segunda-feira, 6 de março de 2023

A cubana



"A Revolução Cubana foi um movimento armado e guerrilheiro que culminou com a destituição do ditador Fulgencio Batista de Cuba no dia 1 de janeiro de 1959 pelo Movimento 26 de Julho liderado pelo guerrilheiro revolucionário Fidel Castro. O apoio soviético, depois do movimento armado, enfatizou seu caráter anticapitalista  e também antiamericano para posteriormente alinhar o país com o chamado bloco socialista. Todavia, essas características ficaram claras apenas depois da revolução, não sendo o seu foco inicial, segundo alguns historiadores, que alegam que o rumo comunista foi tomado após a falta de apoio dos Estados Unidos  à revolução de Fidel Castro. O termo "Revolução Cubana" é genericamente utilizado como sinónimo do castrismo, governo socialista que em sua origem notabilizou-se pela implantação de uma série de programas assistencialistas sociais e económicos, notadamente alfabetização e acesso a saúde universal.

Fulgencio Batista foi eleito presidente democraticamente pela primeira vez em Cuba, mas a sua presidência foi marcada por corrupção e violência. Fulgencio tem o poder de voltar através de um golpe militar em 1952. Em 1953, Fidel Castro e outros 160 homens (números incertos) tentaram o Assalto a Moncada mas falharam, e Fidel Castro foi condenado a cerca de 20 anos de prisão, e seu movimento desapareceu. Em 1954, Batista foi reeleito como presidente e, posteriormente, em um ato de reconciliação, Fidel Castro foi libertado. Fidel foi viver um tempo no México. Em novembro de 1956, com um plano revolucionário, formou o "Exército Rebelde". Um de seus comandantes era um médico argentino, Ernesto "Che" Guevara. Os guerrilheiros foram gradualmente se tornando populares, com dois novos líderes, Raúl Castro e Juan Almeida. De volta a Cuba, tinha apoio suficiente da população, em seguida, começou a empurrar para a frente as reformas políticas, sociais e económicas. Fidel era muito popular. Rapidamente tornou-se primeiro-ministro e iniciou processo revolucionário mais pessoal.

Ainda em 1959, começaram as primeiras reformas, especialmente em matéria de meios de produção e a nacionalização dos bancos. A revolução cubana também teve grande importância desde que começou graças às campanhas de alfabetização em massa e de cuidados de saúde que foram implementadas para toda a população. Após este triunfo, a política económica de Cuba (especialmente a nacionalização de empresas estrangeiras) deixou tão alarmados os Estados Unidos que estes romperam relações diplomáticas com o país. Cuba, então, estabelece relações abertas com a União Soviética."

Wikipedia


A protagonista desta história, que nada tem a ver com a revolução de Fidel, era cubana e residia em Portugal. Já não tinha sotaque ou recordações de Havana. Lisboa foi a cidade que a acolheu. Pontinha, onde ela residia, uma região, por razões amorosas bem conhecidas pelo narrador desta história que sou eu.
Madalena, que na realidade chamava-se Ondina, foi uma apaixonada do tempo em que estive destacado no Ministério da Educação. Morava na Pontinha e o seu maior desejo era sair a todo o custo, por exemplo para as avenidas novas. Odiava mesmo com toda a força do seu ódio viver naquele meio nada digno, segundo ela, para uma mulher como ela que tinha grandes ambições. Um diabinho (dizia a mãe) que nascera após a morte prematura de um irmão. Mas também nada tem a ver com esta história. Pertence a outra história que já foi contada (1).
Pouco vou falar da "Pontinha Fantástica", não por causa do diabinho que me enfeitiçou, sim por força das circunstâncias. Melhor dizendo ainda, por obra do acaso. E começo por aí. Pelo acaso que nos aproximou durante pouco tempo.

