Mário mergulha mais uma vez no centro das histórias. Não se trata de um mergulho profundo até às memórias adormecidas que guardam emoções e sentimentos já esquecidos e que não convém ativar, nem tão pouco os que continuam em estado de hibernação. Sabe exactamente onde está guardado o ficheiro da história que pretende liberar.
A improvisada sala de explicações é outra vez o ponto de partida para uma viagem ao passado, se é que as engrenagens impiedosas do tempo não corroeram em definitivo.
Consulta o relógio. Três da tarde. Não tem muita margem de manobra. Dentro de meia hora vai dar uma explicação de Matemática ao Alvinho. Não é esse o seu nome, mas batizou-o assim por qualquer motivo de que não se recorda. É mais importante recordar que o seu explicando, já a ultrapassar os vinte anos, que usa o cabelo todo penteado para trás e colado com brilhantina, imitando o mais que popular “penteadinho”, lhe deve o mês que passou e não sabe o que vai acontecer no fim do mês que se aproxima. Certamente que não fica de mãos a abanar. Nem que procure na aldeia onde ele mora. Suspeita que o explicando já estafou na borga o dinheiro do mês de explicações.
Como queimar a meia hora que falta?
Levanta-se e vai até à janela. O calor aperta. Não sabe se deve fechar a janela ou continuar a mantê-la aberta. Resolve fechá-la e logo o silêncio faz ruído em excesso. Conclui que não é bom. Mesmo nada bom. Traz à ribalta outros silêncios abafados.
Momento efémero. O silêncio vai-se e a sala enche-se de escuridão. Só a lâmpada do candeeiro de bicha concentra a luz sobre uma zona do tampo em vidro da secretária.
Já não está só. O seu amigo Zé Pardal, sentado à direita, aguarda, pacientemente, uma oportunidade para poder intervir. Mário sente a pressão do seu olhar e levanta os olhos das folhas. Tem que dar atenção ao Zé.
«Queres alguma coisa, pá?»
Contorna a pergunta.
«Que estás a estudar?»
«Para tua informação, Análise Química I.»
Por sinal, um bom petisco. Ainda por cima o regente da cadeira é uma múmia paralítica, uma espécie de morto-vivo que parece estar já mais para o lado de lá. Pressente que vai ter grandes dificuldades na oral se o professor estiver mal humorado, o que não é muito difícil de acontecer. Isto é: se for admitido à oral já que ainda não sabe o resultado da prova escrita. Na verdade nunca viu sorrir aquela múmia.
O Zé Pardal deixa de espreitar as folhas e levanta-se. A curiosidade aguçada leva-o a espiolhar os frascos de compostos químicos que o amigo comprou em tempos ao Travassos. Entre eles ainda está o cianeto de potássio de má memória.
«Queres que te dê a provar o cianeto?»
«Sempre pensei que eram lérias, mas agora vejo que tu não brincas em serviço. Já fizeste mais alguma experiência depois daquilo?»
«Que estás a estudar?»
«Para tua informação, Análise Química I.»
Por sinal, um bom petisco. Ainda por cima o regente da cadeira é uma múmia paralítica, uma espécie de morto-vivo que parece estar já mais para o lado de lá. Pressente que vai ter grandes dificuldades na oral se o professor estiver mal humorado, o que não é muito difícil de acontecer. Isto é: se for admitido à oral já que ainda não sabe o resultado da prova escrita. Na verdade nunca viu sorrir aquela múmia.
O Zé Pardal deixa de espreitar as folhas e levanta-se. A curiosidade aguçada leva-o a espiolhar os frascos de compostos químicos que o amigo comprou em tempos ao Travassos. Entre eles ainda está o cianeto de potássio de má memória.
«Queres que te dê a provar o cianeto?»
«Sempre pensei que eram lérias, mas agora vejo que tu não brincas em serviço. Já fizeste mais alguma experiência depois daquilo?»
Aquilo. Disse bem. Aquilo que pôs a sua amiguinha de candeias às avessas com ele.
«Claro que não. A propósito, a tua amiga já fez as pazes contigo?»
«Nunca mais me falou.»
«E tem toda a razão. Não gostou de ver os gatinhos sofrerem. Acho que devias pedir-lhe desculpa.»
«Achas?» perguntou, ao mesmo tempo que pegava numa moldura que estava sobre a secretária.
«É muito gira!»
«Já me disseste uma vez. Mas não mexas que infetas...»
«Foste muito estúpido em perder uma mulher destas!»
