sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Mistério na esplanada

 


Passou pela antiga padaria onde o pai encomendava as carcaças antes de se dirigir à praça para comprar o peixe, a carne, as frutas e os vegetais, fazendo o trajeto ao contrário, sem encomendar o pão. Aliás, na praça havia duas ou três bancas de venda de pão. O chamado pão saloio, a carcaça e a bola de mistura, para não fazer referência aos bolos secos e suspiros confecionados com açúcar louro, menos refinado que o branco.
Esteve parado um minuto em frente a uma dessas bancas e acabou por decidir que passava depois pela padaria. Ainda foi buscar o saco da fruta que dera a guardar à vendedora do costume e só então sentiu que já levava muito peso.
«Faz favor?»
«Quatro bolas e cinco carcaças. Mal cozidas...»
Não acabou a frase. Provavelmente o “por favor”. O motivo foi simples. Uma criança muito morena, de rosto sujo, surgiu ao seu lado direito e pediu-lhe um copo de leite. Sem mais nem menos. Esperava tudo. Por exemplo, que a criança pedisse uma esmola, como era natural. Mas não. A miúda queria apenas um copo de leite.
Olhou para ela e depois para a empregada que o ia atender e que, entretanto, suspendera a sua atividade e estava de mãos nas ancas, na expectativa.
«Queres um copo de leite. Muito bem. Pois então, vais beber o leite todo, percebes?»
A miúda, de etnia cigana, disse que sim com a cabeça.
«Elas só estragam.» Afirmou a outra empregada, que na altura fazia um troco na registadora e seguia com atenção a cena.
Mas a ciganinha já fizera novo pedido. Não era apenas um copo de leite. Um bolo. Queria um bolo.
A empregada que o atendia na altura continuava de mãos nas ancas. Em face do novo pedido abanou negativamente a cabeça. Ele fingiu não reparar no aviso.
«Está bem. Vá, escolhe o bolo.»
Má escolha, para ele. Um mil folhas.
«Esse faz-te mal.» Negou.
Censura pouco democrática, mas certa. A criança apontou para mais três ou quatro bolos todos com o peso negativo do primeiro.
Teve que ser ele a decidir.
«Queres um pastel de nata?»
O menos mau dentro do mau. A empregada, que continuava junto da caixa registadora, voltou a insistir que a miúda ia estragar. A outra já estava a guardar as carcaças e as bolas no saco de papel. Finalmente atirara-se ao trabalho. Não era sem tempo.
«Comes tudo?»
Disse que sim e ele fez um sinal para a empregada.
«Quanto devo de tudo?»
Pagou com uma nota de cinco euros e ficou à espera do troco.
«O que é que se diz?» perguntou a empregada, voltando-se para a miúda.
«Obrigado.»
«Ah!»
Queria o leite quente. A empregada dizia-lhe que já estava quente e ela negava.
«Não posso aquecer mais. Depois queimas-te.»
Começou a beber o leite no momento em que entrou um cliente que se encostou ao balcão a cerca de um metro de distância dela. A criança pousou o copo no balcão e atacou logo o cliente. Desta vez pediu dinheiro.
«Não podes fazer duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, bebes o leite e comes o bolo.» Ordenou.
A miúda não respondeu, mas desistiu da pedincha, voltando ao copo com leite e ao pastel de nata e os dois clientes trocaram um sorriso cúmplice.
Recebeu o troco e, antes de sair, virou-se para a miúda:
«Daqui a pouco passo por aqui e pergunto às senhoras se comeste tudo, ouviste?»
A criança acenou afirmativamente com a cabeça.
Deu os bons dias e foi à sua vida, queixando-se, num resmungo interior, do peso excessivo que carregava. Tinha abusado na quantidade da fruta que comprou.

Já perto de casa, ao sentar-se num banco do jardim para dar descanso às pernas e aos braços, lembrou-se de uma história que lhe tinha contado como verdadeira a coordenadora de Setúbal no tempo em esteve destacado no Ministério da Educação, no Projeto de má memória, no aspeto profissional e não só.
Nunca pôde averiguar a veracidade daquele caso, mas na altura acreditou tal a veemência com que a Idalina lhe relatou a história. De certa forma, com muita boa vontade, encaixava-se no que acabava de lhe acontecer naquela padaria que já não era só padaria e cada vez seria mais replicada no futuro.

