22 de Março. Fazias anos neste dia, Manuela. Há muito tempo que deixaste de fazer anos neste mundo em que estamos de passagem. Não há um ano que não me lembro deste dia. Nunca me esqueci de ti. Do teu sorriso triste. Da tua voz doce. Das cartas que escrevemos, de cá para lá e de lá para cá. Do fim do sonho, quando perdemos tudo o que foi nosso. Dos sinais que ignorei quando, mais tarde, te encontrei por duas vezes. Julguei que era demasiado tarde.
Seria?
Talvez. Mas neste mundo em que todos estamos de passagem...
Amor vadio
onda rebelde
cabelos vermelhos
cair do sol
areias pisadas
espuma salgada
olhos na distância
noites brancas
horizonte vazio.
Ondas revoltas
espuma branca
rumo perdido
viagem frustrada
de não te ver...
Viagem ausente
carícias de mãos
mãos geladas
de não te ter...
Quando foi?,
cabelos castanhos
amor escondido
quando foi que te perdi?
Ondas em espuma
praia deserta
amor esquecido
morangos silvestres
colina de desejos
carícias negadas.
Adormeci à beira-mar
na última onda
«Não entendo.»
«Pensa...»
E se a tarde em que a foi esperar à saída do Ultramarino não tivesse acontecido no dia seguinte?
«Um dia pode durar para sempre. Será que é mesmo verdade, Inês?»
Respondeu com outra pergunta.
«Aceitas seguir-me?»
Então a cor dos seus olhos voltou a sofrer uma transformação. Agora eram outra vez castanhos, mas ainda mais límpidos do que os olhos azuis mais límpidos que a água de um regato sem mácula.
«Não sei.»
«Está tudo em aberto.»
«Tudo?»
«Sim.»
«Aceito.»
«Aceitas o quê?»
«Seguir-te.»
«Ah! Então, vamos. Dá-me a mão.»
A realidade era um absurdo.
«Impossível, Inês.»
Seria?
Talvez. Mas neste mundo em que todos estamos de passagem...
Romeu e Julieta. Pedro e Inês. Mário e Manuela. Histórias de três amores. Shakespeare imortalizou a primeira, mas Romeu e Julieta foram criados no papel. Quanto ao amor de Pedro e Inês perdurou para além da morte, quero acreditar. Mário e Manuela existiram, mas ele não se chamava Mário.
Um dia ela disse a Mário:
"Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?"
"Talvez pressintas mal e eu estou convencida que pressentes mesmo mal. Para ti é metafísica, dizes. De acordo. E para mim?, pergunto. Demasiada subtilidade, talvez também metafísica; é por isso que eu digo: abstrais imenso e não deixas penetrar um pouco no teu espírito. Queres distinguir o real do fictício. E qual é o teu real? E qual é o teu fictício?"
E ele respondeu, alguns anos mais tarde:
"... um dia vou encontrar-te e oferecer uma rosa, rosa vermelha em botão; as brancas são para a morte e a morte, essa matei-a, dando de comer aos vermes a carne e as rosas brancas; que o amor e a rosa vermelha são de ti o que me resta."
E se Mário e Manuela…?
O |
caminheiro andou e continuou a andar até que chegou ao fim da estrada. Quase chocou com um muro alto que lhe bloqueou, de súbito, a passagem. Era muito estranho. Ia jurar que o muro não estava lá quando olhou em frente da última vez. Nunca perdeu de vista a estrada. Com ele era de todo impossível haver um falhanço na atenção.
A ser verdade, aconteceu há quanto tempo?
A pergunta era pertinente para todos os que estavam habituados a viver contando os minutos e as horas, os limites impostos para as decisões, o esgar da dor sentida no momento e o sorriso de satisfação que podia estar a acontecer no mesmo momento, o começo e o fim das coisas boas e das más. Mas para ele nada contava senão as viagens intemporais, sem limites.
Desistiu de pensar no modo como o muro surgiu na sua frente e concentrou-se em algo que considerou ser mais importante.
Devia contornar aquele obstáculo seguindo para a direita?
Ao virar-se viu o muro a perder-se de vista até à linha do horizonte. Então não havia outra hipótese senão virar-se para a esquerda, já que voltar para trás estava posto fora de questão.
Quem o visualizasse de cima deparava com um homem parado, indeciso, surpreendido, olhando em frente e depois varrendo os flancos num ângulo de cento e oitenta graus. De seguida, interrogava-se sobre aquela paragem brusca, já que a linha do horizonte se mantinha visível e o espaço aberto, não mostrava quaisquer obstáculos ou perigos à vista.
O homem não deixava transparecer qualquer sinal de pânico. Apenas constatava que havia um obstáculo decisivo na frente que o impedia de continuar a caminhada.
Estranhamente não olhou para trás e não sentiu sequer que estava a ser observado do alto. Também não previu que a noite ia cair em breve sobre ele com todas as consequências inerentes. Foi má opção o primeiro ato e discutível o segundo e entendia-se porquê, dado que era um caminheiro das estradas que não tinham fim.
Deve haver um ponto de fraqueza neste muro...
Julgou ter pensado bem.
«Que está ele a fazer?»
Tinha estendido as mãos em frente e parecia acariciar qualquer coisa que não existia. Aquele movimento de mãos não era normal. Muito menos o seguinte, já que recolheu as mãos e esfregou-as, uma na outra.
Agora olhava para as palmas das mãos, parecendo observar as vias principais que subiam e desciam, sem se tocarem.
Estaria a ver a linha do futuro?
Futuro não teria, se continuasse sem esboçar a mínima reação. No horizonte longínquo adivinhava-se já a aproximação do crepúsculo, nada aconselhada para os incautos como ele que desistiam de caminhar. Mas não tinha desistido. O surgimento inesperado do muro é que o fez parar. Admitiu ainda uma hipótese pouco provável. As radiações do sol da tarde poderiam ter desencadeado uma alucinação poderosa a ponto de ficar bloqueado.
O facto de ter sentido nas palmas das mãos a aspereza do muro anulou a hipótese de alucinação.
«Não percebo o que está a fazer...»
Ironia para um caminheiro sem tempo que se debatia com um problema agora por causa de um muro posto na sua frente que impedia a progressão.
Tem que haver uma passagem! Qualquer descontinuidade nesta parede rugosa. É mesmo real. As minhas mãos ficaram esfoladas.
Tem que haver uma passagem! Qualquer descontinuidade nesta parede rugosa. É mesmo real. As minhas mãos ficaram esfoladas.
Quis descer ao encontro do homem e aconselhá-lo a continuar a viagem para onde quer que fosse, mas não passava de um voyeur, mas na boa aceção da palavra.
«Que temos lá em baixo, irmão?»
Voltou-se, sobressaltado. Sentiu-se como uma criança se sente quando é apanhada a fazer uma diabrura.
«Inês, estou a ver um homem ali em baixo que interrompeu a sua marcha, sabe-se lá porquê...»
«Ah! Aquele homem...»
«Sim?»
«Nada.»
Talvez já contasse com a sua chegada. O irmão tinha uma missão diferente da sua. Em boa verdade ele era apenas um observador e tinha deveres como observador.
«A tua obrigação é acionar o sinal de alarme quando existe motivo para tal. E aqui está o motivo. Um homem só. Um homem que julga ter chegado ao fim da sua caminhada. Não o fizeste, porquê?»
Parecia que a chegada desse homem era muito importante para si.
«Desculpa. Fiquei intrigado quando o vi parar bruscamente. Mas quem é este homem para te despertar tanto interesse?»
«É... é apenas um homem. Um simples homem de fato cinzento.»
«Fato cinzento? O homem tem vestidos uns jeans azuis e uma t-shirt branca.»
Inês sorriu. Ele não percebia nada de metáforas.
Inês sorriu. Ele não percebia nada de metáforas.
«É uma forma de dizer. Deixa lá. Eu executo e tu vigias. E a tua missão para este caso já acabou. Aliás, pouco ou nada fizeste. Agora aquele homem é todo meu. Mas não me avisaste da sua chegada, porquê?»
«O homem parou e estava a comportar-se de uma forma estranha. Não avançava. Aliás, ainda continua parado e não reage.»
«Devias ter cumprido a tua missão!» voltou a sublinhar.
Inês tinha uns olhos azuis mais límpidos que a água de um regato sem mácula.
Insistiu, indiferente ao semblante carregado da companheira.
Insistiu, indiferente ao semblante carregado da companheira.
«Subitamente parou e parece estar num impasse. Não volta para trás, nem segue em frente. É fatal para ele se continuar ali. Vai anoitecer em breve e os predadores estão à espreita. Temos que fazer qualquer coisa. Vão atacar, mais tarde ou mais cedo. Repara que deixou de estar imóvel. Desloca-se transversalmente, de mãos à frente, tal como faz um cego. Parece que procura uma passagem e isso é um absurdo porque está em campo aberto.»
«Não é essa a sua perspetiva.»
«Que queres dizer?»
«O que disse.»
O caminheiro começou a acreditar que ia encontrar a tão desejada passagem. Ou melhor, fez força para acontecer. A parede era tão alta que lhe escurecia a visão. Não seria por aí que ia ultrapassar o obstáculo porque não voava.
«O homem precisa de ajuda, Inês. Não pode ficar ali por muito mais tempo. Já se ouve o uivar dos lobos que se aproximam. Porquê a paragem? Caminhava com o passo acelerado pelas areias, sem vacilar, e de súbito estacou, como se tivesse encontrado um obstáculo. Será que viu qualquer coisa que nós não conseguimos ver?»