De repente tudo muda. Mário está só na mesma sala, agora profusamente iluminada pela luz do dia. O Zé Pardal, os gatinhos envenenados com o cianeto e a raiva declarada da Guidinha já não estão presentes. Mário sabe, de uma vez por todas, onde há de ir procurar ao centro das histórias. Não precisa de sair da sala, nem sequer de se levantar. O objetivo final está na sua frente. A gaveta onde guarda as cartas que recebeu da Manuela. Mas não é bem. Já as devolveu. Agora estão as suas, pois a Manuela também as devolveu.
Consulta outra vez o relógio. Quase quatro e o malandro do Alvinho sem aparecer. Vai faltar à explicação e não avisou. Tanto melhor. Conta como explicação. Não lhe perdoa. Se não pagar o mês de explicações que o explicando lhe deve vai direito que nem um fuso à aldeia onde moram os pais.
«Vamos lá» sussurra. «Coragem!»
Coragem para abrir uma gaveta que nem sequer está fechada à chave. Mas...
As suas cartas foram todas destruídas numa fogueira e as cinzas que o vento não levou pelo ar foram deitadas no quintal em meia dúzias de pazadas.
«Que fizeste da tua vida, Mário? Ainda ontem corrias a bom correr até à estação para deitares na caixa do correio da última hora mais uma carta para a Manuela!»
Ficou a olhar a gaveta vazia.
É mau sinal quando as estrelas empalidecem. Um aviso de morte iminente, tal como a superstição de estar para acontecer coisa ruim quando se deixa cair um cartão, por mais fino que seja, e este fica equilibrado na vertical, contra toda a lógica.
O combustível nuclear de uma estrela consome-se em milhões de anos e esta mergulha na noite fria e longa. É tudo uma questão de tempo. Tantas vezes se deixa cair um cartão que este fica na vertical e não é bom. Nada bom. É sinal que uma estrela está a desistir de viver. Tal como as folhas das que amarelecem e depois caem das árvores.. Tal como já não verá no céu de amanhã a sua estrela brilhar.
Mas foi com um cartão de Boas-Festas que a estrela de Mário e Manuela se acendeu. Lembra-se quando começou o sonho.Tinha os seus nomes gravados, aparentemente indeléveis. Só que essa estrela comportou-se como uma supernova. Foi tão grande o amor que sentiram um pelo outro que se consumiu de repente.
Está para ali a viver com a sua solidão, esquecido de tudo e de todos. Arrasta penosamente o seu fardo e olha para trás, triste, mas já não vê o mínimo rasto do bom que perdeu um dia. Se errou ou não, pouco interessa. Não pretende fazer o juízo final às decisões que tomou, pois já não há nada a fazer. Resta-lhe esperar que o tempo continue a corroer, os dias um a um, que lhe restam na imitação de vida onde é o artista principal a desempenhar um papel medíocre. Já não consegue improvisar. Por mais que queira atingir o amanhã que o espera, fica pelo caminho hesitando entre os simbolismos da rosa vermelha e do cardo da flor azul, tão grande é a dúvida, tão extenso é o leque de rosas e cardos. Mas basta de chorinho, mesmo sabendo que está a deixar-se levar para a única região aonde não quer chegar. Aí vivem ou deixaram de viver os esquecidos de Deus. Um limbo frio, implacável e sem retorno.
Foi sempre dono e senhor do azul constelado dos que nunca se desligaram do passado exemplar que não tiveram, sonhando com o que perderam, abraçando o nada com a sensação e a força de possuir tudo.
Não consigue esquecê-la. Ela era muito especial. Tinha um sorriso triste e um olhar perdido para além do horizonte. Quando se fitavam, olhos nos olhos, sentia-se o dono do mundo, mas um dono inseguro. Ela era todo o seu mundo e por tanto a amar tinha medo que, um dia, fosse levada pelo vento sul, o vento implacável das tempestades interiores que nunca conseguiu controlar, o mesmo vento que levou para longe o sonho azul.
Não sabe como aconteceu. Contra toda a lógica, contra o desejo forte de a ter sua para sempre, não evitou que partisse para outras madrugadas. Afinal, apostou no amor e ganhou o ódio em troca.
Mas afinal ela não morreu. Parece que vive ainda do outro lado da história.
«Claro que não. A propósito, a tua amiga já fez as pazes contigo?»
«Nunca mais me falou.»
«E tem toda a razão. Não gostou de ver os gatinhos sofrerem. Acho que devias pedir-lhe desculpa.»
«Achas?» perguntou, ao mesmo tempo que pegava numa moldura que estava sobre a secretária.
«É muito gira!»
«Já me disseste uma vez. Mas não mexas que infetas...»
«Foste muito estúpido em perder uma mulher destas!»
