segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A nota de quinhentos

 


P



ersistem, embora já com menos frequência, os fenómenos paranormais. Passam-se muitos dias sem que aconteçam e então julgo que se foram para sempre. Puro engano. Estão de volta quando menos espero, embora acredite que já perderam a força do impacto dos primeiros tempos. Já lá vai o tempo da novidade. Por outro lado, desisti de tentar abrir mais cortinas que me levaram a becos sem saída. Bem tentei. A resposta foi sempre a mesma. Não que mostrasse medo pelo desconhecido. Antes pelo contrário. Houve tempos que lancei desafios após desafios. O silêncio e a falta de dados concretos foram argumentos suficientes para crer que não passava de um mero canal de comunicação sem autonomia para ir mais além. Resignado, resolvi baixar o estado de vigília até um nível quase adormecido.
Casos como o que aconteceu num sábado de quase fim de século são aquilo que posso chamar “pequenos nadas”, comparados com os do tempo dos anos do deus menor, sem dúvida a espinha dorsal de uma época que me deixou perplexo e psicologicamente vulnerável ao ataque daquilo a que chamei na altura a coisa. Foi um tempo muito perigoso que abalou a minha sanidade mental. Mas já passou. É quase história. Confesso, no entanto, que guardo saudades desses momentos incríveis. Se é imprudência evocar estes pensamentos ligados ao paranormal, não posso evitar. Penso que eles não voltarão com a intensidade com que se mostraram. A causa principal foi encaminhada para o constelado do céu, o mesmo donde, perdida, encontrou-me por acaso, como eu a encontrei uma vez numa noite morna de verão. Sei que não volta a acontecer. Agora só acontecem coisas que não passam de pequenas coincidências que já não beliscam muito.,
Mas vamos ao caso...

Há alguns meses que tínhamos combinado ir à "feira da ladra". No entanto havia sempre um obstáculo de última hora que adiava a visita para outro sábado, ameaçando o evento tornar-se num definitivo dia de “São Nunca à tarde”.
Mas naquele sábado aconteceu mesmo, embora tivesse sido decidido próximo das quatro da tarde. Aliás, foi uma boa altura para se fazerem compras no que dizia respeito a velharias e antiguidades, expostas, numa amálgama, no chão e nas mesas, porque a feira aproximava-se do fim e havia margem de manobra para os preços serem regateados e espremidos o mais possível.
As velharias expostas constituíam o que de mais incrível que se podia imaginar. Quanto às antiguidades, essas seduziam-me mas não lhes chegava, pois as boas peças continuavam a preços inacessíveis à bolsa de um professor. Limitei-me a comprar por cem escudos um livro relacionado com os mistérios da memória e um conjunto de chaves de bocas por trezentos escudos. Quanto à minha companheira interessou-se por um puxador em cristal que custava três contos, mas acabou por comprar, na mesma bancada, duas chávenas da Vista Alegre com os respetivos pires. O curioso é que cada uma custava dois contos e quinhentos e a mulher baixou logo para dois, sem ser preciso regatear. Mesmo assim ela não aceitou no momento e continuámos a nossa volta, desta vez pelas bugigangas. Como não encontrámos nada de especial, voltámos ao sítio das chávenas. A ideia de ambos estava no puxador.
A mulher reconheceu-nos e fez de imediato outra oferta tentadora.
Arrematado!, como teria dito um leiloeiro.
Negócio fechado. Sem sabermos como, as duas chávenas ficaram ao todo por dois contos setecentos e cinquenta.
Afastámo-nos e ela olhou para mim, deveras intrigada.
«Não me digas...?»
«O que é que eu digo?»
«Foste tu?» sorriu. «Não me digas que foste tu que a baralhaste!»
«Que ideia mais louca! Nem sequer estava interessado nas chávenas.»
«Mas eu estava.»
«Ora.»
Era tarde e alguns vendedores arrumavam os artigos, ou já tinham abandonado os locais de venda. Talvez o verdadeiro motivo daquele saldo estivesse na necessidade da vendedora precisar de realizar capital.