O último almoço foi marcante, não no sentido de reforçar uma relação que tinha pernas para andar. Precisei de usar muitos subterfúgios para finalmente a Madalena não faltar ao compromisso. Desta vez foi ela quem escolheu o restaurante. Não ficava muito longe do nosso local de trabalho. Logo à entrada, havia uma passagem estreita e depois desciam-se umas escadas em caracol. Precisamente enquanto descia as ditas escadas, todo o meu pensamento se centrava numa decisão que, mal fosse tomada, não podia voltar atrás, embora soubesse que ia deitar tudo a perder.
Escolhi uma mesa recatada no fundo da sala. Deixei que se sentasse, olhei em volta e só depois me sentei.
«Tem todo o ar de Escorpião, Mário. Quis ter a certeza que estava em segurança.»
«Lamento desiludi-la. Sou Leão.»
«Bem sei.»
«Leão-Dragão...»
«Oh!»
«Não se assuste. Sou protetor.»
Depois duma conversa superficial de signos, motivada pelo diálogo que então tínhamos trocado, não perdi a oportunidade para apalpar o terreno movediço subjacente e tentar saber se de facto sentia que a Lua a condicionava. Para grande surpresa minha confirmou que a Lua lhe bloqueava, e muito, os impulsos.
«Mas considero-me uma mulher livre.»
Nesse momento lembrei-me dum comentário jocoso da Marta.
«A Madalena ter vergonha? Não a conhece, doutor...»
Este comentário vinha reforçar a ideia que começava a configurar-se no meu horizonte das suposições. Essa mulher era mais livre do que eu supunha. Mas valia ainda a última tentativa para encontrar uma solução para o nosso caso.
Nos minutos que se seguiram, a conversa decorreu dentro da normalidade. Disse-lhe que os meus projetos particulares tinham entrado num beco sem saída e que os outros, os ditos profissionais, parecia que voltavam à primeira forma. Ia regressar à base. Deixava, de todo em todo de dar a colaboração ao Projeto. Mas naquele dia estava ali para a ouvir. Pela primeira vez queria ouvi-la.
Pouco ou nada disse. Tencionava montar um negócio.
«Um negócio?»
Disse-lhe para pensar bem. Não devia trocar o certo pelo incerto. Enfim, tentei demovê-la da aventura perigosa em que ia meter-se. Ao mesmo tempo que lhe fazia ver que era a pior opção que podia tomar, falei-lhe numa que tinha tomado e que nunca apresentou resultados positivos.
«Já não acredito nos sonhos do dinheiro fácil. Tenho várias sociedades de totoloto de que faço a gestão e estou a apostar forte porque tudo somado é que sabemos. Sabe, temos muitos prémios, mas só um grande compensa o investimento.»
Espantou-me ouvir o seu comentário:
«E é a trabalhar que vai conseguir, Mário?»
«Sei muito bem» olhei com atenção para o seu rosto. «Deve ter cuidado com os gatos. Esse arranhão quase que lhe atingiu a vista!»
Foi mesmo arranhada por um gato?
Confessou que gostava muito do gato, mas era um bichano estranho.
«Mas não me disse que agora só tem um cão?»
«É do meu sobrinho.»
Sorriu. Não se deixava apanhar em falso com duas cantigas.
«Está certo. E que mais? A Madalena não tem outros projetos?»
«Outros?»
«Sonhos...»
«Ah sim.»
Foi a minha vez de sorrir. Fiquei na expectativa.
«Já escolheram?»
Era o empregado.
«Madalena?»
«Cabrito assado.»
«O mesmo para mim.»
«E para beber?»
«Reguengos tinto.»
«Reserva?»
«Sim.»
O empregado afastou-se.
«Os sonhos... Madalena.»
«O vinho não é caro?»
«Hoje não dividimos ao meio. Fui eu quem fez o convite.»
«E eu escolhi o restaurante.»
«Importa-se...?»
«Obrigada.»
Encolheu os ombros. Só sonhava quando dormia. Nada mais tinha para contar. A sua vida era simples. Gostava mais de ouvir.
Sabia que era um sinal de defesa.
«Então vou continuar a falar.»
«Por que motivo vai desistir do Projeto
«Para mim está morto. Prefiro continuar a dar aulas.»
«Vão sentir a sua falta.»