De repente tudo muda. Mário está só na mesma sala, agora profusamente iluminada pela luz do dia. O Zé Pardal, os gatinhos envenenados com o cianeto e a raiva declarada da Guidinha já não estão presentes. Mário sabe, de uma vez por todas, onde há de ir procurar ao centro das histórias. Não precisa de sair da sala, nem sequer de se levantar. O objetivo final está na sua frente. A gaveta onde guarda as cartas que recebeu da Manuela. Mas não é bem. Já as devolveu. Agora estão as suas, pois a Manuela também as devolveu.
Consulta outra vez o relógio. Quase quatro e o malandro do Alvinho sem aparecer. Vai faltar à explicação e não avisou. Tanto melhor. Conta como explicação. Não lhe perdoa. Se não pagar o mês de explicações que o explicando lhe deve vai direito que nem um fuso à aldeia onde moram os pais.
«Vamos lá» sussurra. «Coragem!»
Coragem para abrir uma gaveta que nem sequer está fechada à chave. Mas...
As suas cartas foram todas destruídas numa fogueira e as cinzas que o vento não levou pelo ar foram deitadas no quintal em meia dúzias de pazadas.
«Que fizeste da tua vida, Mário? Ainda ontem corrias a bom correr até à estação para deitares na caixa do correio da última hora mais uma carta para a Manuela!»
Ficou a olhar a gaveta vazia.
É mau sinal quando as estrelas empalidecem. Um aviso de morte iminente, tal como a superstição de estar para acontecer coisa ruim quando se deixa cair um cartão, por mais fino que seja, e este fica equilibrado na vertical, contra toda a lógica.
O combustível nuclear de uma estrela consome-se em milhões de anos e esta mergulha na noite fria e longa. É tudo uma questão de tempo. Tantas vezes se deixa cair um cartão que este fica na vertical e não é bom. Nada bom. É sinal que uma estrela está a desistir de viver. Tal como as folhas das que amarelecem e depois caem das árvores.. Tal como já não verá no céu de amanhã a sua estrela brilhar.
Mas foi com um cartão de Boas-Festas que a estrela de Mário e Manuela se acendeu. Lembra-se quando começou o sonho.Tinha os seus nomes gravados, aparentemente indeléveis. Só que essa estrela comportou-se como uma supernova. Foi tão grande o amor que sentiram um pelo outro que se consumiu de repente.
Está para ali a viver com a sua solidão, esquecido de tudo e de todos. Arrasta penosamente o seu fardo e olha para trás, triste, mas já não vê o mínimo rasto do bom que perdeu um dia. Se errou ou não, pouco interessa. Não pretende fazer o juízo final às decisões que tomou, pois já não há nada a fazer. Resta-lhe esperar que o tempo continue a corroer, os dias um a um, que lhe restam na imitação de vida onde é o artista principal a desempenhar um papel medíocre. Já não consegue improvisar. Por mais que queira atingir o amanhã que o espera, fica pelo caminho hesitando entre os simbolismos da rosa vermelha e do cardo da flor azul, tão grande é a dúvida, tão extenso é o leque de rosas e cardos. Mas basta de chorinho, mesmo sabendo que está a deixar-se levar para a única região aonde não quer chegar. Aí vivem ou deixaram de viver os esquecidos de Deus. Um limbo frio, implacável e sem retorno.
Foi sempre dono e senhor do azul constelado dos que nunca se desligaram do passado exemplar que não tiveram, sonhando com o que perderam, abraçando o nada com a sensação e a força de possuir tudo.
Não consigue esquecê-la. Ela era muito especial. Tinha um sorriso triste e um olhar perdido para além do horizonte. Quando se fitavam, olhos nos olhos, sentia-se o dono do mundo, mas um dono inseguro. Ela era todo o seu mundo e por tanto a amar tinha medo que, um dia, fosse levada pelo vento sul, o vento implacável das tempestades interiores que nunca conseguiu controlar, o mesmo vento que levou para longe o sonho azul.
Não sabe como aconteceu. Contra toda a lógica, contra o desejo forte de a ter sua para sempre, não evitou que partisse para outras madrugadas. Afinal, apostou no amor e ganhou o ódio em troca.
Mas afinal ela não morreu. Parece que vive ainda do outro lado da história.
Ontem amei a vida. Hoje alimento a solidão com as vitaminas de muitos sonhos idealizados e perdidos algures, alguns ainda no centro das histórias que estão em fila de espera para serem reveladas. Desesperadamente, procuro a passagem mágica que me há de levar um dia para fora solidão. É triste e dramático viver neste estado de espírito. Nada acontece porque tudo o que acontece não tem significado e assim não existe.