Que fazer?
Visitar a igreja de S. Vicente, proposta sua que foi aceite. Em má hora porque fomos encontrar a Amparo e o irmão no local do crime, dois amigos seus muito religiosos e autocolantes com tendências altas de pressão.
Como resultado, nós que íamos apenas visitar a igreja tivemos que assistir ao terço e não conseguimos fugir à missa das seis. Não pretendíamos demorar muito tempo e acabámos por ficar mais que uma hora. Dois em um era muito. Resignei-me. Deus ia compensar-me pela demora no santo sacrifício da missa.
Quanto à visita, esta valeu pelo belíssimo altar de Santo António, onde repousam os restos mortais da sua mãe.
Durante o terço e a missa a minha atenção foi desviada por várias vezes para uma estátua em pedra, junto ao altar-mor. Mais uma vez Santo António com o Menino Jesus. Não sei explicar porquê, mas senti um enorme desejo de comunicar com ele. Claro que não consegui. O resultado foi dar mais atenção à estátua do que ao que se passou durante as cerimónias do terço e da missa.
No momento do ofertório lembrei-me que não tinha dinheiro trocado. A cesta estava próxima e já não dava para pedir à minha companheira uma moedita emprestada. Restava-me abrir a carteira e rezar aos santinhos para encontrar uma nota de vinte escudos.
Procurei com cuidado. Nem vestígios. Talvez tivesse uma nota de cem escudos. Pois. Esperanças baldadas. Só tinha uma nota de quinhentos, o que representava muito dinheiro. Não que o querido Santo António não merecesse.
«Adeus, nota.» Lamentei-me.

Quando saímos já passava das sete horas da tarde. Felizmente tempo de jantar e não para comermos caracóis que eu detestava. Entretanto arrefecera um pouco e eu fui buscar os agasalhos ao Peugeot azul que estacionara ao fundo de uma rua íngreme que dava para a rua Voz do Operário.
Já muito perto do carro vi no chão uma coisa que me fez parar de imediato. Não era possível o que os meus olhos estavam a ver!
O Santo António não gostava de mim.
Tentei retificar o primeiro pensamento que me ocorreu. Se não era verdade que não gostava de mim, então devia haver outro motivo.
Entretanto ficara parado no meio da rua, sentindo os pêlos dos braços, das pernas, dos próprios cabelos. Tudo, mesmo tudo, se eriçou.
«Uma nota de quinhentos!» exclamei.
Compreendi de imediato o significado da coisa. Chorei tanto o dinheiro ofertado na igreja que logo tive um retorno amaldiçoado.
O santo não gostou da minha atitude mesquinha e devolveu-me a nota de quinhentos.
«Vai sair-me cara esta nota de quinhentos que voltou...» Pensei.
A devolução da nota de quinhentos escudos, ocorrida para além do meu entendimento, não tinha lógica. Desta vez nada fiz nem pedi, durante a missa, o alívio para o problema na região cervical. Apenas tentei estabelecer um contacto com uma imagem de Santo António e o Menino que estava do meu lado direito, junto ao altar. Talvez que tivesse feito algum pedido de que não me lembrava.
Com a nota de quinhentos nas mãos encaminhei-me para o carro e quedei-me a observá-la melhor. A nota tinha a chapa CHG 929191.
Seria um detalhe importante? Não sabia.
Conservei ainda a nota de quinhentos durante alguns meses, sem saber o que fazer dela. Até que acabei por dá-la a uma pessoa necessitada.
Este caso não passou de uma coincidência, ou foi mais que isso?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Inquietação

  



Não interessa saber quantos são hoje porque o que está a acontecer supostamente até já pode ter acontecido. Também não ponho de parte a hipótese de vir a acontecer no futuro. Este início parece ser muito confuso. Melhor dizendo, nebuloso. E talvez até já tenha decidido que deve ser assim. Porquê? Não sei.  Ou cá tenho as minhas razões. Creio que já entenderam que quero relatar um acontecimento intemporal. E assim, já posso esclarecer que faz amanhã quatro meses que aconteceu. Ou mais que um ano.