«Eu sei muito bem o que ele viu. O céu está cada vez mais vermelho no horizonte, o que significa que a noite vai cair em breve. De facto não há tempo a perder. Continua vigilante na tua missão.»
«Vais ter com ele?»
«Sim.»
Inês sorriu e os seus olhos azuis, mais límpidos do que um regato sem mácula, deixaram transparecer bondade.
O caminheiro, sem rumo e sem tempo, sentiu-se invadido por uma estranha tranquilidade.
Quero pensar só em ti para te ter sempre comigo. Procuro-te no horizonte limitado e nunca te encontro. Não sei se saíste de mim ou se fui eu que te absorvi e daí nunca te ver. Assim, não sei se és quem procuro, ou se quero procurar-te. O idealismo é mesmo assim. Um rasto de azul que fica do sonho que foi. Um sorriso de criança que não mais se pode imitar. Um beijo apaixonado que não é eterno...
«Posso ajudar-te?»
Primeiro, foi um pensamento. A seguir, uma voz. E havia um relógio a funcionar. Antes. Depois. Mas era um absurdo!
Voltou a concentrar-se na parede rugosa, teimando consigo próprio que ainda podia descobrir uma passagem oculta.
«Não podes ficar aqui parado por mais tempo!»
Viu a parede rasgar-se de alto a baixo e abrir-se para os lados. Deu alguns passos e voltou a parar.
«Enfim!»
Com a descoberta que fez, não chegou a ver uns olhos azuis que brilharam na transição para a noite, nem tomou conhecimento da chegada do tempo ainda antes do fim do impasse. E com o tempo veio a confirmação da existência do espaço tridimensional.
Com a descoberta que fez, não chegou a ver uns olhos azuis que brilharam na transição para a noite, nem tomou conhecimento da chegada do tempo ainda antes do fim do impasse. E com o tempo veio a confirmação da existência do espaço tridimensional.
«Posso ajudar-te?» repetiu Inês.
Ajudar?
Não. Não estava perdido. Caminheiro como era, não podia fugir ao impulso que o levava sempre em frente, até ao fim do fim, ausente de imagens, de sons, dele próprio que existia noutra textura, pela estrada sem margens que sempre o acolheu. Até que aconteceu o insólito. Aquele impasse inoportuno.
Aceitou o diálogo, contrariado.
Não. Não estava perdido. Caminheiro como era, não podia fugir ao impulso que o levava sempre em frente, até ao fim do fim, ausente de imagens, de sons, dele próprio que existia noutra textura, pela estrada sem margens que sempre o acolheu. Até que aconteceu o insólito. Aquele impasse inoportuno.
Aceitou o diálogo, contrariado.
«Foste tu que construíste o muro?» perguntou à voz.
«Que muro?»
Virou-se para trás.
«Mas... já não o vejo!»
Sentiu-se incomodado. Gostava mais da solidão. Não o obrigava, por exemplo, a encontrar uma explicação para justificar aquela presença que não via.
«Posso criar todas as situações que quiseres...»
«Não quero situações misteriosas. Basta-me a minha estrada.»
«A tua estrada. Olha, não tem lógica esta caminhada. Há sempre uma motivação na vida fora das estradas desertas.»
«A tua estrada. Olha, não tem lógica esta caminhada. Há sempre uma motivação na vida fora das estradas desertas.»
Sorriu, sarcástico.
«Vida?»
«Sim.»
«Que é isso?»
«Sim.»
«Que é isso?»
«A tua nova situação. O muro que disseste ter visto há pouco chamou-te outra vez para a vida.»
«Para mim o tempo já não existe.»
«Enganas-te, meu amigo. Começou a contar quando encontraste aquilo a que chamaste muro. E pararia se não viesse ter contigo. A alcateia estava pronta a atacar-te. Não ouves o seu uivar, ao longe? Estão famintos.»
«Estranho! Parece que tenho cá dentro memórias de lobos. Perdem-se...»
«... na distância.»
«... na distância.»
Devia estar a delirar ou então conversava com um fantasma.
«Não sou um fantasma. Se quiseres, podes ver-me. De certa maneira podes ver-me. Mas deixa que te ajude porque a chegada da noite é fatal.»
«Mas quero continuar a viagem. Não vais ser tu, ou isso de tu, quem o vai impedir.»
«Para onde ias?»
«Não sei. Nem sequer estou interessado. Abriu-se uma estrada nas areias vermelhas que me cercavam e segui em frente. Só isso.»
«Areias vermelhas. Não seria a vida que levavas um deserto vermelho onde não tinhas hipótese de sobreviver?»
«Mas quem és tu para falares com tantas certezas? Uma das muitas miragens que são obra do deserto?»
«Não sou nada disso.»
O caminheiro olhou em redor, sem êxito.
«Intrigas-me. Devo estar a sonhar. A minha cabeça estala.»
«Admite que te enganaste. A tua estrada acaba aqui. O muro que viste nunca existiu.»
«Admite que te enganaste. A tua estrada acaba aqui. O muro que viste nunca existiu.»
«Estou confuso. Falo com alguém que não existe. Isto é um absurdo. Quero voltar à minha estrada!»
Viu-se envolvido por um turbilhão de areias que se adensaram a ponto de escurecer o seu campo de visão. O medo mostrou-se em todo o poder para subverter a mente, levando-o a perder o controlo da situação. Imagens terríveis sucederam-se em sequências rápidas e quis gritar mas não conseguiu. Logo de seguida sentiu uma presença muito próxima que lhe sussurrou que não tivesse medo, que ela, presença, estava consigo para o conduzir para lá dos pesadelos movediços que quase o tragaram.
Deixou-se levar, leve como a brisa, para longe da tempestade que se tinha levantado, para outro local onde o tempo já existia e recomeçava o seu trabalho de destruição, engolindo, segundo após segundo, todos os pensamentos e os subsequentes atos que materializavam a existência.
Desejou parar.
Parar?
Talvez descer.
«Não. A tempestade ainda está a desenvolver-se mesmo debaixo de nós. É cedo para descermos.»
«Quem és tu?»
A presença invisível devia ter razão. Se era verdade que voavam, a visibilidade em baixo não tinha qualquer quantificação.
«Fecha os olhos.»
Um caminheiro como ele não obedecia a ninguém, nem tinha outro rumo senão dirigir-se para o infinito sempre pela estrada sem pontos de referência. Andar, andar até sentir o peso do cansaço. Ela dizia-lhe para fechar os olhos e não fazia sentido. Com eles abertos, ou não, o efeito era o mesmo.
Porquê fechar os olhos?
«Porque vamos descer dentro em breve e existem muitos grãos de areia no ar. Ainda há vestígios da tempestade. Só mais uns instantes. Sê paciente.»
Instantes. O que eram instantes?
Obedeceu. Pouco depois sentiu que começaram a descer, com suavidade.
Estava em terra firme de novo. Via outra vez o azul do céu sem ser preciso olhar para o alto.
Estava em terra firme de novo. Via outra vez o azul do céu sem ser preciso olhar para o alto.
E a noite dos lobos?
O horizonte já não estava vermelho, lá ao fundo. Agora que passara de súbito da noite para o dia, também podia admitir a situação de descontinuidade que lhe pôs o muro na frente a barrar o caminho. Só um poder sobrenatural explicava todas as transformações a que tinha assistido.
«Chegámos.»
Era tudo muito estranho.
Era tudo muito estranho.
«O muro nunca existiu, senão na tua mente. Quanto à noite dos lobos, era inevitável acontecer se não estivéssemos aqui. Quando paraste, ficaste submetido à lei da noite e do dia. Digamos que se abriu um portal. Estou aqui para te ajudar e criar as situações que quiseres.»
«Mas eu só quero voltar à estrada!»
«A estrada já não existe. Como vês, estás rodeado de areia. Mas não é limitação. Mais para o fundo podes encontrar outra paisagem.»
«Quem és tu?»
Finalmente a resposta.
«Chamo-me Inês. Olha para trás se queres ver-me. De qualquer forma não adianta porque não vais conhecer-me.»
«E eu sou eu. Só sei que sou eu. Não adianta...?»
Virou-se, ainda incrédulo. Uns olhos azuis, límpidos, turvaram-lhe a visão.
«Fiquei cego.»
«Engano o teu. Foi só por um momento.»
Uma centelha de lembrança brilhou na sua mente. Um momento. Tinha na ideia que o tempo novo nada trazia de novo. Como sempre ia engolir tudo. Fatalmente. Sem compaixão.
«Agora já te vejo bem. És muito bonita!»
Inês perturbou-se.
«Ainda queres voltar à tua estrada deserta?»
Perdeu-se na pureza dos seus olhos.
«E se quiser?»
«Olha, não gozarás os sonhos que te esperam. Acredita que só tens a perder se desejares voltar para trás ou seguir em frente.»
«Mais uma vez?»
Perder. Ganhar. Continuava confuso.
«Sim. Já aconteceu noutro tempo e não deixes que volte a acontecer.»
«Falaste-me há pouco de sonhos. Que sonhos são esses?»
«Não te apresses. Ainda espero pela tua decisão.»
Sonhos. Estava para lá do muro que o fez parar e já não havia estrada. Só areia. Uma infinidade de grãos que se amontoavam aleatoriamente, por força do vento, em dunas que escondiam dunas. Só via amarelo e azul. Talvez o desespero e a pureza que se abraçavam sem sentido.
Onde estavam os tais sonhos?
«Não ouves, Mário?»
Mário. Um nome que nada lhe dizia.
«Não sei quem sou.»
«Não sei quem sou.»
«Em breve vais lembrar-te. Não ouves, Mário?» repetiu.
«O que queres que oiça?»