«Ninguém é insubstituível. Já têm contabilistas, os grandes malabaristas das contas. Bem vão precisar de milagres.»
«Acha?»
«E se falássemos de outra coisa? Por exemplo, do negócio que tem em mente.»
«Trapos. Preciso dum sócio que me financie.»
Era do que estava à espera.
Já comíamos o cabrito, uma vez que era prato do dia. Enchi-lhe o copo.
«É um delicioso néctar, mas tem grau.»
«Obrigada por avisar-me. Não passarei de um copo.»
Então ela precisava de um sócio...
Indiretamente estava a fazer-me um convite, já que não tinha coragem para o fazer com frontalidade. Medi os prós e os contras e decidi logo que não iria por ali. Financiando o negócio, mais tarde ou mais cedo tinha-a nos meus braços. Por outro lado, alimentar um saco sem fundo ia sair-me muito caro. Assim, fingi ignorar o convite e preparei o assalto final. Ou tudo ou nada.
Não me contive e disse o que sentia por ela, o que desejava para nós e o que faria e não faria, caso aceitasse a minha proposta.
No fundo, bem no fundo, o que queria?
Uma vida a dois.
Abriu muito os olhos, aparentemente surpreendida. E eu continuei falando. Falando para lá dos limites razoáveis. Sempre fui assim. Nunca gostei do meio termo. No meio termo residia a dúvida.
Praticamente não reagiu. Tinha sido apanhada desprevenida. E eu continuei falando, mais agressivo e zangado do que nunca, à medida que dava conta que ela acenava negativamente com a cabeça. A surpresa foi talvez uma tática dela. Nunca dera conta. Jurava.
«E os poemas... ?»
«Você é um poeta, Mário! Achei graça. Até gosto dos seus poemas.»
«Só?»
«Sim» fixou o olhar em mim. «Nunca o vi como um homem na minha vida. Até porque estou noutra.»
«Está? Não parece...»
«Olhe, Mário, já vivi uma vez com um homem e acredite que sofri muito. Agora sou uma pessoa livre e quero continuar assim.»
«Mas não disse que está noutra?»
«E não desminto. É uma relação temporária. Sem importância. Não, não quero voltar a envolver-me.»
Provavelmente um sócio. Um amante-sócio.
«O raio que a parta!» desabafei em pensamento.
«A Madalena é que conhece os caminhos por onde anda...»
Comemos a sobremesa em silêncio. Ela, um gelado e eu uma mousse de chocolate.
«Bebe café?» perguntei.
O seu sorriso envolvente! Se ele falasse verdade...
«Sim, por favor.»
Logo a seguir pedi a conta. Tinha pressa de sair.
Que pena o seu olhar terno saber agora a falsidade!
Perdi-a. Tive a certeza.
E voltei a perdê-la quando ela, à saída do restaurante, me deu uma oportunidade que não quis aproveitar. Estava ferido no meu orgulho. Ou tudo ou nada.
Pôs uma mão sobre o meu ombro e disse:
«Temos que nos amparar um ao outro.»
Não respondi.
Foi a única vez que não fugiu. Neste dia. Logo neste dia. Olhei-a. Parecia triste.
A mão desceu ao longo do meu braço esquerdo. Por momentos, revi as sensações que tivera na igreja e tive quase a certeza que tudo foi real nesse dia.
Dei-lhe um beijo no rosto. Depois, afastei-me. Afastei-me, sem olhar uma única vez para trás. Talvez a culpa não fosse minha, mas do poeta que tanto invejava. Só ele podia acariciá-la com palavras, encher de beijos aqueles olhos doces que nunca fugiam. Só o poeta tinha conseguido alcançar o inatingível. Possuir o corpo, sem defesas, que ela negara ao homem. Sim. Era toda uma obra do poeta e não do homem que sofria porque o outro entrou, sorrateiro, pela porta proibida e ouviu-a dizer que nunca tinha imaginado que os sentimentos do homem eram aqueles. Entrou com a magia do sonho mas não abriu o caminho ao homem.
Só num ponto, homem e poeta foram um só ao consentirem que ela falasse um pouco do seu passado. O céu da esperança abriu-se, por momentos, quando a mulher vivida resvalou, deixando vir à superfície recalcamentos antigos por ter sido usada por um homem que a deitou fora quando se cansou. Não queria repetir o erro.
«E com o poeta?»

