive na sombra para iniciar o seu trabalho importante sem qualquer limitação.
E como atua o subconsciente?
Não sou eu que falo, entenda-se.
Para ele não é virgem. Já aplicou mais que uma vez a técnica e admite que esta é infalível. Relaciona-se com nomes que a memória guarda e, por vezes, torna-se difícil chegar a eles. Vejamos a técnica usada.
«O artista tal… como se chama?»
«Também não me lembro.»
«Sei o nome do filme. O artista está debaixo da língua. Ajuda-me!»
«Não consigo.»
«Deixa. Daqui a pouco lembro-me. Aliás, até posso descobrir no computador. Mas para mim é batota.»
«Porra! Não mates a cabeça. Vai à net
Mas ele está renitente.
«Logo já me lembro. Dantes quase que torturava a cabeça e sempre sem resultado.»
Sabe que deve saltar para outro assunto e descontrair-se. Esquecer para lembrar-se. Nada de submeter-se ao esforço hercúleo de tentar trazer à luz do dia o nome esquecido. Nada disso. Tais tentativas raras vezes resultam e só trazem cansaço mental e muita frustração. O nome do artista virá quando menos ele esperar. E assim será quase sempre. Como uma profecia, eis que o nome do artista surge vindo do nada! Abracadabra!
«Como foi isto?»
«Não sei. Acontece quase sempre.»
É um dom ou uma técnica? Só sabe que pouco tem a ver com o consciente.
Agora, vejamos a manifestação precoce e imperfeita dos poderes do subconsciente…
Como em tudo na vida que diga respeito à evolução é necessário que um qualquer dom em estádio primário passe por um processo primário de aprendizagem e sequente consolidação de conhecimentos inconscientes adquiridos até que esse dom se torne coisa real e indesmentível. Esse processo evolutivo não pode ser brusco sob pena de fracassar e o dom ficar-se por meias tintas. É o caso que lhe aconteceu um dia, quando menos esperava. Um mistério que o envolveu e tomou, sem saber que um dom estava em vias de nascer. Se o adquiriu ou não é outro mistério. 
Aconteceu por volta de 1988, quando ele dava os primeiros passos na programação Basic, utilizando o histórico e pioneiro computador Spectrum que utilizava cassetes para gravação dos programas. É desse tempo a história de “A Cassete Suspensa” e foi ele que despoletou o dom. Baseia-se num acontecimento estranho e inexplicável que ocorreu num segundo andar minúsculo, complementado por um terraço lajeado com o dobro das dimensões do apartamento e donde se via o mar a perder de vista. Acrescentando um dado perturbador, segundo uma vidente em quem ele acreditava cegamente, o terraço era uma pista de aeronaves muito utilizada por criaturas alienígenas.
Hoje, o protagonista da história, que não relata aqui, admite que se tratou de uma manifestação da mente subconsciente que se sobrepôs ao controlador consciente. A estranha ocorrência acabou por ser publicada o num blogue [1].
Mais tarde, em pleno verão, aconteceu num café da mesma localidade um segundo caso bem mais estranho e estigmatizante a que foi dado o nome de “A Mulher de Vermelho” [2]. O caso em questão data também de 1988, um período muito conturbado da mente de Mário, talvez uma tentativa de ensaio para dar um grande salto para os fenómenos que a sua mente subconsciente extravasava. Na altura, este e outros fenómenos causaram um impacto profundo na arquitetura da sua mente analítica e foi talvez por isso que fez marcha atrás. Digamos que o pôs em sentido. Entretanto, a avalanche de casos deixou-o quase à beira de um ataque de nervos que quase lhe provocou a falência da razão. Não estava preparado para enfrentar todo aquele excesso de fenómenos e desistiu ou pensou em fazer um interregno. De nada tinham serviço as cortinas que descerrou. Havia sempre mais uma. Foi ao mesmo tempo fascinante e insano. Queria aprender cada vez mais, mas começou a ter medo. Eram desafios a mais para um principiante. Talvez por isso o consciente cerrou fileiras e não deixou que ele avançasse mais. Como consequência ou não os fenómenos ficaram por ali. Uma calma de morte instalou-se à sua volta. As águas do seu rio começaram a fluir de forma normal e seguiram em meandros lentos sem pressa de chegarem à foz. Tentava assim ganhar tempo para voltar à luta quando estivesse mais equilibrado. Luta que não voltou a acontecer porque os fenómenos cessaram de vez talvez por força de censura do consciente.
