"Qual é o teu real?, e qual é o teu fictício, Mário?
Nesta tarde, os dois entrelaçaram-se..."
Foi uma tarde de queijos.
Não vou revelar o nome da aldeia onde se deu o acontecimento. Nem o nome verdadeiro dos anfitriões e dos convidados. Só posso acrescentar um dado. A aldeia situava-se a cerca de cinco quilómetros da casa da praia.
Não vou revelar o nome da aldeia onde se deu o acontecimento. Nem o nome verdadeiro dos anfitriões e dos convidados. Só posso acrescentar um dado. A aldeia situava-se a cerca de cinco quilómetros da casa da praia.
Seguramente o lanche foi num verão depois de 1983, ano em que a minha casa foi arrendada, verão esse "abençoado" por uma tarde de nevoeiro denso, demasiado fria para agosto.
Mas vamos ao lanche. Não interessa dar mais dados.
O lanche consistia em queijos, pão da Encarnação, azeitonas de Elvas, patê, anchovas, refrigerantes, chá e muito vinho. Lá iremos ao vinho, pois há muito a dizer em relação a este precioso néctar. Vamos começar pelos queijos.
Eram de pelo menos de três nacionalidades, nas quais se destacava a nossa.
Serra da Estrela, Serpa, Nisa, Rabaçal, Castelo Branco. Depois, lembro-me do queijo Brie, azul e Gruyère. Faltam mais alguns, mas longe vai o tempo. Havia também requeijão de Seia. Passando aos vinhos, o nosso anfitrião, um homem que antes do 25 de abril era rico e ficara um pouco maltratado com as ações dos "revolucionários dos cravos", esmerou-se em escolher na sua garrafeira preciosidades, como "Quinta da Bacalhoa, Alvarinho (Palácio da Brejoeira), Pegões, Cartuxa, Monte Velho, Grão Vasco. Porca de Murça, Reguengos.
O pão era saboroso, mas, para mim, tinha um contra. Talvez fermento a mais.
E agora começa a história do lanche.
A mesa, em cerejeira, era suficientemente comprida para suportar nove casais. Os anfitriões ocupavam as cabeceiras. Não me lembro de ter havido mudanças de lugares, nem, tão pouco, um discurso longo de abertura. Talvez tivesse havido um breve agradecimento do Luís Alfredo pela comparência dos seus amigos, melhor dizendo, dos amigos da anfitriã. Na verdade todos estavam ansiosos que o repasto começasse. E começou. Felizmente não se deu um acontecimento inesperado, como um sismo ou a erupção de um vulcão há séculos inativo que se tivesse "lembrado" de acordar naquele momento tão desejado.
«Meus amigos, este lanche...»
Passemos à frente do "comam como alarves e bebam o mais que puderem". Poupem no pão e não bebam água porque dizem que esse líquido faz rãs.
«Quanto ao vinho... começamos pelos de qualidade superior ou pelos outros?»
Era pertinente a dúvida. E inevitável a discussão eclética que se seguiu.
«Então vamos começar por beber os mais vulgares. Quanto aos queijos, cada um é livre de opção. Estão todos na mesa.
«Nós queremos chá!» disse a Luísa.
«Tens mau vinho?» perguntou o Alfredo.
«Para mim, chá de parreira.» Disse a Virgínia.
Era habitual a ingressão daquela boa amiga no mundo do álcool, desde que tivera um mal de amor. Já a tinha visto mais que uma vez deitar abaixo uma garrafa de whisky, antes deste a deitar abaixo. Mais do que uma vez servi de seu confessor. mas nada pude fazer, senão convencê-la a não beber mais. O seu mal de amor era uma doença profunda, sem cura. Não a deixava só enquanto enquanto estivesse mais ou menos bem e sem sinal de recaída à vista.
«Quem quiser fazer striptease, não se acanhe. Mas só daqui a uma hora.»
Resolvido o problema do chá, o Luís, anfitrião daquela lancharada prestes a ter início, deu o sinal da partida.
Quanto à ordem de escolha dos vinhos, previ que ia haver disparate. Mas estava bem. Os vinhos menos maus também se bebiam bem.
Não tinha decorrido uma hora e já todo o mundo estava a levantar a voz, sob pena de ouvir ainda menos o que o parceiro ou a parceira diziam.
«Isto começa a ser um caos.»
Virei-me para a minha esquerda. Era uma amiga da Virgínia que morava em Londres e viera passar uma semana a Portugal.
«E ainda agora começou.»
«Já agora, chamo-me Sara.»
«Muito gosto, Sara. Sou o Mário.»
«A Virgínia já me falou de si. É muito sua amiga.»
«E eu dela.»
Trocámos um sorriso breve e voltámos aos queijos. A boa disposição de todos era notória. Até que surgiu um pequeno problema.
«Então quando é que vem esse "Quinta da Bacalhoa", Luís? Afinal de contas, há ou não há?»
De repente fez-se silêncio. Não. Não se ia cantar o fado. Olhei para o Luís e vi o seu olhar faiscante dirigir-se para o Vasco. Mas ficou-se. O Onofre foi em seu auxílio.
«És uma besta, Vasco. Inclusivamente devias ser o último a reclamar.»
Todos sabiam do que se tratava. Uma risada geral comprovou-o.
Num fim-.de-semana que podia ter sido igual a tantos outros (e que não foi), o Vasco tinha convidado os amigos para beberem um copo na sua casa.
«Chivas, Vasco? Perdeste a cabeça.»
De todos era o que tinha mais dificuldades financeiras. Que o dissesse o Onofre, que era o seu financiador. Mais que uma vez o outro tinha-lhe batido à porta.
