Eram dez da manhã quando fui ao café do Norte com intenção de receber alguns prémios do totoloto.
Convém dizer que, nessa manhã, saí bem disposto da casa da praia. Era junho, o céu estava azul, não havia vento, cheirava a maresia. Quem quisesse aproveitar a praia tinha um dia ideal para se bronzear sem perigo e tomar um bom banho de mar quando a maré enchesse um pouco mais.
A distância da casa ao café não ultrapassava os cem metros e em pouco tempo cheguei à porta do café. Mais uma vez afirmo que estava bem disposto e talvez a boa disposição se devesse ao dia soalheiro que se adivinhava prolongar-se até ao pôr do sol.
Entrei no café. Numa mesa ao fundo, e quase no alinhamento do balcão, estava uma mulher. Era a única cliente.
Chamou-me logo a atenção o seu vestido vermelho. Usava óculos muito escuros e espelhados que, logicamente, escondiam os olhos. O cabelo preto, bem penteado, pareceu-me demasiado clássico.
Olhei em volta e confirmei que não havia mais ninguém no café, claro que além dos donos e de uma empregada jovem, a primeira pessoa que me atendeu. Perguntou-me se queria alguma coisa. Mostrei-lhe as cópias do totoloto.
«Venho levantar uns prémios do totoloto.»
Vi logo que não era tarefa para ela.
A mulher parecia olhar para mim. Digo parecia porque usava os tais óculos escuros espelhados. Tinha um ar distinto. Aristocrático. Sim. Era o termo exato. O facto de estar a ser observado pareceu não me beliscar.
Entretanto surgiu a dona do café, vinda dos fundos. Atendeu-me com o sorriso do costume e sem qualquer comentário. Disse-lhe que tinha vários prémios para receber e passei-lhe de imediato os boletins premiados para as mãos. Ato contínuo, foi buscar uma caixa e procurou os cheques cujos números coincidiam com os boletins.
Fiquei desconfiado com a aparente curiosidade da única cliente no café, mas comecei a assinar os cheques que, diga-se, até não eram poucos. Tinha várias sociedades na escola e também na naquela vila de veraneio. Era só eu quem preenchia a enorme quantidade de boletins, o que me dava uma trabalheira das grandes. Quanto à sorte, andava longe. Muitos quintos prémios que pouco valiam. Alguns quartos, um ou outro terceiro. Segundos ou primeiros, nem os ver.
Não houve qualquer problema com os primeiros cheques. O processo era rotineiro. Cada recibo premiado correspondia a um cheque que tinha de assinar. Ela ia pondo os cheques em cima do balcão e eu ia assinando, sem perder de vista a mulher que continuava a olhar para mim, com insistência.
A situação alterou-se numa das vezes que fixei os olhos na mulher que estava na mesa ao fundo. Não sei o que se passou. Parece que o vermelho do vestido me perturbou. Ou talvez fossem os seus óculos espelhados.
Foi tudo muito rápido. Não deu tempo a compreender. Senti um começo de desorientação. Logo a seguir tremuras na nuca e uma dificuldade evidente em assinar os cheques.
«Bonito!» pensei.
Parecia que a mão se recusava a assinar. Tremia muito e a esferográfica não avançava. E o mais estranho é que, cada vez que olhava na direção da mulher, mais se acentuava a perturbação, funcionando como um estranho efeito de reforço. Estava completamente bloqueado, sem ação, à mercê de uma mulher vestida de vermelho que não deixava de olhar para mim.
Ainda consegui ter um resto de discernimento, apesar do descontrolo, ao tentar observá-la com mais detalhe. Devia andar pelos cinquenta anos. Só não reparei se havia alguma chávena de café em cima da mesa. Um erro de palmatória grave.
Continuava lúcido. Apenas bloqueado. A mão direita continuava a não obedecer às ordens do cérebro. Fiz uma nova tentativa para me controlar. Em vão. A mulher continuava a olhar para mim. Não movia um único músculo do rosto. Parecia uma estátua de pedra. Era isso. Uma estátua. E fazia-me frio. Sentia as mãos geladas e estávamos em pleno junho, com temperaturas mais que agradáveis.
Vendo que as coisas se estavam a complicar, consegui ainda guardar no bolso quatro cópias de boletins. Era impossível conseguir assinar mais cheques.
Sabe-se lá como as assinaturas ficaram tremidas!
Entretanto o dono do café apareceu, vindo do lado da cozinha.
Julgava que o problema do outro dia, ocorrido há quatro meses, já tinha passado. Fora também tudo muito estranho, mas já estava perturbado quando entrei no café. As mesmas tremuras na nuca, a sensação de insegurança, o mesmo bloqueio. Mas desta vez era diferente.
«Está-me a acontecer o mesmo que da outra vez!»
«Os meus olhos?» perguntou o dono do café.
Não tinha entendido o que dissera. Pareceu-me também perturbado. O meu rosto confundia-o. Devia estar mais alongado do que o normal ou assim e isso talvez o tivesse preocupado.
Era a segunda vez que me acontecia este bloqueio e no mesmo café. Mas, repito, da outra vez não vi nenhuma mulher vestida de vermelho e tudo começou em Lisboa...
Mas não conseguia, o quê?
Reagi e fui deitar-me outra vez. Sentia-me confuso. Não gostava nada de ver o meu rosto ao espelho. Pálido, afilado. O zumbido passara um pouco. Precisava de medir a tensão arterial. Devia estar muito alta.
Convém dizer que, nessa manhã, saí bem disposto da casa da praia. Era junho, o céu estava azul, não havia vento, cheirava a maresia. Quem quisesse aproveitar a praia tinha um dia ideal para se bronzear sem perigo e tomar um bom banho de mar quando a maré enchesse um pouco mais.
A distância da casa ao café não ultrapassava os cem metros e em pouco tempo cheguei à porta do café. Mais uma vez afirmo que estava bem disposto e talvez a boa disposição se devesse ao dia soalheiro que se adivinhava prolongar-se até ao pôr do sol.
Entrei no café. Numa mesa ao fundo, e quase no alinhamento do balcão, estava uma mulher. Era a única cliente.
Chamou-me logo a atenção o seu vestido vermelho. Usava óculos muito escuros e espelhados que, logicamente, escondiam os olhos. O cabelo preto, bem penteado, pareceu-me demasiado clássico.
Olhei em volta e confirmei que não havia mais ninguém no café, claro que além dos donos e de uma empregada jovem, a primeira pessoa que me atendeu. Perguntou-me se queria alguma coisa. Mostrei-lhe as cópias do totoloto.
«Venho levantar uns prémios do totoloto.»
Vi logo que não era tarefa para ela.
A mulher parecia olhar para mim. Digo parecia porque usava os tais óculos escuros espelhados. Tinha um ar distinto. Aristocrático. Sim. Era o termo exato. O facto de estar a ser observado pareceu não me beliscar.
Entretanto surgiu a dona do café, vinda dos fundos. Atendeu-me com o sorriso do costume e sem qualquer comentário. Disse-lhe que tinha vários prémios para receber e passei-lhe de imediato os boletins premiados para as mãos. Ato contínuo, foi buscar uma caixa e procurou os cheques cujos números coincidiam com os boletins.
Fiquei desconfiado com a aparente curiosidade da única cliente no café, mas comecei a assinar os cheques que, diga-se, até não eram poucos. Tinha várias sociedades na escola e também na naquela vila de veraneio. Era só eu quem preenchia a enorme quantidade de boletins, o que me dava uma trabalheira das grandes. Quanto à sorte, andava longe. Muitos quintos prémios que pouco valiam. Alguns quartos, um ou outro terceiro. Segundos ou primeiros, nem os ver.
Não houve qualquer problema com os primeiros cheques. O processo era rotineiro. Cada recibo premiado correspondia a um cheque que tinha de assinar. Ela ia pondo os cheques em cima do balcão e eu ia assinando, sem perder de vista a mulher que continuava a olhar para mim, com insistência.
A situação alterou-se numa das vezes que fixei os olhos na mulher que estava na mesa ao fundo. Não sei o que se passou. Parece que o vermelho do vestido me perturbou. Ou talvez fossem os seus óculos espelhados.
Foi tudo muito rápido. Não deu tempo a compreender. Senti um começo de desorientação. Logo a seguir tremuras na nuca e uma dificuldade evidente em assinar os cheques.