Hoje está arrependido. Os meandros continuam a suceder-se, com curvas cada vez mais caprichosas, em modo de espera. Em vão. Nunca mais aconteceu.
Podia ter ido tão longe!
Será que a espuma dos dias em que se tornou a sua vida é ainda um meio de retomar o que deixou para trás?
Será que se pretende transformar numa poeira intergaláctica em grande rotação que irá dar origem a num berçário de novas estrelas?
Espuma do tempo. Espuma incoerente que não se desvanece e deixa que as poeiras se agreguem, aqueçam, acendam e originem novas estrelas.
Não foi de propósito que o autor copiou as duas primeiras frases plasmadas no início do texto. Acredito no livre arbítrio, mas neste caso está fora de contexto. O problema está na mente. Porque será que o consciente e o subconsciente se comportam como se não estivessem em mentes separadas?; e porque não o livre arbítrio e o determinismo existirem num amplo abraço de coexistência pacífica sem agirem à mercê dos dois senhores da mente?
Tudo é equilíbrio no universo, embora não seja um sítio pacífico para se estar perante a influência perigosa de supernovas, hipernovas, buracos negros, estrelas de neutrões, magnetares. Estou a falar do equilíbrio que se verifica no âmago de uma estrela como o nosso sol em que a gravidade e a fusão nuclear se equilibram até que o hidrogénio entra em défice. Afinal é uma dualidade que existiu desde que se acenderam as primeiras estrelas. Esse confronto equilibrado, em que se admite o princípio do terceiro excluído, durará até que se quebre a regra do jogo.
Aproveitando a regra do jogo, passemos para o que aconteceu a ele quando teve que enfrentar os primeiros fenómenos. O que os provocou, não sei. Talvez tenha havido uma tentativa de independência da parte do seu subconsciente. Talvez tenha acontecido que acendeu o facho que começou a dar luz suficiente para “ver” aquilo que, até ao momento, estava oculto. Tal acontecimento foi um sinal de alarme para o censor tentar bloquear o teatro das operações. Mas o processo já estava muito adiantado para travar de todo a catadupa de fenómenos que não deixavam de surgir. O curso do rio que tinha sido calmo até à altura, regressou à fase turbulenta que se tinha verificado algures nos primeiros tempos.
O que provocou a vinda dos fenómenos? Aparentemente não havia motivo causal. Ou havia?, se ele admitisse a existência de vida para além da morte? Numa hipótese remota e desafiadora, ela, a desejada, teria escapado da lei da morte e agora tentava regressar. Mas como? Começando por sinalizar a sua presença com o mistério da cassete suspensa? E não foi só esse o fenómeno. O caso do relógio de pêndulo que "falou", o anúncio traumatizante de uma morte num jornal que se publicava à tarde na altura e a que ele teve acesso (há muito que não comprava jornais vespertinos). Sei lá que mais. No entanto era tudo muito duvidoso. Labiríntico. Mas também perturbador. Como perturbadora estava a ser a espuma do seu tempo que dava mostra de estar a desfazer-se. O futuro que desejava ser apenas obra do livre arbítrio estava agora a ser controlado pelo determinismo. Tudo bem se este não o conduzisse invariavelmente a sucessivos becos sem saída.
Não soube mais uma vez estar à altura dos acontecimentos quando lhe surgiu pela frente a mulher de vermelho.
Quem era? Uma viajante no tempo que vinha do passado ou do futuro e que surgiu naquele café por mero acaso? Porque o perturbou tanto? Traria uma mensagem daquela que fora a mulher da sua vida, mas ficou-se a meio caminho ? Que ligação teria havido com as duas mulheres que viu um vez em Fátima [3]?