O caso passou-se no verão numa esplanada de Setúbal, onde se encontravam habitualmente alguns grandes industriais da cidade do Bocage, acompanhados dos respetivos cônjuges. Eram todos católicos praticantes, à exceção de um deles, ateu cem por cento, embora fosse uma pessoa de bom coração. Claro que nada tinha a ver a formação moral com a religião de cada um. Era uma questão de berço ou de estado moral inerente à pessoa. Quanto a ele, as pessoas não nasciam iguais no que dizia respeito aos sentimentos.
Acontecia que o nosso homem ateu nunca fechava a porta a um pedido que tocasse forte na sua sensibilidade. Não acreditava na existência de Deus, da Virgem Maria, de Jesus tal como contavam, muito menos, nos santos. Especialmente no fenómeno das aparições da Cova da Iria, para ele um acontecimento obscuro muito explorado pelos clérigos.
«Mas... e o milagre do sol? Muitas pessoas viram-no bailar! Ao menos leste os depoimentos do Século na época?»
«Por acaso até li e fiquei com mais dúvidas que certezas. Pensei muito e hoje acho que foi tudo um embuste. Quanto a mim, não passou de mais um caso de ovnis
«Isso é sacrilégio, Fragoso!»
«Seja. Mas lê o livro da Fina d´Armada e depois diz-me alguma coisa. Um sacrilégio, no vosso ponto de vista, mas respeitem a minha opinião que, aliás, nunca mudou. E jamais lhes neguei nada quando me vieram pedir uma contribuição para ajudar os vossos pobres, pois não? Escusam de insistir na vaca fria. Sou vosso amigo, mas não seguidor. Que fique bem esclarecido de uma vez por todas.»
«Pronto, pronto, não te exaltes.»
«É que vocês são mesmo teimosos! E só veem para a frente.»
Era verdade. Mas para contribuir tinha que se apoiar na multiplicação dos cifrões, como o tal Jesus que multiplicara os pães, embora desconhecesse a base logística em que se apoiava.
«Vem connosco à igreja. Assiste só. Não te pedimos mais nada.»
Irritou-se ainda mais.
«Nem quero ouvir o padre Luís e muito menos o padre Francisco que vai à noite de moto para Lisboa. E sabem onde o podem encontrar?»
«Lá estás tu a desconversar. E a irmã Sofia?, que tens a dizer dessa santa mulher?»
Era mais sensível à palavra das mulheres, mas resistiu.
«Nada tenho contra ela. Nem sequer a conheço...»
«Mais uma razão. Vem ter connosco à igreja que ninguém te come, grande teimoso.»
Como sair daquele imbróglio?
Foi então que uma ideia luminosa aflorou-lhe de repente a mente. Em boa hora.

Porque não se lembrara há mais tempo?
«Que estás a congeminar para aí, Fragoso?»
«Só vou à igreja com uma condição.»
Finalmente tinham conseguido o milagre. Que Deus fosse louvado!
«E qual é essa condição?»
«Só se um dia...»
Ficaram todos na expectativa.

«Diz. Desembucha, criatura de Deus!»
«Só se um dia o vosso Jesus pedir para tomar o pequeno-almoço comigo. Claro que tem direito a tudo menos ao café! O vosso Jesus não cometia o pecado de tomar uma droga, mesmo que esta fosse lícita. O ato de se dividirem as drogas em lícitas ou ilícitas é apenas uma convenção. Vejam o exemplo do álcool. Um alcoólico até chega a ter alucinações. Mas...»
«Deixa-te de discursos e de gozar connosco!»
«Não estou a gozar. Não saio da minha. Só se Jesus pedir para tomar o pequeno almoço comigo. Ponto final. Acabou-se a questão.»
Os amigos sentiram-se ofendidos e ele ficou livre de ser incomodado, pois que a sua condição, a roçar o absurdo, conduziu a uma rutura drástica. A partir daquele dia os amigos deixaram de frequentar a esplanada. Se ele se importou ou não, a narradora não disse.
O tempo foi correndo, impiedoso como de costume, mas não demorou um mês que um acontecimento algo estranho viesse confirmar uma máxima que dizia que o mundo dava muitas voltas. E de facto deu. Uma volta incrível!