«Bonito!» pensei.
Parecia que a mão se recusava a assinar. Tremia muito e a esferográfica não avançava. E o mais estranho é que, cada vez que olhava na direção da mulher, mais se acentuava a perturbação, funcionando como um estranho efeito de reforço. Estava completamente bloqueado, sem ação, à mercê de uma mulher vestida de vermelho que não deixava de olhar para mim.
Ainda consegui ter um resto de discernimento, apesar do descontrolo, ao tentar observá-la com mais detalhe. Devia andar pelos cinquenta anos. Só não reparei se havia alguma chávena de café em cima da mesa. Um erro de palmatória grave.
Continuava lúcido. Apenas bloqueado. A mão direita continuava a não obedecer às ordens do cérebro. Fiz uma nova tentativa para me controlar. Em vão. A mulher continuava a olhar para mim. Não movia um único músculo do rosto. Parecia uma estátua de pedra. Era isso. Uma estátua. E fazia-me frio. Sentia as mãos geladas e estávamos em pleno junho, com temperaturas mais que agradáveis.
Vendo que as coisas se estavam a complicar, consegui ainda guardar no bolso quatro cópias de boletins. Era impossível conseguir assinar mais cheques.
Sabe-se lá como as assinaturas ficaram tremidas!
Entretanto o dono do café apareceu, vindo do lado da cozinha.
Julgava que o problema do outro dia, ocorrido há quatro meses, já tinha passado. Fora também tudo muito estranho, mas já estava perturbado quando entrei no café. As mesmas tremuras na nuca, a sensação de insegurança, o mesmo bloqueio. Mas desta vez era diferente.
«Está-me a acontecer o mesmo que da outra vez!»
«Os meus olhos?» perguntou o dono do café.
Não tinha entendido o que dissera. Pareceu-me também perturbado. O meu rosto confundia-o. Devia estar mais alongado do que o normal ou assim e isso talvez o tivesse preocupado.
Era a segunda vez que me acontecia este bloqueio e no mesmo café. Mas, repito, da outra vez não vi nenhuma mulher vestida de vermelho e tudo começou em Lisboa...
Escrevo ao sabor da pena. Ou melhor: ao sabor de outra vontade. Estou confuso. A minha mão parece não ter força. Penso que é só impressão. Quero explicar o que sinto, mas aquilo não me deixa.
De manhã apanhei um grande susto ao olhar para o espelho da casa de banho. Tinha um zumbido forte no ouvido e ouvia mal. Ao mesmo tempo, o meu rosto estava muito pálido e com aspeto alucinado. O sangue fugira da cabeça, pensei. Tentei reagir. Não conseguia, não conseguia. Estava obcecado com a ideia de que não conseguia.Mas não conseguia, o quê?
Reagi e fui deitar-me outra vez. Sentia-me confuso. Não gostava nada de ver o meu rosto ao espelho. Pálido, afilado. O zumbido passara um pouco. Precisava de medir a tensão arterial. Devia estar muito alta.
Vesti-me rapidamente e saí.
Ao atravessar a Alameda para o outro lado, agi como se fosse uma pessoa de idade avançada. Estava nitidamente perturbado. Perto do posto vi um homem baixo, de rosto cheio, à porta de uma mercearia. O homem vestia um blusão azul e olhava, com insistência, para mim. De certeza que dera conta do meu estado de espírito. Ao passar por ele, dei comigo a perguntar o que fazia aquele homem encostado à porta da mercearia e a olhar intensamente para mim.
Os valores da tensão não eram famosos. A mínima era oito e a máxima dezasseis. Aconselharam-me a ir ao médico.
Voltei a casa. O zumbido não passava. Era certo que estava menos nervoso.
Tomei banho, mas não me senti melhor. Por vezes, um banho bem quente era retemperador. Mas o problema talvez não estivesse no corpo. Era mais psicológico. Isto para não imaginar outras coisas.
Seria fígado?
Uma esperança. Talvez fosse bom deitar um guronsan num copo de água. A minha companheira insurgiu-se. Queria, à viva força, que eu tomasse um ansiolítico.
Decidi-me a ir ao posto de atendimento permanente.
Coisa estranha! Eu a entrar no posto e o homem do blusão azul a sair. Dei conta que reconheceu-me. Era coincidência a mais, pensei. Mas havia outro pormenor que considerei importante. O homem tinha o cabelo muito acachapado e fazia lembrar o meu padrinho de nascimento, irmão do meu pai.
«Que coisa parva!» pensei.
Fui atendido por uma médica que me deu pouca atenção. Afinal, a tensão estava normal e o problema nos ouvidos era acumulação de cera. Receitou-me otoceril (óbvio) e que marcasse uma consulta para o especialista. E também, "adeus, ó vai-te embora".
Nessa manhã fui para E..., embora contrariado. Ela não dispensava um fim-de-semana na casa da praia. Ou melhor: no café Mimoso, que também era frequentado pelas amigas.
Continuei a não me sentir bem e os sinais exteriores que captava também em nada ajudavam. Por exemplo, vi, logo no início da autoestrada para Loures, um homem caminhando pela berma no sentido contrário ao nosso. Além de ser proibida a circulação de peões, o que já era estranho, o homem levou uma mão à garganta e inclinou a cabeça, mantendo aqueles gestos e continuando a caminhar. Tinha um ar de anormal, observação que comentei com a minha companheira. Não dera conta. No mínimo era estranho.
Ao atravessar a Alameda para o outro lado, agi como se fosse uma pessoa de idade avançada. Estava nitidamente perturbado. Perto do posto vi um homem baixo, de rosto cheio, à porta de uma mercearia. O homem vestia um blusão azul e olhava, com insistência, para mim. De certeza que dera conta do meu estado de espírito. Ao passar por ele, dei comigo a perguntar o que fazia aquele homem encostado à porta da mercearia e a olhar intensamente para mim.
Os valores da tensão não eram famosos. A mínima era oito e a máxima dezasseis. Aconselharam-me a ir ao médico.
Voltei a casa. O zumbido não passava. Era certo que estava menos nervoso.
Tomei banho, mas não me senti melhor. Por vezes, um banho bem quente era retemperador. Mas o problema talvez não estivesse no corpo. Era mais psicológico. Isto para não imaginar outras coisas.
Seria fígado?
Uma esperança. Talvez fosse bom deitar um guronsan num copo de água. A minha companheira insurgiu-se. Queria, à viva força, que eu tomasse um ansiolítico.
Decidi-me a ir ao posto de atendimento permanente.
Coisa estranha! Eu a entrar no posto e o homem do blusão azul a sair. Dei conta que reconheceu-me. Era coincidência a mais, pensei. Mas havia outro pormenor que considerei importante. O homem tinha o cabelo muito acachapado e fazia lembrar o meu padrinho de nascimento, irmão do meu pai.
«Que coisa parva!» pensei.
Fui atendido por uma médica que me deu pouca atenção. Afinal, a tensão estava normal e o problema nos ouvidos era acumulação de cera. Receitou-me otoceril (óbvio) e que marcasse uma consulta para o especialista. E também, "adeus, ó vai-te embora".
Nessa manhã fui para E..., embora contrariado. Ela não dispensava um fim-de-semana na casa da praia. Ou melhor: no café Mimoso, que também era frequentado pelas amigas.
Continuei a não me sentir bem e os sinais exteriores que captava também em nada ajudavam. Por exemplo, vi, logo no início da autoestrada para Loures, um homem caminhando pela berma no sentido contrário ao nosso. Além de ser proibida a circulação de peões, o que já era estranho, o homem levou uma mão à garganta e inclinou a cabeça, mantendo aqueles gestos e continuando a caminhar. Tinha um ar de anormal, observação que comentei com a minha companheira. Não dera conta. No mínimo era estranho.
Olhei pelo retrovisor. O homem continuava na mesma atitude.
Já perto de Loures, o indicador de nível da gasolina, sem qualquer motivo justificativo, baixou para zero. Logo a seguir, vi gaivotas no céu, voando alto.
«São pombos.» Disse a minha companheira.
Não eram pombos. Os pombos batiam as asas com mais frequência. Almocei em casa. Sozinho. Como de costume, porque que ela não dispensava por nada deste mundo a cavaqueira com as amigas "do corte e costura".