Neste curto período de tempo a minha vida modificou-se radicalmente. Não me estou a referir à componente profissional que, por sinal, mudou para melhor. Trata-se, portanto, da outra componente. Estou à beira de mudar a agulha para um novo rumo. Se é melhor ou pior, por enquanto não posso saber. São condicionalismos do presente. Assim, o tempo dirá. De qualquer das formas, admito que deixei de vez a ilha, a treta da última onda, a paragem nos tempos das indecisões. Tudo. É isso. De uma vez por todas deixei passar a porra das ondas que só produziram indecisões parvas. Portanto, pus a metáfora no lixo e ganhei balanço para um novo salto no desconhecido. Mais um. É a minha sina. Outros chamam-lhe Karma. Eu chamo-lhe porra de vida. Só isso.
Tudo fica bom no começo. Os ventos são sempre favoráveis e os avanços são coroados de êxito. Pelo menos assim aconteceu no primeiro mês. Foi bom deixar de navegar à vista e substituir o homem do leme pelo piloto automático. 
Conforme já disse, tudo corria bem. Até que um novo desenvolvimento deixou-me inquieto. Sou um homem de bem. Apenas não admito que me deitem areia para os olhos e obstruam a passagem para a liberdade plena. Sim, trata-se de uma situação nova que não vou conseguir resolver sozinho. Preciso da intervenção de Deus ou do "666". Não sou extremista, embora a resolução deste imbróglio assim o exija.   
Contei à Margarida, que é o meu novo amor ou capricho imprevisível. Ouviu-me em silêncio e depois sentenciou, com voz suave de sereia:
«Deixa que eu trato disso.»
Mais nada. A não ser, um sorriso que considerei indefinido e um beijo ao de leve.
«Vê lá o que vais fazer…»
«Nada de especial, amor. Deixa comigo.» 
Seria ela a mulher de negro com seu tabuleiro, a cama ora cheia de amor, ora vazia? Uma premonição que não pesei bem. Mea culpa. 
Fiquei descansado. Mas logo a seguir tive uma sensação de desconforto que não revelei. Preferi calar-me e falar mais tarde do desconforto. Não queria interferir com ela porque a nossa relação estava ainda naquela fase ingénua em que pensamos que não há problemas e, se os há, têm sempre uma solução “light”.
Os dias passaram-se e senti-me melhor. Não quis perguntar à Margarida o que fez. Escondi-me no esquecimento. Pelo menos a coisa ficou em banho maria por mais alguns dias. Até que ela abriu a folha do esquecimento.
«Sobre aquilo, Rodrigo…» 
Já me esquecia. Chamo-me Rodrigo. E ela é a Margarida, conforme já tomaram conhecimento. Mas também podemos ter outros nomes...)
«Aquilo?»
Deixou passar alguns segundos. Não mais que meio minuto.
«Já tratei daquilo.»
«Sim?»
Então passou à fase do esclarecimento. Ouvi-a com atenção. E não era caso para menos, pois disse que contactou uma tal Carolina, mulher de artes cartomantes e de outras ainda, quem sabe que outras...
«Nada de mal lhe aconteceu.» 
Ela, o obstáculo. Mas não a conhecia. Tanto fazia. Só tinha receio do efeito boomerang.
«Assim espero. E como foi?»
«Fizeram apenas uma coisa que se chama chamado
«E o que é isso?»
Explicou-me então que era um trabalho difícil de médiuns. Entraram em contacto com o subconsciente da pessoa visada e avisaram-na que devia, para seu bem, parar com as intenções de bloqueio que vinha exibindo.
«É mais que certo que a pessoa obedece inconscientemente à ordem. Pelo menos nos primeiros dias. Depois, há que repetir o contacto as vezes que forem necessárias.»
