quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O médium que não cobrou um centavo

 



Abri a porta quase a seguir ao toque da campainha e fiquei à espera.
«Deve ser ele.» Disse a Luísa.
Limitei-me a olhar para ela e fiquei a aguardar. Pouco depois ouvi o correr da porta metálica do elevador e fiz um sinal à Luísa para receber o visitante.
O homem entrou e olhou logo na diagonal. Ficou parado no hall. Parecia estar a leste. Nem boa tarde, nem boa noite. Quase que nos ignorou. Mas foi melhor assim porque pude observá-lo com atenção. Era de compleição forte, não muito alto. Tinha uma cara cheia e assaz patusca. Trazia vestida uma camisa de mangas curtas, calças de ganga e uma camisola azul escura, atada ao pescoço. Na mão direita segurava uma pequena mala prismática, quase cúbica, com pega rígida em cima. Deu-me a ideia de ser um médico. Mas sabia ao que ele vinha.
Disse logo que precisava de ver a casa. Anuímos e deixámo-lo passar para a zona dos quartos e da casa de banho. Começou pelo quarto. Pouco depois regressou ao hall e mal espreitou para a cozinha. Já na sala ficou de novo parado. Eu e a Luísa olhávamos um para o outro, em silêncio. A primeira coisa que pensei foi que, pela amostra, o motivo ao que vinha prometia. Até porque pelo rosto já avermelhado notava-se um início de transtorno.
Teria bebido?
Até pareceu que tinha lido o meu pensamento, pois expirou com vigor. Negativo, avaliei. O hálito testemunhou a favor dele e contra a minha hipótese. Olhou em volta. Não foi preciso convidá-lo a sentar-se porque o fez de imediato no sofá ao lado da televisão.
Pediu um copo de água. Não sei se foi antes ou depois de aquilo acontecer. Tudo se passou do tronco para cima. No rosto e nas mãos. Segui com atenção todas as alterações na sua fisionomia. Não vi qualquer alongamento no rosto. Começou por ficar muito vermelho. Fechou os olhos e iniciou um movimento rápido, cada vez mais rápido com a cabeça. Os movimentos reduziram-se ao fim de um certo tempo e começou com uma espécie de estalidos feitos pela boca e noutra fase modificou-os com um ruído de chuchar, lembrando uma criança, talvez um velho, ou pretendendo imitar sexo oral. O curioso é que não exibia ar de prazer. Parecia mais ligado à violência ou ao sofrimento. As mãos caíam ao longo das pernas e rodavam de palmas para cima, ficando quietas. Isto acontecia depois de uma cena de movimentos bruscos com a cabeça. Houve uma altura em que os movimentos da cabeça, para um para outro lado, quase de rotação, foram mais violentos. Tão rápidos e violentos que receei pela integridade das vértebras cervicais do homem. De vez em quando olhava para a Luísa ou ela olhava para mim. Tínhamos uma enorme vontade de rir, mas, ao mesmo tempo estávamos apreensivos. Sentia as palmas das mãos húmidas, tal era a tensão do momento.
Sempre em silêncio assistimos a uma representação que, se não “falava verdade”, era quase perfeita. Digamos, muito diferente do estilo da vidente Ima, a única pessoa que me convenceu até hoje em termos de autenticidade das suas qualidades mediúnicas. Nunca interrompemos o homem. Nestes casos pensei que era o mais aconselhável. Houve pelo menos duas fases de movimentos com a cabeça muito bruscos e violentos.
Terá durado dez minutos?
Para nós foi uma eternidade. Só queria que o homem acabasse para nos explicar o que se estava passando.
Finalmente ficou imóvel. Pouco depois levantou-se, pegou no copo que estava em cima da mesa oval, bebeu um gole de água, pousou o copo e sentou-se de novo. Tudo feito maquinalmente. Como se nada de anormal tivesse ocorrido. Depois passou as mãos pela pelo rosto e manteve-se imóvel durante mais uns segundos. Não me lembro se as crises foram todas de uma vez ou se voltou a ter outra crise depois de beber água.
Abriu os olhos e olhou, sorridente, para nós. Perguntámos o que acontecera.