Nesse ano a temperatura amena prolongou-se dezembro fora. Como de costume, estava a tomar o pequeno-almoço na esplanada. Chá e torradas. Estas barradas com manteiga que nada tinha a ver com sucedâneo. Manteiga genuína.
Amanhecera sem vento. A sua disposição não podia ser melhor. Certamente que o negócio de fornecimento de cortiça para exportação que talvez fosse selado nas horas mais próximas tinha boas perspetivas de êxito. Parecia-lhe que o negócio estava fechado e ele só tinha motivos para se sentir bem disposto.
Mas aquele dia prometia mais ainda, porquê?
Coisa muito simples. A inclinação da Terra alterou-se de um milésimo de milionésimo de grau e foi o bastante para provocar a tal alteração favorável. E as torradas estavam saborosas. Muito louras, quentes e bem barradas com manteiga genuína. Um sonho.
«Deixas-me tomar o pequeno-almoço contigo?»
Levantou os olhos, surpreendido. De surpreendido passou de imediato a cético.

Aqueles fulanos estavam a gozar com ele! Era pior que a vingança do chinês. 
Mas arrepiou-se. E os arrepios não estavam relacionados com a clássica história da vingança do chinês que utilizou um tijolo e uma corda atada ao dito cujo coiso, para um determinado fim que muitos de nós conhecemos e não é preciso contar mais.
«O que queres, gaiato?»
Um rapaz, de vestes coçadas e rosto tisnado pela exposição prolongada aos raios solares, sorria com doçura, para ele.
«O mesmo que tu. Chá e torradas. Menos o café que costumas beber a seguir.»
Ia desmontar a mistificação em menos de um minuto.
«Meu menino, como sabes que é este o pequeno-almoço que tomo todos os dias aqui? Diz-me lá. Não me mintas. Foram eles?»
Um novo sorriso iluminou o rosto da criança.
«E também quero as torradas com manteiga genuína.»
Os seus cabelos pareciam fios de ouro a pender ao longo dos ombros. Achou muito estranho. Felizmente que ainda não tinha almoçado, senão julgava estar sob o efeito do álcool.
«Está certo. Senta-te, então.»
«Obrigado.»
«Eu chamo o empregado. Ah! Já deu pelo meu sinal. Ele vem aí...»
«Estou a ficar confuso!» admitiu, pensativo.
O industrial nem queria acreditar naquilo que acontecia no momento. Ao mesmo tempo sentia-se ainda desconfiado.
«E queres um gelado?»
«Em boa verdade, não. Olha, não devias beber hoje o café do costume. Precisas de

estar calmo daqui a pouco porque não consegues vender a tua cortiça se te excitares muito.» Enfrentou a criança, de olhos nos olhos, sentindo que estava a perder o controle.
«Como sabes deste negócio de cortiça que vou ter esta tarde?»
«Em boa verdade, sei.»


O empregado já estava na sua frente.
«Falta alguma coisa, senhor Fragoso?»
«Sim. Traz outro pequeno-almoço. Menos o café, claro.»
«Menos o café. Espera alguém?»
O empregado não evitou exibir uma expressão de dúvida.
«Não faças essa cara de parvo. Vá, despacha-te, lesma. Não vês que ele está cheio de fome?»
«Pronto, senhor Fragoso. Já trago o outro pequeno-almoço.» 
«E não quero manteiga manhosa no pão!»
«Ele?» pensou o empregado.
Nunca se devia contrariar um maluco. Muito menos um visionário. 
«Não te demores senão perdes a gorjeta!»

O negócio do industrial realizou-se nessa tarde. Conseguiu vender toda a cortiça por bom preço que nem sequer foi regateado pelo importador. Mas, estranhamente, não ficou deslumbrado com o êxito do negócio. Um sorriso enigmático iluminou-lhe o rosto. Cismava naquele estranho caso da criança.
«Se não se importa passa-me dois cheques, cada um com metade da importância.»
«Que estou a fazer?» perguntou aos seus botões.
«Para que quer dois cheques?»
«Eu cá sei as linhas com que me coso.»
E sabia mesmo.
«Muito bem. Vou passar-lhe já os dois cheques.» Disse o cliente.