«Ouve, Mário!»
Apurou o ouvido. Pareceu-lhe ouvir o ruído do mar.
Mar. Lembrava-se. Era belo. As suas águas tinham cores. Verdes, cinzentas, azuis. Ao mesmo tempo sentia temor. O mar não era uma estrada como aquela onde andava há muito. Era perigoso. Traiçoeiro. E hipnotizava. Queria-o bem distante.
«Recordas-te do mar, não negues.»
«Sim.»
«Então?»
«É uma alucinação auditiva o que estou a sentir.»
«Então?»
«É uma alucinação auditiva o que estou a sentir.»
«Ah... uma alucinação. Quando te vi parado em frente àquilo que julgavas ser um muro, sim, nesse momento estavas alucinado. Não conseguias distinguir o que era certo do que era errado. Ouve bem!»
«É o som do mar. Tens razão.»
«Vai ver o mar. E as gaivotas a picarem para a rebentação. Não fiques especado a olhar para mim.»
Fiquei perturbada, porquê?
Correu pelo carrossel de dunas, deixando-se rebolar nas descidas. Sem saber porquê, sentiu-se bem pela primeira vez.
Inês seguiu-o, pensativa.
Avistou a praia ao longe e não conseguiu evitar o impulso de correr até à areia molhada. Uma onda espraiava-se, indolente, e voltava no refluxo, deixando a espuma a desvanecer-se, aos poucos, até ser nada.
Arregaçou as calças e sentou-se à beira-mar, esperando outras ondas que tinham encontro marcado mas nunca se fixavam. Dobrou os joelhos e assentou neles os cotovelos e as palmas das mãos nas faces, deixando-se ficar virado para o mar, encantado com o que via e sentia. Assim esteve até que a tristeza humedeceu-lhe os olhos. Queria entender a situação nova que o afrontava. Depois, havia a Inês. Uma mulher bela. Dona do poder. Podia criar as situações que ele desejasse.
«O mar não cansa a vista, pois não, Mário?»
Olhou-a fixamente.
«Gostava de saber responder a essa pergunta. Infelizmente não conservo a mínima recordação do que senti quando vi pela última vez o mar. E porquê?»
«Sim?»
«Mete-me medo.»
«Tenta concentrar-te. Agora as gaivotas deixaram de voar em círculo.»
«Mas não estou a vê-las!»
Levantou-se.
«Só vejo o mar.» Afirmou, virando-se para Inês. «E agora que vi o mar, o que será que vai acontecer?»
Levantou-se.
«Só vejo o mar.» Afirmou, virando-se para Inês. «E agora que vi o mar, o que será que vai acontecer?»
A túnica vermelha que lhe cobria o corpo até aos pés nus deixou-o a adivinhar as doces colinas escondidas. O rosto. Oh... a beleza do rosto.
Aproximou-se mais até ao limite em que podia aperceber-se da sua respiração. Ficou intrigado.
«Que procuras?» perguntou, outra vez perturbada.
«As gaivotas, talvez. Nada, nada. Não faças caso.»
Como esconder os pensamentos?
«Não procures onde não está. Este não é o mar das gaivotas...»
«Não entendo.»
«Está ligado a outro tempo, quando os dias se tornaram mais longos. Há pouco perguntaste o que ia acontecer depois de teres visto o mar. Aconteceu. Tiveste sensações novas ou repetidas de há muito tempo. Agora vou fazer-te um desafio. Quero ver até que ponto resistes ao despertar da tua memória.»
«É assim tão importante para ti?»
«Talvez.»
«Esperavas por mim?»
«Esperavas por mim?»
Não respondeu à pergunta.
«Escuta a voz que vem do mar...»
Aquela mulher intrigava-o. Ouvir a voz que vinha do mar era disparate.
E que voz?
«A tua.»
«Vou ouvir a minha voz que vem do mar e, ao mesmo tempo, estou aqui? Só posso pensar que enlouqueci de vez, que tu não existes, que... sei lá o quê!»
«Segue-me, Mário. Vamos até à beira-mar…»
À BEIRA-MAR
Amor vadio
onda rebelde
cabelos vermelhos
cair do sol
areias pisadas
espuma salgada
olhos na distância
noites brancas
horizonte vazio.
Ondas revoltas
espuma branca
rumo perdido
viagem frustrada
de não te ver...
Viagem ausente
carícias de mãos
mãos geladas
de não te ter...
Quando foi?,
cabelos castanhos
amor escondido
quando foi que te perdi?
Ondas em espuma
praia deserta
amor esquecido
morangos silvestres
colina de desejos
carícias negadas.
Adormeci à beira-mar
na última onda
perto de ti e tu tão longe!
«O que sentiste?»
Baixou-se e apanhou um punhado de areia.
«Não sei explicar. Talvez tristeza. Parece que já conhecia esse poema. Os versos saíam cá de dentro como se fossem meus.»
«O poema é teu...»
Abriu a mão e deixou que a areia se escapasse entre os dedos.
«É verdade?»
Caminharam ao longo da praia, lado a lado. Só então deu conta que ela tinha cabelos castanhos, compridos.
«Dedicaste poemas a muitas mulheres. Este foi talvez para uma mulher muito especial. Mas houve outra que só depois de morta mereceu os teus poemas.»
«Não me lembro.»
Olhou-a de frente e não quis acreditar no que viu. Ela já não tinha olhos azuis.
«Inês, diz-me que estou a ter alucinações!»
«Agora não. Estavas a ter alucinações e fui eu quem as repara-te para uma coisa muito importante. Digamos que vais ter uma oportunidade única que não aconteceu a muitos. Agarrava-a bem.»
«Só quero fazer-te duas perguntas.»
«Faz.»
«Quem és tu e o que pretendes revelar-me?»
«Não posso responder-te ainda. Enquanto foste caminheiro o tempo não contou e pensaste que tinhas atingido o teu fim. De certa maneira. Mas foi um fim que pagaste caro. Lamento dizer-te, Mário, que o teu saco de missões está vazio. Em boa verdade o teu tempo parou.»
Sobressaltou-se.
«Que queres dizer?»
«Estás morto, Mário.»
Reagiu com um riso algo nervoso, mas logo se recompôs e retorquiu, em tom sarcástico:
«Espantoso! Estou morto e ainda há pouco falava com uma bela Inês de olhos azuis que mudaram para outra cor como quem muda de camisa. Morri e falo contigo. Será que és um anjo dos mortos?»
«Talvez sejas um anjo.»
«Sabes?, os anjos são masculinos. Pelo menos são retratados como masculinos.»
«Não vamos discutir o sexo dos anjos. Apenas um esclarecimento. Na Terra criou-se a ideia que os anjos só apareciam aos vivos em momentos especiais de aflição. Outras vezes como arautos de uma boa nova. Ainda outras para conduzirem os mortos para a sua nova morada. Todas as crianças têm o seu anjo-da-guarda que as afasta dos perigos constantes para onde são arrastadas pela sua imprudência natural. Alguns até se materializam à imagem dos humanos e chegam a contactar com eles.»
Mário interrompeu-a.
«Que sorte a minha que tive ao encontrar um anjo feminino de uma beleza indescritível!»
«Admite a realidade. Morreste. É apenas isso. Mas estou contigo para te ajudar. Conheço a tua vida desde que nasceste. As alegrias e tristezas. O êxito quase permanente apenas manchado por aquilo que julgas ter sido um grande erro e daí passares amargurado durante muitos anos porque não conseguiste ultrapassar o teu complexo de culpa. Desejaste voltar atrás e foi impossível.»
Baixou-se e apanhou um punhado de areia.
«Não sei explicar. Talvez tristeza. Parece que já conhecia esse poema. Os versos saíam cá de dentro como se fossem meus.»
«O poema é teu...»
Abriu a mão e deixou que a areia se escapasse entre os dedos.
«É verdade?»
Caminharam ao longo da praia, lado a lado. Só então deu conta que ela tinha cabelos castanhos, compridos.
«Dedicaste poemas a muitas mulheres. Este foi talvez para uma mulher muito especial. Mas houve outra que só depois de morta mereceu os teus poemas.»
«Não me lembro.»
Olhou-a de frente e não quis acreditar no que viu. Ela já não tinha olhos azuis.
«Inês, diz-me que estou a ter alucinações!»
«Agora não. Estavas a ter alucinações e fui eu quem as repara-te para uma coisa muito importante. Digamos que vais ter uma oportunidade única que não aconteceu a muitos. Agarrava-a bem.»
«Só quero fazer-te duas perguntas.»
«Faz.»
«Quem és tu e o que pretendes revelar-me?»
«Não posso responder-te ainda. Enquanto foste caminheiro o tempo não contou e pensaste que tinhas atingido o teu fim. De certa maneira. Mas foi um fim que pagaste caro. Lamento dizer-te, Mário, que o teu saco de missões está vazio. Em boa verdade o teu tempo parou.»
Sobressaltou-se.
«Que queres dizer?»
«Estás morto, Mário.»
Reagiu com um riso algo nervoso, mas logo se recompôs e retorquiu, em tom sarcástico:
«Espantoso! Estou morto e ainda há pouco falava com uma bela Inês de olhos azuis que mudaram para outra cor como quem muda de camisa. Morri e falo contigo. Será que és um anjo dos mortos?»
«Talvez sejas um anjo.»
«Sabes?, os anjos são masculinos. Pelo menos são retratados como masculinos.»