Ela já vive comigo, nos meus sonhos, nos pressentimentos e nas decisões, mas como nunca a vi, não a conheço. Nem sei se tem sorriso meigo, riso gaiato. Se me ama e contempla com ternura o meu corpo grosseiro do lado do seu mundo invisível. Se deseja abraçar-me e oferecer os lábios para os beijar. Se chama por mim. Se... muitas coisas mais.
Suponho que já vive cá dentro.
Numa destas manhãs acordei e ouvi chamar:
«Mário... Mário...»
Era ela, pensou. A mulher única.
Hoje tem a certeza que não, embora teime em dizer que sim. Está decidido a fazer uma incursão, premonitoriamente perigosa, ao mundo escondido dos mortos. É inevitável. Como o vai fazer, não sabe. Deverá haver uma hipótese de passar por sucessivas portas que se abrirão no momento exato. E esse momento terá que descobrir. Só assim viverá o passado mascarado de presente e este refletido no passado, num reencontro constante com a fatalidade de transformar a dualidade vida e morte num arco-íris rebatido numa só cor.
Será que existem portas que funcionam nos dois sentidos, sem ser preciso ter chave para entrar ou para sair? Será que está a viver, alternadamente, num e noutro lado, onde se confundem o real e o fictício? Será que no outro lado o seu destino foi diferente?
Os cenários onde se está desenrolar toda esta viagem fantástica serão diversos e dinâmicos e as recordações terão como principal objectivo chamar à boca de cena todos os que foram desagregados, átomo a átomo, ou melhor, aquilo que fica imutável depois da morte.
E o que é "aquilo"?
Chama-se alma, enteléquia que vagueia ou não em penitência. Pode chamar-se também espírito do amor ou espírito ao serviço de Satanás. Manto do fictício. O que quiserem chamar. Tanto faz. Mas haverá também a contracapa onde a verdade começa e acaba, uma espécie de serpente a morder a cauda. Um rodopiar constante. Uma eterna busca.
As recordações virão em força adornar a construção das histórias que ficam sempre inacabadas porque resultam de viagens interrompidas por outras que se seguem e dirigidas para o centro delas próprias, donde são sacadas. Basta um simples mergulho neste centro criado e acende-se uma luz fictícia, um nome sobressai e depois começa a história.
Mas quem é o Mário, contador de histórias aos seus pequenos amigos e não só? Apenas uma franja obscura dum outro contador de histórias, ou o próprio centro das mesmas?
Talvez não seja tão importante descobrir a verdadeira natureza ou identidade de Mário, se é que alguma vez existiu. Agora que, após muitos anos domiciliado fora da sua terra natal, ele regressou às origens, é fácil prever que mais histórias saltarão do seu recheado baú de recordações. Dos tempos da sua infância, em que foi, sucessivamente, Marinho e Marinho (quase Mário). Dos tempos em que se tornou Mário. E dos tempos em que foi Mário, Mário, só Mário. Para sempre, Mário.
Obra do acaso, ou talvez não, diz o autor que ele voltou à rua onde ainda existe a casa que o viu nascer. Isto após uma passagem curta por aquela que foi a sua casa no fim do mundo e por uma outra, essa talvez visitada por mortos.
O seu quarto de hoje tem um avançado de contorno poligonal. Daí pode ver a rua onde ele e o inseparável Slimpas se envolveram em inimagináveis jogos do berlinde e foram roubados, mais que uma vez, pelo tenebroso Orelhudo, a mesma rua onde o Sérgio abriu a cabeça a um incauto "desafiador das palavras" com uma pedrada certeira, baldados os esforços do pequeno Mário para desviar no último momento a trajetória já destinada do objecto do crime, onde se localiza o ponto de partida para o jardim do saudoso coreto e do impagável Comico que fingia trabalhar muito mais do que o fazia na realidade.
Já foi várias vezes ao avançado olhar lá para fora. Estranhamente, como um foragido, não sobe as persianas, limita-se a espreitar entre as lâminas de plástico algo empoeiradas a rua alcatroada, o cruzamento de ruas, a casa onde já não mora o Slimpas, pois já não mora em casa alguma nesta Terra agreste, bem como o Vítor, o Farinha e outros mais, finalmente o gradeamento que limitava a propriedade do doutor Bandeira, para lá do qual ele imaginava, algures, a deslocar-se o fantasma tentacular do falecido, quase em vias de o agarrar e na realidade nunca o chegando a fazer.