Reagiu da pior forma que podia ter reagido. Voltou as costas aos fenómenos e preferiu deixar-se conduzir pelos meandros do rio que fatalmente tinham como destino a foz. Mas houve um volte-face. Um novo baralhar de cartas que o transportou para um lago de águas estagnadas, onde ficou e onde está ainda.
Se já não acredita em fenómenos ou casos paranormais, que vai ser o seu amanhã?, se é que não está já no amanhã dos dias sem retorno sonhando que vive ainda nesta Terra de passagem? 
[3] Aconteceu há muitos anos mas Mário nunca mais se esqueceu daquele dia em que foi a Fátima com os primos canadianos. Da tranquilidade. Da paz de espírito que o abraçou. Do ambiente místico que o influenciou para acontecer então o que aconteceu. Sentiu-se bem em Fátima, especialmente depois de ver os primos comprarem velas. Tentando ajudar alguns entes que já não eram deste mundo, comprou também velas. Seis. Uma para a Manuela, outra para a infeliz Catarina ("Uma morte anunciada") e mais quatro em intenção de familiares já falecidos e também do poeta José Duro. 
Mas na realidade não foi esse o motivo porque aquele dia ficou indelével, bem marcante para o futuro.
Esteve uma hora de pé, estático, a assistir ao terço na capelinha das Aparições e não sentiu quaisquer problemas nas pernas, ao contrário do que acontecia vulgarmente. Quanto à Júlia e à irmã ficaram sentadas à frente. O Hélder esteve quase sempre ao seu lado, um pouco afastado para a direita.
A certa altura começou a olhar fixamente para a imagem da Senhora do Rosário e os olhos encheram-se de lágrimas. Deu consigo pedindo para Ela não o levar. Logo de seguida a dúvida assaltou-o.

Foi mesmo ele que pediu, tal como aconteceu uma vez em Lisboa?
O mais estranho estava para vir. Coisa muito simples e aparentemente natural. Ao mesmo tempo rápida na duração.
Tudo começou quando uma jovem de blusa vermelha foi colocar-se ao seu lado direito, quase se encostando. Não teve tempo para desconfiar porque, minutos depois, uma outra mulher, também nova, um pouco mais velha que a primeira, apareceu à entrada do recinto da capela. Observou-a com atenção. Era alta e tinha um perfil egípcio. Trazia uma criança pela mão.
Aproximou-se dele. Passou pela frente e foi colocar-se do lado esquerdo, embora ligeiramente afastada.
O mais curioso é que vieram ambas do seu lado direito. Portanto, segundo ele, vieram do futuro.
Ainda não estava restabelecido da surpresa quando, em baixo, começaram a rezar o terço. Foi então que sentiu a segunda mulher a chegar-se a si.

Distraiu-se ou fez de propósito?
Ficaria para sempre a dúvida. Uma coisa era verdade. Foi “guardado” por duas mulheres que vieram do futuro.
Um pormenor que não lhe escapou: a segunda mulher cantava divinamente. De vez em quando olhava para ela e via o seu rosto de perfil, imperturbável. Estava ao seu lado como se ele não existisse. Mas o contacto do corpo dela era real. Um contacto ao de leve. Tinha uma saia vermelha, de bolas brancas. Da cor da blusa não se lembrava.
Que significado podia dar a tanto vermelho?
Sentia-se bem. Respirava-se paz em Fátima.




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O segredo adormecido

 

Algures, muito longe e ao mesmo tempo perto, encerrada numa torre de vidro, inexpugnável, vive uma mulher atormentada por um segredo que o seu coração guarda. O sorriso forçado espelha uma tranquilidade oca e não deixa penetrar nas suas defesas, últimos redutos para lá dos quais os neurónios sangram de tanto esconderem as memórias agrilhoadas pelo esquecimento. A sua vida é agora como um rio a engrossar a todo o momento o caudal do desespero e que já não tem leito que dê vazão a tanta desculpa para esconder a causa que provocou tão grande e e trágica inundação. Monstros reais ou imaginários vigiam-na, dia e noite, não vá ela um dia despertar. Desde que se refugiou na sua torre de vidro só vê monstros terríveis que a atormentam, causam-lhe um medo pavoroso, mas que fazem-na, inexplicavelmente, permanecer vulnerável a um ataque iminente.