«Não vamos discutir o sexo dos anjos. Apenas um esclarecimento. Na Terra criou-se a ideia que os anjos só apareciam aos vivos em momentos especiais de aflição. Outras vezes como arautos de uma boa nova. Ainda outras para conduzirem os mortos para a sua nova morada. Todas as crianças têm o seu anjo-da-guarda que as afasta dos perigos constantes para onde são arrastadas pela sua imprudência natural. Alguns até se materializam à imagem dos humanos e chegam a contactar com eles.»
Mário interrompeu-a.
«Que sorte a minha que tive ao encontrar um anjo feminino de uma beleza indescritível!»
«Admite a realidade. Morreste. É apenas isso. Mas estou contigo para te ajudar. Conheço a tua vida desde que nasceste. As alegrias e tristezas. O êxito quase permanente apenas manchado por aquilo que julgas ter sido um grande erro e daí passares amargurado durante muitos anos porque não conseguiste ultrapassar o teu complexo de culpa. Desejaste voltar atrás e foi impossível.»
«Como sabes tudo isso?»
«E muito mais. Em certa altura da tua vida chegaste a uma encruzilhada e foste empurrado para o caminho errado. Infelizmente só deste conta muitos anos depois. O que estava feito, estava feito. Voltar atrás era impossível. Desde então seguiste uma vida medíocre, alienada. Não conseguiste chegar longe na tua vida profissional, nem conheceste o último degrau ansiado por todas as famílias. Ter um filho. Deixaste-te arrastar pela vida e a decadência chegou cedo. Cada vez gostavas menos de ti e viveste os teus últimos tempos numa imensa solidão. Sofreste até à morte. Morreste só. Mas se tivesses voltado atrás, se pudesses modificar o teu destino, teria sido melhor?»
Admitindo que morreu, ao menos, na caminhada sem fim e sem rumo, esqueceu-se de quem foi e do erro que cometeu. Entretanto o corpo grosseiro separou-se do espírito. Mas não seria suposto o espírito lembrar-se?
«Ainda é cedo. Tu próprio há pouco julgavas que estavas vivo.»
«Talvez tenhas razão.»
«Conduzi-te às areias do deserto que simboliza o deserto vermelho que foi a tua vida. Depois viste o mar e emocionaste-te. Seguiu-se o poema. Estavam então criados os ingredientes para resgatarem a memória aprisionada. Mas nada aconteceu. Então transfigurei-me e deste conta. Apenas deste conta. Julgava que ias recordar-te...»
Recordar o quê? Onde é que ela queria chegar?
«Deixa...»
Mário esboçou a intenção de pôr as mãos sobre os ombros de Inês. Recuou no último instante.
«Que se passa?»
Os olhos de Inês, agora castanhos, ficaram tristes, mais tristes que uma noite sem luar e ele ficou a pensar.
Estes olhos?, onde os vi?
«Tiveste uma vida vazia, sem sentido. A felicidade passou sempre ao teu lado. Mas se tudo tivesse sido diferente da vida que te estaria reservada? É um desafio que ponho a mim própria. Sabes que tenho um dom que me permite criar situações?»
Admitindo que morreu, ao menos, na caminhada sem fim e sem rumo, esqueceu-se de quem foi e do erro que cometeu. Entretanto o corpo grosseiro separou-se do espírito. Mas não seria suposto o espírito lembrar-se?
«Ainda é cedo. Tu próprio há pouco julgavas que estavas vivo.»
«Talvez tenhas razão.»
«Conduzi-te às areias do deserto que simboliza o deserto vermelho que foi a tua vida. Depois viste o mar e emocionaste-te. Seguiu-se o poema. Estavam então criados os ingredientes para resgatarem a memória aprisionada. Mas nada aconteceu. Então transfigurei-me e deste conta. Apenas deste conta. Julgava que ias recordar-te...»
Recordar o quê? Onde é que ela queria chegar?
«Deixa...»
Mário esboçou a intenção de pôr as mãos sobre os ombros de Inês. Recuou no último instante.
«Que se passa?»
Os olhos de Inês, agora castanhos, ficaram tristes, mais tristes que uma noite sem luar e ele ficou a pensar.
Estes olhos?, onde os vi?
«Tiveste uma vida vazia, sem sentido. A felicidade passou sempre ao teu lado. Mas se tudo tivesse sido diferente da vida que te estaria reservada? É um desafio que ponho a mim própria. Sabes que tenho um dom que me permite criar situações?»
«Pelo menos consegues ler os meus pensamentos.»
«Posso alterar o teu destino.»
«Como assim? Sei muito bem que o destino não pode ser modificado. Voltar atrás é impossível. Lembra-te do paradoxo do neto ir ao passado matar o avô.»
«Sim. De certa forma concordo contigo. Mas mesmo assim vais ter uma oportunidade. Se quiseres.»
«Então vou voltar à encruzilhada e depois seguir o caminho que devia ter seguido? Agora que te conheci, já não sei se é bom. Não me lembro por onde fui ou por onde devia ter ido. Por outro lado, a estrada nunca me seduziu. Não, muito obrigado.»
Inês pareceu ignorar as últimas palavras de Mário e prosseguiu:
«Não entendeste. Trata-se de dar-te uma segunda vida. Um outro rumo antes de acontecero momento fatal que ditou o desvio que fez de ti um desencantado.»
«Mas...»
Mário não pareceu convencido.
«Escuta mais isto que te vou dizer. Esta segunda oportunidade vai-se desenrolar de tal forma que não será necessário esperares pelo momento das grandes decisões. Portanto, não vai haver uma encruzilhada para te baralhar. Sim ou não?»
«O pobre desconfia sempre da esmola gorda...»
«Muito bem. Tenho ainda uma outra hipótese para te apresentar, Mário. Como supostamente estás morto, claro que posso encaminhar-te para o túnel que tem a luz mais intensa e terás oportunidade de rever os entes de quem gostaste mais na tua vida terrena. Só que não sei o que se passa verdadeiramente do outro lado da porta. Vês os teus entes queridos, é certo, mas depois vais ser submetido a um julgamento decisivo para te levar para os jardins de Deus ou então para o fogo eterno do Inferno.»
«Ah!»
«Que preferes? Adiar e viver outra vida, ou enfrentar os túneis de luz? Escolhe.»
«Túneis de luz? Mas não há só um?»
«Há três. O mais favorável é o que tem a luz mais intensa.»
«Já lá estiveste?»
Hesitou antes de responder.
«Sou um anjo. Vim dos jardins de Deus para te ajudar. Para já está posta de parte a hipótese de continuares a viagem pelo deserto vermelho.»
«Que farias no meu lugar?»
«Não sei. É contigo.»
Mário achou que ela tinha uma ideia formada.
«Por favor, Inês!»
«Muito bem.»
Olhou intensamente para ele como se estivesse a medir o risco da proposta que ia fazer.
«Vá lá!»
«Muito bem» repetiu. «Eu experimentava voltar atrás e recomeçar no ponto fatal.»
«E qual foi o ponto fatal?»
«Vais lembrar-te quando chegar o momento. Queres ou não queres viver uma outra vida com ela?»
«Ela? Nem sequer sei quem era ela. Se é que existiu uma ela.»
«Olha, aposta em mim.»
«No fundo é um adiamento.»
«Pois é.»
«Espero não me arrepender. Leva-me então para essa segunda vida.»
«Acredita, Mário, que poucos conseguiram ter esta oportunidade. Agarra-a bem.»
«Desconheço o motivo porque estavas à minha espera. Dizes que és um anjo. Acredito. E se já viveste na Terra, será que houve alguma ligação entre nós?»
«Tens uma imaginação fértil.» Disfarçou.
Como é que ele adivinhou?
«Se bem entendi vou reparar um erro que cometi. E que erro foi esse?»
«Logo saberás.»
«Os teus olhos são azuis ou castanhos?»
Inês encolheu os ombros.
«Que interessa?»
«Sabes uma coisa? Não há amor como o primeiro. Gostava que os teus olhos fossem azuis.»
«Não há amor como o primeiro. Tens razão. É isso mesmo que vais descobrir.»
«A cor dos teus olhos?»
Sorriu. Um sorriso de anjo.
«Claro que não, parvo. Vais descobrir precisamente se é verdade que não há amor como o primeiro. E agora a minha missão acaba aqui.»
«Oxalá não...»
«Dizes isso como se fosse um mau augúrio. Lembra-te de uma coisa: aconteça o que acontecer, Mário, vais voltar a encontrar-me.»
«Como podes ter tanta certeza?»
«Sou um anjo, não sou?»
«Quero acreditar que sim.»
«Adeus, Mário...»
De repente fez-se noite.
«Onde estás, Inês? Nem sequer me despedi de ti. Só disseste adeus...»
Lá do alto, Inês disse para o irmão:
«Agora ele está entregue a si próprio.»
«Quem é este homem, irmã?»
Apareceu um brilho novo nos seus olhos.
«Apenas um simples mortal.»
«Não estarás a violar a lei?»
Os anjos que violavam a lei caíam na Terra e perdiam a imortalidade. Por amor ou por ódio. De certa forma tinham uma segunda oportunidade para viverem como mortais. Razões? Talvez vidas mal conseguidas.
O muro rasgou-se de novo de alto a baixo. Ao fundo viu os três túneis, um deles muito brilhante.
Ficou indeciso. Para lá de qualquer um deles esperava-o o desconhecido.
Avançava?
Então ouviu uma voz dizer:
«Vai pelo túnel que tem a luz mais intensa.»
Decidiu avançar. Já nada tinha a perder. A última oportunidade que lhe foi dada para ser feliz só durou um dia e não tinha outra opção senão seguir o conselho da voz desconhecida.
Lembrou-se da sua última mensagem, já quase agonizante. Certamente que estava à sua espera, algures para lá daquele túnel.