«Então não acabou.»
«Pois não. Olha, até à meia-noite é melhor estarmos juntos. É para tua segurança.»
«Mas diz-me…»
«Só amanhã, querido.»
E assim aconteceu. No dia seguinte contou-me o que aconteceu.
A Carolina e outro médium entraram em contacto com o subconsciente da mulher que estava a bloquear a nossa relação e travaram com ela um diálogo de persuasão, tentando convencê-la, metendo-lhe medo de que, para seu bem, devia abandonar as consultas que estava fazendo e deixar que eu seguisse a minha vida. Era melhor para ambos. Mas parece que ela foi renitente nas suas intenções. Segundo a tal Carolina, revelou ser “muito refilona”.
«Resultados?»
«Só com o tempo.»
Duvidei ser possível fazerem tal trabalho de entrar à distância no subconsciente de uma pessoa e convencê-la, metendo-lhe medo, que devia abandonar uma atitude tomada e deixar-me em paz.
«Mas afinal o que se passa, Margarida?»
«Muito simples. Ela consultou uma brasileira para fazer amarração. Mas já está tudo resolvido.»
Fiquei a pensar. O mesmo deve ter feito a minha companheira. Nunca imaginei que chegássemos à situação crítica de estarmos ligados em tão pouco tempo, como estávamos. Aos poucos, sem que desse conta, foi-me fazendo o cerco. Bem me avisou um amigo.
«Tem cuidado, Rodrigo. Não te deixes envolver. A Margarida não é mulher para ti.»
«Eu sei o que estou a fazer, pá.»
«Só por causa de meia dúzia de quecas? Cuidado que ela é ninfomaníaca!»
«Se é, ainda bem. Então são mais que seis quecas. Depois, cada um segue o seu caminho. Mas onde queres chegar?»
«Cuidado com a tua carteira, amigo! Não te esqueças que quem te avisa teu amigo é.»
Fiquei intrigado. Que sabia o Tomás que eu não sabia? É certo que as paixões são cegas e criadoras dos maiores disparates. Uma vez passadas, também a neblina passa. E então já é tarde.
«Está bem, amigo. Fico avisado.»
«Não te esqueças.»
Pois foi. Poucos dias depois a nossa relação estava consumada e eu nem sequer pensava em fugir. Se ela era ninfomaníaca, conforme o meu amigo jurava a pés juntos, então é bom. Temo-nos amado noite a seguir a noite até à exaustão? Ela é fantástica. Nunca uma mulher me levou tanto aos píncaros como ela. E quanto aos avisos do Tomás, acho que ele não tinha razão.

Em julho fomos passar uma semana a casa de uma amiga da Margarida. Uma vivenda simpática perto da Nazaré cedida pela Ondina, ausente algures em França onde, segundo a minha amante, trabalha que nem uma moura para ter mais tarde uma reforma condigna.
«Mas que idade essa tua amiga tem?»
«Trinta e seis anos.»
«Ainda é muito jovem. Demasiado cedo para pensar a cem por cento no conforto à lareira do crepúsculo. E é casada?»
Sorriu.
«Compreendes…» 
Não. Não compreendia. Ou melhor: só se...
«É fufa?»
«Penso que sim. Mas vive só.»
«E tu nunca…?» 
Tive um pensamento estranho. Algo me dizia que as ninfomaníacas também podiam ser fufas. davam para os dois lados.
«Achas? Longe vá o agoiro. Somos apenas amigas. Conhecemo-nos desde os sete anos.»
«Pronto, não te abespinhes. E sabes uma coisa?»
«Não sou bruxa, amor.»
«Tens razão. Mas ficas ainda mais bonita quando te zangas.»
«E depois?»
«Depois…»
Aproximei-me mais até os nossos corpos se tocarem. Escaldavam.
«Rodrigo!»
«Sim?»
Quem podia resistir aos encantos de uma mulher caliente?
