quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Conhecem Gioconda?

 


Lembro-me vagamente de ter visto aquele rosto. Sou bom fisionomista. Aliás, tenho a certeza que os meus olhos já a fotografaram de corpo inteiro, vestida, não só o corpo como a expressão do seu olhar. Admiram-se? Claro que não. Não sabem de quem estou a falar. Nem eu. Mas há uma diferença. Nunca descobrirão de quem se trata e onde a vi sem que eu lhes diga. Lógico. Tão lógico como ser impossível, nos tempos que correm, ver-me a passear lá fora levando pela trela o cão que não tenho. Melhor ainda. Retiro o cão da cena. De certeza absoluta que continuo a não me ver lá fora. Agora, voltando à pessoa em questão, vou introduzir mais um dado, do qual, aliás, já suspeitaram. Trata-se de uma mulher. Morena, de estatura normal para uma mulher dos anos sessenta, olhos castanhos, cabelos loiros, pintados. Se for à raiz descubro que a cor verdadeira do  seu cabelo é o castanho. E pronto. De momento não acrescento mais.
Bom, lancemos a confusão. Disse que lembrava-me vagamente daquele rosto. No entanto, posso estar equivocado. A minha base de dados não confirmou nem desmentiu. E ela costuma ser infalível. Mais cedo ou mais tarde dá-me a resposta certa. Mas que resposta? Antes de ficarmos por aqui, acrescento mais um dado. Não. Não trocámos uma única palavra. Mas há outra coisa. Desconheço o que pensou quando os olhares se cruzaram. Como não posso meter-me na sua cabeça, de nada vale acrescentar este dado. Retiro-o. É melhor que fique em stand by. 
Quantos são hoje e que horas são?
14 de janeiro de 1964. Passam poucos minutos das três da tarde. Estou na Figueira da Foz a cumprir o serviço militar. Mais propriamente em F..., como está escrito em "Os Longos Dias Azuis" (1), e os dias têm estado demasiado quentes para a época, e o azul do céu, para meu agrado, tem predominado. Começam a alongar-se e o que mais desejo é que o fio do tempo dê um salto para ver-me no pino do verão. Por enquanto é janeiro e estou na esplanada do snack da Sacor sem olhar para o mar das três cores e também sem dar atenção às gaivotas que picam para a rebentação onde cada uma vai ter um encontro a dois com um peixe, infelizmente para ele, mais aventureiro. E agora é tempo de acrescentar mais dados. Ela passou rente à mesa e deu-me tempo para a ver melhor. Não é a Patrícia. Se é que existe, que está no snack, sozinha, pensativa, ocupando uma mesa, fitando um Mário imaginário que faz, no momento, rodopiar um copo que já teve água. Não tarda que a Patrícia saia da vida de Mário, que, entretanto, já "matou" a Manuela com uma mistura fatal de propano-butano.
A mulher passou por mim quando estava a rever um capítulo da "obra-prima" do meu amigo António que afinal deu em nada. Falhou um contacto que prometia mundos e fundos e ele teve que ser editor e distribuidor. Foi para esquecer.
Vou atrás da mulher para a rever e tentar lembrar-me onde a conheci e depois chegar mesmo à fala com ela, ou fico por aqui, a fazer a revisão daquela meia dúzia de folhas que perfaz um capítulo?
A mulher veio da minha esquerda para a direita. Se fosse um sonho, diria que tinha vindo do passado. Mas não é um sonho. E por mais que me tenha impressionado decido que vou ficar por aqui. Tenho que entregar, sem falta, até amanhã, estas folhas ao senhor Cardoso da tipografia. É uma pessoa cordial e de bom coração. Concedeu-me um crédito que transmiti logo ao António. Manifestou-se pouco, como é hábito, mas deduzi que ficou satisfeito. Para quem está sem cheta, um crédito destes caído do céu é sempre bem-vindo.
Estou quase a amaldiçoar aquela mulher que passou por mim e que me fez pensar que já a conhecia de qualquer sítio. E a razão é muito simples. Continuo às escuras e isso dana-me. Devia desistir de forçar a memória, mas o mal de tudo é que sou teimoso. Muito teimoso. Uns dizem que é virtude. Outros julgam que trata-se de um defeito terrível. Não se alheiem, peço-lhes. Bem sei que não querem saber dos meus defeitos ou virtudes. O que lhes interessa é uma história e esta ainda nem sequer está na rampa de lançamento. 
Bom, abreviemos. Vou enveredar por uma mentira. Não se importam? Afinal chamo-me Aristides e não tenho nada de novo para publicitar. Portanto, não sou caixeiro viajante. Nem vendo nem compro imóveis. Também não sou merceeiro ou assim. Sou fotógrafo e vivo da profissão. Tenho uma gaveta cheia de fotografias que vão valer milhões quando chegar o momento. O momento é um momento. Não se dá por ele. É esse o receio. O sobressalto. Como o momento de há pouco quando ela passou por mim. Apesar de nos olharmos e ela sorrir, nada a denunciou a um conhecedor, como eu sou, da natureza de muitos sorrisos. Na verdade há muitos tipos de sorrisos. Sorrisos de celebridades. De eternidade. Sorrisos falsos. Idiotas. Amarelos. E de contadores de histórias que procuram, por exemplo, a história da mulher que passou na esplanada e quase se roçou na mesa onde tinha as folhas que já referi. Fez uma tangente a apontar para a secante. Se fosse secante, tinha parado. Talvez nesse instante a reconhecesse pela voz, já que o seu sorriso tornou ainda mais nebulosa hipótese de a reconhecer. Paciência, foi apenas uma tangente. E se ela voltar atrás? Nesse caso vem do futuro. Que trará de novo? Um entre muitos rostos. Muitos, desconhecidos. E no seu, a dúvida que continua. 
Viro-me para o interior do snack e vejo a máquina de discos. Silenciosa. O Mário e a Patrícia mantinham-na inativa. Ele gostava de música. Ela, não. Como eram os únicos clientes no momento, a máquina inativa servia apenas para fazer ambiente. Depois havia os bancos  altos, rotativos, encostados ao balcão. E não era só o silêncio que marcava a distância entre dois seres que já não se amavam. Existiam muitos outros desencontros. Só a entrega na cama os atraía. Depois, era o vazio das palavras. Não. Nunca se amaram. Só passou por eles o fogo da paixão. Digo passou porque já não os vejo no interior do snack. O tempo engoliu-os.
Sinto-me alucinado. Não devia ter entrado virtualmente neste snack e depois tentar imaginar como eram o Mário e a Patrícia, frente a frente, porque não vi a Patrícia seguir o voo da gaivota enquanto o Mário imaginava que as nuvens negras que estava a ver iam tomando a configuração de monstros idealizados por génios maquiavélicos.