Noutros tempos acreditou numa nova madrugada e deixou o sol brilhar, a esperança crescer, o sonho tomar conta da sua vida. Foi ele que apareceu. De repente. Como num sonho.  Tal meteoro a riscar a atmosfera e a manter-se misteriosamente estável. Mas... grande engano!
«Julgava que me conhecia há uma semana.» Disseste  uma vez na tela dos corações caídos..
Nunca explicou o sentido da frase. E ele também não soube como foi que aconteceu. Aconteceu e ficou de pedra e cal. Antes não ficasse.
Ela acreditou tanto nessa brusca órbita de acontecer, uma espécie de elixir mágico, que quase baixou as defesas. Até já via futuro no futuro longínquo das utopias e estava disposta a partir ao encontro desse futuro. Então, aconteceu. Foram apenas uns dias em que foi feliz, apesar do tal segredo adormecido que continuava a sua missão ignóbil de tortura, minando-lhe a razão. Mas alguma coisa surgiu que foi definitiva para tudo voltar ao mesmo. 
Encerrou-se de novo na torre de vidro, altaneira, perdida nas nuvens, onde ninguém podia chegar e agora os seus neurónios sangravam e iam desistindo de viver, um a um. 
No seu quarto existe agora uma cama vazia de amor, sem sinais de pétalas vermelhas. Apenas muito frio para a abraçar. Gelo a envolver o seu corpo quente que, por momentos, alimentou a paixão, quiçá o amor. Gelo com cem anos-luz de espessura, inquebrável, que ninguém vai conseguir destruir. Nele se deita. Nele se levanta. Quando a noite vai alta, adormece no aconchego da solidão e nem se lembra, ao acordar, dos sonhos que sonhou, dos pesadelos que teve, do imaginário que viveu antes de adormecer. 
Levanta-se para o banho matinal e deixa-se ficar, adormecida, com a água a cair-lhe sobre o corpo nu que, em certos dias, não gosta de ver. Depois, envolve-se no roupão branco, enxuga o cabelo com uma toalha que prende à volta da cabeça. Toma o primeiro almoço, onde não falta o café da manhã, ao mesmo tempo quente e frio porque agora voltou a viver só. Antes que se ponha a pensar como foi que aconteceu, sai furtivamente da torre para um outro mundo imaginário onde se perde, se esconde, se engana com outra vida que o segredo guarda. Volta ao fim do dia, cansada, ansiando por um novo banho que lhe vai limpar o corpo e desanuviar a alma. Come uma ou duas peças de fruta, liga o computador e comunica com o mundo virtual das conversas instantâneas e coletivas, alienantes da realidade e fonte de alimentação do segredo que, cada vez mais, parece estar profundamente adormecido. Sente que a vida não tem sentido e faz questão de dizer que vive só, despertando a gula de possíveis intrusos que não chegam a aproximar-se por causa do tal gelo, mas que permitem que o segredo se alimente em círculo vicioso. A cama continua vazia e os banhos sucessivos que toma são a fuga inevitável quando se sente ameaçada. A janela aberta deixa entrar o sol e o luar, por vezes. Mas só por vezes. Logo se fecha quando sente que o sonho vai embora.
É assim o dia-a-dia desta mulher que vive só na sua torre de vidro. Escondida da realidade. Ela e o seu segredo adormecido. Uma mulher destruída que teima em não querer acordar. Uma mulher bela que não gosta de si. Que diz não saber amar, mas, quer queira quer não, já amou quando um dia disse que sim. Mas tinha cravado no peito um espinho doloroso que a fez adormecer de novo, quando nada o fazia prever, na continuação dum encantamento amaldiçoado, esquecido algures no passado.