Já perto de Loures, o indicador de nível da gasolina, sem qualquer motivo justificativo, baixou para zero. Logo a seguir, vi gaivotas no céu, voando alto.
«São pombos.» Disse a minha companheira.
Não eram pombos. Os pombos batiam as asas com mais frequência. Almocei em casa. Sozinho. Como de costume, porque que ela não dispensava por nada deste mundo a cavaqueira com as amigas "do corte e costura".
Grelhei um bife e fiz arroz branco. Talvez que uma dieta me fizesse bem. Decidi também não beber vinho.
Depois do almoço deitei-me a descansar e dormitei um pouco. Acordei sobressaltado com a ideia dos bilhetes de totoloto. Precisava de acabar o preenchimento de uma meia dúzia de boletins. Depois ia entregar os mesmos a dois cafés, um deles o Café do Norte.
Acabada a tarefa levantei-me e fui à casa de banho. Complicou-se tudo de novo. O rosto que via no espelho da casa de banho não me agradava. Parecia mais alongado e o olhar não estava normal.
Seria capaz...?
Incrível! Estava outra vez bloqueado. Claro que era capaz!
Olhei o mar pela janela da casa da entrada. Coisa estranha! Senti-o mais perto que o habitual.
Tinha a certeza que não tinha tomado qualquer droga!
Além de entregar boletins, tencionava ir receber os prémios do totoloto ao café do Norte e a outro.
Devia levar todos os boletins?
Tanta insegurança! De repente parecia que não era eu. Uma coisa que fazia semanalmente transformava-se agora na maior das complicações.
Mal entrei no café, comecei a esfregar as mãos. Sentia-as frias, bem como os pés. O tempo estava ventoso, desagradável, mas não era motivo para sentir tanto frio!
Houve logo problemas quando comecei a assinar os cheques. A letra era miúda e vacilante, como se não tivesse força na mão. Ao terceiro ou quarto cheque senti grande dificuldade em assinar. A mão tremia, a nuca tremia. Sentia um bloqueio, principalmente quando chegava ao segundo nome. Depois, a dona do café não ajudava. Era muito lenta a procurar os cheques.
O quarto cheque foi ainda mais difícil de assinar. A meio do nome a mão tremeu mais e quase que não consegui continuar. Não tinha força. Não tinha força na mão direita. A nuca continuava a tremer. Creio que todo eu tremia. Fiquei inoperante ao quinto cheque. A dona do café dera conta entretanto e parecia algo preocupada comigo.
Era estranho, porque, apesar do bloqueio, eu estava perfeitamente consciente e não me escapava o mínimo pormenor ao que se passava comigo e à minha volta.
Como eram só quintos prémios, assinou-me o resto dos cheques e eu desculpei-me que estava com gripe. Depois apareceu o marido. Ficou também preocupado.
Estava a acontecer algo muito grave. Lembrava-me um romance de ficção científica. “Os Possuídos”. Era isso. Ficara possuído sei lá por quem!
Deitei-me sobre a cama, exausto. Tremia muito. O pânico era dono e senhor de mim.
Gritei por duas ou três:
«Que querem de mim?»
Desafiava assim a força que não via nem ouvia. Mesmo em pânico tentava desafiar o invisível. Não estava sozinho. Tinha a certeza. Mas tive como resposta o silêncio. Um silêncio absoluto que ainda me gelou mais. Continuava a tremer e não tinha força nas mãos.
Ou era tudo ilusão?
Peguei, sem esforço, numa telefonia portátil grande. Afinal, estava enganado.
E o frio que sentia nas mãos e no resto do corpo?
Delirava. De certeza que delirava. Começava a duvidar da minha sanidade mental.
«Vai ter uma doença grave.» Dissera, um dia, uma vidente.
Lembrei-me da Lara. Talvez me fizesse bem escrever. Sim. Escrever ao acaso. Mas dei conta que as ideias moravam longe. Escrever ao acaso, insisti. Era isso. Deixar a imaginação soltar-se, livre como o vento.
Aos poucos, as frases foram tomando nexo e acabei por estabelecer um fio condutor entre o subconsciente e a fluência das palavras. Sobretudo queria compreender o que me estava acontecendo. As palavras que escrevia eram de um Mário mais temerário do que o aquilo que se apossara de mim. Constituíam um desafio ao outro lado, mas ainda não estava preparado. Por um lado, desafiava; por outro rejeitava.
Mas fez-me bem. Os pensamentos estavam, de novo, coerentes. Já não havia pesadelo. A tempestade interior abrandara. Não sabia se tudo não passara de pura alucinação ou se fora um fenómeno paranormal. Tentei compreender o porquê da alteração psicológica que começou em Lisboa.
Acabada a tarefa levantei-me e fui à casa de banho. Complicou-se tudo de novo. O rosto que via no espelho da casa de banho não me agradava. Parecia mais alongado e o olhar não estava normal.
Seria capaz...?
Incrível! Estava outra vez bloqueado. Claro que era capaz!
Olhei o mar pela janela da casa da entrada. Coisa estranha! Senti-o mais perto que o habitual.
Tinha a certeza que não tinha tomado qualquer droga!
Além de entregar boletins, tencionava ir receber os prémios do totoloto ao café do Norte e a outro.
Devia levar todos os boletins?
Tanta insegurança! De repente parecia que não era eu. Uma coisa que fazia semanalmente transformava-se agora na maior das complicações.
Mal entrei no café, comecei a esfregar as mãos. Sentia-as frias, bem como os pés. O tempo estava ventoso, desagradável, mas não era motivo para sentir tanto frio!
Houve logo problemas quando comecei a assinar os cheques. A letra era miúda e vacilante, como se não tivesse força na mão. Ao terceiro ou quarto cheque senti grande dificuldade em assinar. A mão tremia, a nuca tremia. Sentia um bloqueio, principalmente quando chegava ao segundo nome. Depois, a dona do café não ajudava. Era muito lenta a procurar os cheques.
O quarto cheque foi ainda mais difícil de assinar. A meio do nome a mão tremeu mais e quase que não consegui continuar. Não tinha força. Não tinha força na mão direita. A nuca continuava a tremer. Creio que todo eu tremia. Fiquei inoperante ao quinto cheque. A dona do café dera conta entretanto e parecia algo preocupada comigo.
Era estranho, porque, apesar do bloqueio, eu estava perfeitamente consciente e não me escapava o mínimo pormenor ao que se passava comigo e à minha volta.
Como eram só quintos prémios, assinou-me o resto dos cheques e eu desculpei-me que estava com gripe. Depois apareceu o marido. Ficou também preocupado.
Estava a acontecer algo muito grave. Lembrava-me um romance de ficção científica. “Os Possuídos”. Era isso. Ficara possuído sei lá por quem!
Cheguei a casa a tremer. As forças faltavam-me. Fui à casa de banho várias vezes para olhar o meu rosto ao espelho. Queria ter a certeza que era eu. A imagem que via refletida era sempre a mesma: um rosto em pânico, alucinado, e uma sensação estranha que me colocava numa encruzilhada. Ou estava a enlouquecer, ou destapara inconscientemente naquele momento mais uma cortina que não devia destapar.
Fiz tudo para reagir, mas a outra força era maior. Então, tomei meio comprimido de Xanax. Quase a seguir, gritei qualquer coisa como: se havia alguém, que esse alguém se manifestasse. Deitei-me sobre a cama, exausto. Tremia muito. O pânico era dono e senhor de mim.
Gritei por duas ou três:
«Que querem de mim?»
Desafiava assim a força que não via nem ouvia. Mesmo em pânico tentava desafiar o invisível. Não estava sozinho. Tinha a certeza. Mas tive como resposta o silêncio. Um silêncio absoluto que ainda me gelou mais. Continuava a tremer e não tinha força nas mãos.
Ou era tudo ilusão?
Peguei, sem esforço, numa telefonia portátil grande. Afinal, estava enganado.
E o frio que sentia nas mãos e no resto do corpo?
Delirava. De certeza que delirava. Começava a duvidar da minha sanidade mental.
«Vai ter uma doença grave.» Dissera, um dia, uma vidente.
Lembrei-me da Lara. Talvez me fizesse bem escrever. Sim. Escrever ao acaso. Mas dei conta que as ideias moravam longe. Escrever ao acaso, insisti. Era isso. Deixar a imaginação soltar-se, livre como o vento.