Mas... e o seu corpo grosseiro?
Já não existia. A morte tinha vindo outra vez, de mansinho, interromper o curso do seu rio e assim impedir que o último meandro se desviasse da foz. Nem sequer se conhecia como caminheiro solitário porque não existia a tal estrada cujo destino era o suplício da eternidade.
De facto, não lhe restava outra solução. Seguir o conselho daquela voz desconhecida. Só tinha dúvidas. A luta constante entre o seu real e o seu fictício.
Qual deles era ele agora?
«Aqui está fresco. Por isso vou entrar. E o que mais desejo é que estejas à minha espera e oiça o eco da tua voz dizer incessantemente que está frio, que está frio, que está frio.»
«Não!»
Voltou-se, admirado, e viu outra vez aqueles olhos azuis mais límpidos que a água de um regato sem mácula.
Esperou uns segundos por qualquer transformação, mas nada aconteceu.
«Inês! Voltaste...»
«Não entres em nenhum túnel porque a verdade que procuras não está aí. Se entrares, nunca mais voltas!»
«Mas uma vez eu e ela combinámos encontrar-nos...»
«Esquece.»
Como podia agora acreditar nela depois do que aconteceu?
«Nada me prende do lado de cá. Deram-me uma oportunidade vã. Cruel. A nossa felicidade só durou um dia. Foi mau o que aconteceu. Tanta esperança, para quê (1) ?»
«Eu já sabia.»
Irritou-se.
«Sabias e deixaste-me embarcar na ilusão daquela segunda oportunidade?»
«Ilusão?»
«Estás a brincar comigo. Por certo estás a brincar. Ela morreu de um aneurisma. Nem sequer pude beijar o seu rosto pálido que a morte surpreendeu brutalmente...»
«Volta para trás antes que o muro feche. Depois é demasiado tarde.»
Abanou a cabeça.
«Vou ter com ela!»
«Acredita em mim.»
«Tenho que ir!»
«Acredita em mim!» repetiu.
«Não quero ser enganado outra vez.»
«Para lá do muro não tens nada. Olha bem. Não há um único túnel na tua frente. É tudo alucinação. Assim como o segundo encontro com ela não passou de um sonho.»
Só quer baralhar-me.
«Não pode ser. Encontrámo-nos no autocarro, falei com ela cá fora, à chegada. Almoçámos juntos na Alsaciana. Beijei-a. Trocámos promessas de amor. Ela seria minha para sempre no dia seguinte. Toda minha. E eu dela.»
«Depois de a deixares, acaso te lembras de ter adormecido nessa noite?»
Fez um esforço para recordar. Só se lembrava do fim do almoço e da pequena discussão sobre a conta. Ela sentia-se cansada e mesmo assim queria ir ao castelo. Era melhor regressar a casa. Acompanhava-a até ao Terreiro do Paço. Tinham muito tempo à nossa frente. O dia seguinte seria o segundo dia da sua segunda vida.
E depois?
Mais nada. Não se lembrava de ter chegado a casa. Vieram os sonhos.
«Foram dois sonhos.»
«Três.»
«Como assim?»
«O terceiro sonho começou quando já estavas à porta do Ultramarino...»
«Sonhei?»
«Sim, Mário. Só quis que descobrisses a verdade que sempre procuraste. Não deu. De qualquer maneira não deu. É muito simples. Nem tu nem ela foram felizes. Ninguém manda no destino. Não deves considerar-te culpado nem culpá-la por ter casado com o homem que mais odiava. Aí há razões que só o ódio reconhece.»
«Achas que ela casou só por ódio?»
«Talvez.»
«Então só vivi sonhando. Mas... e os outros sonhos que tive nessa noite?»
«Os sonhos são do tempo das recordações. Das saudades que tinhas dela. As ligações curtas e condenadas ao insucesso são as que deixam marcas para sempre. Ficaste preso a um sonho absurdo que nunca viria a concretizar-se. Ficaste também preso a uma sensação de culpa que se transformou em obsessão. Querias saber se ela se tinha suicidado e porquê. Tu, a única razão da sua existência. Mas finalmente ficaste a conhecer a causa da sua morte.»
«Um aneurisma. Então não tive culpa da sua morte.»
«Nem a amavas tanto como julgas. Esqueceste-a logo naquela noite em que se encontraram os três na casa dos teus tios. Tu, a Simone e ela. Lembras-te do que aconteceu nessa noite?»
«Não foi bem assim.»
«E quando leste no jornal a notícia da sua morte?, foste à capela prestar a última homenagem? Não. Foi muito cómodo para ti não ires vê-la pela última vez. Nem sequer choraste lágrimas de crocodilo. O teu amor por ela não foi tão forte como imaginaste e imaginas ainda...»
«Acreditas que não?»
«Fica a dúvida. Mas depois aconteceram coisas estranhas!»
«Quem as provocou?»
Deu um tiro no escuro.
«Será que foste tu esse alguém?»
«Achas?»
«Tenho umas certas dúvidas. Mas ouve lá, isto é um julgamento?»
Inês sorriu.
«Claro que não. Só quero desmistificar essa obsessão que te destruiu. Tu nem sequer acompanhaste o seu corpo grosseiro ao cemitério. Não conseguiste?»
«Conheço as minhas fraquezas. Aconteceu o mesmo com um amigo de infância que faleceu num desastre de aviação.»
O Vítor. Morreu num estúpido acidente de aviação. Qualquer coisa bloqueou-o e não conseguiu ir ao funeral prestar-lhe a última homenagem.
«Eu sei e até compreendo.»
«Que me resta?»
«Tudo o que fizeste não foi por mal. Aconteceu. Agora só precisas de encontrar a paz.»
«Fazes isto por mim, só porque és um anjo e é só esse o teu papel?»
Olhou-o, surpreendida.
«És desconcertante.» Disfarçou.
«Já viveste na Terra ou foste sempre um anjo? Responde, Inês, por favor.»
«Não sei se vais gostar da minha resposta. Se disser sim, é não. Se disser não, é sim. Quanto ao sim, pressupõe duas hipóteses: ou a vida de todos os mortais não passa de um sonho, ou então o sonho é a verdadeira vida.»
«As tuas palavras parecem ter vindo do outro que também sou eu. A Manuela dizia que eu abstraía imenso e, ao dizer isso, dava a entender que nem eu próprio me conhecia.»
«Quem sabe se as palavras ambíguas que te disse não saíram da mente que não tenho. Não sei muito bem quem sou. Tu sabes mais que eu. Pelo menos, representas uma dualidade. O mais e o menos. O bom e o mau. A matéria e a antimatéria. Oscilas entre dois ou mais mundos alternantes, com probabilidades de presença onde quer que seja absolutamente aleatórias. Agora estás comigo. Mas onde estou eu? Em muitos sítios ao mesmo tempo, como acontece com o eletrão? Claro que não sabes responder.»
«Quem és, afinal? Um anjo, uma mulher, ou a minha consciência?»
«Como assim? Sei muito bem que o destino não pode ser modificado. Voltar atrás é impossível. Lembra-te do paradoxo do neto ir ao passado matar o avô.»
«Sim. De certa forma concordo contigo. Mas mesmo assim vais ter uma oportunidade. Se quiseres.»
«Então vou voltar à encruzilhada e depois seguir o caminho que devia ter seguido? Agora que te conheci, já não sei se é bom. Não me lembro por onde fui ou por onde devia ter ido. Por outro lado, a estrada nunca me seduziu. Não, muito obrigado.»
Inês pareceu ignorar as últimas palavras de Mário e prosseguiu:
«Não entendeste. Trata-se de dar-te uma segunda vida. Um outro rumo antes de acontecero momento fatal que ditou o desvio que fez de ti um desencantado.»
«Mas...»
Mário não pareceu convencido.
«Escuta mais isto que te vou dizer. Esta segunda oportunidade vai-se desenrolar de tal forma que não será necessário esperares pelo momento das grandes decisões. Portanto, não vai haver uma encruzilhada para te baralhar. Sim ou não?»
«O pobre desconfia sempre da esmola gorda...»
«Muito bem. Tenho ainda uma outra hipótese para te apresentar, Mário. Como supostamente estás morto, claro que posso encaminhar-te para o túnel que tem a luz mais intensa e terás oportunidade de rever os entes de quem gostaste mais na tua vida terrena. Só que não sei o que se passa verdadeiramente do outro lado da porta. Vês os teus entes queridos, é certo, mas depois vais ser submetido a um julgamento decisivo para te levar para os jardins de Deus ou então para o fogo eterno do Inferno.»
«Ah!»
«Que preferes? Adiar e viver outra vida, ou enfrentar os túneis de luz? Escolhe.»
«Túneis de luz? Mas não há só um?»
«Há três. O mais favorável é o que tem a luz mais intensa.»
«Já lá estiveste?»
Hesitou antes de responder.
«Sou um anjo. Vim dos jardins de Deus para te ajudar. Para já está posta de parte a hipótese de continuares a viagem pelo deserto vermelho.»
«Que farias no meu lugar?»
«Não sei. É contigo.»
Mário achou que ela tinha uma ideia formada.
«Por favor, Inês!»
«Muito bem.»
Olhou intensamente para ele como se estivesse a medir o risco da proposta que ia fazer.
«Vá lá!»
«Muito bem» repetiu. «Eu experimentava voltar atrás e recomeçar no ponto fatal.»
«E qual foi o ponto fatal?»
«Vais lembrar-te quando chegar o momento. Queres ou não queres viver uma outra vida com ela?»
«Ela? Nem sequer sei quem era ela. Se é que existiu uma ela.»
«Olha, aposta em mim.»