"«As tardes são mais longas...» Diz Patrícia. «Já reparaste, Mário?»
O homem baixou a cabeça. Talvez não tenha ouvido Patrícia. Apenas o copo rodou com mais velocidade e algumas gotas foram projetadas sobre a mesa. O copo ainda gira mais. Ele parece interessado em vê-lo dançar, num rito grotesco, como se em cada volta, em cada disposição diferente as moléculas de água, encontre uma visão, uma nova forma...
Seria', naquele agitar insistente estava vendo alguém?»" 

Regressei. Volto a dizer. Sinto-me alucinado. Tenho tantas imagens na base de dados e nenhuma delas se identifica com a mulher que vi passar há pouco e logo ocupou o espaço-futuro. Desde que os chineses criaram os números (foram eles?), os milhões passaram a pesar consideravelmente. Séculos representam milhões de horas, por exemplo. Milhões de libras tendem para uma eternidade de conforto. Já vivi milhões de segundos e num segundo vou deixar de existir. Mais do que um homem que veste fato cinzento, menos que um homem que se sente um caniço que verga e não quebra, sou alguém que transporta consigo um relógio fatal. Mais ainda e no momento... sou um fotógrafo freelancer famoso por causa da base de dados que não para de crescer, ciente que todos somos fotógrafos. Abstratos, realistas, impressionistas, anarquistas, muitas vezes daltónicos. Tenho a minha ponta de curiosidade e não há ninguém que saiba fugir a ela. Quanto ao pecado original, ou similar, cometo-o frequentemente e também tenho direito à absolvição, nem que fique convencido da merda dessa treta.
«Eu te absolvo, meu filho, que não sabes o que fazes...» 
«Eu sei o que fiz.»
Se for uma voz a dizer isto e se essa voz nada tem a ver com a voz da consciência, a falar verdade nunca ouvi essa tal voz. Lamento. Falo sempre verdade quando julgo que estou a falar verdade. Por exemplo, agora. Não sei se lhes disse...
Eu cá tinha o pressentimento. Ela voltou atrás e ocupou a mesa contígua. Ou lembrou-se também que me conhecia de qualquer sítio, ou o acaso funcionou influenciado pelo meu pensamento e não com a certeza do acaso. Está tudo no princípio e tenho tempo para ir ao que ainda queria dizer. Não sei se lhes disse que, um dia, algo em mim me impeliu para seguir a carreira de cirurgião. Houve um tempo, no tempo dos sonhos, que sonhava todos os dias com bisturis a rasgarem corpos como quem esfolava cobaias. Era horrível. Aquilo não tinha fim. Mais que obsessão. Obsessão ao quadrado. A verdade é que sentia o suor na testa e o lenço abençoado da enfermeira assistente a retirá-lo, numa carícia. Então, sorria para a assistente e tinha um pensamento menos profissional. Ao esquecer-me do paciente o bisturi não parava. Ainda se ela fosse uma alma gémea! Estupidez a minha. As almas gémeas não existiam nem nunca existiram. Só se ela fosse uma alma gémea vinda no momento e levada pelo momento a seguir a outro momento e mais uns tantos ("repeat", em informática). E foi por causa do bisturi em modo de inércia que desisti da ideia de ser cirurgião e enveredei pela de fotógrafo freelancer. Não podia ser de outra forma. Tinha que ter uma profissão.
Que seria de nós se fôssemos nada?
É poderoso aquilo que determina o que somos ou o que não somos. Destino, determinismo, o que tiver que ser. 
Continuo a insistir comigo que a conheço de qualquer sítio e a não me lembrar. Para dar começo à história, agora que está quase à distância de estender o braço, começo a magicar em dar um nome à "obra-prima" que tenho ao meu lado. Ou melhor, à expressão, que acho incomparável, do seu olhar. Ao seu sorriso, se voltar a sorrir para mim. Mas a mulher que ainda não voltou a sorrir e nem sequer lançou um olhar, fatal ou de circunstância, tem que ter um nome.
«Natália.»