Aos poucos, as frases foram tomando nexo e acabei por estabelecer um fio condutor entre o subconsciente e a fluência das palavras. Sobretudo queria compreender o que me estava acontecendo. As palavras que escrevia eram de um Mário mais temerário do que o aquilo que se apossara de mim. Constituíam um desafio ao outro lado, mas ainda não estava preparado. Por um lado, desafiava; por outro rejeitava.
Mas fez-me bem. Os pensamentos estavam, de novo, coerentes. Já não havia pesadelo. A tempestade interior abrandara. Não sabia se tudo não passara de pura alucinação ou se fora um fenómeno paranormal. Tentei compreender o porquê da alteração psicológica que começou em Lisboa.
Teria alguém entrado?
Voltei a falar das gaivotas quando ela chegou a casa.
«Eram pombos.»
Insisti que me pareceram ser gaivotas.
«Vemos sempre coisas diferentes.»
Voltei a falar das gaivotas quando ela chegou a casa.
«Eram pombos.»
Insisti que me pareceram ser gaivotas.
«Vemos sempre coisas diferentes.»
Por esse motivo é que não nos entendíamos e estávamos a caminho da rotura. Era só uma questão de tempo.
Que aconteceu comigo?
Seria que éramos dois naquele dia amaldiçoado?
Quem invadiu o meu cérebro e depois desapareceu, sem deixar rasto?
Não saí depois do jantar e deitei-me cedo. Ainda assisti ao sorteio do totoloto e tive um terceiro prémio. Foi bom. Éramos vários sócios. Talvez dez. Mas foi bom, apesar de tudo. Moralizou a sociedade.
Adormeci quase a seguir ao sorteio.
Ficámos à espera. Ao mesmo tempo, abria-se, lentamente, uma porta. Negativo. Já não havia imagens. A porta deslocava-se da esquerda para a direita. Primeiro, lentamente. Depois, aumentou a velocidade e a música de fundo subiu de volume. Suspense! Não sabia o que ia acontecer a seguir. E a porta continuava a deslocar-se, a deslocar-se. Cada vez mais depressa. E eu impotente. Ia acontecer qualquer coisa de grave! E eu ansioso. Cada vez mais ansioso e afastado do centro do poder.
O que estava para lá da porta?
A minha companheira pareceu responder à pergunta muda que fiz. Levantou-se. Nesse momento estava atrás de mim. Encaminhou-se para a porta. Nada podia fazer. Vi-a passar para o outro lado. Vestia um saia-casaco castanho.
Que aconteceu comigo?
Seria que éramos dois naquele dia amaldiçoado?
Quem invadiu o meu cérebro e depois desapareceu, sem deixar rasto?
Não saí depois do jantar e deitei-me cedo. Ainda assisti ao sorteio do totoloto e tive um terceiro prémio. Foi bom. Éramos vários sócios. Talvez dez. Mas foi bom, apesar de tudo. Moralizou a sociedade.
Adormeci quase a seguir ao sorteio.
Estávamos sentados a assistir a um espetáculo. Lembro-me que fiquei do lado esquerdo. Havia uma música de fundo que parecia servir de acompanhamento para as imagens, ou então indicava a passagem para uma cena nova. Não me lembro do tema. Parecia mais teatro que filme.
A música começou a ter efeitos especiais. Sim. Algo de intrigante ia acontecer.Ficámos à espera. Ao mesmo tempo, abria-se, lentamente, uma porta. Negativo. Já não havia imagens. A porta deslocava-se da esquerda para a direita. Primeiro, lentamente. Depois, aumentou a velocidade e a música de fundo subiu de volume. Suspense! Não sabia o que ia acontecer a seguir. E a porta continuava a deslocar-se, a deslocar-se. Cada vez mais depressa. E eu impotente. Ia acontecer qualquer coisa de grave! E eu ansioso. Cada vez mais ansioso e afastado do centro do poder.
O que estava para lá da porta?
A minha companheira pareceu responder à pergunta muda que fiz. Levantou-se. Nesse momento estava atrás de mim. Encaminhou-se para a porta. Nada podia fazer. Vi-a passar para o outro lado. Vestia um saia-casaco castanho.
Continuou a andar, sempre em frente, sempre em frente, até que deixei de a ver. Sumiu-se como o fumo.
Desembraiei antes de o pôr a trabalhar. O pedal da embraiagem ficou no fundo. Tinha acabado de partir o cabo.
Aquilo veio e desapareceu. Sem deixar rasto. Mas não desapareceu para sempre. Há de voltar mais vezes!
Eram dez horas quando entrámos no carro para regressarmos a Lisboa.Desembraiei antes de o pôr a trabalhar. O pedal da embraiagem ficou no fundo. Tinha acabado de partir o cabo.
Onde encontrar um mecânico ao domingo?
Só partimos a seguir ao almoço. Partimos com Deus ou sem Deus e não voltei a ver gaivotas no ar. Entretanto a tempestade tinha ido para lá da porta. Aconteceu muita coisa em pouco tempo e sinto consciência que passei por uma crise grave cujas causas são indeterminadas. Mas sinto-me enriquecido, embora muitas perguntas tenham ficado sem resposta. Progredi. Julgo que progredi. Contudo, não sei se tenho vontade de progredir mais. É perigoso.
Será que um dos meus “eus” está escondido nas profundezas do subconsciente?
Apesar de tudo sobrevivi àquela espécie de ladrão que se apoderou de mim e fugiu, com o rabo entre as pernas, quando pressentiu que podia tornar-se meu prisioneiro.
Não fosse eu capaz de o identificar…
A mulher de vermelho continuava imóvel, olhando ainda na minha direção. Foi pena não ter resistido mais uns minutos para poder ainda observar mais alguns pormenores. Mas o receio foi superior à minha curiosidade. Tudo voltou à normalidade quando saí. Foi como se tivesse havido uma descompressão. De súbito, libertava-me do pesadelo. Estava cá fora e já não a tinha na minha frente.
Voltava a ser eu. EU. O outro escondera-se, algures, nos subterrâneos insondáveis daquilo que se chama subconsciente. Afinal, não passara de mais uma prova de força que, provavelmente, voltaria a manifestar-se. Digo a palavra provavelmente porque, no momento, preferi não enfrentar este fenómeno.
Demoraria a entender todo este jogo que se desenvolvia sem que tivesse sido convidado a participar nele. Também era de admitir a hipótese de nunca vir a descobrir quem se escondia atrás da mulher de vermelho.
Um fantasma?
Talvez uma projeção. Enfim, ou o fruto de uma alucinação.
Mais um enigma por esclarecer.
Voltei para casa e deitei-me em cima da cama e ali me deixei ficar em atitude de meditação. Tudo se repetia, como da outra vez. Só que agora já me sentia bem. A crise passou depressa.
Este dia representara um marco importante. Tinha a certeza que alguém viera do lado de lá para ver-me. Era o primeiro sinal forte e consistente de que havia qualquer coisa do outro lado e que alguém talvez quisesse comunicar comigo.
Mas vi-a olhando fixamente para mim!
Vestia excessivamente bem para uma terra de veraneio e o estilo do vestido não era o mais adequado para a época. Quem quer que fosse essa mulher, se existiu, esteve sempre imóvel e parecia olhar para mim. Uma mulher vestida de vermelho, com ar de pessoa vinda da época dos anos trinta, de maneira alguma passaria despercebida. Mas os donos do café tinham sido categóricos ao negarem a sua presença.
Como resultado deste fenómeno, perderam um bom cliente, pois desisti de pôr boletins de totoloto no café.
Dias mais tarde recebi um recado. Queriam falar comigo, no que recusei logo. Para mim o caso passado no café do Norte era coisa encerrada.
Mas fiz mal. Até talvez pudessem ter dados relacionados com outros casos ocorridos no café.
Será que um dos meus “eus” está escondido nas profundezas do subconsciente?
Apesar de tudo sobrevivi àquela espécie de ladrão que se apoderou de mim e fugiu, com o rabo entre as pernas, quando pressentiu que podia tornar-se meu prisioneiro.
Não fosse eu capaz de o identificar…
A mulher de vermelho continuava imóvel, olhando ainda na minha direção. Foi pena não ter resistido mais uns minutos para poder ainda observar mais alguns pormenores. Mas o receio foi superior à minha curiosidade. Tudo voltou à normalidade quando saí. Foi como se tivesse havido uma descompressão. De súbito, libertava-me do pesadelo. Estava cá fora e já não a tinha na minha frente.
