segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A nota de quinhentos

 


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ersistem, embora já com menos frequência, os fenómenos paranormais. Passam-se muitos dias sem que aconteçam e então julgo que se foram para sempre. Puro engano. Estão de volta quando menos espero, embora acredite que já perderam a força do impacto dos primeiros tempos. Já lá vai o tempo da novidade. Por outro lado, desisti de tentar abrir mais cortinas que me levaram a becos sem saída. Bem tentei. A resposta foi sempre a mesma. Não que mostrasse medo pelo desconhecido. Antes pelo contrário. Houve tempos que lancei desafios após desafios. O silêncio e a falta de dados concretos foram argumentos suficientes para crer que não passava de um mero canal de comunicação sem autonomia para ir mais além. Resignado, resolvi baixar o estado de vigília até um nível quase adormecido.
Casos como o que aconteceu num sábado de quase fim de século são aquilo que posso chamar “pequenos nadas”, comparados com os do tempo dos anos do deus menor, sem dúvida a espinha dorsal de uma época que me deixou perplexo e psicologicamente vulnerável ao ataque daquilo a que chamei na altura a coisa. Foi um tempo muito perigoso que abalou a minha sanidade mental. Mas já passou. É quase história. Confesso, no entanto, que guardo saudades desses momentos incríveis. Se é imprudência evocar estes pensamentos ligados ao paranormal, não posso evitar. Penso que eles não voltarão com a intensidade com que se mostraram. A causa principal foi encaminhada para o constelado do céu, o mesmo donde, perdida, encontrou-me por acaso, como eu a encontrei uma vez numa noite morna de verão. Sei que não volta a acontecer. Agora só acontecem coisas que não passam de pequenas coincidências que já não beliscam muito.,
Mas vamos ao caso...

Há alguns meses que tínhamos combinado ir à "feira da ladra". No entanto havia sempre um obstáculo de última hora que adiava a visita para outro sábado, ameaçando o evento tornar-se num definitivo dia de “São Nunca à tarde”.
Mas naquele sábado aconteceu mesmo, embora tivesse sido decidido próximo das quatro da tarde. Aliás, foi uma boa altura para se fazerem compras no que dizia respeito a velharias e antiguidades, expostas, numa amálgama, no chão e nas mesas, porque a feira aproximava-se do fim e havia margem de manobra para os preços serem regateados e espremidos o mais possível.
As velharias expostas constituíam o que de mais incrível que se podia imaginar. Quanto às antiguidades, essas seduziam-me mas não lhes chegava, pois as boas peças continuavam a preços inacessíveis à bolsa de um professor. Limitei-me a comprar por cem escudos um livro relacionado com os mistérios da memória e um conjunto de chaves de bocas por trezentos escudos. Quanto à minha companheira interessou-se por um puxador em cristal que custava três contos, mas acabou por comprar, na mesma bancada, duas chávenas da Vista Alegre com os respetivos pires. O curioso é que cada uma custava dois contos e quinhentos e a mulher baixou logo para dois, sem ser preciso regatear. Mesmo assim ela não aceitou no momento e continuámos a nossa volta, desta vez pelas bugigangas. Como não encontrámos nada de especial, voltámos ao sítio das chávenas. A ideia de ambos estava no puxador.
A mulher reconheceu-nos e fez de imediato outra oferta tentadora.
Arrematado!, como teria dito um leiloeiro.
Negócio fechado. Sem sabermos como, as duas chávenas ficaram ao todo por dois contos setecentos e cinquenta.
Afastámo-nos e ela olhou para mim, deveras intrigada.
«Não me digas...?»
«O que é que eu digo?»
«Foste tu?» sorriu. «Não me digas que foste tu que a baralhaste!»
«Que ideia mais louca! Nem sequer estava interessado nas chávenas.»
«Mas eu estava.»
«Ora.»
Era tarde e alguns vendedores arrumavam os artigos, ou já tinham abandonado os locais de venda. Talvez o verdadeiro motivo daquele saldo estivesse na necessidade da vendedora precisar de realizar capital.
Que fazer?
Visitar a igreja de S. Vicente, proposta sua que foi aceite. Em má hora porque fomos encontrar a Amparo e o irmão no local do crime, dois amigos seus muito religiosos e autocolantes com tendências altas de pressão.
Como resultado, nós que íamos apenas visitar a igreja tivemos que assistir ao terço e não conseguimos fugir à missa das seis. Não pretendíamos demorar muito tempo e acabámos por ficar mais que uma hora. Dois em um era muito. Resignei-me. Deus ia compensar-me pela demora no santo sacrifício da missa.
Quanto à visita, esta valeu pelo belíssimo altar de Santo António, onde repousam os restos mortais da sua mãe.
Durante o terço e a missa a minha atenção foi desviada por várias vezes para uma estátua em pedra, junto ao altar-mor. Mais uma vez Santo António com o Menino Jesus. Não sei explicar porquê, mas senti um enorme desejo de comunicar com ele. Claro que não consegui. O resultado foi dar mais atenção à estátua do que ao que se passou durante as cerimónias do terço e da missa.
No momento do ofertório lembrei-me que não tinha dinheiro trocado. A cesta estava próxima e já não dava para pedir à minha companheira uma moedita emprestada. Restava-me abrir a carteira e rezar aos santinhos para encontrar uma nota de vinte escudos.
Procurei com cuidado. Nem vestígios. Talvez tivesse uma nota de cem escudos. Pois. Esperanças baldadas. Só tinha uma nota de quinhentos, o que representava muito dinheiro. Não que o querido Santo António não merecesse.
«Adeus, nota.» Lamentei-me.

Quando saímos já passava das sete horas da tarde. Felizmente tempo de jantar e não para comermos caracóis que eu detestava. Entretanto arrefecera um pouco e eu fui buscar os agasalhos ao Peugeot azul que estacionara ao fundo de uma rua íngreme que dava para a rua Voz do Operário.
Já muito perto do carro vi no chão uma coisa que me fez parar de imediato. Não era possível o que os meus olhos estavam a ver!
O Santo António não gostava de mim.
Tentei retificar o primeiro pensamento que me ocorreu. Se não era verdade que não gostava de mim, então devia haver outro motivo.
Entretanto ficara parado no meio da rua, sentindo os pêlos dos braços, das pernas, dos próprios cabelos. Tudo, mesmo tudo, se eriçou.
«Uma nota de quinhentos!» exclamei.
Compreendi de imediato o significado da coisa. Chorei tanto o dinheiro ofertado na igreja que logo tive um retorno amaldiçoado.
O santo não gostou da minha atitude mesquinha e devolveu-me a nota de quinhentos.
«Vai sair-me cara esta nota de quinhentos que voltou...» Pensei.
A devolução da nota de quinhentos escudos, ocorrida para além do meu entendimento, não tinha lógica. Desta vez nada fiz nem pedi, durante a missa, o alívio para o problema na região cervical. Apenas tentei estabelecer um contacto com uma imagem de Santo António e o Menino que estava do meu lado direito, junto ao altar. Talvez que tivesse feito algum pedido de que não me lembrava.
Com a nota de quinhentos nas mãos encaminhei-me para o carro e quedei-me a observá-la melhor. A nota tinha a chapa CHG 929191.
Seria um detalhe importante? Não sabia.
Conservei ainda a nota de quinhentos durante alguns meses, sem saber o que fazer dela. Até que acabei por dá-la a uma pessoa necessitada.
Este caso não passou de uma coincidência, ou foi mais que isso?

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