«No fundo é um adiamento.»
«Pois é.»
«Espero não me arrepender. Leva-me então para essa segunda vida.»
«Acredita, Mário, que poucos conseguiram ter esta oportunidade. Agarra-a bem.»
«Desconheço o motivo porque estavas à minha espera. Dizes que és um anjo. Acredito. E se já viveste na Terra, será que houve alguma ligação entre nós?»
«Tens uma imaginação fértil.» Disfarçou.
Como é que ele adivinhou?
«Se bem entendi vou reparar um erro que cometi. E que erro foi esse?»
«Logo saberás.»
«Os teus olhos são azuis ou castanhos?»
Inês encolheu os ombros.
«Que interessa?»
«Sabes uma coisa? Não há amor como o primeiro. Gostava que os teus olhos fossem azuis.»
«Não há amor como o primeiro. Tens razão. É isso mesmo que vais descobrir.»
«A cor dos teus olhos?»
Sorriu. Um sorriso de anjo.
«Claro que não, parvo. Vais descobrir precisamente se é verdade que não há amor como o primeiro. E agora a minha missão acaba aqui.»
«Oxalá não...»
«Dizes isso como se fosse um mau augúrio. Lembra-te de uma coisa: aconteça o que acontecer, Mário, vais voltar a encontrar-me.»
«Como podes ter tanta certeza?»
«Sou um anjo, não sou?»
«Quero acreditar que sim.»
«Adeus, Mário...»
De repente fez-se noite.
«Onde estás, Inês? Nem sequer me despedi de ti. Só disseste adeus...»
Lá do alto, Inês disse para o irmão:
«Agora ele está entregue a si próprio.»
«Quem é este homem, irmã?»
Apareceu um brilho novo nos seus olhos.
«Apenas um simples mortal.»
«Não estarás a violar a lei?»
Os anjos que violavam a lei caíam na Terra e perdiam a imortalidade. Por amor ou por ódio. De certa forma tinham uma segunda oportunidade para viverem como mortais. Razões? Talvez vidas mal conseguidas.
O muro rasgou-se de novo de alto a baixo. Ao fundo viu os três túneis, um deles muito brilhante.
Avançava?
Então ouviu uma voz dizer:
«Vai pelo túnel que tem a luz mais intensa.»
Decidiu avançar. Já nada tinha a perder. A última oportunidade que lhe foi dada para ser feliz só durou um dia e não tinha outra opção senão seguir o conselho da voz desconhecida.
Lembrou-se da sua última mensagem, já quase agonizante. Certamente que estava à sua espera, algures para lá daquele túnel.
Mas... e o seu corpo grosseiro?
Já não existia. A morte tinha vindo outra vez, de mansinho, interromper o curso do seu rio e assim impedir que o último meandro se desviasse da foz. Nem sequer se conhecia como caminheiro solitário porque não existia a tal estrada cujo destino era o suplício da eternidade.
De facto, não lhe restava outra solução. Seguir o conselho daquela voz desconhecida. Só tinha dúvidas. A luta constante entre o seu real e o seu fictício.
Qual deles era ele agora?
«Aqui está fresco. Por isso vou entrar. E o que mais desejo é que estejas à minha espera e oiça o eco da tua voz dizer incessantemente que está frio, que está frio, que está frio.»
«Não!»
Voltou-se, admirado, e viu outra vez aqueles olhos azuis mais límpidos que a água de um regato sem mácula.
Esperou uns segundos por qualquer transformação, mas nada aconteceu.
«Inês! Voltaste...»
«Não entres em nenhum túnel porque a verdade que procuras não está aí. Se entrares, nunca mais voltas!»
«Mas uma vez eu e ela combinámos encontrar-nos...»
«Esquece.»
Como podia agora acreditar nela depois do que aconteceu?
«Nada me prende do lado de cá. Deram-me uma oportunidade vã. Cruel. A nossa felicidade só durou um dia. Foi mau o que aconteceu. Tanta esperança, para quê (1) ?»
«Eu já sabia.»
Irritou-se.
«Sabias e deixaste-me embarcar na ilusão daquela segunda oportunidade?»
«Ilusão?»
«Estás a brincar comigo. Por certo estás a brincar. Ela morreu de um aneurisma. Nem sequer pude beijar o seu rosto pálido que a morte surpreendeu brutalmente...»
«Volta para trás antes que o muro feche. Depois é demasiado tarde.»
Abanou a cabeça.
«Vou ter com ela!»
«Acredita em mim.»
«Tenho que ir!»
«Acredita em mim!» repetiu.
«Não quero ser enganado outra vez.»
«Para lá do muro não tens nada. Olha bem. Não há um único túnel na tua frente. É tudo alucinação. Assim como o segundo encontro com ela não passou de um sonho.»
Só quer baralhar-me.
«Não pode ser. Encontrámo-nos no autocarro, falei com ela cá fora, à chegada. Almoçámos juntos na Alsaciana. Beijei-a. Trocámos promessas de amor. Ela seria minha para sempre no dia seguinte. Toda minha. E eu dela.»
«Depois de a deixares, acaso te lembras de ter adormecido nessa noite?»
Fez um esforço para recordar. Só se lembrava do fim do almoço e da pequena discussão sobre a conta. Ela sentia-se cansada e mesmo assim queria ir ao castelo. Era melhor regressar a casa. Acompanhava-a até ao Terreiro do Paço. Tinham muito tempo à nossa frente. O dia seguinte seria o segundo dia da sua segunda vida.
E depois?
Mais nada. Não se lembrava de ter chegado a casa. Vieram os sonhos.
«Foram dois sonhos.»
«Três.»
«Como assim?»
«O terceiro sonho começou quando já estavas à porta do Ultramarino...»
«Sonhei?»
«Sim, Mário. Só quis que descobrisses a verdade que sempre procuraste. Não deu. De qualquer maneira não deu. É muito simples. Nem tu nem ela foram felizes. Ninguém manda no destino. Não deves considerar-te culpado nem culpá-la por ter casado com o homem que mais odiava. Aí há razões que só o ódio reconhece.»
«Achas que ela casou só por ódio?»
«Talvez.»
«Então só vivi sonhando. Mas... e os outros sonhos que tive nessa noite?»
«Os sonhos são do tempo das recordações. Das saudades que tinhas dela. As ligações curtas e condenadas ao insucesso são as que deixam marcas para sempre. Ficaste preso a um sonho absurdo que nunca viria a concretizar-se. Ficaste também preso a uma sensação de culpa que se transformou em obsessão. Querias saber se ela se tinha suicidado e porquê. Tu, a única razão da sua existência. Mas finalmente ficaste a conhecer a causa da sua morte.»
«Um aneurisma. Então não tive culpa da sua morte.»
«Nem a amavas tanto como julgas. Esqueceste-a logo naquela noite em que se encontraram os três na casa dos teus tios. Tu, a Simone e ela. Lembras-te do que aconteceu nessa noite?»
«Não foi bem assim.»
«E quando leste no jornal a notícia da sua morte?, foste à capela prestar a última homenagem? Não. Foi muito cómodo para ti não ires vê-la pela última vez. Nem sequer choraste lágrimas de crocodilo. O teu amor por ela não foi tão forte como imaginaste e imaginas ainda...»
«Acreditas que não?»
«Fica a dúvida. Mas depois aconteceram coisas estranhas!»
«Quem as provocou?»
Deu um tiro no escuro.
«Será que foste tu esse alguém?»
«Achas?»
«Tenho umas certas dúvidas. Mas ouve lá, isto é um julgamento?»
Inês sorriu.
«Claro que não. Só quero desmistificar essa obsessão que te destruiu. Tu nem sequer acompanhaste o seu corpo grosseiro ao cemitério. Não conseguiste?»
«Conheço as minhas fraquezas. Aconteceu o mesmo com um amigo de infância que faleceu num desastre de aviação.»
O Vítor. Morreu num estúpido acidente de aviação. Qualquer coisa bloqueou-o e não conseguiu ir ao funeral prestar-lhe a última homenagem.
«Eu sei e até compreendo.»
«Que me resta?»
«Tudo o que fizeste não foi por mal. Aconteceu. Agora só precisas de encontrar a paz.»
«Fazes isto por mim, só porque és um anjo e é só esse o teu papel?»
Olhou-o, surpreendida.
«És desconcertante.» Disfarçou.
«Já viveste na Terra ou foste sempre um anjo? Responde, Inês, por favor.»
«Não sei se vais gostar da minha resposta. Se disser sim, é não. Se disser não, é sim. Quanto ao sim, pressupõe duas hipóteses: ou a vida de todos os mortais não passa de um sonho, ou então o sonho é a verdadeira vida.»
«As tuas palavras parecem ter vindo do outro que também sou eu. A Manuela dizia que eu abstraía imenso e, ao dizer isso, dava a entender que nem eu próprio me conhecia.»
«Quem sabe se as palavras ambíguas que te disse não saíram da mente que não tenho. Não sei muito bem quem sou. Tu sabes mais que eu. Pelo menos, representas uma dualidade. O mais e o menos. O bom e o mau. A matéria e a antimatéria. Oscilas entre dois ou mais mundos alternantes, com probabilidades de presença onde quer que seja absolutamente aleatórias. Agora estás comigo. Mas onde estou eu? Em muitos sítios ao mesmo tempo, como acontece com o eletrão? Claro que não sabes responder.»
«Quem és, afinal? Um anjo, uma mulher, ou a minha consciência?»
«...»
«Deixa. Já não interessa. Desisti de procurar a verdade. Estou condenado a não saber onde estou. Se vivo aqui e morri acolá, ou vice-versa.»