«É a primeira vez que me acontece mal entro. Só tive tempo de me sentar. Tudo se passa da porta para o quarto.»
Não tive tempo de perguntar o que se passava. Nem ele dizia. Explicou que não se lembrava de nada. Mas não entendi porque disse que tudo se passava da porta para o quarto.
Simplesmente encarnara e todas as entidades presentes passaram por ele. Admitiu que não teve tempo de avisar para olharmos para o seu rosto, pois daria dados sobre os entes (mortos, sublinhou mais que uma vez) que se tinham apossado dele. Era apenas um médium.
Eu e a Luísa trocámos algumas impressões. Quanto a mim tinha uma imagem de alguém que sofrera muito ao morrer e que certamente era epilética e que tivera convulsões horríveis na fase da agonia. Lembrei-me de uma pessoa familiar que faleceu no hospital depois de estar dez dias em coma. Segundo uma enfermeira ela morreu durante a noite, após horríveis convulsões provocadas pelo envenenamento do sangue, porque os rins já tinham deixado de funcionar. Mas acontecia que essa familiar nada tinha a ver com a Luísa e pus de parte a ideia.
Quando ela falou no pai, já falecido e que nunca cheguei a conhecer, o homem fez um sinal de concordância com o indicador. Admiti que ele concordava com a alusão da Luísa.
Perguntei se os espíritos podiam continuar a vaguear mesmo mais de vinte anos depois de dar-se a morte. Disse que sim. Não gostava de falar em morte. Sim em reencarnação. Para ele o corpo era uma opção.
Pensei numa mulher que amei muito, uma das possíveis suspeitas e dei-lhe alguns dados. Disse logo que não. Senti pena. Curiosamente. De certa forma até gostava que fosse ela, embora não a chamasse já há muito tempo. Aproximava-se o dia da sua morte e até podia ser um chamamento.
O homem voltou a insistir no pai da Luísa. De certa forma podia ser uma causa do mau estar existente na nossa casa. O que acho estranho é o que homem dizia ser apenas um médium e que no seu corpo encarnavam as entidades que vagueavam nas autoestradas de um mundo paralelo, entidades essas que não sabia quem eram.
Então a Luísa passou-lhe para as mãos a fotografia do pai. Embora tivesse dito antes que não voltaria a entrar em transe, mesmo noutro dia que fosse chamado, o certo é que, mal olhou para a fotografia, fez-se vermelho, cerrou os olhos e recomeçou, quase de seguida, o tal movimento brusco e violento muito parecido com duas das fases da crise anterior. A fotografia caiu no chão e aí ficou enquanto durou a crise. Fui eu quem a apanhou. Na fotografia o pai da Luísa vestia uma bata branca. Era, sem dúvida, a confirmação. Mais que confirmação.
Desta vez ficou extenuado, de peito ofegante, com sinais de dores na zona esquerda do peito indicadas pela mão direita aberta sobre o coração.
«Apontou para o coração!» sussurrei.
Confirmou logo a seguir o que eu vira e que descrevi umas linhas atrás. Estivera mal. Sentira mesmo uma dor no peito. Nunca lhe acontecera.
«Ah!» pensei.
«Já cá não está. Dei-lhe luz. Foi difícil encaminhá-lo. Tinha medo.»
«Dizem que há um túnel enorme e escuro para atravessar para o outro lado da luz.» Admiti.
Quando lhe confessei que aconteciam coisas estranhas comigo, ele afirmou que eu era um corpo aberto a que se agarravam as entidades, principalmente as negativas. Seria assim até aos últimos dias da minha vida. Viera ao mundo para cumprir esse destino. Podia facilmente fechar o corpo. Não. Não me aconselhava. Era uma missão que tinha de cumprir. Aí a sua opinião coincidia com a de algumas videntes que diziam que eu estava a pagar faturas. Aí entrava o karma. Tinha de o cumprir senão voltaria de novo atrás sem ter tido hipótese de progredir.
«Mas como afastar os maus espíritos?» perguntei.
