
Abri a porta quase a seguir ao toque da campainha e fiquei à espera.
«Deve ser ele.» Disse a Luísa.
Limitei-me a olhar para ela e fiquei a aguardar. Pouco depois ouvi o correr da porta metálica do elevador e fiz um sinal à Luísa para receber o visitante.
O homem entrou e olhou logo na diagonal. Ficou parado no hall. Parecia estar a leste. Nem boa tarde, nem boa noite. Quase que nos ignorou. Mas foi melhor assim porque pude observá-lo com atenção. Era de compleição forte, não muito alto. Tinha uma cara cheia e assaz patusca. Trazia vestida uma camisa de mangas curtas, calças de ganga e uma camisola azul escura, atada ao pescoço. Na mão direita segurava uma pequena mala prismática, quase cúbica, com pega rígida em cima. Deu-me a ideia de ser um médico. Mas sabia ao que ele vinha.
Disse logo que precisava de ver a casa. Anuímos e deixámo-lo passar para a zona dos quartos e da casa de banho. Começou pelo quarto. Pouco depois regressou ao hall e mal espreitou para a cozinha. Já na sala ficou de novo parado. Eu e a Luísa olhávamos um para o outro, em silêncio. A primeira coisa que pensei foi que, pela amostra, o motivo ao que vinha prometia. Até porque pelo rosto já avermelhado notava-se um início de transtorno.
Teria bebido?
Até pareceu que tinha lido o meu pensamento, pois expirou com vigor. Negativo, avaliei. O hálito testemunhou a favor dele e contra a minha hipótese. Olhou em volta. Não foi preciso convidá-lo a sentar-se porque o fez de imediato no sofá ao lado da televisão.
Pediu um copo de água. Não sei se foi antes ou depois de aquilo acontecer. Tudo se passou do tronco para cima. No rosto e nas mãos. Segui com atenção todas as alterações na sua fisionomia. Não vi qualquer alongamento no rosto. Começou por ficar muito vermelho. Fechou os olhos e iniciou um movimento rápido, cada vez mais rápido com a cabeça. Os movimentos reduziram-se ao fim de um certo tempo e começou com uma espécie de estalidos feitos pela boca e noutra fase modificou-os com um ruído de chuchar, lembrando uma criança, talvez um velho, ou pretendendo imitar sexo oral. O curioso é que não exibia ar de prazer. Parecia mais ligado à violência ou ao sofrimento. As mãos caíam ao longo das pernas e rodavam de palmas para cima, ficando quietas. Isto acontecia depois de uma cena de movimentos bruscos com a cabeça. Houve uma altura em que os movimentos da cabeça, para um para outro lado, quase de rotação, foram mais violentos. Tão rápidos e violentos que receei pela integridade das vértebras cervicais do homem. De vez em quando olhava para a Luísa ou ela olhava para mim. Tínhamos uma enorme vontade de rir, mas, ao mesmo tempo estávamos apreensivos. Sentia as palmas das mãos húmidas, tal era a tensão do momento.
Sempre em silêncio assistimos a uma representação que, se não “falava verdade”, era quase perfeita. Digamos, muito diferente do estilo da vidente Ima, a única pessoa que me convenceu até hoje em termos de autenticidade das suas qualidades mediúnicas. Nunca interrompemos o homem. Nestes casos pensei que era o mais aconselhável. Houve pelo menos duas fases de movimentos com a cabeça muito bruscos e violentos.
Terá durado dez minutos?
Para nós foi uma eternidade. Só queria que o homem acabasse para nos explicar o que se estava passando.
Finalmente ficou imóvel. Pouco depois levantou-se, pegou no copo que estava em cima da mesa oval, bebeu um gole de água, pousou o copo e sentou-se de novo. Tudo feito maquinalmente. Como se nada de anormal tivesse ocorrido. Depois passou as mãos pela pelo rosto e manteve-se imóvel durante mais uns segundos. Não me lembro se as crises foram todas de uma vez ou se voltou a ter outra crise depois de beber água.
Abriu os olhos e olhou, sorridente, para nós. Perguntámos o que acontecera.