Depois do jantar foi a casa de um dos amigos que o recebeu com alguma estranheza e desconfiança.
«Tu, Fragoso? Que vens cá fazer?»
Foi direto ao assunto.
«Vinha entregar um cheque para a vossa festa de Natal que costumam fazer em benefício dos pobres da terra. Se precisarem de mais alguma ajuda podem contar comigo.»
«Mas... Não me digas, Fragoso que...»
Como foi que o amigo adivinhou?
«É verdade. Acertaste. O Menino Jesus tomou esta manhã o pequeno-almoço comigo. E não bebeu café, conforme previ. Nem quis sequer um gelado. Nem torradas com sucedâneo.»
«Este gajo está louco!» pensou o amigo.
«Suce...? Não brinques com coisas sérias, Fragoso, que é blasfémia!»
«Não estou a brincar. Mas ainda não me disseste se os posso ajudar ou não.»
«Claro, claro que podes. Mas reunimo-nos na igreja e vais ter que trabalhar com o padre Luís. Aquele que é muito chato. Que dizes?»
«Acho bem. Desde que ele não me chateie muito. Quando vamos?»
«Que mosca mordeu ao Fragoso?»

«Podes ir já comigo. Estava a preparar-me para sair.»
«Então, vamos. Antes que me esqueça, tenho outro cheque igual ao outro. Podem comprar presentes para as nossas crianças pobres e ornamentar a maior árvore de Natal jamais erguida cá na cidade.»
«Não quero pôr em causa o teu lado filantrópico. Sempre ajudaste as boas causas. Mas hoje chegaste ainda mais longe do que imaginei. Que te fez mudar de ideias, criatura de Deus?»
«Porque não acreditaste no que te disse há pouco, tenho que encontrar outra desculpa e não quero. Olha, e se ficássemos por aqui?»
«Só quero dizer-te que me sinto muito feliz.»
«E eu também. Mas continuo com as minhas convicções em relação aos padres e à igreja. Só há uma coisa que mudou, percebes? Não percebes. Também não faz mal. Vamos andando que ainda temos muito para fazer.» 
«Aquela história do Menino Jesus...? Não penses mais nisso, Cardoso. O homem pirou de vez!» confidenciou o amigo do Fragoso aos seus botões.

E pronto. A história continuou, mas para o narrador, Mário contador de histórias, acabava ali.
Levantou-se do banco em mármore do jardim, por sinal um dos quatro em meia-lua e onde na infância fazia com os amigos jogos de futebol, usando moedas e muita imaginação, pegou nos sacos e dispôs-se a fazer a última etapa até casa. Já tinha descansado o suficiente. Ou melhor, recordado a estranha história que uma coordenadora de distrito do Projeto lhe tinha contado como sendo verdadeira. 
Contornou o passeio exterior e parou logo a seguir, junto à zona do ecoponto.

Havia também um depósito metálico para as pessoas depositarem sacos de plástico com roupas que já não usavam.
Foi então que viu a ciganinha.
«Bebeste o leite todo?»
«Sim...»
Sorriu para a miúda e ignorou a atividade em que estava empenhada. Já tinha um saco de roupa na mão e preparava-se para tirar outro. Deixou ficar o braço em cima, à espera duma reprimenda que não chegou.
«Queres ajuda?»
«Não é preciso. Eu chego lá...»
«Adeus.»
Estava tão entretida na tarefa de tirar o segundo saco do depósito que não lhe deu resposta.
Quando chegou a casa, a primeira coisa que fez foi deixar os sacos das compras na cozinha.

Longe iam os tempos em que podia transportar sacos mais pesados. Aqueles minutos de descanso no jardim tinham sido providenciais.
Ainda tendo como referência aqueles dois casos, deixou o pensamento voar para longe, em liberdade, talvez procurando o limiar que separava o seu real do fictício. A eterna luta e a constante dúvida que o assaltava. Talvez que um outro Mário existisse nesse limiar a escrever o passado, o presente e o próprio futuro do verdadeiro Mário, rei das ilusões e senhor do desencantamento. E vice-versa.
«Atrasaste-te.» Comentou a irmã.
«Estive no jardim a aliviar os braços.»
«O pai fazia o mesmo.»
Quantas saudades! 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