Não tive resposta direta. Aconselhou-nos a queimarmos rosmaninho em casa e a fazermos movimentos em cruz com os pés sobre o fumo. À porta, na zona do tapete, devíamos pôr sal, por causa do mau olhado.
O homem disse-me mais que uma vez que me conhecia, mas não sabia donde. Zona da Lapa. Talvez fosse na zona da Lapa.
«Tenho a impressão que não é daí...»
Eu é que não me lembrava dele.
Numa fase em que estava distraído e já depois de ter dito que nos tratava da coluna, falou do caso, não sei a propósito de quê, de uma mulher que tinha dois filhos. Uma filha com quem se dava mal e um filho que muito desejou e que acabou por nascer anormal.
«Ele não é bem anormal. Até conduz...»
Só perguntei:
«Donde é essa mulher?»
«De Almada.»
Sorri e disse de imediato o nome da mulher. Chamava-se Carlota. Confirmou.
«Eu não disse que nos conhecíamos?»
Só não acrescentei que essa mulher espetava alfinetes em bonecas de trapos. Os seus objetivos eram claros como a água. Considerava-a uma pessoa ruim e tinha provas disso. Claro que não lhe transmiti o meu pensamento do momento.
Ficámos por ali.
Seguiram-se as massagens. Primeiro a Luísa. Depois eu.
A propósito das massagens, disse, enquanto massajava as suas costas:
«É por aqui que passa a vida.»
Referia-se à coluna vertebral.
Mais nada de especial acrescentou.
À saída tentei dar-lhe dez contos que tinha posto num envelope. Em vão. Não quis receber.
«De forma alguma.» Disse.
«Dê a alguém que precise.» Acrescentou.
Pareceu hesitar. Logo se recompôs e respondeu:
«Um dia mando-lhes cá alguém receber.»
«Certo.»
Foram quase duas horas de atendimento aparentemente sério que achámos por bem compensar. Para mim não resultou, mas o homem esforçou-se. Bem disse a Florinda, uma amiga da Luísa, que o homem não recebia dinheiro. Era inédito. E estranho, também. Como estranho fora o acaso dele ter tratado a Carlota que, segundo diziam certas más línguas, espetava alfinetes em bonequinhos que simbolizavam pessoas.
Já há meses estivera para vir à nossa casa, mas a ideia fora abortada. Agora, de repente, aconteceu. Aquela confissão deixou-me a pensar.
A mando de quem e qual o objetivo?
Era estranho. Mais que estranho. Admiti que o alvo era eu e alguém pretendia separar-me da Luísa.
«Quando a tratei ela estava de cama e não conseguia levantar-se. Não queria acreditar no fim do tratamento. É que a senhora levantou-se mesmo!»
Seria que a Carlota e a Florinda, amiga da minha companheira, se conheciam?
A Florinda seguia fielmente a Luísa para todo o lado. Quando eu e a Luísa nos conhecemos e, de repente, surgiu o click que nos uniu, acabou-se a companhia e o rabo tremido no Peugeot na Luísa. Provavelmente não gostou que eu tivesse aparecido na vida da Luísa, mas disfarçou bem.
Enquanto o homem me fazia a massagem perguntou-me se não costumava ter dores de estômago. Disse que não. Perguntei porquê.
«Se não lhe dói o estômago, melhor.» Foi a resposta. Não entendi, nem tentei compreender o que estava por trás daquele "melhor".
Falei-lhe na dormência em dois dedos da mão esquerda: o mindinho e o anelar. Provavelmente eram um problema de coluna. Disse que não. Depois perguntou-me há quanto tempo não fazia análises. O colesterol como estava? Bem, muito obrigado. E continuou o tratamento à coluna.
Nesse dia senti, mais que uma vez, junto à camilha da marquise, por detrás do sofá onde o médium estivera sentado, um odor agradável, uma fragrância, que não consegui identificar. Não durou sequer um segundo. Desapareceu e fiquei com a impressão que conhecia a origem daquele odor. Uma origem remota que se perdera após “longos dias azuis de negritude”.
O homem que veio, supostamente por convite da Luísa, trazia alguma missão especial?
Não sei. O certo é que um ano depois mudámos de casa e o nosso idílio não durou mais que seis meses.
Não voltei a ver o homem.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O lanche dos queijos