Lembro-me que os dias estiveram anormalmente quentes, bem como a nossa paixão ou amor (nunca cheguei a saber). Os avisos do Tomás moravam longe e estavam quase esquecidos. Aliás até já admitia ter encontrado a minha alma gémea.
«As almas gémeas não existem, Rodrigo.» Disse-me um dia uma apaixonada.
«Bem sei» sorri. «Mas deixa-me sonhar. Quem sabe?» 
Foi a minha alma gémea até que, um dia, uma nuvem passageira a levou.
Até parecia. estava adormecido por um desses filtros do amor. Bem gostava que o meu amigo estivesse presente naquele momento. Quanto ao balanço do que aconteceu nessa semana em nada se diferenciou dos dias anteriores. Só passámos mais tempo juntos, dado que as nossas atividades profissionais foram suspensas. Estávamos de férias.
As manhãs foram todas passadas na Nazaré, na praia do sul. Só num dia ficámos até ao fim da tarde. Almoçámos numa esplanada e depois fomos ao Sítio (D. Fuas Roupinho a quanto obrigas!). Nos outros dias almoçámos numa simpática e quase deserta casa de pasto da aldeia, onde nos regalámos invariavelmente com peixe grelhado, salvo uma vez em que o almoço foi mais pesado. Nada mais nada menos que sopa da pedra. Quanto às noites, essas tiveram a história do costume. Deitámo-nos quase sempre por volta das onze horas, mas adormecemos muito mais tarde, por razões óbvias.
À margem das rotinas verificadas noite fora, aconteceu, a meio de uma dessas noites, um suposto fenómeno que me intrigou deveras e ainda hoje me inquieta.
Fui acordado repentinamente. Ela estava histérica. Jurou a pés juntos que teve uma visão. Algo mau, relacionado com a minha mão e o irmão dela. 
«Não entendo. Que tem a ver o teu defunto irmão com a minha mão?» 
«Cala-te!» 
Calei-me. A Margarida estava fora de si. Deixei que continuasse.
A certa altura, estando acordada pegou-me na mão ou viu a minha mão levantar-se como se fosse a mão de um morto. Afirmou que a mão estava fria, não tinha a mínima ação. Repliquei que podia estar dormente. Disse que não. Via ali coisa do irmão já falecido há uma meia dúzia de anos. Estava assustada com o que sentira e agarrou-se muito a mim. Enquanto vivo, o irmão fizera-lhe sempre a vida negra. Porquê? Talvez porque não lhe perdoava ser a menina predileta do pai. 
«Invejava-me. mais que uma vez disse-me que era burra e nunca acabaria o curso.» 
«Afinal, a maldição foi para ele. Uma espécie de boomerang...»
«Sim.» 
«Suicidou-se?» 
«Não quero falar disso.» 
Foi a única vez que dei conta ter acontecido algo de insólito com ela e de que não dei conta.. Paradoxalmente, essa noite serviu para incendiar ainda mais a paixão que ambos sentíamos, contrariando as previsões do meu amigo. Mas nunca consegui saber se ela falou verdade nessa noite.
«Não foi um pesadelo, Margarida?»
Disse que não. Repetiu que acordou por um motivo desconhecido e quase a seguir viu a minha mão elevar-se. Julgou até que eu estava a brincar. Mas pôs logo a ideia de parte quando pegou na minha mão.
«Estava gelada, amor. Era ele! O Aníbal quer separar-nos…»
«Está morto, Margarida. Deixa o teu irmão em paz.»
«O que quer que tenha sido, vivo ou morto, queria afastar-nos.»
Até podia ter sido outro ente enviado pela tua ex!
«Então não era o teu irmão?»
«Não sei. Aquilo tinha a mão gelada.»
«Aquilo era a minha mão, Margarida.»
Apertou-me o tronco com força desusada. Se acreditasse em entes do outro mundo também desconfiava que não era ela naquele momento.
Aos poucos, o aperto foi-se atenuando e ela aninhou-se no seu aconchego.
Arrepiei-me. A Margarida sentira a minha mão fria. E agora toda ela era gelo.