Mas afinal o que fui fazer naquela tarde morna de junho à Pontinha? Para recordar o passado? Não sei bem. Tinha-se passado mais que uma dezena de anos desde voltara à minha escola depois dos pouco saudosos tempos passados no Ministério da Educação e do envolvimento com a Ondina. Guardava comigo a recordação de um falhanço na vida amorosa. Só um falhanço. Mais nada. Nem saudade, nem desejo de a encontrar de novo. Voltara à Pontinha só por um impulso. Um misterioso impulso semelhante àqueles que tinham acontecido a partir do fim dos anos oitenta. Portanto, embora pensasse nela, nem sequer passei pelos sítios onde a podia encontrar. Longe disso. A caminhada que fiz foi outra. Para falar verdade segui ao acaso durante mais de meia hora, até que dei por mim no interior de um Centro Comercial situado na zona de uma urbanização chamada, se não estou em erro, "Encosta do Sol". Aliás, já lá tinha ido mais que uma vez motivado pelos artigos expostos numa loja de produtos esotéricos. 
Foi precisamente aí que teve início esta história. Caso. Encontro. O que quer que seja. Qualquer nome serve.
«Já não temos. Vendemos o último ontem. Mas posso encomendar...» Disse a empregada.
Era quase sempre assim. Alguém antecipava-se para comprar o último artigo de o que quer que fosse.
«Olhe, por acaso eu tenho isso em casa. Posso dispensar ao senhor.»
Voltei-me. Foi assim que conheci a cubana.
«Assim, não vale a pena encomendar.» Disse a empregada.
«Não te importas, Lurdes?» 
«Claro que não, amiga.»
Já estávamos fora da loja.
«Não sei se volto amanhã. Posso pagar já...»
«Pelo amor da santa!» ofendeu-se.
«Pronto, pronto. Então onde vou encontrá-la num destes dias?»
«Olhe, tenho um lugar de venda no corredor a meio da entrada do Centro. E já agora, chamo-me Yolanda. Sou cubana.» 
Não comentei. Apertei-lhe a mão macia que entretanto tinha estendido.
«Muito gosto. Eu sou o Mário.»
«Muito gosto também. Quer ver a minha banca?»
«Já agora...»
Pouco depois estávamos junto à banca. Para minha surpresa ela vendia minerais e uma gama variada de artigos, alguns deles esotéricos. Admiti que fazia revenda dos artigos da loja onde estive, mas não os minerais.
«É aqui que estou todos os dias.»
Naquele tempo colecionava tudo e mais alguma coisa, menos a "merda" que o Atílio da telenovela brasileira "O Casarão" mexia e remexia, entusiasmado, ao ar livre, numa tulha. acreditando que o produto final seria coisa de sucesso. Uma espécie de pedra filosofal que transformava a merda em algo valioso (2).
Acabei por comprar um quartzo cristal de rocha e também uma granada, variedade almandina. E também, já me esquecia, um pequeno cinzeiro em malaquite.
«Vou fazer os possíveis para voltar amanhã.»
«Não se preocupe. O Mário vem quando vier.»
«Obrigado.»
«Não é para agradecer.»
Pelo caminho até ao metropolitano tentei rever a frescura daquele rosto simpático, bem como o resto do corpo. Não era uma mulher de sonho, mas respirava simpatia. E eu precisava de simpatia. Pelo menos por alguns dias para equilibrar os momentos cinzentos que me acompanhavam para onde quer que fosse e onde quer que estivesse.