«É a primeira vez que me acontece mal entro. Só tive tempo de me sentar. Tudo se passa da porta para o quarto.»
Não tive tempo de perguntar o que se passava. Nem ele dizia. Explicou que não se lembrava de nada. Mas não entendi porque disse que tudo se passava da porta para o quarto.
Simplesmente encarnara e todas as entidades presentes passaram por ele. Admitiu que não teve tempo de avisar para olharmos para o seu rosto, pois daria dados sobre os entes (mortos, sublinhou mais que uma vez) que se tinham apossado dele. Era apenas um médium.
Eu e a Luísa trocámos algumas impressões. Quanto a mim tinha uma imagem de alguém que sofrera muito ao morrer e que certamente era epilética e que tivera convulsões horríveis na fase da agonia. Lembrei-me de uma pessoa familiar que faleceu no hospital depois de estar dez dias em coma. Segundo uma enfermeira ela morreu durante a noite, após horríveis convulsões provocadas pelo envenenamento do sangue, porque os rins já tinham deixado de funcionar. Mas acontecia que essa familiar nada tinha a ver com a Luísa e pus de parte a ideia.
Quando ela falou no pai, já falecido e que nunca cheguei a conhecer, o homem fez um sinal de concordância com o indicador. Admiti que ele concordava com a alusão da Luísa.
Perguntei se os espíritos podiam continuar a vaguear mesmo mais de vinte anos depois de dar-se a morte. Disse que sim. Não gostava de falar em morte. Sim em reencarnação. Para ele o corpo era uma opção.
Pensei numa mulher que amei muito, uma das possíveis suspeitas e dei-lhe alguns dados. Disse logo que não. Senti pena. Curiosamente. De certa forma até gostava que fosse ela, embora não a chamasse já há muito tempo. Aproximava-se o dia da sua morte e até podia ser um chamamento.
O homem voltou a insistir no pai da Luísa. De certa forma podia ser uma causa do mau estar existente na nossa casa. O que acho estranho é o que homem dizia ser apenas um médium e que no seu corpo encarnavam as entidades que vagueavam nas autoestradas de um mundo paralelo, entidades essas que não sabia quem eram.
Então a Luísa passou-lhe para as mãos a fotografia do pai. Embora tivesse dito antes que não voltaria a entrar em transe, mesmo noutro dia que fosse chamado, o certo é que, mal olhou para a fotografia, fez-se vermelho, cerrou os olhos e recomeçou, quase de seguida, o tal movimento brusco e violento muito parecido com duas das fases da crise anterior. A fotografia caiu no chão e aí ficou enquanto durou a crise. Fui eu quem a apanhou. Na fotografia o pai da Luísa vestia uma bata branca. Era, sem dúvida, a confirmação. Mais que confirmação.
Desta vez ficou extenuado, de peito ofegante, com sinais de dores na zona esquerda do peito indicadas pela mão direita aberta sobre o coração.
«Apontou para o coração!» sussurrei.
Confirmou logo a seguir o que eu vira e que descrevi umas linhas atrás. Estivera mal. Sentira mesmo uma dor no peito. Nunca lhe acontecera.
«Ah!» pensei.
«Já cá não está. Dei-lhe luz. Foi difícil encaminhá-lo. Tinha medo.»
«Dizem que há um túnel enorme e escuro para atravessar para o outro lado da luz.» Admiti.
Quando lhe confessei que aconteciam coisas estranhas comigo, ele afirmou que eu era um corpo aberto a que se agarravam as entidades, principalmente as negativas. Seria assim até aos últimos dias da minha vida. Viera ao mundo para cumprir esse destino. Podia facilmente fechar o corpo. Não. Não me aconselhava. Era uma missão que tinha de cumprir. Aí a sua opinião coincidia com a de algumas videntes que diziam que eu estava a pagar faturas. Aí entrava o karma. Tinha de o cumprir senão voltaria de novo atrás sem ter tido hipótese de progredir.
«Mas como afastar os maus espíritos?» perguntei.
Não tive resposta direta. Aconselhou-nos a queimarmos rosmaninho em casa e a fazermos movimentos em cruz com os pés sobre o fumo. À porta, na zona do tapete, devíamos pôr sal, por causa do mau olhado.