A última verdade




Cheguei ao café à hora do costume, cumprindo a rotina de todos os dias. Desta vez não optei pela esplanada. Enquanto tomava o pequeno-almoço tinha ouvido as previsões meteorológicas para o dia e, embora o astro-rei brilhasse no céu sem nuvens em todo o seu esplendor, o frio seco oriundo de leste aconselhava-me que fosse para o interior. O inverno estava à porta. Desta vez as baixas temperaturas nada tinham a ver com as alterações climáticas.
Já com a chávena de café numa das mãos e na outra o caderno com argolas, escolhi uma mesa ao canto, à esquerda televisão, que, como de costume, estava ligada na SIC, sem som. Dali dominava em absoluto todo o espaço de café. Não que tivesse necessidade. A escolhi fora feita também com outro objetivo. Estar o mais possível afastado do ruído ao balcão, principalmente na zona de venda das famosas "raspadinhas" pelas piores razões e da velha lotaria nacional que ainda tinha o seu peso comercial. As primeiras tinham conquistado o coração e a carteira das mulheres. Finalmente aqui não havia discriminação. Pelo contrário, elas tinham tomado de assalto, com uma fé danada de vencer, o castelo senhorial onde residiam a fé e a esperança e estava ausente a caridade. Não entendia o porquê de tanto entusiasmo por aqueles papéis coloridos que escondiam números e imagens (era vê-las as rasparem furiosamente com uma moeda as zonas que escondiam os tais números e imagens na ânsia de encontrarem duplicações e por aí) que primavam pela ausência de verdade estatística no que dizia respeito aos prémios. Mas não era comigo. Se fosse, pregava a desgraça e a consequente luta contra a exploração sistemática que só tinha replicação nos casinos onde a ASAE não podia entrar, vá lá saber-se porquê.
Tinha o caderno e a esferográfica. Desta vez não trouxera o livro "Mundos Paralelos" do Michio Kaku para continuar as escrever as notas que talvez nunca viesse a ler. O objetivo era outro. Exercitar a memória que tanto valor tinha para os seres humanos.
Falando de memória, podia ir por aí e chegar aos jovens...
Então qual era o objetivo para esta manhã?
Escrever uma história. Coisa quase impossível quando a inspiração faltava. Tinha que aguardar por dias melhores.
«Espera alguém?»
Levantei os olhos do caderno.
Como podia esperar por alguém nesta cidade que me viu nascer quando ainda era uma vila de comércio florescente, onde fui feliz e agora, de regresso de Lisboa, já aposentado, me sentia um estranho numa terra estranha?
«Ah, é o Vicente. Claro que não. Sente-se, meu amigo.»
Um amigo recente. Os outros, tinham saído para os seus destinos ou já não eram deste mundo.
«Obrigado.»
Não sabia ao que vinha. Provavelmente queria dar dois dedos de conversa, só para passar o tempo. Fiquei em modo de espera. Espera que não demorou muito.
«Sabe da última?»
Nem da última, nem de outra qualquer.
«Lembra-se do Ricardo?»
Mais um que tinha passado para o outro lado. estava a ser muito frequente ultimamente.
«Por acaso lembro-me.»
Olhei para ele com mais atenção. Teria mesmo morrido? Não interessava estar a congeminar. Achei por bem confirmar, não fosse enganar-me.
«É aquele indivíduo de falso bigode a atirar para o forte, por sinal uma pessoa divertida, que passava o tempo a falar de patuscadas e que usava as mulheres como objetos descartáveis?»
«Esse mesmo.»
«Não me diga que o homem morreu?»
Algum acidente em "combate". Depois de uma bruta feijoada, ou assim, resolveu assaltar o castelo.
«Nada disso.»
«Então o que é que lhe aconteceu para não aparecer aqui há mais de um mês?»
A resposta não se fez esperar. O nosso homem tinha casado.
Fiquei mais aliviado depois de pensar que o tinha morto. Andava pelos setenta e, apesar do excesso de massa adiposa, parecia respirar saúde. Mas nunca se sabia.
«Encontrou uma companheira e casou.» 
«Por isso não tem aparecido por aqui.»
«Sim. Mas nem vai acreditar...»
Fiquei outra vez em modo de espera. A notícia não ficava por ali. Havia mais.
«Olhe, casou com uma fulana que conheceu numa danceteria lá para os lados das Caldas. Dançaram toda a noite e foi tiro e queda. Apaixonaram-se.»
Admiti que não tivesse sido a melhor opção ter encontrado uma companheira em tal local. Mas podia estar enganado. Talvez aí tivesse encontrado a sua alma gémea. Nunca se sabia. Nem todos frequentavam as danceterias pela pior razão. Alguns sentiam o estigma da solidão. Outros iam só pelo gosto da dança. Quanto ao caso do Ricardo, parecia-se muito com o da Flora, uma mulher sui generis que conheço das minhas idas cada vez mais espaçadas ao ex-casino novo.