Nem sequer se mexeu. Mas fica Natália (2). embora lhe vá dar outro nome. Quero que seja pura como pura era a água dos regatos nos meus tempos em que fui menino e moço. Pura como ela era no dia em que a conheci. Como o tempo passa! Ainda há pouco ouvi o toque da ordem e já o sol está a preparar-se para adormecer lá no fundo, no horizonte. Não tarda que recolha ao interior do snack para comer um bitoque com um ovo cavalgante, bem passado. E meia garrafa de Grão Vasco. Tinto. Oxalá ela tenha a mesma ideia que eu. As mulheres são mais friorentas que os homens e já senti uma aragem pronunciadora de arrefecimento.
Na mouche! Levantou-se e sorriu. Mas nem uma palavra. Fico na expectativa. Vai-se embora ou também opta por entrar no snack. Tem que funcionar o princípio do terceiro excluído. Entrou. Tenho mais tempo para descobrir quem é. Vou entrar também. Só depois da Natália ter escolhido a mesa. Ficou junto à montra e voltada para o lado do balcão. Oh! É a mesa do Mário e da Patrícia. Antes que anoitecesse ainda podiam ver o mar das três cores. Mas só mar. As gaivotas já tinham partido para os os seus destinos. Acontecia sempre quando o verde, o azul e o cinzento começavam a dar sinais de tender para o negro.
Detive-me à entrada do snack, comportando-me como um indivíduo do signo escorpião. Tinha razão em proceder assim porque vi dois homens sentados nos banco rotativos junto ao balcão. Um novo dado que talvez nada tivesse a ver com outra ajuda para descobrir quem era a dona daqueles olhos castanhos. Já podia entrar. Decidi escolher uma mesa o mais próxima possível dos homens.
«Estás a ver a gaja?»
«Sim, não sou cego.» Respondeu o homem que vestia uma casaca Armani e escondia os olhos por detrás de uns óculos escuros. 
«E não foste ter com ela?»
«Estou a avaliar a próxima cena.»
Avaliar o quê? Ele podiam ser um agente imobiliário, mas ela não um imóvel.
«Olha, emprestas-me o Mercedes?»
«Se ela sair, vamos os dois.»
«Tu e ela?»
«Não, cretino. Nós dois.»
«Mas sobra um. Só vou ser eu com ela esta noite»
«Para uma gaja da fauna do streap-tease tudo é possível. É só uma questão de se fazer um contrato.»
«Achas?»
«Conheço-a bem.»
«Então, vamos a jogo.»
O "casaquinha" tem razão. Mas não estou a perceber a intenção deles. Tudo me diz que ela não é o que pensam. E não está ali por eles. Confirmação! Mudou de lugar e olha para mim.
«Dás-me lume?»
Tratou-me por tu. Não fumo, mas tenho um isqueiro para emergências como esta. Ainda bem.
«Obrigada.»
Só consigo sorrir e volto à minha mesa. Do seu lado, sorrisos prometedores. Só. E a voz nada acrescenta. O bitoque deve estar a chegar. Entretanto vou ouvindo os outros. Agora falam de ações de uma cimenteira cujo nome não consegui ouvir.
«Recebi uma informação e não lamento quanto paguei por ela.»
«E o resultado?»
«Ganhei quase onze mil contos.»
«Emprestas-me mil?»
O outro não respondeu porque algo de novo tinha-se introduzido na trama.
«Olha, parece que ela vai sair.»
«Que fazemos?»
«Esperamos.»
Entretanto crio uma nova situação. Desta vez virtual.
«Dá-me lume?» 
Nova situação.
Esta mania que tenho de deixar o tabaco e o isqueiro em cima da mesa um dia dá mau resultado. Agora, pedem-me lume. Não é ela, nem o "casaquinha", nem o companheiro.
«Pois não.»
Julguei mais prático atirar-lhe, pelo ar, o isqueiro.
«Obrigado.»
«De nada.»
«O tempo está bom, não acha?»
Devia ter evitado criar esta nova personagem. É o que penso. Nada me impede de não responder, mas respondo.
«É verdade. E esteve uma tarde primaveril em pleno inverno.»
«Viu aquele pedaço de mulher?»
Ah!, sempre se justifica a entrada em cena daquela nova personagem. Como no póquer, aposto para ver. Repicar é demasiado para o jogo que tenho entre mãos.
«Sim, a mulher.»
«Uma obra de arte, uma obra de arte. Se fosse novo, arriscava grande parte da minha fortuna.»
«É rico.»
«Rico ou pobre fazia o que disse. Aquela boneca de luxo...»
«Sim, tem razão. A mulher é uma obra de arte.»
Que pensaria o Mário? Longe da Patrícia, claro.
Levanto-me na direção da máquina dos discos. Aquela engenhoca parece complicada. Só quero pôr a tocar um disco do Bécaud e não consigo. Estas engenhocas confundem-me.
«Tem alguma dificuldade?»
É o empregado. Explico-lhe o que quero ouvir. Nathalie. Começa por:

"La place Rouge était vide
Devant moi marchait Nathalie;
Il avait un joli nom, mon guide
Nathalie

La place Rouge était blanche
La neige faisait un tapis
Et je suivais par ce froid dimanche
Nathalie..."

Não sei explicar. O velho causa-me nojo. Com dinheiro ganhava um troféu que era a doce e pura Natália? Uma obra de arte, como ele lhe chamou. Olhei para a rua e vi, para poente, o anoitecer avermelhado, com um céu sem nuvens. No mínimo, poético. No máximo, como quantificar em abstrato?
«Desculpe a indiscrição, o senhor...?»
Ocorreram-me mil nomes. Ficou um.
«Aristides Falcão.»
«O senhor Aristides Falcão é escritor?»
Amaldiçoei o velho e o isqueiro que lhe atirei para acender o cachimbo.
«Sou fotógrafo.»
«E tenho espartano. Não fale comigo.» Pensei. «E agora deixe-me comer em paz este bitoque.»
«Ia jurar que era escritor.»
Não dei seguimento à conversa e arrumei o velho na minha secção de personagens não disponíveis. 
Afinal ela não tinha saído como previra o amigo do "casaquinha". Pediu um prego no prato e bebeu uma água sem gás. Os outros tinham já esvaziado seis copos de imperiais. Quanto ao meu bitoque estava razoável. Para um fotógrafo de vinte e cinco anos não havia bitoque que resistisse. Nem o do "Come e Bebe".