Voltava a ser eu. EU. O outro escondera-se, algures, nos subterrâneos insondáveis daquilo que se chama subconsciente. Afinal, não passara de mais uma prova de força que, provavelmente, voltaria a manifestar-se. Digo a palavra provavelmente porque, no momento, preferi não enfrentar este fenómeno.
Demoraria a entender todo este jogo que se desenvolvia sem que tivesse sido convidado a participar nele. Também era de admitir a hipótese de nunca vir a descobrir quem se escondia atrás da mulher de vermelho.
Um fantasma?
Talvez uma projeção. Enfim, ou o fruto de uma alucinação.
Mais um enigma por esclarecer.
Um Leão nunca desiste. Pode virar as costas, mas só for por desinteresse. Não desiste quando a curiosidade e o interesse se manifestam.
A verdade é que estava cada vez mais obcecado pelos múltiplos fenómenos que se desencadeavam à minha volta e pareciam estar ligados à tentativa de comunicação de alguém comigo. Tentativa infrutífera, embora com alguns progressos. O meu medo era sempre mais intenso que a curiosidade de descobrir para mais além.Voltei para casa e deitei-me em cima da cama e ali me deixei ficar em atitude de meditação. Tudo se repetia, como da outra vez. Só que agora já me sentia bem. A crise passou depressa.
Este dia representara um marco importante. Tinha a certeza que alguém viera do lado de lá para ver-me. Era o primeiro sinal forte e consistente de que havia qualquer coisa do outro lado e que alguém talvez quisesse comunicar comigo.
Mais tarde, quando senti que tudo normalizou, voltei ao café para receber o resto dos prémios e, desta vez, não tive tremuras na nuca e a mão direita estava segura.
Comentei o caso com os donos do café e ambos foram bastante categóricos e concordantes. Não havia nenhuma mulher no café. Muito menos uma mulher vestida de vermelho e que usava os tais óculos espelhados de que eu falava. Àquela hora, o café estava vazio. Eu era o único cliente presente, garantiram os dois.Mas vi-a olhando fixamente para mim!
Vestia excessivamente bem para uma terra de veraneio e o estilo do vestido não era o mais adequado para a época. Quem quer que fosse essa mulher, se existiu, esteve sempre imóvel e parecia olhar para mim. Uma mulher vestida de vermelho, com ar de pessoa vinda da época dos anos trinta, de maneira alguma passaria despercebida. Mas os donos do café tinham sido categóricos ao negarem a sua presença.
Como resultado deste fenómeno, perderam um bom cliente, pois desisti de pôr boletins de totoloto no café.
Dias mais tarde recebi um recado. Queriam falar comigo, no que recusei logo. Para mim o caso passado no café do Norte era coisa encerrada.
Mas fiz mal. Até talvez pudessem ter dados relacionados com outros casos ocorridos no café.
Que se passou comigo?
Tinha a certeza de ter visto no café a mulher vestida de vermelho e também a certeza de que não tomei qualquer droga que me tivesse afetado o meu estado psíquico.
Quem me roubou o sossego?
Quem está a espicaçar a minha curiosidade?
Talvez uma viajante que veio do passado e entrou no meu espaço temporal, ou tudo não passou de um momento de alucinação.
Não podia ter sido uma alucinação. Estava calmo quando entrei no café e aquilo aconteceu de um momento para o outro.
Tinha a certeza de ter visto no café a mulher vestida de vermelho e também a certeza de que não tomei qualquer droga que me tivesse afetado o meu estado psíquico.
Quem me roubou o sossego?
Quem está a espicaçar a minha curiosidade?
Talvez uma viajante que veio do passado e entrou no meu espaço temporal, ou tudo não passou de um momento de alucinação.
Não podia ter sido uma alucinação. Estava calmo quando entrei no café e aquilo aconteceu de um momento para o outro.
E quanto à hipótese dela ter vindo do passado também podia cair por terra porque aqueles óculos espelhados aparentavam ter um design muito atual.
Então podia ter sido um sinal vindo do futuro.
Uma pergunta pertinente: que força telúrica existia naquele café?
Então podia ter sido um sinal vindo do futuro.
Uma pergunta pertinente: que força telúrica existia naquele café?
Fenómeno ou alucinação?
Um amigo admitiu que nessa fase crítica da minha vida andava a passar por um desdobramento de personalidade devido a causas exógenas. Uma das minhas partes chamava a si os fenómenos insólitos. Pela outra seguiam as ocorrências naturais.
O que quer que tenha acontecido naquela manhã de junho, dá para pensar seriamente. A mulher vestida de vermelho que vi no café do Norte apresentava indícios mistos no vestuário e acessórios, o que me confunde ainda hoje. O vestuário e o penteado enquadravam-se na época que podia ir dos anos trinta aos anos quarenta. Não referi os sapatos porque não os vi. A mulher ocupava uma mesa central ao fundo e as mesas da frente tapavam-me a visão para tudo situado abaixo do nível do tampo da mesa. Quanto aos óculos espelhados, que nada deixavam ver para lá deles, eram certamente modernos. Outro pormenor... na altura disse que não me lembrava de ver em cima de mesa uma chávena de café. Certo. Os donos do café afirmaram que não havia ninguém no café. Mas, para mim, quando entrei no café, a mulher estava lá e só eu a podia ver.
Donde veio?
Primeiro, admiti tratar-se de um fantasma. Uma hipótese que não ponho totalmente de parte. No entanto, não senti frio nem me arrepiei dos pés à cabeça. Apenas senti o bloqueio já referenciado na descrição que repito abaixo. Portanto, essa mulher era alguém que tinha viajado no tempo. Vinha do passado ou do futuro. Um contra para vir do futuro, o seu traje. Um contra para vir do passado, os modernos óculos espelhados.
Em que ficamos?
Veio por minha causa ou encontrámo-nos por acaso?
E por que motivo não vi a mulher de vermelho quando da primeira perturbação que tive no café?
O mistério persiste. A não ser que a mulher de vermelho regresse...
6 de fevereiro de 1988. Que querem eles de mim?
A primeira vez...
Escrevo ao sabor da pena. Ou melhor: ao sabor de outra vontade. Estou confuso. A minha mão parece não ter força. Penso que é só impressão. Quero explicar o que sinto, mas aquilo não me deixa.
Tudo começou de manhã, em Lisboa. Apanhei um grande susto ao olhar para o espelho da casa de banho. Tinha um zumbido forte no ouvido e ouvia mal. Ao mesmo tempo, o meu rosto estava muito pálido e alucinado. O sangue fugira da cabeça, pensei. Tentei reagir. Não conseguia, não conseguia. Estava obcecado com a ideia de não conseguir.
Mas não conseguir, o quê?
Reagi e fui deitar-me outra vez. Sentia-me confuso. Não gostava nada de ver o meu rosto ao espelho. Pálido, afilado. O zumbido passara um pouco. Precisava de medir a tensão. Vesti-me e saí.
Ao atravessar a Alameda para o outro lado, agi como uma pessoa de idade avançada. Estava nitidamente perturbado. Perto do posto vi um homem baixo, de rosto cheio, à porta de uma mercearia. O homem vestia um blusão azul e olhava, com insistência, para mim. De certeza que dera conta do meu estado de espírito. Ao passar por ele, dei comigo a perguntar o que fazia aquele homem encostado à porta da mercearia.
Os valores da tensão não eram famosos. A mínima era oito e a máxima dezasseis. Aconselharam-me a ir ao médico.
Voltei a casa. O zumbido não passava. Era certo que estava menos nervoso.
Tomei banho, mas não fiquei melhor. Por vezes, um banho bem quente é retemperador. Mas o problema talvez não estivesse no corpo.
Seria fígado?
Uma esperança. Talvez fosse bom deitar um guronsan num copo de água. A minha companheira insurgiu-se. Queria, à viva força, que eu tomasse um ansiolítico.
Decidi-me a ir ao posto de atendimento permanente.
Coisa estranha! Eu a entrar no posto e o homem do blusão azul a sair. Dei conta que me reconheceu. Era coincidência a mais, pensei. Mas havia outro pormenor que considerei importante. Tinha o cabelo muito acachapado e fazia lembrar o meu padrinho de nascimento.