"Qual é o teu real?, e qual é o teu fictício, Mário? 
Nesta tarde, os dois entrelaçaram-se..." 

Foi uma tarde de queijos. 
Não vou revelar o nome da aldeia onde se deu o acontecimento. Nem o nome verdadeiro dos anfitriões e dos convidados. Só posso acrescentar um dado. A aldeia situava-se a cerca de cinco quilómetros da casa da praia.
Seguramente o lanche foi num verão depois de 1983, ano em que a minha casa foi arrendada, verão esse "abençoado" por uma tarde de nevoeiro denso, demasiado fria para agosto.
Mas vamos ao lanche. Não interessa dar mais dados.
O lanche consistia em queijos, pão da Encarnação, azeitonas de Elvas, patê, anchovas, refrigerantes, chá e muito vinho. Lá iremos ao vinho, pois há muito a dizer em relação a este precioso néctar. Vamos começar pelos queijos.
Eram de pelo menos de três nacionalidades, nas quais se destacava a nossa.
Serra da Estrela, Serpa, Nisa, Rabaçal, Castelo Branco. Depois, lembro-me do queijo Brie, azul e Gruyère. Faltam mais alguns, mas longe vai o tempo. Havia também requeijão de Seia. Passando aos vinhos, o nosso anfitrião, um homem que antes do 25 de abril era rico e ficara um pouco maltratado com as ações dos "revolucionários dos cravos", esmerou-se em escolher na sua garrafeira preciosidades, como "Quinta da Bacalhoa, Alvarinho (Palácio da Brejoeira), Pegões, Cartuxa, Monte Velho, Grão Vasco. Porca de Murça, Reguengos.
O pão era saboroso, mas, para mim, tinha um contra. Talvez fermento a mais.
E agora começa a história do lanche.