Estava já na rua. À frente, pelo passeio, ela seguia a uma distância de dez metros. Na estrada, o Mercedes avançava discretamente. Portanto, havia uma dupla perseguição.
Adivinhei o que diziam.
«Não é melhor saíres do carro e perguntares à Irene porque se está a fazer tão cara?» perguntou o outro ao "casaquinha". 
Irene?
Entretanto ela parou junto à montra de uma casa de modas. Tinha que chegar à conversa com ela antes do "casaquinha" ou o outro. Mas cheguei atrasado. Não ouvi o que ele lhe disse nem a resposta que ela lhe deu. Não se passaram mais que dois minutos. Fiquei maravilhado por ver a cara de sarcófago com ele chegou ao carro. A partir daquele momento aquela mulher que o velho imaginário considerara como sendo uma "obra de arte" era toda minha. Salvo seja. Só o caminho estava aberto. Como ela era pura! Não quis o dinheiro do mau da fita.
«Boa noite.»
Estava ao seu lado.

Sobre Leonardo e Gioconda...
"Não criou melhor Gioconda. Era uma jovem desfavorecida em beleza, ou um adolescente disfarçado de mulher. De qualquer maneira, Leonardo não exprimiu pureza de algo que só era tentação e pecado.
Quem olha Gioconda, nota-lhe um sorriso malicioso. Foi esse sorriso que Geoges Isarlo viu: «Era um garoto disfarçado, a quem lhe tinham dito: «Faze de mulher séria». Fazia-o afectadamente e, a despeito das risadas dos seus camaradas, os olhos brilhavam num sorriso de malícia. Tive a impressão que fazia lembrar alguém. Depois, nunca mais pensei nisso. Mais tarde, ao encontrar-me, no Louvre, com Gioconda,.."

Também para mim, a Natália tinha um sorriso especial que não consegui especificar. Se era irónico, malicioso, brejeiro, eu sei lá. Considerava-o puro, mas o abstrato não tem definição real. Interessa só dizer que nada tinha de malicioso, ao contrário de Gioconda. Mas depois daquela conversa no snack daqueles fulanos, dava o inimaginável como imaginável. Depois, nascia a dúvida se o velho invisível tivesse comentado:
«Olhe que um dos fulanos do Mercedes tentou a sua sorte e levou com os pés. Dececionado, seguiu até ao carro. Se ela é streaper ninguém sabe porque desempenha tal arte. Que mulher! Leonardo, esse, sim, devia tê-la conhecido com modelo...»

Virou-se para o lado. Desta vez pareceu-me que havia ironia no sorriso. Olhei-a bem, de olhos nos olhos. Era ela. Nada tinha a ver com a Natália e também com a suposta artista de streap-tease.
«Ah... Mário... É desta vez que vais voltar a ser tu?» 
«Mas...»
«O médico disse-me que só o tempo curava. E tinha razão. Voltaste...»
«Já a vi em qualquer lado. Sou bom fisionomista, mas não me lembro de si.»   

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Rosa, doce Rosa!

 

 


Se o tempo fosse coerente não deixava que se apagassem as memórias. Mas não aconteceu assim, tempo inútil que te dilataste até que as memórias antigas se esvaíram em nada.
Se o tempo fosse infinito no espaço infinito durante o tempo em que estava à tua espera e tardavas sempre a chegar, em que tempo terias chegado ao mesmo tempo que o meu para te conhecer tal como eras?
Se fosse senhor do tempo, parava-o. Depois, fechava-me à chave contigo com a mesma chave que o parou e assim não havia futuro para atraiçoar o presente.
Se pudesse correr pela noite atrás do tempo e levar-te a ver o luar, talvez um dia me perdesse nos teus olhos para não mais voltar aquela noite em que te perdi.
Se eu fosse senhor do relógio e da velocidade da viagem e se estivéssemos, eu e tu, no mesmo relógio que ambos tínhamos parado e se depois viajássemos para as estrelas dos mundos sem fim... se acaso um dia regressássemos, que relógio esperava por nós?
Se foi ontem que disse que te amava e que cheirava a maresia o teu corpo macio e o sabor dos teus lábios a morangos silvestres e se o mar dos teus olhos deixasse que me escondesse em ti e se o meu tempo valesse o tempo do relógio parado e se o teu marcasse o compasso uniforme e se por acaso ficasses à espera de mim, se regressasse para perder-me nos teus olhos que já não me amavam, cadáver sem tempo, sem sonhos, como podia o tempo do relógio passar a marcar o mesmo tempo na vida e na morte?
Se te tivesse num dos quaisquer relógios parados que já usei, que raio de vida teria sido a minha se nesse tempo estivesse parado o relógio do tempo em que nos amámos?
Se os nossos relógios parassem à mesma hora para logo se fundirem num só, de que serviria o tempo para marcar o tempo de dois enamorados eternamente em encanto?