Acendi a luz do candeeiro da mesa de cabeceira e virei-me para ela.
«Não será aquela presença que sentimos quando estamos deitados?»
«Qual presença, amor?»
«Mas…»
«Mas o quê?»
Senti novo arrepio. Ela não era ela!
Não sei como fiz, mas de repente estava fora da cama.
«Então, querido, já passou.»
Respirei fundo. Dizia? Não dizia? Optei por nada dizer. Eu quase que gozara com a sua visão, ou melhor, com a sensação da minha mão gelada. Mas agora…
«Margarida, como foi que viste no escuro a minha mão a erguer-se?»
Senti que estava a dar-me um nó cego. Mas... e todo aquele histerismo que presenciei?
«Não acreditas em mim, Rodrigo?»
Voltei para a cama e ela aproveitou para encostar-se o mais que pôde. A seguir ficou muito séria, acariciou-me os cabelos e tentou beijar-me. Digo tentou, pois no momento afastei-me. Ainda conservava a sensação desagradável do seu corpo gelado. Que noite aquela!
A propósito, admiti também como causa a presença da Jovita. Uma relação que acabou em tragédia. Suicidou-se porque deixei-me seduzir por outra mulher. Foi um mau momento que passei. Não deixou qualquer escrito a justificar porque se suicidou, mas durante muito tempo fui tomado por um sentimento de culpa. Não a devia ter deixado. Por outro lado, nem eu nem ela seríamos felizes se seguíssemos o mesmo caminho. Na verdade, éramos incompatíveis e ela até concordou. Mais ainda. Reforçou a ideia da incompatibilidade. E então ganhei coragem e a relação acabou. Ficámos amigos. Mas não bastou. E foi aí que comecei a passar por maus bocados. Ela apareceu-me mais que uma vez e quase pirei. Foi aí que a Margarida voltou a entrar. Consultámos uma médium e pronto. Coisa fácil, segundo ela. Encaminhou-a para a luz e as aparições pararam como que por encanto. Mas essas consultas não foram baratas. Custaram-me mais que dois mil euros. Nunca acreditei que ela me deixasse, mas agora a coisa funcionava de outra maneira. Admiti até mais que uma vez que ela encarnava na Margarida. Acontecia quando estávamos deitados e nos olhávamos. Então, ficava muito sério a fixá-la. Depois, pegava-lhe nos cabelos, acariciava-os, acachapando-os aos lados. E então, sim. Era ela. A Jovita. O seu olhar doce. Aquela expressão que nunca se varrera da minha memória.
Seria possível ou tudo não passava de uma alucinação?
«O que se passa?» pergunta ela, parecendo encantada com o meu olhar. 
Pelo contrário, sentia-me inquieto.
«Tenho a certeza que já nos conhecemos no passado!»
Déjà vu?
«E eu também» aproveitava-se talvez da situação. «Temos muito em comum que não foi adquirido só nestes dois meses.»
«Quem fomos, Rodrigo?»
«Não importa saber. Agora somos nós. Só nós.»
Sentia-me bem agarrado à Margarida. Bendita aparição!
«Parece que fomos siameses!» dizia ela.
«Longe vá o agoiro. Incesto não, Margarida!»
Demos vários passeios pelos arredores. Não deixámos de ir a Alcobaça, onde a Margarida gastou mais que um rolo a tirar fotografias aos túmulos de Pedro e Inês, principalmente ao túmulo do monarca cruel. Andámos também pelas Caldas, Óbidos, Baleal, Peniche, S. Martinho do Porto. Não deixámos de ir a Fátima, onde chegámos já perto do pôr do sol.
O que há de especial a dizer em relação a Fátima?
Na verdade, ela não gostou. E, coisa estranha, no dia seguinte rebentou uma crise forte que atribuiu à ida a Fátima. Fiquei de pé atrás. Não posso esquecer-me do que disse em relação à sua felicidade. Essa só seria alcançada à custa da destruição de outra relação. E assim aconteceu. Por outro lado, das duas ou três crises que houve, a Margarida relacionou-as com merda certamente vinda da minha outra relação. Alguém lhe dissera, mais que uma vez, que havia uma pessoa mais velha a fazer magia, talvez um homem que se fazia pagar bem.