A mesa, em cerejeira, era suficientemente comprida para suportar nove casais. Os anfitriões ocupavam as cabeceiras. Não me lembro de ter havido mudanças de lugares, nem, tão pouco, um discurso longo de abertura. Talvez tivesse havido um breve agradecimento do Luís Alfredo pela comparência dos seus amigos, melhor dizendo, dos amigos da anfitriã. Na verdade todos estavam ansiosos que o repasto começasse. E começou. Felizmente não se deu um acontecimento inesperado, como um sismo ou a erupção de um vulcão há séculos inativo que se tivesse "lembrado" de acordar naquele momento tão desejado.
«Meus amigos, este lanche...»
Passemos à frente do "comam como alarves e bebam o mais que puderem". Poupem no pão e não bebam água porque  dizem que esse líquido faz rãs.
«Quanto ao vinho... começamos pelos de qualidade superior ou pelos outros?»
Era pertinente a dúvida. E inevitável a discussão eclética que se seguiu.
«Então vamos começar por beber os mais vulgares. Quanto aos queijos, cada um é livre de opção. Estão todos na mesa.
«Nós queremos chá!» disse a Luísa.
«Tens mau vinho?» perguntou o Alfredo.
«Para mim, chá de parreira.» Disse a Virgínia.
Era habitual a ingressão daquela boa amiga no mundo do álcool, desde que tivera um mal de amor. Já a tinha visto mais que uma vez deitar abaixo uma garrafa de whisky, antes deste a deitar abaixo. Mais do que uma vez servi de seu confessor. mas nada pude fazer, senão convencê-la a não beber mais. O seu mal de amor era uma doença profunda, sem cura. Não a deixava só enquanto enquanto estivesse mais ou menos bem e sem sinal de recaída à vista.
«Quem quiser fazer striptease, não se acanhe. Mas só daqui a uma hora.»
Resolvido o problema do chá, o Luís, anfitrião daquela lancharada prestes a ter início, deu o sinal da partida.
Quanto à ordem de escolha dos vinhos, previ que ia haver disparate. Mas estava bem. Os vinhos menos maus também se bebiam bem.
Não tinha decorrido uma hora e já todo o mundo estava a levantar a voz, sob pena de ouvir ainda menos o que o parceiro ou a parceira diziam.
«Isto começa a ser um caos.»
Virei-me para a minha esquerda. Era uma amiga da Virgínia que morava em Londres e viera passar uma semana a Portugal. 
«E ainda agora começou.»
«Já agora, chamo-me Sara.»
«Muito gosto, Sara. Sou o Mário.»
«A Virgínia já me falou de si. É muito sua amiga.»
«E eu dela.»
Trocámos um sorriso breve e voltámos aos queijos. A boa disposição de todos era notória. Até que surgiu um pequeno problema.
«Então quando é que vem esse "Quinta da Bacalhoa", Luís? Afinal de contas, há ou não há?»
De repente fez-se silêncio. Não. Não se ia cantar o fado. Olhei para o Luís e vi o seu olhar faiscante dirigir-se para o Vasco. Mas ficou-se. O Onofre foi em seu auxílio.
«És uma besta, Vasco. Inclusivamente devias ser o último a reclamar.»
Todos sabiam do que se tratava. Uma risada geral comprovou-o.
Num fim-.de-semana que podia ter sido igual a tantos outros (e que não foi), o Vasco tinha convidado os amigos para beberem um copo na sua casa.
«Chivas, Vasco? Perdeste a cabeça.»
De todos era o que tinha mais dificuldades financeiras. Que o dissesse o Onofre, que era o seu financiador. Mais que uma vez o outro tinha-lhe batido à porta.
«Foi uma garrafa que um cliente me ofereceu a semana passada.»
«Ah, logo vi. Deixa-me apreciar este néctar.» Disse o Humberto. «Tens-lhe chegado bem!»
Na verdade, o conteúdo da garrafa já ia a meio.
«Tenho bebido logo a seguir ao almoço. O meu cardiologista disse-me que é um vasodilatador.»
«E tem razão» confirmou a Virgínia. «Mas este não é.»
Os convidados presentes ficaram a olhar, ora para a Virgínia, ora para o Vasco.
«Que estás a dizer, Virgínia?»
«Ela tem razão. Este whiski está aguado.» Afirmou o Humberto.
E na verdade, estava. A criminosa era a mulher, que bebia às escondidas e ia atestando o conteúdo da garrafa com água para o marido não dar por uma inevitável baixa de nível do líquido que este bebia como remédio.
O Vasco não ripostou a defender a sua honra, mas a tensão era notória.
«Pronto, aqui estão três garrafas.» Disse o Luís.
Talvez fosse um pouco tarde. Mas mais valia vir tarde do que nunca. Era difícil adivinhar quem notara a diferença de qualidade naquela fase do campeonato.
«Que achas, Sara? Desculpa tratar-te por tu. É um abuso de confiança.»
«Que ideia, Mário. Já somos conhecidos de há muito.»
Sorri e pensei:
«Temos o caldo entornado.»
Seguiram-se os doces. Cada senhora apresentou a sua especialidade e todos os doces, sem exceção, foram aprovados por unanimidade. No meu caso tive que beber mais um copo, como era meu hábito com os doces.
«Podem vir os cafés e os digestivos?»
O café atrasava os efeitos imprevisíveis do álcool, mas os digestivos, aguardente velha vínica, e licores, adiantavam o processo.
Fiquei-me por uma ginjinha de Alcobaça. Sem elas.
«E agora?» perguntou o Duarte.
O Duarte era o contador oficial de anedotas picantes.
«Vamos dar uma volta para desanuviar?»
Era a Sara, a minha companheira do lado.
«Não gostas de anedotas?»
«Nem por isso. Mas confesso que não sabia o que estava para vir. Sinto-me um pouco toldada.»
«Então, vamos enquanto eles estão entretidos. Um de cada vez.»
«Sai tu primeiro.»
«Sim. Espero lá fora.»
Pouco depois estávamos fora da vivenda. Sorrimos um para o outro . 
«Vamos?»
Aquele "vamos" fazia-me lembrar o cavalheiro elegante, uma personagem castiça de duas histórias contadas por mim e que foram publicadas no blogue do meu amigo António (1).
«Sara, que fazes na vida?»
«Eu...»
«Não digas nada. És hospedeira de bordo.»
«Bom, quase acertaste.»
«Então... Porra! Raio!»
«O céu está limpo, Mário.»
Foram as últimas palavras que ouvi. De repente fez-se escuro.