Mário recorda-se de muitos momentos vividos. Também sabe que há muitos outros na calha para serem recordados. Precisa de tempo. Por enquanto só vê imagens difusas, sem sequência. Tem que ser paciente. A memória há-de acabar por desenterrar outros momentos vividos. Entretanto contenta-se em recordar fragmentos. Por exemplo, vê-se a caminho da escola primária. As manhãs muito frias de inverno davam-lhe um gozo imenso.
Perto da empresa de camionagem mergulhava as mãos gélidas nas poças das ruas esburacadas e tomava contacto com as placas delgadas de gelo. Não trocava essa sensação agradável por um berlinde. Nem que fosse por um abafador. O papa ou o caracol. No caso do contra mundo já as coisas mudavam de feição. Uma peça fundamental nas consequências do jogo nunca se podia pôr de parte.
Acariciou o gelo até não poder mais. Depois, com as botas cardadas, foi esmagando as placas de gelo, de espessura mínima, contra o solo, encontrando sempre água líquida que deixava ensopar nas botas até que repassava para as peúgas de lã. Sabia que ia ter algum desconforto, mas compensava o prazer do momento. O tempo não se compadecia e as aulas esperavam por ele. Já com as mãos aquecidas pela reacção forte que o gelo causava, despedia-se do prazer daqueles breves momentos e, de sacola às costas, corria para a escola. Era tempo. O professor estava a chegar.
O clima está de pernas para o ar por culpa de uma só espécie animal. O Homo sapiens. O outono avança pelo inverno adentro e a época das chuvas teima em não mostrar a cara. O verdadeiro verão aconteceu a meados de setembro, repetiu-se em outubro e ameaça continuar, pelo menos, nos primeiros dias de novembro. A temperatura está anormalmente alta. Mário ainda não usou os blusões de cabedal, nem tão pouco os casacos azuis-escuros de dois botões e as calças cinzentas de toque clássico. Também as gangas azuis e as pretas. As cremes, quase pôs de parte. Finalmente, as camisolas de lã, mais usadas ao aproximar da noite. É certo que é um homem encalorado e suspeito por esse motivo, mas confirma-se que o clima mudou e muito. Talvez que grande parte do ónus não caia sobre ele. Seja como for, se a mudança do clima não for detida em breve, as consequências poderão ser o caos, a desintegração e a violência. E aumentarão os conflitos locais, nacionais e internacionais.
Chuva, precisa-se urgentemente de muita chuva. Está a fazer falta à agricultura e as albufeiras estão sedentas de água.
«E eu que não me lembro de mais nada» cogitou. «Chuva, muita chuva... Há qualquer coisa que tem a ver com a chuva e não me lembro!»
Aproximou-se de novo das três janelas do avançado e desta vez subiu os estores da que estava virada para a parte poente. O sol já ia baixo. Nada se passava na frente dos seus olhos além do movimento habitual de automóveis e peões.
Chuva, é precisa muita chuva... Como está a fazer falta a chuva! Vai haver descida de temperatura amanhã. Mas não vai chover. Só chove no seu coração.
O clima está de pernas para o ar por culpa de uma só espécie animal. O Homo sapiens. O outono avança pelo inverno adentro e a época das chuvas teima em não mostrar a cara. O verdadeiro verão aconteceu a meados de setembro, repetiu-se em outubro e ameaça continuar, pelo menos, nos primeiros dias de novembro. A temperatura está anormalmente alta. Mário ainda não usou os blusões de cabedal, nem tão pouco os casacos azuis-escuros de dois botões e as calças cinzentas de toque clássico. Também as gangas azuis e as pretas. As cremes, quase pôs de parte. Finalmente, as camisolas de lã, mais usadas ao aproximar da noite. É certo que é um homem encalorado e suspeito por esse motivo, mas confirma-se que o clima mudou e muito. Talvez que grande parte do ónus não caia sobre ele. Seja como for, se a mudança do clima não for detida em breve, as consequências poderão ser o caos, a desintegração e a violência. E aumentarão os conflitos locais, nacionais e internacionais.
Chuva, precisa-se urgentemente de muita chuva. Está a fazer falta à agricultura e as albufeiras estão sedentas de água.
«E eu que não me lembro de mais nada» cogitou. «Chuva, muita chuva... Há qualquer coisa que tem a ver com a chuva e não me lembro!»
Aproximou-se de novo das três janelas do avançado e desta vez subiu os estores da que estava virada para a parte poente. O sol já ia baixo. Nada se passava na frente dos seus olhos além do movimento habitual de automóveis e peões.
Chuva, é precisa muita chuva... Como está a fazer falta a chuva! Vai haver descida de temperatura amanhã. Mas não vai chover. Só chove no seu coração.

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