Sempre voltei no dia seguinte e vi logo a sua banca mal entrei no Centro.
«Não se levante, Yolanda...»
«Ainda se recorda do meu nome.»
«E a Yolanda?»
Sorriu.
«Claro, Mário.»
Era mesmo simpática a jovem. Na altura conversava com outra mulher, não muito mais velha que ela. Chamou-me a atenção o cabelo curto, arruivado, sem franja, e o rosto sardento.
«Olga, este senhor chama-se Mário. Conheci-o ontem na loja esotérica.»
«Muito prazer, senhor Mário.»
«O senhor não sei onde está. Muito gosto. Então é amiga da Yolanda.»
«De há muito.» Interpôs-se a aludida. «Não posso dizer que nos conhecemos mal cheguei de Havana, mas foram dois ou três anos depois, na escola primária.»
«É mesmo assim» concordou a jovem ruiva sardenta. «E não imagina como. Logo a seguir a uma briga que tivemos...»
«Interessante. Podiam ter-se odiado.»
«Mas não. É uma história curiosa. Por nossa causa, pois éramos amigas inseparáveis, o meu pai e a mãe dela apaixonaram-se.»
«Estou a ver, Yolanda. Passaram todos a viver juntos.»
«Acertou. Mas a paixão só durou dez anos.»
Tentei imaginar. O pai da Yolanda regressou a Havana para junto da mulher. Mas não. Veio com a filha para Portugal, talvez como refugiado. Então teve uma ligação forte com outra mulher. Nada disso também. Os dois amavam-se muito. Um desastre? Sim. Ele era camionista de longo curso e uma vez levou a companheira consigo. Quis o destino, sim. O destino que os uniu, também os separou. Morreram após um assalto violento às mercadorias que levava no camião. Foram assassinados só porque tinham visto o rosto de um deles.
«História tão trágica!» comentei, condoído. «Logo na única vez que tinha levada consigo a mãe da Olga.»
Quis entender. Algo não se ajustava. O sorriso irónico das duas fez-me acreditar que não foi bem assim que aconteceu.
«Não foi nada disso, Mário. A Olga gosta muito de inventar histórias.»
«E eu também.» Pensei. «Mas muitas delas não são inventadas.»
«Que grande partida me pregaram!»
Outro qualquer teria feito ponto final e nem sequer levara consigo a encomenda. Mas eu resistia com desportivismo a toda e qualquer provocação.
«Bom, então como foi que se tornaram amigas?»
«Muito simples. A Olga alugou-me um quarto e a amizade surgiu com toda a naturalidade.»
«Verdade, Olga?»
«Verdadinha. Agora é mesmo verdade.»
«E com quem veio de Havana, Yolanda?»
«Naturalmente com o meu pai.»
Não perguntei mais. Seria abusar.
«Vou deixá-los. Seja delicado com ela, Mário. Se precisarem de alguma coisa, estou na loja em frente.»
Mas não andávamos os três com o carro à frente dos bois?
Entrei no jogo.
«Prometo.»
«Mas...»
«Faça de conta, Yolanda.»
«Ah sim. Ela vai ficar convencida.»
Segui-a com o olhar. Gostava de entrar na vida das pessoas e dar largas à imaginação sem que dessem conta.
«A Olga vende roupa para crianças. E também brinquedos.»
«E safa-se?» 
«Bom...» 
«Desculpe, estou a intrometer-me...»
«Sim. As clientes não faltam. E ajudou-me muito nos primeiros tempos. Não conheço ninguém com melhor coração que ela.»