«A filha da puta desta máquina não dá nada!»
«Então, menina Flora, há aqui crianças...»
«Crianças?»
A dita menina Flora sobressaltou-se e olhou para trás. Por momentos julgou que um fiscal estava a admoestá-la. Mas não. Era o Salgado, utente habitual do casino que costumava jogar forte.
«É verdade, senhor Salgado. Esta gaja nem sequer me deixa ir ao cofre. Já joguei a quinhentos e nada. A puta está fechada.»
À esquerda da Flora estava o Zé dedilhador que, entretanto, sorrira com cinismo, talvez com as asneirices da Flora. Por sinal estava no cofre, coisa rara e quase nunca vista para muitos utentes. Ou ao contrário, em casos flagrantes.
Afinal a Flora ainda reparou no último sorriso do parceiro do lado. Não refilou porque o outro era bruto como as casas. Mas disse, entre dentes:
«Vêm cá jantar à borla e ainda se fartam de tirar prémios...»
Depois de passar por tempos dourados entre 2012 e 2017, o entrou em depressão. Mas agora estava a levantar cabeça. Mudança de protetor? Mais que certo. Vá lá saber-se quem. Havia muito por onde escolher. Infelizmente.
«São os últimos dez euros que te dou. Desaparece. Mas antes diz à menina para trazer-me um whisky. Um whisky velho. Mas mais novo que tu. Puta de merda de máquina! Estou farta de meter notas nela e continua na mesma.»
O companheiro da Flora recebeu os dez euros e obedeceu de imediato. Tinha começado uma espécie de peça de teatro sem "ponto".
Estabeleceu-se logo a seguir um diálogo tipo Ionesco, botando palavra o "doutor" que jogava na máquina da direita. Na seguinte jogava a Felismina, uma mulher controlada e atormentada pelo companheiro. Mas de vez em quando também largava as suas bocas. E ó que bocas! Mas não era o seu dia.
«Então, está a mandar embora o seu marido?»
«Qual marido?» perguntou a Flora, subindo de tom a voz. «O chulo deste velho só me está a pedir dinheiro em vez de ser eu a pedir a ele.»
Estava a falar verdade, ou o velho já lhe dera alguma coisa e mais que essa coisa e ela queria que lhe desse o restante?
«Então que é feito do outro seu amigo que vi da outra vez?»
A Flora olhou para ele muito séria. Tempestade inevitável?
Não. O tiro num navio de quatro canos foi demasiado subtil.
«Esse infeliz já morreu. Agora tenho este. É velho.»
«Ah sim?»
«Como é que acha que governo o vício? Ah... chegou o whisky. É velho, menina?»
«Não lhe perguntei a idade.» Disse a jovem. 
E afastou-se.
«Estas gajas! Viu isto, senhor Salgado?»
E emborcou meio whisky do copo.
«Já matou dois» afirmou este. «Quem agora está consigo goza de saúde? Preciso de mais "hóspedes" para o meu trabalho.»
«Que trabalho?»
«Ora, bem sabe...» 
(Para quem está a ler, o homem era cangalheiro.)
«Pois. Este diz que já não tem cheta. Mas mente. Pelo sim, pelo não, ando à procura de um rico. Por acaso conhece a danceteria perto das Caldas?»
«Eu não. Já estou bem servido.»
«Ó se estás!» comentou o Zé dedilhador que estava de novo no cofre e preparava-se para ir ao ouro
«Não gosto de insinuações. Vê lá se te cai um dente,»
Quem desse conta da passada curta e pausada do Zé dedilhador, quando se transformava em abutre dissimulado a saltar para a máquina certa, achava bem metida a outra sua alcunha. Senhor dos Passos.
«Só se forem os da placa de cima. Acho que está larga.»
«Há muitas mulheres lá. E bonitas como eu.» Informou a Flora.
«Oh! Oh! Oh!»
«Que se passa, dona Felismina
(1)? O seu marido deu-lhe corda hoje?»