«Que coisa parva!» pensei. «O meu padrinho morreu há tanto tempo...»
Fui atendido por uma médica que me deu pouca atenção. Afinal, a tensão estava normal e o problema nos ouvidos era acumulação de cera. Receitou-me otoceril (óbvio) e que marcasse uma consulta para o especialista. E também "adeus, ó vai-te embora".
Nessa manhã fui para E..., embora contrariado. Ela não dispensava um fim-de-semana na casa da praia. Ou melhor: no café Mimoso.
Continuava a não me sentir bem e os sinais exteriores que captava também em nada ajudavam. Por exemplo, vi, logo no início da autoestrada para Loures, um homem caminhando pela berma no sentido contrário ao nosso. Além de ser proibida a circulação de peões, o que já era estranho, o homem levou uma mão à garganta e inclinou a cabeça, mantendo aqueles gestos e continuando a caminhar. Tinha um ar de anormal. Talvez fosse. Comentei com ela. Não dera conta. Olhei pelo retrovisor. O homem continuava na mesma atitude.
Já perto de Loures, o indicador de nível da gasolina, sem qualquer motivo justificativo, baixou para zero. Logo a seguir, vi gaivotas no céu, voando alto.
«São pombos.» Disse a minha companheira.
Não eram pombos. Os pombos batiam as asas com mais frequência.
Almocei em casa. Sozinho. Como de costume. Grelhei um bife e fiz arroz branco. Talvez que uma dieta me fizesse bem. Depois do almoço deitei-me a descansar e dormitei um pouco. Acordei com a ideia dos bilhetes de totoloto. Tinha uns prémios para receber em mais de uma agência.
Levantei-me e fui à casa de banho. Complicou-se tudo de novo. O rosto que via no espelho da casa de banho não me agradava. Parecia mais alongado e o olhar não estava normal.
Seria capaz...?
De novo o bloqueio. Claro que era capaz!
Olhei o mar pela janela da casa da entrada. Senti-o mais perto que o habitual.
Que droga tinha tomado?
Tencionava ir receber os prémios do totoloto ao café do Norte e a outro.
Devia levar todos os boletins?
Tanta insegurança! De repente não era eu. Parecia ser uma coisa muito complicada receber prémios.
Mal entrei no café, comecei a esfregar as mãos. Sentia-as frias, bem como os pés. O tempo estava ventoso, desagradável, mas não tanto ao mar nem tanto à terra...
Houve logo problemas quando comecei a assinar os cheques. A letra era miúda e vacilante, como se não tivesse força na mão. Ao terceiro ou quarto cheque senti grande dificuldade em assinar. A mão tremia, a nuca tremia. Sentia um bloqueio, principalmente quando chegava ao segundo nome. Depois, a dona do café não ajudava. Era muito lenta a procurar os cheques.
O quarto cheque foi ainda mais difícil de assinar. A meio do nome a mão tremeu mais e quase que não consegui continuar. Não tinha força. Não tinha força na mão direita. A nuca continuava a tremer. Creio que todo eu tremia. Fiquei inoperante ao quinto cheque. A dona do café dera conta e parecia algo preocupada comigo.
Era estranho, porque, apesar do bloqueio, eu estava perfeitamente consciente e não me escapava o mínimo pormenor: comigo e à minha volta.
Como eram só quintos prémios, assinou-me o resto dos cheques e eu desculpei-me que estava com gripe. Depois apareceu o marido. Ficou também preocupado.
Estava a acontecer algo muito grave. Lembrava-me um romance de ficção científica. “Os Possuídos”. Era isso. Ficara possuído sei lá por quem!
Cheguei a casa a tremer. As forças faltavam-me. Fui à casa de banho várias vezes para olhar o meu rosto ao espelho. Queria ter a certeza que era eu. A imagem que via refletida era sempre a mesma: um rosto em pânico, alucinado, e uma sensação estranha que me colocava numa encruzilhada. Ou estava a enlouquecer, ou destapara inconscientemente naquele momento mais uma cortina.
Fiz tudo para reagir, mas a outra força era maior. Tomei meio comprimido de xanax. Gritei então qualquer coisa como se havia alguém, que esse alguém se manifestasse.
Deitei-me sobre a cama, exausto. Tremia muito. O pânico era dono e senhor de mim.
Gritei por duas ou três vezes:
«Que querem de mim?»
Desafiava assim a força que não via nem ouvia. Mesmo em pânico tentava desafiar o invisível. Não estava sozinho. Tinha a certeza. Mas tive como resposta o silêncio. Um silêncio absoluto que ainda me gelou mais. Continuava a tremer e não tinha força nas mãos.
Ou era tudo ilusão?
Peguei, sem esforço, na telefonia grande, portátil. Afinal, estava enganado.
Mas... e o frio que sentia nas mãos e no resto do corpo?
Delirava. De certeza que delirava. Começava a duvidar da minha sanidade mental.
«Vai ter uma doença grave.» Dissera, um dia, uma vidente.
Lembrei-me da Lara. Talvez me fizesse bem escrever. Sim. Escrever ao acaso. Mas dei conta que as ideias moravam longe. Escrever ao acaso. Era isso. Deixar a imaginação soltar-se, livre como o vento.
Aos poucos, as frases foram tomando nexo e acabei por estabelecer um fio condutor entre o subconsciente e a fluência das palavras. Sobretudo queria compreender o que me estava acontecendo. As palavras que escrevia eram de um Mário mais temerário do que o aquilo que se apossara de mim. Constituíam um desafio ao outro lado, mas ainda não estava preparado. Por um lado, desafiava; por outro rejeitava.
Mas fez-me bem. Os pensamentos estavam, de novo, coerentes. Já não havia pesadelo. A tempestade interior abrandara. Não sabia se tudo não passara de pura alucinação ou se fora um fenómeno paranormal. Tentei compreender o porquê da alteração psicológica que tinha começado em Lisboa. Teria alguém entrado?
Voltei a falar das gaivotas quando ela chegou a casa.
«Eram pombos...»
Pombos, uma ova! Insisti que me pareceram gaivotas.
«Vemos sempre coisas diferentes.»
Que aconteceu comigo?
Somos dois?
Quem invadiu o meu cérebro e depois desapareceu, sem deixar rasto?
Não saí depois do jantar e deitei-me cedo. Ainda assisti ao sorteio do totoloto e tive um terceiro prémio. Foi bom. Éramos vários sócios. Talvez dez. Mas foi bom, apesar de tudo. Moralizou a sociedade.
Adormeci quase a seguir ao sorteio.
Estávamos sentados a assistir a um espetáculo. Lembro-me que fiquei do lado esquerdo. Havia uma música de fundo que parecia servir de acompanhamento para as imagens, ou então indicava a passagem para uma cena nova. Não me lembro do tema. Parecia mais teatro que filme.
A música começou a ter efeitos especiais. Sim. Algo de intrigante ia acontecer. Ficámos à espera. Ao mesmo tempo, abria-se, lentamente, uma porta. Negativo. Já não havia imagens. A porta deslocava-se da esquerda para a direita. Primeiro, lentamente. Depois, aumentou a velocidade e a música de fundo subiu de volume. Suspense! Não sabia o que ia acontecer a seguir. E a porta continuava a deslocar-se, a deslocar-se. Cada vez mais depressa. E eu impotente. Ia acontecer qualquer coisa de grave! E eu ansioso. Cada vez mais ansioso e afastado do centro do poder.
O que estava para lá da porta?
A minha companheira pareceu responder à pergunta muda que fiz. Levantou-se (nesse momento estava atrás de mim...) e encaminhou-se para a porta. Nada podia fazer. Vi-a passar para o outro lado. Vestia um saia-casaco castanho. Continuou a andar, sempre em frente, sempre em frente... até que deixei de a ver. Sumiu-se como o fumo.
Que fazer neste caso?
Acordar...
Eram dez horas quando entrámos no carro. Desembraiei antes de o pôr a trabalhar. O pedal da embraiagem ficou no fundo. Tinha acabado de partir o cabo.
Onde encontrar um mecânico ao domingo?