«Não acredito. Ela não é pessoa para isso...»
«E vai sozinha!»

Quando regressámos a Lisboa cada um foi para o seu apartamento. Quanto à relação, esta manteve-se bem acesa e a Margarida continuou a ser fenomenal na cama. Parecia que nada nem ninguém era capaz de destruir o que sentíamos um pelo outro. Tínhamos até pensado em apressar o casamento. Não fazia sentido cada um viver no seu canto.
«Que achas, Margarida?»
«Casamos a meados de agosto. Sim, amor?»
«Concordo. E fazemos um casamento secreto. Nem os nossos amigos vão saber. Só ao civil, bem entendido.»
«Combinamos amanhã? Tenho ainda outra coisa para dizer-te.»
«Está bem, meu amor. Estás grávida?»
«Longe vá o agoiro!»
«Longe vá...?» 
«Sim. Logo vês. É para interesse de ambos. Almoçamos hoje no “Sem Nome”?»
«Se não te importas, vamos almoçar à Baixa.»

Já na Baixa alvitrei que almoçássemos num restaurante da rua dos Correeiros.
«E que restaurante?» perguntou.
«Escolhe tu.»
Optou por um que ficava no princípio da rua. Torci o nariz.
«Não preferes antes o João do Grão?»
«Afinal quem escolhe?»
Notei que estava tensa.
«Pronto. Já cá não está quem falou.»
«Podemos ir a esse. Mas não vou comer bacalhau com grão. Detesto bacalhau.»
«Ninguém te obriga. A ementa é variada. Mas dá corda aos sapatos.»
«Porquê? Tens pressa?»
Expliquei que era um restaurante muito concorrido e estávamos já em cima da umada tarde.
«Ah sim. Então vamos.»
Felizmente ainda havia três mesas vagas. Escolhi a mais recatada, ao fundo da sala.
«Tivemos sorte. Sobre o casamento pouco há para falar. Mas há a outra coisa que não sei o que é.»
«Temos tempo.»
O empregado já estava à espera de ordens. Ela escolheu uma espetada de lulas e gambas e eu preferi uma feijoada de chocos.
«E para beber?»
«Fanta laranja e meia garrafa de Esteva.» 
«Tinto ou branco?» 
«Tinto.»
Comemos em silêncio. Ela pouco falou e eu imitei-a. Tentava adivinhar o que ia naquela cabeça.
Dispensámos o doce e vieram os cafés.
«Bom, Margarida. Vamos ao que tens para dizer. Se dizes que é para nosso bem, imagino que não seja para nos separarmos.»
«Rodrigo! Que tolice a tua!»
«Desembucha então.»
Nos minutos que se seguiram, a conversa decorreu dentro da normalidade. Disse-lhe que os meus projetos profissionais tinham entrado num impasse. Por esse motivo ia deixar o emprego e aceitar uma proposta mais aliciante. O vencimento era ligeiramente superior, mas o motivo tinha mais a ver com o tipo de trabalho.
«Compreendes? Está mais dentro das minhas habilitações.»
«Acho bem. Desde que não te tome tempo exagerado…»
«E agora quero ouvir-te.»
Fiquei apreensivo quando me disse que tencionava montar um negócio.
«Um negócio?»
Disse-lhe para pensar bem. Não devia trocar o certo pelo incerto. Enfim, tentei demovê-la da aventura perigosa em que ia meter-se. Com o estado atual da economia, era melhor ela fazer de morta e esperar por ventos mais favoráveis.
«Espera uns meses. Não deixes que o teu dinheiro seja atirado aos lobos.»
«Mas eu quero-te como sócio!»
«Pensa bem, Margarida. Disseste… como sócio?»