Acreditei. Aliás, não tinha dados para pensar o contrário. Quanto à Yolanda e à sua banca num dos corredores do Centro Comercial tinha muitas reservas sobre a possibilidade de subsistência. Fosse como fosse, nada tinha a ver com isso.
«Aqui tem o que procurava na loja esotérica. É isto, não é?»
«Exatamente.»
Tanto mistério para uns simples paus de arruda, próprios para fumegarem e protegerem os crentes da inveja, mau olhado e assim. E não era para mim. Ou por outra, na altura lembrei-me de perguntar. Tinha percorrido quase todas as prateleiras da loja e dava a ideia que procurava qualquer coisa. Daí lembrar-me dos paus de arruda. Está explicado.
Ficámos a olhar um para o outro e sorrimos.
«Então...?»
«Então...?»
«Quanto tenho a pagar?»
«Nada. É uma oferta.»
«Posso convidá-la para almoçar?»
«Obrigada. Estou numa relação, Mário.»
«Não é o que pensa.»
E o que pensava a Yolanda?
«Ele está a chegar. É muito mais velho que eu. A vida está difícil, percebe?» 
Aí estava. O velho dava-lhe a ajuda necessária.
Seria um novo jogo. Talvez não. Parecia haver sinceridade no seu rosto.
«Compreendo.»
«Mas pode convidar a Olga.»
«Como assim? Mal a conheci...»
«E a mim?»
Tinha razão.
«Parecem dois pombinhos.»
Foi mesmo assim o comentário que a Olga fez quando apareceu na nossa frente de braços abertos e com as palmas das mãos voltadas para nós. Mas não tive tempo para a contrariar. Acabava de ver uma coisa na amiga da Yolanda que não me agradou muito. Mais propriamente nas suas palmas das mãos. E não lhe passou despercebido.
«Aconteceu alguma coisa?»
«Nada de especial, Olga. Mas quero ver as suas mãos. Posso?» 
«Sabe ler mãos?» 
«Um pouco.» 
«Então, vá.»
«A palma da sua mão direita, se não for canhota.»
«E não sou. Mas não me meta medo, promete?»
«Não quer saber a verdade, Olga?»
Demorou a responder.
«Sim e não. Ou por outra, veja e não me diga nada.»
Estendeu-me a mão.
«Pode ser na sua loja?» perguntei.
«Acho bem. Aqui dá muito nas vistas.» 
«É por isso mesmo.»
Não cheguei a levantar-me porque aconteceu algo de inesperado. Uma mulher de meia idade estava parada na minha frente e olhava-me fixamente, estupefacta. A resposta da expressão do meu rosto deve ter sido parecida. Nem queria acreditar no que estavam a ver os meus olhos!
«Julieta!» exclamei, num sussurro (4). 
Só então vi que estava acompanhada de um homem. Era o marido.
«São aqueles brincos que queres?»
«Deixa, não é nada. Vamos...»
Acabava de ter um "encontro imediato do terceiro grau" com a mulher que roubou-me o destino nos tempos de juventude. Por causa dela, e também por minha causa, perdi alguém de quem gostava muito. 
«Que aconteceu, Mário?» perguntou a Olga. 
«Nada nada.» 
«Está mesmo bem?» 
«Já passou.»
«Então venha, Mário. Estou ansiosa. Vens também para assistir, amigona?»
Tentei interpretar a expressão do olhar da Yolanda ao escusar-se:
«Lembrei-me agora que tenho de ir à loja esotérica. Já vou ter convosco.»
«Então, vamos nós, Mário.»