Um dia, descobri-a por acaso. Entrei a medo nas salas desencantadas e virtuais dos chamados descasados, um mundo onde se refugia uma fauna inimaginável, e fui logo atraído pela sua voz tranquila, segura e também dominadora. Um mistério insondável de uma atração em que a razão não teve quota-parte. Consegui chamá-la para uma conversa a dois. Primeiro queria ver-me. Mas lá consegui finalmente que falássemos antes de me ver. Admirou-me a aparente abertura no diálogo. O assumir da solidão. A apologia da sua própria beleza. E era mesmo bela. As fotografias que me enviou falavam verdade. O rosto que vi através da cam também me convenceu e disse-lhe, mais que uma vez:
«Tu és bela!»
Até que me apaixonei. Mas ela refugiou-se na amizade e na ternura e até confessou que não sabia amar.

Mas amou-me! Porque, um dia, disse que sim. Só nesse dia.
«Quero ser tua amiga. Só tua amiga. Tu és um homem bom.»
E em pouco tempo fizemo-nos amigos. Avançámos em confissões profundas. Mas nunca consegui que me falasse de amor, senão num certo dia de maio, mês de magia tão grande que até me fez sonhar uma vida a dois. Mas quando chegou junho, mesmo em cima do dia dos namorados no seu país, de repente mudou de opinião. Refugiou-se de novo na fria torre de vidro e nunca mais foi a mesma. Um ou outro "querido" em tom de despedida e o segredo a continuar guardado no seu coração amargurado. Estranha contradição. Quanto mais julgava que a conhecia e parecia estarmos mais perto um do outro, mais ela se afastava. Falou-me do outro. Da atração que sentira por ele. 
«Que tinha ele que eu não tenho?»
Sorriu, amargurada. Foi a resposta.
«Ele vai voltar?» 
Voltou a não responder. Aquele mistério confundia-me.
«Não compreendo.» 
Mais tarde a verdade viria à tona da água.
O virtual continuou a ser a fonte de alimentação da nossa amizade. Aí, sim, avançámos muito, a ponto das amigas dizerem que estava a trocar o real pelo virtual. 
E o que era o real na sala dos descasados?
Acho que foi a minha primeira vitória porque o seu verdadeiro real não passava do nosso virtual em que aprendemos a estarmos bem perto um do outro. Mistérios insondáveis do virtual!
Não fui vencido por aquela mudança brusca. O que aconteceu de repente, também de repente podia passar. Pensei, pensei... até que descobri.

Porque não contornar aquela área do coração tomada pelo segredo e assentar praça numa outra onde o espaço para amar era infinito?
Seguiu-se um processo lento de reconquista, feito de altos e baixos. Subtilmente, sem que o seu consciente suspeitasse, um amor diferente foi ganhando raízes, crescendo até transbordar. Até que entrou em pânico e não quis assumir. Refugiou-se de novo na torre, embora espreitando cá para fora, à espera de sinais fortes. Reais. Onde eu tinha que estar presente. Eu sabia e aproximei-me da torre, ficando os dois a olhar um para o outro, tentando ler mutuamente sinais verdadeiros. Nova tentativa num estranho jogo de póquer fechado, a ver quem de nós fazia mais bluff.
«Não digas a ninguém...»
Mas esse não é o segredo. Não passou de um equívoco o jogo bluff. Agora, conheço  o que nos mantém afastados, cada um no extremo da ponte, com o seu coração a bater acelerado, mas pelo outro que a levará à destruição. 
Ela estava diferente. Gostava de mim, mas não me amava.
«Um momento, amigo.»
«Vais tomar um banho retemperador? Deixa que te veja...»
«Não.»
«Então?»
«Adivinha.»
E adivinhei. O seu desejo era outro. Nunca mais abriu as defesas. Nunca mais se olhou ao espelho e se embelezou para mim. Quanto à torre de vidro, essa continua fechada, embora o sol e o luar entrem ainda pela janela. Lá dentro, a cama continua vazia e ela nunca mais vai sonhar que, um dia, vou atravessar a ponte para ir ao seu encontro.
Se esse milagre acontecesse, a solidão não teria mais espaço para se alimentar e o segredo adormecido nem sequer seria lembrado como segredo. Quanto ao outro, que afinal era o segredo, não voltou porque esteve sempre com ela.
«Como queres...?»
«Gostoso. Fresquinho.»
«E nós? Gostas de mim?»