«Com que então os pombinhos saíram da mesa sem pedir autorização!»
Era a Virgínia. Só não entendia porque estava deitado no chão, entre as palhas.
«Não é o que pensas, Virgínia.»
«Pois não.»
Era manhã. Estava deitado no palheiro anexo à casa da Virgínia, a cabeça doía-me e não sabia como tinha ido ali parar.
«Qual foi a vossa ideia, Mário? Podiam ter escolhido o quarto da Sara.»
Foi então que apareceu a Sara, sorridente. Trazia uma chávena nas mãos.
«Bebe, Mário. Vai fazer-te bem. Queres uma aspirina?»
«Sim, por favor. Sara...» Sorri, ainda meio enjoado.
«Não é o que pensas.»
«Foi o que já disse o Mário.» Referiu a Virgínia com ar de gozo. «Como é que vieram parar aqui?»
Olhei para a Sara, perplexo. Encolheu os ombros.
«Da casa da Vanda até aqui são cinco quilómetros e não vieram de carro!»
«Pois não» confirmei. «Olha viemos pelo ar.»
«Montados num unicorn...»
«Deixem-se de graças.»
Olhámos um para o outro outra vez.
«Não sei, Virgínia» confessou a Sara. «E tu também não, pois não?»
«Talvez alguém nos apanhasse na estrada e nos trouxesse...» Disse eu.
«Tu apagaste-te, Mário. Ouvi-te dizer "raio" e mais nada. Também me apaguei a seguir.»
Lançou-nos um ar bondoso. 
«Que história tão mal contada!» 
«É o que se pode arranjar, Virgínia.» Disse eu.
«Isto fica entre nós os três. Só a mim não acontecem estas coisas deliciosas.»
«E os queijos?» perguntei.
«Foi uma lástima. Quando começámos a beber o "Quinta da Bacalhoa" alguém disse que o vinho estava azedo.»
Rimos.
«E estava?»
«Sim, estavam quase todos bêbados que nem um cacho..»

A Sara partiu para Londres nesse mesmo dia, ao entardecer. Nem sequer trocámos contactos.
Nunca cheguei a saber como fomos parar àquele palheiro, nem sequer se chegou a haver algum "encontro imediato do terceiro grau" entre os dois.
Nunca mais a vi.











































 

(1) "Maré Vazia" e "O Cavalheiro Elegante Vai ao Café" http://ashistoriasdemariocontadordehistorias.blogspot.com/2025/03/o-cavalheiro-elegante-vai-ao-cafe.html
http://ashistoriasdemariocontadordehistorias.blogspot.com/2023/05/mare-vazia.html








 



















 

























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