«Foi uma garrafa que um cliente me ofereceu a semana passada.»
«Ah, logo vi. Deixa-me apreciar este néctar.» Disse o Humberto. «Tens-lhe chegado bem!»
Na verdade, o conteúdo da garrafa já ia a meio.
«Tenho bebido logo a seguir ao almoço. O meu cardiologista disse-me que é um vasodilatador.»
«E tem razão» confirmou a Virgínia. «Mas este não é.»
Os convidados presentes ficaram a olhar, ora para a Virgínia, ora para o Vasco.
«Que estás a dizer, Virgínia?»
«Ela tem razão. Este whiski está aguado.» Afirmou o Humberto.
E na verdade, estava. A criminosa era a mulher, que bebia às escondidas e ia atestando o conteúdo da garrafa com água para o marido não dar por uma inevitável baixa de nível do líquido que este bebia como remédio.
O Vasco não ripostou a defender a sua honra, mas a tensão era notória.
«Pronto, aqui estão três garrafas.» Disse o Luís.
Talvez fosse um pouco tarde. Mas mais valia vir tarde do que nunca. Era difícil adivinhar quem notara a diferença de qualidade naquela fase do campeonato.
«Que achas, Sara? Desculpa tratar-te por tu. É um abuso de confiança.»
«Que ideia, Mário. Já somos conhecidos de há muito.»
Sorri e pensei:
«Temos o caldo entornado.»
Seguiram-se os doces. Cada senhora apresentou a sua especialidade e todos os doces, sem exceção, foram aprovados por unanimidade. No meu caso tive que beber mais um copo, como era meu hábito com os doces.
«Podem vir os cafés e os digestivos?»
O café atrasava os efeitos imprevisíveis do álcool, mas os digestivos, aguardente velha vínica, e licores, adiantavam o processo.
Fiquei-me por uma ginjinha de Alcobaça. Sem elas.
«E agora?» perguntou o Duarte.
O Duarte era o contador oficial de anedotas picantes.
«Vamos dar uma volta para desanuviar?»
Era a Sara, a minha companheira do lado.
«Não gostas de anedotas?»
«Nem por isso. Mas confesso que não sabia o que estava para vir. Sinto-me um pouco toldada.»
«Então, vamos enquanto eles estão entretidos. Um de cada vez.»
«Sai tu primeiro.»
«Sim. Espero lá fora.»
Pouco depois estávamos fora da vivenda. Sorrimos um para o outro .
«Vamos?»
Aquele "vamos" fazia-me lembrar o cavalheiro elegante, uma personagem castiça de duas histórias contadas por mim e que foram publicadas no blogue do meu amigo António (1).
«Sara, que fazes na vida?»
«Eu...»
«Não digas nada. És hospedeira de bordo.»
«Bom, quase acertaste.»
«Então... Porra! Raio!»
«O céu está limpo, Mário.»
Foram as últimas palavras que ouvi. De repente fez-se escuro.
«Com que então os pombinhos saíram da mesa sem pedir autorização!»
Era a Virgínia. Só não entendia porque estava deitado no chão, entre as palhas.
«Não é o que pensas, Virgínia.»
«Pois não.»
Era manhã. Estava deitado no palheiro anexo à casa da Virgínia, a cabeça doía-me e não sabia como tinha ido ali parar.
«Qual foi a vossa ideia, Mário? Podiam ter escolhido o quarto da Sara.»
Foi então que apareceu a Sara, sorridente. Trazia uma chávena nas mãos.
«Bebe, Mário. Vai fazer-te bem. Queres uma aspirina?»
«Sim, por favor. Sara...» Sorri, ainda meio enjoado.
«Não é o que pensas.»
«Foi o que já disse o Mário.» Referiu a Virgínia com ar de gozo. «Como é que vieram parar aqui?»
Olhei para a Sara, perplexo. Encolheu os ombros.
«Da casa da Vanda até aqui são cinco quilómetros e não vieram de carro!»
«Pois não» confirmei. «Olha viemos pelo ar.»
«Montados num unicorn...»
«Deixem-se de graças.»
Olhámos um para o outro outra vez.
«Não sei, Virgínia» confessou a Sara. «E tu também não, pois não?»
«Talvez alguém nos apanhasse na estrada e nos trouxesse...» Disse eu.
«Tu apagaste-te, Mário. Ouvi-te dizer "raio" e mais nada. Também me apaguei a seguir.»
Lançou-nos um ar bondoso.
«Que história tão mal contada!»
«É o que se pode arranjar, Virgínia.» Disse eu.
«Isto fica entre nós os três. Só a mim não acontecem estas coisas deliciosas.»
«E os queijos?» perguntei.
«Foi uma lástima. Quando começámos a beber o "Quinta da Bacalhoa" alguém disse que o vinho estava azedo.»
Rimos.
«E estava?»
«Sim, estavam quase todos bêbados que nem um cacho..»
A Sara partiu para Londres nesse mesmo dia, ao entardecer. Nem sequer trocámos contactos.
Nunca cheguei a saber como fomos parar àquele palheiro, nem sequer se chegou a haver algum "encontro imediato do terceiro grau" entre os dois.
Nunca mais a vi.
(1) "Maré Vazia" e "O Cavalheiro Elegante Vai ao Café" http://ashistoriasdemariocontadordehistorias.blogspot.com/2025/03/o-cavalheiro-elegante-vai-ao-cafe.html
http://ashistoriasdemariocontadordehistorias.blogspot.com/2023/05/mare-vazia.html
,
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