Estendeu-me a palma da mão e confirmei que tinha uma linha da vida muito curta. E também uma cruz na da cabeça. E, pior ainda, a hepática embatia na vital
(3) entre os quarenta e os cinquenta anos. Um mau sinal.
«Que está ver? Afinal quero saber tudo.»
«Nada. Nada de especial, Olga. Já lhe disseram que os seus olhos dizem coisas...»
«Não desvie o seu estudo, Mário.»
«Qual estudo? Há pouco menti. Não sei ler mãos.»
«Não sabe...?»
«Não. Também estou no meu direito de brincar.»
Uma estranha forma de brincar. Ou melhor, de esconder a evidência.
«Aquela mulher de há pouco que o olhou de uma maneira estranha era alguém que conhecia?» 
Demorei a responder. Pensava como podia desviar a conversa. 
«Vá lá, fiquei curiosa.» 
Lá teria que ser.
«Sim. Aquela mulher, em tempos desviou-me o destino. Tinha vinte e dois anos. Não calcula como a odiei. Mas já lá vai.»
«Estava vidrada em si?»
«Sim. E eu senti-me atraído pela sua beleza.»
«E agora?»
«Já nada sinto por ela.» 
«Ainda hoje pensa em si.»
Como assim? Que dons eram aqueles? Já a D. Ima, uma vidente, tinha-me dito o mesmo há uns anos atrás.
«É sensitiva, Olga?»
Sorriu.
«Quem não o é...»
«E adivinha...»
«Adivinho o quê?»
Não respondi. Ela antecipou-se.
«Que vai-me convidar para almoçar?»
«Vê que tem dons?»
Disse que sim, mas também tinha que ir a amiga.
«Ela está numa relação, Olga!»
«Quem lhe disse?»
«Quem havia de ser?»
«Quem havia de ser, mentiu. A Yolanda não tem ninguém. Nem nunca soube quem era o pai. Ela contou-lhe?»
Tão pouco tempo para tanta surpresa...
«Então o que lhe aconteceu? Como veio para cá?» 
Como resposta, riu-se.
«A Yolanda não é cubana. É minha irmã e somos alfacinhas de gema. Nascemos na Visconde Valmor. Sabe onde é?»
«Claro que sei.» 
«E outra coisa...» 
«Sim?» 
«Nunca conhecemos o nosso pai.»
«Quero acreditar, mas não consigo. É outra brincadeira?» 
Sorriu, irónica.
«Sim. Mas somos muito amigas. Juro.» 
Quem mais jura, mais mente. Tinha ouvido dizer. 
«Ela é cubana, não é?» 
«Pode ser.» 
«Pode ser?» 
«Se assim quiser...» 
«Não brinque, Olga.» 
«É cubana, sim. E na verdade está numa relação.»
«Então almoçamos só os dois.»
Concordou logo comigo. Mas com uma condição. Depois de fechar a loja, íamos almoçar a um restaurante onde se comia bem e barato. E podíamos a seguir ir a qualquer sítio. Dançar, por exemplo. Gostava muito de dançar.
«Só se forem músicas lentas. Boleros e slows, por exemplo.»
«Acho bem. Também gosto de dançar boleros e slows e até dá jeito.» 
«Pois dá.» 
«Mas onde vamos dançar boleros e slows depois do almoço?» 
Cocei a cabeça, indeciso.
«Boa pergunta.» 
«Logo se arranja um sítio. Desculpa, posso tratar-te por tu?»
«Claro que sim. Já é tempo de nos tratarmos por tu.» 
«Não é demasiado cedo?» 
«Nunca é cedo nestas coisas.» 
«Que coisas, Mário? Nem as penses.» 
«O quê?»
«Já sei.» 
«Já sabes, o quê?» 
«Onde vamos dançar.» 
Entretanto apareceu a Yolanda. 
«Que estão para aí a combinar nas minhas costas?» 
«Nada, nada. Não tens a tratar de coisas às três com o fornecedor de minerais?»
Olhou para a amiga muito séria, mas recompôs-se. 
«É verdade, já não me lembrava.» 
«Obrigado, Yolanda.» 
«Não tem de quê, Mário. Mas tenha cuidado para onde o leva essa cubana, Mário!» 
«Também és cubana, Olga?» perguntei, algo admirado. 
«E se for, importas-te?» 
«Ena, ena! Até já se tratam por tu!»

(2) Para quem não se lembra, se bem me lembro "O Casarão" seguiu-se à "Gabriela" - "Gabriela, Cravo e Canela", de Jorge Amado. 
(3) Linha da vida.
     Nesta histórias ela chama-se Simone. Desta vez optei pelo seu verdadeiro nome. Chamava-se Julieta.

   


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