Só partimos a seguir ao almoço. Partimos com Deus ou sem Deus e não voltei a ver gaivotas no ar. A tempestade tinha ido para lá da porta. Aconteceu muita coisa em pouco tempo e sinto consciência que passei por uma crise grave cujas causas são indeterminadas. Mas sinto-me enriquecido, embora ainda muitas perguntas tenham ficado sem resposta. Progredi. Julgo que progredi. Contudo, não sei se tenho vontade de progredir mais. É perigoso.
Será que um dos meus “eus” está escondido nas profundezas do subconsciente?
Apesar de tudo sobrevivi àquela espécie de ladrão que se apoderou de mim e fugiu, com o rabo entre as pernas, quando pressentiu que podia tornar-se meu prisioneiro.
Não fosse eu capaz de o identificar...
Voltando...
A mulher continuava imóvel, olhando ainda na minha direção. Foi pena não ter resistido mais uns minutos para poder observar mais alguns pormenores. O receio foi superior à curiosidade.
Tudo voltou à normalidade quando saí. Foi como se tivesse havido uma descompressão. De súbito, libertava-me do pesadelo. Estava cá fora e já não a tinha na minha frente. Voltava a ser eu. EU. O outro escondera-se, algures, nos subterrâneos insondáveis daquilo que se chama subconsciente. Afinal, não passara de mais uma prova de força que, provavelmente, voltaria a manifestar-se. Digo a palavra provavelmente porque, no momento, preferi não enfrentar este fenómeno.
Demoraria a entender todo este jogo que se desenvolvia sem que tivesse sido convidado a participar nele. Também era de admitir a hipótese de nunca vir a descobrir quem se escondia atrás da mulher de vermelho.
Um fantasma?
Talvez uma projeção. Ou o fruto de uma alucinação.
Um Leão nunca desiste. Pode virar as costas, mas só for por desinteresse. Não desiste quando a curiosidade e o interesse se manifestam com insistência.
A verdade é que estava cada vez mais obcecado pelos múltiplos fenómenos que se desencadeavam à minha volta e pareciam estar ligados à tentativa de comunicação de alguém comigo. Tentativa infrutífera, embora com alguns progressos. O meu medo era sempre mais intenso que a curiosidade de descobrir.
Voltei para casa e deitei-me em cima da cama e ali me deixei ficar em atitude de meditação. Tudo se repetia, como da outra vez. Só que agora já me sentia bem. A crise passou depressa.
Este dia representara um marco importante. Tinha quase a certeza que alguém viera do lado de lá para ver-me. Era o primeiro sinal forte e consistente de que havia qualquer coisa do outro lado e que alguém talvez quisesse comunicar comigo.
Não podia ter sido uma alucinação. Estava calmo quando entrei no café. E quanto à hipótese de ela ter vindo do passado também podia cair por terra porque aqueles óculos espelhados aparentavam ter um design bem atual.
Então podia pensar num sinal vindo do futuro.
Uma pergunta pertinente: que força telúrica existia naquele café?
Nunca mais me esqueci daquelas manhãs de Fevereiro e de junho. Já se passou muito tempo e ainda não perdi a esperança de encontrar de novo a mulher de vermelho. A acontecer, desta vez não vou fugir. Sento-me à sua mesa e logo descubro se veio do passado, do futuro, ou se é um fantasma, ou então, se nada for disto, um raio que a parta!
Escrevo ao sabor da pena. Ou melhor: ao sabor de outra vontade. Estou confuso. A minha mão parece não ter força. Penso que é só impressão. Quero explicar o que sinto, mas aquilo não me deixa.
Tudo começou de manhã, em Lisboa. Apanhei um grande susto ao olhar para o espelho da casa de banho. Tinha um zumbido forte no ouvido e ouvia mal. Ao mesmo tempo, o meu rosto estava muito pálido e alucinado. O sangue fugira da cabeça, pensei. Tentei reagir. Não conseguia, não conseguia. Estava obcecado com a ideia de não conseguir.
Mas não conseguir, o quê?
Reagi e fui deitar-me outra vez. Sentia-me confuso. Não gostava nada de ver o meu rosto ao espelho. Pálido, afilado. O zumbido passara um pouco. Precisava de medir a tensão. Vesti-me e saí.
Ao atravessar a Alameda para o outro lado, agi como uma pessoa de idade avançada. Estava nitidamente perturbado. Perto do posto vi um homem baixo, de rosto cheio, à porta de uma mercearia. O homem vestia um blusão azul e olhava, com insistência, para mim. De certeza que dera conta do meu estado de espírito. Ao passar por ele, dei comigo a perguntar o que fazia aquele homem encostado à porta da mercearia.
Os valores da tensão não eram famosos. A mínima era oito e a máxima dezasseis. Aconselharam-me a ir ao médico.
Voltei a casa. O zumbido não passava. Era certo que estava menos nervoso.
Tomei banho, mas não fiquei melhor. Por vezes, um banho bem quente é retemperador. Mas o problema talvez não estivesse no corpo.
Seria fígado?
Uma esperança. Talvez fosse bom deitar um guronsan num copo de água. A minha companheira insurgiu-se. Queria, à viva força, que eu tomasse um ansiolítico.
Decidi-me a ir ao posto de atendimento permanente.
Coisa estranha! Eu a entrar no posto e o homem do blusão azul a sair. Dei conta que me reconheceu. Era coincidência a mais, pensei. Mas havia outro pormenor que considerei importante. Tinha o cabelo muito acachapado e fazia lembrar o meu padrinho de nascimento.
«Que coisa parva!» pensei. «O meu padrinho morreu há tanto tempo...»
Fui atendido por uma médica que me deu pouca atenção. Afinal, a tensão estava normal e o problema nos ouvidos era acumulação de cera. Receitou-me otoceril (óbvio) e que marcasse uma consulta para o especialista. E também "adeus, ó vai-te embora".
Nessa manhã fui para E..., embora contrariado. Ela não dispensava um fim-de-semana na casa da praia. Ou melhor: no café Mimoso.
Continuava a não me sentir bem e os sinais exteriores que captava também em nada ajudavam. Por exemplo, vi, logo no início da autoestrada para Loures, um homem caminhando pela berma no sentido contrário ao nosso. Além de ser proibida a circulação de peões, o que já era estranho, o homem levou uma mão à garganta e inclinou a cabeça, mantendo aqueles gestos e continuando a caminhar. Tinha um ar de anormal. Talvez fosse. Comentei com ela. Não dera conta. Olhei pelo retrovisor. O homem continuava na mesma atitude.
Já perto de Loures, o indicador de nível da gasolina, sem qualquer motivo justificativo, baixou para zero. Logo a seguir, vi gaivotas no céu, voando alto.
«São pombos.» Disse a minha companheira.
Não eram pombos. Os pombos batiam as asas com mais frequência.
Almocei em casa. Sozinho. Como de costume. Grelhei um bife e fiz arroz branco. Talvez que uma dieta me fizesse bem. Depois do almoço deitei-me a descansar e dormitei um pouco. Acordei com a ideia dos bilhetes de totoloto. Tinha uns prémios para receber em mais de uma agência.
Levantei-me e fui à casa de banho. Complicou-se tudo de novo. O rosto que via no espelho da casa de banho não me agradava. Parecia mais alongado e o olhar não estava normal.
Seria capaz...?
De novo o bloqueio. Claro que era capaz!
Olhei o mar pela janela da casa da entrada. Senti-o mais perto que o habitual.
Que droga tinha tomado?
Tencionava ir receber os prémios do totoloto ao café do Norte e a outro.
Devia levar todos os boletins?
Tanta insegurança! De repente não era eu. Parecia ser uma coisa muito complicada receber prémios.
Mal entrei no café, comecei a esfregar as mãos. Sentia-as frias, bem como os pés. O tempo estava ventoso, desagradável, mas não tanto ao mar nem tanto à terra...
Houve logo problemas quando comecei a assinar os cheques. A letra era miúda e vacilante, como se não tivesse força na mão. Ao terceiro ou quarto cheque senti grande dificuldade em assinar. A mão tremia, a nuca tremia. Sentia um bloqueio, principalmente quando chegava ao segundo nome. Depois, a dona do café não ajudava. Era muito lenta a procurar os cheques.
O quarto cheque foi ainda mais difícil de assinar. A meio do nome a mão tremeu mais e quase que não consegui continuar. Não tinha força. Não tinha força na mão direita. A nuca continuava a tremer. Creio que todo eu tremia. Fiquei inoperante ao quinto cheque. A dona do café dera conta e parecia algo preocupada comigo.