E agora, nós... Rosa, doce Rosa que queria colher no meu roseiral. Aquele compasso de espera antes de decidir colher-te em nada nos beneficiou. O teu relógio foi-se atrasando enquanto esperavas que me decidisse a levar-te comigo.
Falando sério, tínhamos combinado ir ao encontro um do outro, mas algo correu mal. Um de nós quebrou o compromisso. Ou então houve um salto no tempo que me levou para um encontro com outra mulher que não eras tu.
«Bruxaria!» disseste, com convicção.
Talvez. Mas eu também tenho uma hipótese para tentar explicar o que aconteceu. Aquilo veio de repente e toldou-me a consciência. Uma espécie de nevoeiro que impediu, cirurgicamente, por algum tempo, o acesso a dados importantes como esse ligado ao compromisso que tinha assumido. Não é uma desculpa, Rosa, doce Rosa. Na verdade, esqueci-me de ti. Não me perguntes porque foi. Ainda hoje não sei porquê. És capaz de ter razão. Bruxaria. Foi bruxaria ou amarração. Tanto faz. Esqueci-me. Lamento muito o que sucedeu. Por ti e por mim. Tanto no momento da verdade como nos dias que depois foram correndo. O mais estranho de tudo é que nesse tempo era jovem e a memória funcionava dentro dos limites normais. Mas por um motivo obscuro o encontro não aconteceu. Eu cheguei demasiado cedo e tu demasiado tarde. E assim foi criado um vazio no espaço-tempo a separar-nos. Desiludido, abandonei o local do encontro e parti levado por um relógio que já não marcava o nosso tempo.
Os anos passaram. Nunca me esqueci de ti, Rosa, doce Rosa. Os teus botões abriram-se em pétalas que não colhi, pois já não estavas no meu jardim. O teu aroma perdeu-se no éter. A tua voz. O teu sorriso. Os teus lábios. Tudo o que era teu e que deixou de ser meu. Só ficou a chaga da recordação. A dor silenciosa. A imitação de viver.
Depois, por castigo ou obra do acaso, tudo o que queria ser não fui. Tudo o que queria ter não tive. Até os caminhos que sonhei seguir me foram negados. O modo como queria viver nunca aconteceu. A própria casa que escolhi para viver estava torta e assim nunca estive dentro dela. Porque estava torta, algo me impelia para fora. Mas também, lá fora, não pude voar. Cortaram-me as asas. Sem elas nunca voei. Estagnei no emprego. Estagnei de emprego em emprego. Foi talvez um motivo para continuar a tentar esquecer-me de ti após aquele encontro frustrado em que fomos atraiçoados pelo tempo criado pelo bruxedo. E em todos os minutos que passaram foi assim. Como se o relógio tivesse parado desde aquele encontro em que te perdi.
Um dia, o meu tempo abriu uma janela. E eu entrei pela janela. Não para ir ter contigo porque o tempo já não estava contigo. Assim, arrastei-me pelo dia a dia já sem necessidade de ter um relógio com o tempo certo porque esse estava parado no passado quando esqueci-me do dia do encontro. Voltar atrás...? Infelizmente não podia banhar-me duas vezes na mesma água do mesmo rio.

Se fosse senhor do tempo, parava-o. Depois, fechava-me à chave contigo com a mesma chave que o parou e assim não havia futuro para atraiçoar o presente.

Sem avisar, foi então que, contra as leis naturais e contra a minha lógica, outro tempo para lá do tempo chegou. Veio de mansinho. Matreiro e oportunista. Veio contigo, Rosa, doce Rosa. Não queria acreditar que eras tu quem trazia esse tempo que o outro tempo levou. Com tudo o que era teu. O perfume suave do teu corpo. O sorriso tímido. O toque aveludado das tuas mãos. A tua voz a cantar. Voz inconfundível. Como se fosse um decalque...