O homem disse-me mais que uma vez que me conhecia, mas não sabia donde. Zona da Lapa. Talvez fosse na zona da Lapa.
«Tenho a impressão que não é daí...»
Eu é que não me lembrava dele.
Numa fase em que estava distraído e já depois de ter dito que nos tratava da coluna, falou do caso, não sei a propósito de quê, de uma mulher que tinha dois filhos. Uma filha com quem se dava mal e um filho que muito desejou e que acabou por nascer anormal.
«Ele não é bem anormal. Até conduz...»
Só perguntei:
«Donde é essa mulher?»
«De Almada.»
Sorri e disse de imediato o nome da mulher. Chamava-se Carlota. Confirmou.
«Eu não disse que nos conhecíamos?»
Só não acrescentei que essa mulher espetava alfinetes em bonecas de trapos. Os seus objetivos eram claros como a água. Considerava-a uma pessoa ruim e tinha provas disso. Claro que não lhe transmiti o meu pensamento do momento.
Ficámos por ali.
Seguiram-se as massagens. Primeiro a Luísa. Depois eu.
A propósito das massagens, disse, enquanto massajava as suas costas:
«É por aqui que passa a vida.»
Referia-se à coluna vertebral.
Mais nada de especial acrescentou.
À saída tentei dar-lhe dez contos que tinha posto num envelope. Em vão. Não quis receber.
«De forma alguma.» Disse.
«Dê a alguém que precise.» Acrescentou.
Pareceu hesitar. Logo se recompôs e respondeu:
«Um dia mando-lhes cá alguém receber.»
«Certo.»
Foram quase duas horas de atendimento aparentemente sério que achámos por bem compensar. Para mim não resultou, mas o homem esforçou-se. Bem disse a Florinda, uma amiga da Luísa, que o homem não recebia dinheiro. Era inédito. E estranho, também. Como estranho fora o acaso dele ter tratado a Carlota que, segundo diziam certas más línguas, espetava alfinetes em bonequinhos que simbolizavam pessoas.
Já há meses estivera para vir à nossa casa, mas a ideia fora abortada. Agora, de repente, aconteceu. Aquela confissão deixou-me a pensar.
A mando de quem e qual o objetivo?
Era estranho. Mais que estranho. Admiti que o alvo era eu e alguém pretendia separar-me da Luísa.
«Quando a tratei ela estava de cama e não conseguia levantar-se. Não queria acreditar no fim do tratamento. É que a senhora levantou-se mesmo!»
Seria que a Carlota e a Florinda, amiga da minha companheira, se conheciam?
A Florinda seguia fielmente a Luísa para todo o lado. Quando eu e a Luísa nos conhecemos e, de repente, surgiu o click que nos uniu, acabou-se a companhia e o rabo tremido no Peugeot na Luísa. Provavelmente não gostou que eu tivesse aparecido na vida da Luísa, mas disfarçou bem.
Enquanto o homem me fazia a massagem perguntou-me se não costumava ter dores de estômago. Disse que não. Perguntei porquê.
«Se não lhe dói o estômago, melhor.» Foi a resposta. Não entendi, nem tentei compreender o que estava por trás daquele "melhor".
Falei-lhe na dormência em dois dedos da mão esquerda: o mindinho e o anelar. Provavelmente eram um problema de coluna. Disse que não. Depois perguntou-me há quanto tempo não fazia análises. O colesterol como estava? Bem, muito obrigado. E continuou o tratamento à coluna.
Nesse dia senti, mais que uma vez, junto à camilha da marquise, por detrás do sofá onde o médium estivera sentado, um odor agradável, uma fragrância, que não consegui identificar. Não durou sequer um segundo. Desapareceu e fiquei com a impressão que conhecia a origem daquele odor. Uma origem remota que se perdera após “longos dias azuis de negritude”.
O homem que veio, supostamente por convite da Luísa, trazia alguma missão especial?
Não sei. O certo é que um ano depois mudámos de casa e o nosso idílio não durou mais que seis meses.
Não voltei a ver o homem.