Era estranho, porque, apesar do bloqueio, eu estava perfeitamente consciente e não me escapava o mínimo pormenor: comigo e à minha volta.
Como eram só quintos prémios, assinou-me o resto dos cheques e eu desculpei-me que estava com gripe. Depois apareceu o marido. Ficou também preocupado.
Estava a acontecer algo muito grave. Lembrava-me um romance de ficção científica. “Os Possuídos”. Era isso. Ficara possuído sei lá por quem!
Cheguei a casa a tremer. As forças faltavam-me. Fui à casa de banho várias vezes para olhar o meu rosto ao espelho. Queria ter a certeza que era eu. A imagem que via refletida era sempre a mesma: um rosto em pânico, alucinado, e uma sensação estranha que me colocava numa encruzilhada. Ou estava a enlouquecer, ou destapara inconscientemente naquele momento mais uma cortina.
Fiz tudo para reagir, mas a outra força era maior. Tomei meio comprimido de xanax. Gritei então qualquer coisa como se havia alguém, que esse alguém se manifestasse.
Deitei-me sobre a cama, exausto. Tremia muito. O pânico era dono e senhor de mim.
Gritei por duas ou três vezes:
«Que querem de mim?»
Desafiava assim a força que não via nem ouvia. Mesmo em pânico tentava desafiar o invisível. Não estava sozinho. Tinha a certeza. Mas tive como resposta o silêncio. Um silêncio absoluto que ainda me gelou mais. Continuava a tremer e não tinha força nas mãos.
Ou era tudo ilusão?
Peguei, sem esforço, na telefonia grande, portátil. Afinal, estava enganado.
Mas... e o frio que sentia nas mãos e no resto do corpo?
Delirava. De certeza que delirava. Começava a duvidar da minha sanidade mental.
«Vai ter uma doença grave.» Dissera, um dia, uma vidente.
Lembrei-me da Lara. Talvez me fizesse bem escrever. Sim. Escrever ao acaso. Mas dei conta que as ideias moravam longe. Escrever ao acaso. Era isso. Deixar a imaginação soltar-se, livre como o vento.
Aos poucos, as frases foram tomando nexo e acabei por estabelecer um fio condutor entre o subconsciente e a fluência das palavras. Sobretudo queria compreender o que me estava acontecendo. As palavras que escrevia eram de um Mário mais temerário do que o aquilo que se apossara de mim. Constituíam um desafio ao outro lado, mas ainda não estava preparado. Por um lado, desafiava; por outro rejeitava.
Mas fez-me bem. Os pensamentos estavam, de novo, coerentes. Já não havia pesadelo. A tempestade interior abrandara. Não sabia se tudo não passara de pura alucinação ou se fora um fenómeno paranormal. Tentei compreender o porquê da alteração psicológica que tinha começado em Lisboa. Teria alguém entrado?
Voltei a falar das gaivotas quando ela chegou a casa.
«Eram pombos...»
Pombos, uma ova! Insisti que me pareceram gaivotas.
«Vemos sempre coisas diferentes.»
Que aconteceu comigo?
Somos dois?
Quem invadiu o meu cérebro e depois desapareceu, sem deixar rasto?
Não saí depois do jantar e deitei-me cedo. Ainda assisti ao sorteio do totoloto e tive um terceiro prémio. Foi bom. Éramos vários sócios. Talvez dez. Mas foi bom, apesar de tudo. Moralizou a sociedade.
Adormeci quase a seguir ao sorteio.
Estávamos sentados a assistir a um espetáculo. Lembro-me que fiquei do lado esquerdo. Havia uma música de fundo que parecia servir de acompanhamento para as imagens, ou então indicava a passagem para uma cena nova. Não me lembro do tema. Parecia mais teatro que filme.
A música começou a ter efeitos especiais. Sim. Algo de intrigante ia acontecer. Ficámos à espera. Ao mesmo tempo, abria-se, lentamente, uma porta. Negativo. Já não havia imagens. A porta deslocava-se da esquerda para a direita. Primeiro, lentamente. Depois, aumentou a velocidade e a música de fundo subiu de volume. Suspense! Não sabia o que ia acontecer a seguir. E a porta continuava a deslocar-se, a deslocar-se. Cada vez mais depressa. E eu impotente. Ia acontecer qualquer coisa de grave! E eu ansioso. Cada vez mais ansioso e afastado do centro do poder.
O que estava para lá da porta?
A minha companheira pareceu responder à pergunta muda que fiz. Levantou-se (nesse momento estava atrás de mim...) e encaminhou-se para a porta. Nada podia fazer. Vi-a passar para o outro lado. Vestia um saia-casaco castanho. Continuou a andar, sempre em frente, sempre em frente... até que deixei de a ver. Sumiu-se como o fumo.
Que fazer neste caso?
Acordar...
Eram dez horas quando entrámos no carro. Desembraiei antes de o pôr a trabalhar. O pedal da embraiagem ficou no fundo. Tinha acabado de partir o cabo.
Onde encontrar um mecânico ao domingo?
Só partimos a seguir ao almoço. Partimos com Deus ou sem Deus e não voltei a ver gaivotas no ar. A tempestade tinha ido para lá da porta. Aconteceu muita coisa em pouco tempo e sinto consciência que passei por uma crise grave cujas causas são indeterminadas. Mas sinto-me enriquecido, embora ainda muitas perguntas tenham ficado sem resposta. Progredi. Julgo que progredi. Contudo, não sei se tenho vontade de progredir mais. É perigoso.
Será que um dos meus “eus” está escondido nas profundezas do subconsciente?
Apesar de tudo sobrevivi àquela espécie de ladrão que se apoderou de mim e fugiu, com o rabo entre as pernas, quando pressentiu que podia tornar-se meu prisioneiro.
Não fosse eu capaz de o identificar...
Voltando...
A mulher continuava imóvel, olhando ainda na minha direção. Foi pena não ter resistido mais uns minutos para poder observar mais alguns pormenores. O receio foi superior à curiosidade.
Tudo voltou à normalidade quando saí. Foi como se tivesse havido uma descompressão. De súbito, libertava-me do pesadelo. Estava cá fora e já não a tinha na minha frente. Voltava a ser eu. EU. O outro escondera-se, algures, nos subterrâneos insondáveis daquilo que se chama subconsciente. Afinal, não passara de mais uma prova de força que, provavelmente, voltaria a manifestar-se. Digo a palavra provavelmente porque, no momento, preferi não enfrentar este fenómeno.
Demoraria a entender todo este jogo que se desenvolvia sem que tivesse sido convidado a participar nele. Também era de admitir a hipótese de nunca vir a descobrir quem se escondia atrás da mulher de vermelho.
Um fantasma?
Talvez uma projeção. Ou o fruto de uma alucinação.
Um Leão nunca desiste. Pode virar as costas, mas só for por desinteresse. Não desiste quando a curiosidade e o interesse se manifestam com insistência.
A verdade é que estava cada vez mais obcecado pelos múltiplos fenómenos que se desencadeavam à minha volta e pareciam estar ligados à tentativa de comunicação de alguém comigo. Tentativa infrutífera, embora com alguns progressos. O meu medo era sempre mais intenso que a curiosidade de descobrir.
Voltei para casa e deitei-me em cima da cama e ali me deixei ficar em atitude de meditação. Tudo se repetia, como da outra vez. Só que agora já me sentia bem. A crise passou depressa.
Este dia representara um marco importante. Tinha quase a certeza que alguém viera do lado de lá para ver-me. Era o primeiro sinal forte e consistente de que havia qualquer coisa do outro lado e que alguém talvez quisesse comunicar comigo.
Não podia ter sido uma alucinação. Estava calmo quando entrei no café. E quanto à hipótese de ela ter vindo do passado também podia cair por terra porque aqueles óculos espelhados aparentavam ter um design bem atual.
Então podia pensar num sinal vindo do futuro.
Uma pergunta pertinente: que força telúrica existia naquele café?
Nunca mais me esqueci daquelas manhãs de Fevereiro e de junho. Já se passou muito tempo e ainda não perdi a esperança de encontrar de novo a mulher de vermelho. A acontecer, desta vez não vou fugir. Sento-me à sua mesa e logo descubro se veio do passado, do futuro, ou se é um fantasma, ou então, se nada for disto, um raio que a parta!


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