Ou não eras tu?

«Olá.»
«Olá.»
«Estás no teu posto de observação?» 
Não quis responder. Ela sentou-se ao meu lado. Foi de um momento para o outro. Pareceu-me que tinha vindo do nada. Ou estou a fingir?
«Sim. E sempre atento. Nunca se sabe.»
«Nunca se sabe?» 
«Pois. E agora, mais do que nunca.» 
«Mais do que nunca?» 
«Atento.»
«Porquê?»
«Que mais me pode interessar neste momento senão olhar para uns belos olhos espantados de gazela que são os teus? Esses olhos dizem que querem uma coisa deste teu humilde servo. O que é?»
Rosa, doce Rosa. Há muito que não te via!
«Engraçadinho…»
«Estou a brincar.»
Como veio de repente ter comigo?
«É bom que estejas.»
Aquela mulher sentada ao meu lado trazia-me recordações que há muito julgava apagadas. Afinal estava enganado. A chama ateara as brasas adormecidas. Talvez um pequeno sopro vindo de um expirar mais expressivo. Talvez muita coisa. Não interessava. Interessava mais o que vinha a seguir no relógio.
«Foste dizer ao Alfredo que me encontraste no Centro Comercial!»
«E que importância tem isso?»
«Nenhuma. Dou-te razão.»
Recuo nítido. Mudança de estratégia?
«Então?»
Por acaso contei ao Alfredo que a tinha visto. Falei-lhe dos livros, em especial do livro de poemas do nosso ilustre colega que chamava burros aos alunos. A seguir, ocorreu-me o encontro que resumi com a maior das naturalidades. Nada mais. Tudo límpido como a água dos regatos de outrora. Mas ela não gostou. Mal me viu, veio ao meu encontro e agora censurava-me, agastada. Dava para pensar que o nosso encontro fora secreto. Onde ela queria chegar com o secretismo não sabia.
Seria que…?
«Sempre queres fazer a leitura das mãos?» perguntou-me.
Estava a acontecer magia ou, entretanto, adormeci naquele cadeirão indiscreto?
«É para já. Quirologia é comigo.»
«Então, vamos a isso.»
E estendeu-me a mão direita com a palma virada para cima.
«Estás louca?»
«Porquê?»
«Olha para a catatua da Isabel. Os olhos até lhe saltaram das órbitas.»
Olhou e reparou. A seguir, sorriu.  
«Que aconselha então o senhor especialista?»
«Vamos para a sala de reuniões.»
Longe das vistas. Afinal o nosso segredo não começava agora.
«Vou buscar a chave. Deixa-te ficar. Daqui a cinco minutos vem ter comigo à sala.»

Entrou uma pessoa na sala que tem cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu na minha direção. Olho em volta e verifico que só estamos nós. Não há dúvida que ela parece conhecer-me. Então, também devo sorrir. É melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não, não vá haver outra pessoa na sala, apesar da verificação meticulosa que fiz.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Os cabelos são castanhos, compridos. Passou no exame preliminar. Mas que faço eu numa sala que tem muitas cadeiras vazias? Não mostro a mínima admiração. Parece que estava à sua espera. Mas como?
«Curioso... Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi...»
Mensagens. Recados de um diálogo trazido pelo éter. Quero dizer-lhe qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento. Quem sabe até se já nos conhe­cemos noutro tempo e noutro espaço!
Segundo exame. Agora reparo. É mais jovem do que pensava. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. Sorrio. Retribui o sorriso e parece recompor-se do nervosismo. A palma da mão está virada para cima. Sinto que qualquer coisa a preocupa. Interrogo-a com o olhar. Quer que pegue na sua mão. E que vou fazer com aquela mão macia como o veludo? Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido e também porque o sol está a cair no horizonte. O sol a cair no horizonte tem a ver com o meu crepúsculo.
«Eu crepúsculo e tu viçosa...»
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e aqueles olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as nossas mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Quando as folhas das árvores amareleceram e desistiram de viver é que dei conta que a tinha perdido para sempre. 
Agora é tarde. Muito tarde. Mas dizem que a ouvem chorar!
Ela continua de mão estendida e está à espera de uma iniciativa minha. Não reajo. Sorri, embaraçada. Com natural timidez. A timidez desculpa muitas faltas. Mas as pessoas tímidas serão também ingratas?
Tão sedutora que é!
Talvez tivesse entrado na sala errada...
Pego na sua mão macia e ela fica à espera. Que vou fazer? Acariciar a mão da jovem? Não. Sublimo o desejo e começo a olhar fixamente para a sua mão, como quem planeia uma viagem. Continuamos sós naquela sala mágica que tem a porta fechada à chave.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo...»
Tudo parece ser secreto. Tento adivinhar a verdade na respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Naqueles olhos espantados e muito abertos. Na mulher que parece oferecer-se, corpo e alma. Tento ainda adivinhar se vou perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana. Se fico para sempre debruçado sobre a linha do coração.