«A região onde te encontras agora é uma estação de trânsito em que está a ser preparado o meio de transporte para a viagem.»
«Então voltas a dar-me razão. Do outro lado do muro estão os túneis que alternam entre o sim e o não.»
«Talvez que nunca mais estejam visíveis para ti, ou que entres num com múltiplas bifurcações. Não vás para o lado das miragens.»
«E onde está esse lado para onde dizes que vou?»
«Não sabes porque não existe.»
«Que faço então?»
«Segue-me.»
Levantou um dedo interrogador.
«Sem mais nem menos? Se é uma ordem, não penses que a vou acatar.»
«Apenas um pedido.»
Não acreditava nela. Deu-lhe uma oportunidade para voltar ao passado e assim poder reparar um erro que cometeu. Encontrou a Manuela e depois tudo não passou de um sonho. Um sonho bom que se transformou num pesadelo.
«Um pedido. E ela... nunca mais a vou ver?»
Não respondeu. Apenas sorriu.
«Se não fosse a tua obsessão por ela, acredita que nunca tinhas chegado onde chegaste.»
«A um beco sem saída.»
«Isso é o que julgas.»
«A região onde te encontras agora é uma estação de trânsito em que está a ser preparado o meio de transporte para a viagem.»
«Então voltas a dar-me razão. Do outro lado do muro estão os túneis que alternam entre o sim e o não.»
«Talvez que nunca mais estejam visíveis para ti, ou que entres num com múltiplas bifurcações. Não vás para o lado das miragens.»
«E onde está esse lado para onde dizes que vou?»
«Não sabes porque não existe.»
«Que faço então?»
«Segue-me.»
Levantou um dedo interrogador.
«Sem mais nem menos? Se é uma ordem, não penses que a vou acatar.»
«Apenas um pedido.»
Não acreditava nela. Deu-lhe uma oportunidade para voltar ao passado e assim poder reparar um erro que cometeu. Encontrou a Manuela e depois tudo não passou de um sonho. Um sonho bom que se transformou num pesadelo.
«Um pedido. E ela... nunca mais a vou ver?»
Não respondeu. Apenas sorriu.
«Se não fosse a tua obsessão por ela, acredita que nunca tinhas chegado onde chegaste.»
«A um beco sem saída.»
«Isso é o que julgas.»
Parecia que estavam num impasse. Mas não era essa a opinião de Inês.
«Disseste que só viveram felizes um dia. Ao mesmo tempo não te lembras do que aconteceu depois de saírem da Alsaciana. E se admitires a hipótese que um dia pode durar para sempre? E se todos os anos que viveste podem ter significado um simples piscar de olhos?»
Primeiro, deu a entender que ele e a Manuela não estavam destinados um para o outro. Agora parecia dizer o contrário.«Não entendo.»
«Pensa...»
E se a tarde em que a foi esperar à saída do Ultramarino não tivesse acontecido no dia seguinte?
«Um dia pode durar para sempre. Será que é mesmo verdade, Inês?»
Respondeu com outra pergunta.
«Aceitas seguir-me?»
Então a cor dos seus olhos voltou a sofrer uma transformação. Agora eram outra vez castanhos, mas ainda mais límpidos do que os olhos azuis mais límpidos que a água de um regato sem mácula.
«Não sei.»
«Está tudo em aberto.»
«Tudo?»
«Sim.»
«Aceito.»
«Aceitas o quê?»
«Seguir-te.»
«Ah! Então, vamos. Dá-me a mão.»
A realidade era um absurdo.
«Impossível, Inês.»
«Porquê?»
«Não tenho mão!»
«Se quiseres, tens.»
Como assim?, pensou.
«Vês? Já tens mão. E agora prepara-te para voar.»
«Não tenho asas.»
«Tens, sim.»
Não viu asas em si. Aliás, não via qualquer parte do seu corpo. Mas, coisa estranha! Voava, invisível, levado pelas asas que eram a força do pensamento de Inês.
«Não sei para onde vamos.»
«Agora estamos a subir. Tem confiança em mim. Quando chegarmos lá acima temos uma missão à nossa espera.»
«Julgava que já não tinha missões para cumprir. Disseste que estava morto e julgo que aos mortos nada resta para fazer. O corpo degrada-se. A alma não sei se existe. São coisas que assimilei em vida.»
«Olha, Mário, escuta. Afinal o teu rio ainda não chegou ao fim.»
«E o que acontece às pessoas cuja vida chega ao fim?»
«Não sei. Nunca voltaram para contar se existe outra vida para lá dos túneis de luz.»
«E os que regressam ao passado, como eu?»
«Vivem um dia, dois, ou muitos, mas só se lembram do primeiro.»
«Como é triste o teu olhar, Inês!»
Sorriu enigmaticamente e limitou-se a dizer:
«Já estamos cá em cima.»
«A subida foi rápida. E afinal de contas não há nenhuma estrada lá em baixo. Só vejo areias. É mesmo verdade?»
Foi então que viu o irmão dela.
«Qual foi o seu papel em relação a nós?»
«Chamar-me. Mais nada. Mas distraiu-se. Valeu eu estar atenta e não estaríamos agora a falar.»
«É mesmo teu irmão?»
«Aqui todos somos irmãos.»
«Ah sim!, e também amantes?»
«Amantes? Só tu me fazes rir...»
«Mas para onde me vais levar? Não vejo caminhos. Sinto-me a flutuar. Talvez esteja a pisar nuvens ou uma coisa parecida.»
«É bom não haver caminhos para se atingir o amanhã. Não existir hoje. Ou ontem. Ou amanhã.»
«Não te compreendo. Esta conversa também pode ter acontecido ontem, ou estar sempre a acontecer?»
«Não compliques mais. Quero chegar a ti, Mário.»
«Estou assim tão longe?»
«Também não existe o perto e o longe.»
«E nós?»
«Nós existimos.»
«E vemo-nos. Pelo menos, eu vejo-te. Tenho a sensação que estou a viver mais um sonho, e é capaz de ser verdade. Desta vez faz com que não acorde, Inês!»
«Não tenhas receio.»
«Agora reparo que os caminheiros continuam a passar na estrada. Um está parado. Aconteceu-lhe o mesmo que a mim. Julgo que precisa de ajuda. Achas que...?»
«Já não é comigo. A minha missão aqui acabou.»
«Acabou?»
«Sim.»
«Se quiseres, tens.»
Como assim?, pensou.
«Vês? Já tens mão. E agora prepara-te para voar.»
«Não tenho asas.»
«Tens, sim.»
Não viu asas em si. Aliás, não via qualquer parte do seu corpo. Mas, coisa estranha! Voava, invisível, levado pelas asas que eram a força do pensamento de Inês.
«Não sei para onde vamos.»
«Agora estamos a subir. Tem confiança em mim. Quando chegarmos lá acima temos uma missão à nossa espera.»
«Julgava que já não tinha missões para cumprir. Disseste que estava morto e julgo que aos mortos nada resta para fazer. O corpo degrada-se. A alma não sei se existe. São coisas que assimilei em vida.»
«Olha, Mário, escuta. Afinal o teu rio ainda não chegou ao fim.»
«E o que acontece às pessoas cuja vida chega ao fim?»
«Não sei. Nunca voltaram para contar se existe outra vida para lá dos túneis de luz.»
«E os que regressam ao passado, como eu?»
«Vivem um dia, dois, ou muitos, mas só se lembram do primeiro.»
«Como é triste o teu olhar, Inês!»
Sorriu enigmaticamente e limitou-se a dizer:
«Já estamos cá em cima.»
«A subida foi rápida. E afinal de contas não há nenhuma estrada lá em baixo. Só vejo areias. É mesmo verdade?»
O sobe e desce das dunas. O vermelho do seu deserto desencantado. Ao longe, o horizonte que não alcançou e que se deslocava para mais longe sempre que se aproximava.
«Sim, é verdade. Vamos?»Foi então que viu o irmão dela.
«Qual foi o seu papel em relação a nós?»
«Chamar-me. Mais nada. Mas distraiu-se. Valeu eu estar atenta e não estaríamos agora a falar.»
«É mesmo teu irmão?»
«Aqui todos somos irmãos.»
«Ah sim!, e também amantes?»
«Amantes? Só tu me fazes rir...»
«Mas para onde me vais levar? Não vejo caminhos. Sinto-me a flutuar. Talvez esteja a pisar nuvens ou uma coisa parecida.»
«É bom não haver caminhos para se atingir o amanhã. Não existir hoje. Ou ontem. Ou amanhã.»
«Não te compreendo. Esta conversa também pode ter acontecido ontem, ou estar sempre a acontecer?»
«Não compliques mais. Quero chegar a ti, Mário.»
«Estou assim tão longe?»
«Também não existe o perto e o longe.»
«E nós?»
«Nós existimos.»
«E vemo-nos. Pelo menos, eu vejo-te. Tenho a sensação que estou a viver mais um sonho, e é capaz de ser verdade. Desta vez faz com que não acorde, Inês!»
«Não tenhas receio.»
«Agora reparo que os caminheiros continuam a passar na estrada. Um está parado. Aconteceu-lhe o mesmo que a mim. Julgo que precisa de ajuda. Achas que...?»
«Já não é comigo. A minha missão aqui acabou.»
«Acabou?»
«Sim.»
«Então...»
«A minha missão eras tu.»
Olhou para ela, sem perceber.
«Esperava por ti, Mário.»
«Mas para onde me levas?»
«Não adivinhas?»
Se estava a perguntar...