«Sim, amor. Tenho tudo delineado. Só preciso de algum capital…»
«E esse capital vem de mim.»
Foi então que me lembrei do Tomás e dos seus conselhos.
«Cuidado com a tua carteira, amigo!»
Que sabia ele a mais que eu não sabia?
«Concordas? Não sejas ruim. Vá lá!»
Não tive coragem de dizer que não, mas também não disse que sim.
«Vou pensar. E que negócio é esse?
«Trapos.»
«Trapos? Não há já muita loja de trapos por aí?»
«Estás a ser um desmancha-prazeres. Bem me parecia.»
«Como assim?»
«Avisaram-me que eras forreta.»
«Forreta?» exasperei-me. «Quem tem pago todas as nossas libações? Os teus caprichos, como o anel de brilhantes e brincos e o vestido vermelho comprido? Isto para não falar dos cinco mil euros que te emprestei para um investimento em ações que deu em fiasco.»
Adeus, meus ricos cinco mil euros.
«Não fizeste mais que a tua obrigação. Eu dei-te o meu amor. O corpo que tanto te entusiasmou. As noites calientes
«Deste o quê?»
Fui invadido por uma inquietação estranha. Uma daquelas inquietações que já não tinha há muito tempo, ao mesmo tempo que me sentia fora de mim. Então ela precisava de um sócio para entrar com o dinheiro. E deu-me o seu corpo esbelto e o sorriso todo ele cheio de tentações. Aquela mulher era um demónio tentador que quase me tinha levado à certa. Uma autêntica serpente na cama. Todo um mar agitado de prazeres quando eu devia ter escolhido um lago de bonança. Porra de vida. Como fui levado à certa? Mas não era tarde para voltar atrás. Tinha ido bater a boa porta. Afinal o seu objetivo era trocar quecas por dinheiro. Para não lhe dar o nome certo.
Fez-se um silêncio ruidoso. Toda a paixão que nos tinha aquecido durante pouco mais de três meses estava a ser apagada facilmente por um balde de água gelada. E ela pareceu adivinhar.
«Pronto, se não queres entrar para sócio, então abandono o meu projeto. Sabes muito bem que te amo e o nosso amor não pode ser perturbado por um devaneio.»
Entendi que ela estava a tentar dar a volta ao texto. Mas se ia abandonar o seu projeto, também eu abandonava o meu. Um projeto muito mais sério e mais profundo que o seu. Simplesmente vivermos uma vida a dois.
«Margarida…»
«Sim, amor?»
«Vou pensar.»
«No nosso negócio?»
«Não. No nosso futuro.»
«És um poeta, Rodrigo. E até gosto dos poetas, sabes?»
«O quê?»
«Nada.» 
«Mas...»
«Fiquei com uma dor de cabeça terrível. Se não te importas, vou para casa. Telefona-me mais logo. Por volta das dez.»
Levantou-se, lançou-me um olhar inexpressivo e encaminhou-se para a porta. Continuei levantado, mesmo depois de ela sair do meu campo de visão. Então voltei a sentar-me e levei a mão ao bolso do casaco. Logo de seguida surgiu à luz do dia uma pequena caixa castanha que abri.
Adivinhem o que veio à luz do dia?
Sim. Isso mesmo. Um anel de noivado que me tinha custado uma pipa de massa.
Não telefonei à Margarida nessa noite. Nem tão pouco ela. Nem no dia seguinte. Nem tão pouco ela. Nem voltei a procurá-la. Nem tão pouco ela. 
Dias mais tarde voltei à ourivesaria para tentar reaver a minha pipa de massa. Como era de esperar (já alguém me tinha avisado), pagaram-me só o valor do ouro e ainda tiveram a lata de descontarem no peso o diamante. O resultado não se fez esperar. Perdi mais que meia pipa de massa!
A vida dá-nos grandes lições e é bom que as estudemos a fundo e que as mesmas fiquem para memória futura. Quanto ao resto, paz às nossas quecas, Margarida. E porra para as noites calientes.