«Então, quando começas?»
«Ah, é verdade. Vou começar. Curioso!» 
«Curioso, porquê?» 
«Acreditas que julgava que já tinha começado?»
Infelizmente aquele momento mágico desapareceu. A sua voz já não está trémula, à mercê do predador. Nem a respiração ofegante. É ela. Segura de si.
«Estás a ver alguma coisa ruim? Conta-me tudo.»
«Rosa, doce Rosa…»
«O homem passou-se!»
Não me sinto bem. O seu olhar perturba-me e receio fazer um disparate. Por outro lado, qualquer coisa me diz que esta situação não pode ficar fora de controle. Mas a Rosa, doce Rosa tem a mão tão macia! Apetece-me beijá-la. Desapertar os botões da blusa. Oh! Não tem soutien…
«Que estás a fazer?»
«Desculpa-me.»
Não lhe desagradou de todo.
«E se alguém abre a porta?» pergunta, algo receosa.
«Está fechada à chave por dentro…»
«Mesmo assim não me sinto à vontade.»
Mas ela abriu uma porta. Não. Talvez uma janela.
«Então?»
Compasso de espera.
«Por outro lado, chamaste-me Rosa.»
«E depois?»
«Rosa, doce Rosa…»
«Tens a certeza que ouviste bem?»
«Certeza absoluta.»
«Que queres que te diga?»
«Podes soltar-me a mão?»
«Claro. Olha, que fazes logo à noite?»
Toda a carne no assador. Atenção ao cheiro a queimado.
«Não te esqueças que temos aulas das oito às dez para as dez. Só depois ficamos livres.» 
Livres. Com asas de gaivota.
Mas porque será que os seios da Rosa, doce Rosa não me saem do pensamento?
«Queres jantar logo comigo?»
«Falas sério, Rosa?»
«Estás outra vez a chamar-me por um nome que não é o meu!»
Esses cabelos compridos, soltos ao vento, vão afastar definitivamente a imagem quase obsessiva. E é tão estranho! Nunca te vi no meu jardim.
«Não sejas tonto. Agora tenho que ir embora. Vemo-nos por aí. Mais logo. Não te esqueças...»
«E sempre vamos jantar?»
«Sim.» 
«Só os dois?»
«Só os dois.»

No intervalo após a primeira aula notei que ela estava inquieta. Receei que se tivesse arrependido do convite que me fez. Há momentos e momentos.
«Que se passa, Maria?»
«Finalmente não te enganaste no nome. E se nos pisgássemos?» 
Nem quero acreditar!
«De acordo.»
«Já adivinhaste onde vamos jantar?»
«Sim. Prometo ter juízo.»
Já na rua deparámos com uma quase superlua. Só de relance porque tínhamos pressa.
«Olha, é a lua dos namorados.»
«Coisa foleira. Mesmo assim, comove-me. É um convite para aceitar namoro?»
«E qual é a resposta?»
«Sim!!!!!»

Se pudesse correr pela noite atrás do tempo e levar-te a ver a magia do luar, talvez que um dia te perdesses nos meus olhos para não mais voltares atrás...

Mas infelizmente não foi bem assim que aconteceu. Ela passou por mim, cabelos soltos ao vento, sem sequer dizer adeus. Dizer adeus, não. Até logo. 
Infelizmente, disse adeus, pois nunca mais a
vi tal qual como a vi naquele momento secreto.
Quanto à Rosa, doce Rosa, se acaso existiu tinha outro nome.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Delírio