«Vou levar-te para onde viveste um grande amor. Depois do erro que cometeste, mais tarde lutaste obstinadamente por esse amor, sabendo de antemão que não tinhas a mínima hipótese de êxito. O sonho morria. O sonho ressuscitava. Mas nunca desististe.»
«E aonde me levou este sonho absurdo?»
«Não sejas pessimista, Mário. Segue-me sem receio porque está a chegar o momento com que sempre sonhaste.»
«Deixa-me olhar melhor para ti. Assim.»
«Que vês, Mário?»
«Esses teus olhos já não me enganam. Há pouco eram azuis mas agora tenho a certeza que foram sempre castanhos!»
«E...?»
«E tristes. Belisca-me.»
«Não é preciso. A vida foi sempre um sonho desde que perdeste a tua Manuela. Agora que estás bem acordado, prepara-te que chegou outro dia.»
«Mas eu estou morto! Não te esqueças que estou morto. Não tenho braços, não tenho pernas. Nem olhos. Não sou matéria.»
«Que diferença faz?»
Diferença?
Sentiu um frio intenso que quase o gelou.
«É estranho ter uma confiança sem limites em ti.»
Olhou para ela, sem perceber.
«Esperava por ti, Mário.»
«Mas para onde me levas?»
«Não adivinhas?»
Se estava a perguntar...
«Vou levar-te para onde viveste um grande amor. Depois do erro que cometeste, mais tarde lutaste obstinadamente por esse amor, sabendo de antemão que não tinhas a mínima hipótese de êxito. O sonho morria. O sonho ressuscitava. Mas nunca desististe.»
«E aonde me levou este sonho absurdo?»
«Não sejas pessimista, Mário. Segue-me sem receio porque está a chegar o momento com que sempre sonhaste.»
«Deixa-me olhar melhor para ti. Assim.»
«Que vês, Mário?»
«Esses teus olhos já não me enganam. Há pouco eram azuis mas agora tenho a certeza que foram sempre castanhos!»
«E...?»
«E tristes. Belisca-me.»
«Não é preciso. A vida foi sempre um sonho desde que perdeste a tua Manuela. Agora que estás bem acordado, prepara-te que chegou outro dia.»
«Mas eu estou morto! Não te esqueças que estou morto. Não tenho braços, não tenho pernas. Nem olhos. Não sou matéria.»
«Que diferença faz?»
Diferença?
Sentiu um frio intenso que quase o gelou.
«É estranho ter uma confiança sem limites em ti.»
Começaram a descer uma longa escadaria.
«Já falta pouco.»
«Déjà vu!»
«Sim?»
«Tenho a sensação que já estive aqui.»
Os olhos castanhos de Inês brilharam.
«Repara bem...»
«É o nosso jardim!»
Colheu uma rosa vermelha.
«Posso oferecer-te esta rosa?»
«Obrigada. Que odor tão intenso!»
«Em que estás a pensar?»
«Não sei explicar a causa do odor desta simples pétala. Se existiu uma rainha que amava os pobres e que um dia transformou o pão em rosas, também a força da nossa presença, lado a lado, pode ser o resultado de um milagre.»
«Continuo a não entender. Onde queres chegar, Inês dos olhos castanhos que se escondiam nos azuis?»
Inês limitou-se a apontar com o dedo indicador.
«Ali. Àquele banco vermelho.»
«Não vejo nenhum banco.»
«Fecha os olhos e tenta visualizar o banco que não vês. Isso. Agora, abre-os.»
Obedeceu. O banco estava na sua frente.
«E se ele for virtual?» perguntou.
«Não, meu amor.»
«Vais esquecer-te, sim.»
«Já falta pouco.»
«Déjà vu!»
«Sim?»
«Tenho a sensação que já estive aqui.»
Os olhos castanhos de Inês brilharam.
«Repara bem...»
«É o nosso jardim!»
Colheu uma rosa vermelha.
«Posso oferecer-te esta rosa?»
«Obrigada. Que odor tão intenso!»
«Em que estás a pensar?»
«Não sei explicar a causa do odor desta simples pétala. Se existiu uma rainha que amava os pobres e que um dia transformou o pão em rosas, também a força da nossa presença, lado a lado, pode ser o resultado de um milagre.»
«Continuo a não entender. Onde queres chegar, Inês dos olhos castanhos que se escondiam nos azuis?»
Inês limitou-se a apontar com o dedo indicador.
«Ali. Àquele banco vermelho.»
«Não vejo nenhum banco.»
«Fecha os olhos e tenta visualizar o banco que não vês. Isso. Agora, abre-os.»
Obedeceu. O banco estava na sua frente.
«E se ele for virtual?» perguntou.
«Muito simples. Anda, senta-te.»
Inês tomou a iniciativa e ele imitou-a, sentando-se à sua direita.
Reminiscências do passado do rapaz da camisola azul e da rapariga do vestido branco. Tudo não passava de reminiscências. Só faltava ouvir o chilrear dos pardais e sentir entranhar-se o cheiro intenso a café vindo da fábrica de torrefação.
Ficou à espera de um milagre.
«Então?»
Não respondeu. O silêncio caiu sobre eles e envolveu-os num vazio total. Estava mais uma vez a viver o mesmo sonho. Um sonho belo que ia ter um final com sabor a desencanto. Como sempre aconteceu ao longo da sua vida.
Não respondeu. O silêncio caiu sobre eles e envolveu-os num vazio total. Estava mais uma vez a viver o mesmo sonho. Um sonho belo que ia ter um final com sabor a desencanto. Como sempre aconteceu ao longo da sua vida.
«Que vai acontecer?»
«Não tenhas pressa, Mário.»
«É o fim do sonho?»
«Estamos a viver um sonho real!»
Ela também sonhava. Julgava-a apenas uma executiva das ordens do Senhor e afinal era uma mulher tão terrena como ele. Por outro lado, não se admirava que acabasse por dizer-lhe que a sua missão resumia-se a executarem o trabalho dos anjos.
«O silêncio à nossa volta também faz parte do sonho real?»
«Achas que sim?»
Então o milagre aconteceu. O jardim encheu-se de sons de fundo e de odores.
«Esqueci-me que és um ente superior e os entes superiores não têm lutas interiores, dúvidas. Sabes com que fim estamos aqui. É linear para ti.»
«Essa questão punha-se antes de chegarmos. A partir do momento em que descemos as escadas quase intermináveis, passámos a estar no mesmo nível.»
Olharam-se olhos nos olhos.
Onde queria ela chegar?
«Mas continuo morto!»
«De certa maneira, sim. Tu, porque és mortal. Mas eu também. Sou um anjo que desceu à Terra.»
«Caíste...?»
«Acontece que atingiste o limbo e agora estás numa situação de retorno material porque mereces uma nova oportunidade. O meu caso é um pouco diferente. Há muito que estava no limbo e numa situação de não retorno. Mas foi-me dada a graça de descer ao teu mundo, de manifestar-me em sinais que captaste.»
«Continua.»
«Primeiro, tiveste medo. Depois, ficaste curioso e abriste o espírito para que eu entrasse e te desse a luz.»
«É tudo muito estranho, mas acredito em ti.»
«Achas que me chamo Inês?»
«Então?»
«Sim ou não?»
«Não quero acreditar!»
«Inclusivamente os sensitivos disseram que me ouviram chorar com pena de não ter sido tua em vida. E acreditaste, embora eu estivesse invisível. Só conseguiste ver-me, em curtos momentos, nos olhos de outra mulher.»
«A Madalena (2).»
Interferência de acontecimentos futuros. Ou talvez não.
«Sim. E sabes porque só aconteceu uma vez? Porque ela teve medo.»
«Agora já sei a razão da sua fuga...»
«Ouves o chilrear dos pardais?» perguntou.
«Agora já sei a razão da sua fuga...»
«Ouves o chilrear dos pardais?» perguntou.
«E também sinto o odor a café que vem da fábrica de torrefação. Quer dizer que já voltámos à Terra, Manuela!»
«Não.»
«E as pessoas que estão a passar na nossa frente, também não existem?»
«É tudo virtual, Mário. Em breve vai seguir-se um estádio de transição. Um gradual e irreversível apagamento das nossas memórias. Depois, vamos encontrar-nos algures e será um começar de novo. Oxalá que tudo corra bem e que não voltem a acontecer os mesmos erros.»
«Num mundo paralelo?»
«Sim. Mas agora quero pedir-te uma coisa...»
«Diz.»
«Deixa que me aninhe no teu corpo como uma menina piegas e meiga que sempre fui. Assim. Para todo o sempre impossível. Até que me esqueça deste momento belo.»
«Nunca mais vou ver-te neste mundo, Nelinha?»«Deixa que me aninhe no teu corpo como uma menina piegas e meiga que sempre fui. Assim. Para todo o sempre impossível. Até que me esqueça deste momento belo.»
«Não, meu amor.»
«Porquê?»
«Porque não vais lembrar-te.»
Abraçou-a com ternura e deixou que o silêncio envolvesse aquele momento único.
«Nunca me esquecerei de ti!»«Vais esquecer-te, sim.»
«Mas não entendo porque tenho que ficar sem as minhas memórias. Não há uma forma...?»
«É o teu karma, Mário. Mas acredita que vamos viver uma nova vida juntos.»«Tenho pena de não saber como vai acontecer...»
«Quem sabe? Talvez como no tempo da rapariga do vestido branco e do rapaz da camisola azul!»
«Começar de novo?»
«Sim. Agora, abraça-me com força para que não sinta frio.»
«Aconchega-te mais, Nelinha...»
«Estás a aproveitar-te!»
«Juro... que sim!»
«Juro... que sim!»
Ficaram à espera que a escuridão os envolvesse.
(1) Manuela



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