Interrompo aqui o diálogo com o meu amigo Vicente. Uma senhora entroncada, bem nutrida, aconchegada por uma casaco de pele de raposa parece estar a ganhar aos pontos a mais duas outras em velocidade de utilização de cartões. Não conheço o resultado. Pelo seu semblante deve estar a correr mal, pois comprou mais dois cartões.
Triste sina! Saiu do café, disparada como uma flecha. Imagino como está furiosa.

«Espero que ele tenha acertado.»
«Desconfio que aí bate o ponto.»
«Não me diga!»
Pela mente analítica passaram as mais variadas hipóteses. Preferi mais uma vez aguardar pelo esclarecimento do Vicente.
«Olhe, Mário, o melhor é fingirmos que nada aconteceu. Nem de propósito!»
Nada aconteceu? Não entendi onde ele queria chegar.
«Viva, meus amigos.»
Finalmente percebi.
«Olá, Ricardo, ainda bem que mudaste o rumo da tua vida.»
Cumprimentei-o também. O nosso homem parecia não estar muito feliz.
«Que se passa, Ricardo?»
O Vicente também tinha dado pelo estado de espírito do amigo.
Olhou para nós e depois pareceu fotografar o café com vários instantâneos.
«Vamos petiscar qualquer coisa ao Teimoso que pago eu. Gostam de pezinhos de coentrada? São de comer e chorar por mais.»
«Mas que se passa?»
«Logo digo.» Olhou para o relógio do café. «É quase meio-dia. Comemos mais qualquer coisa...»
Olhei para o Vicente.
«Vão os dois...»
«Não senhor. Faço questão. Quero também a opinião do meu amigo. Isto se não tiver qualquer impedimento.»

Só viu cor-de-rosa a princípio. Uma envolvência tal que o levou a perder o norte. Paixão. Muita paixão. Parecia que tinha descido um anjo à Terra.
«Compreendem? Sentia que a Virgínia também estava apaixonada. E muito feliz.»
A envolvência foi tal que casaram numa semana. Ela era meiga. Única. Uma alma gémea. Bla, bla, bla. De tal maneira gémea que anularam as suas contas bancárias e constituíram uma conta conjunta. E não só. Cartões de crédito. Ela também tinha alguma coisa de seu, mas ele tinha mais.
O filme. Começava a vê-lo. Nítido, o enredo.
«Como foste nisso?»
«Não é o pensas. Que acham dos pezinhos? Ela deixou-me. Desapareceu sem uma palavra.»
O homem tinha razão. Os ditos estavam uma delícia.
«Então?»
Nem sequer senti que pairava no ar uma tragédia. Quanto a mim, o Ricardo estava alienado da realidade.
«Se não foi o dinheiro, desculpa lá... meteu-te os palitos?»
«Não acredito. A nossa relação continuava intensa. E de repente, desapareceu, como já disse. Receio por ela.»
Quanto ao dinheiro em depósito, há um lema. Quem primeiro alça, primeiro calça. Mas os depósitos, tanto à ordem, como a prazo, permaneceram intactos.
«Foi ao quiosque comprar um isqueiro e não voltou.»
Perdeu-se pelo caminho?
Muito provavelmente tinha saído de uma relação intensa, teve saudades e voltou ao seu amado. Muito usual acontecerem estas coisas. Era talvez o caso.
Escondi a hipótese e preparei-me para ouvir mais teses.
«Na véspera da tua Virgínia desaparecer não notaste qualquer alteração no seu comportamento?»
«Até fizemos amor. Intenso, como sempre.»

A mulher do casaco de peles voltou a entrar no café e sou forçado a fazer uma pausa. Se volta aos cartões e a coisa corre mal, será que faz uma cena? Tudo é possível. De momento sentou-se a comer um mil folhas e eu fico com água na boca. É o meu bolo preferido. para não falar dos "esquimós" de um café da Ericeira, com o qual me deliciava nos tempos em que passava fins-de-semana e férias na célebre casa da praia. São tempos idos e não esquecidos.
Acertei. A matrona levantou-se. Sempre vai aos cartões.
Resultado nulo. Mas não faz qualquer cena. Sai do café e vai dissipar a fúria comprando uma peça de vestuário, ou assim.  

Já comemos o arroz de tamboril. Não me caiu bem. Ou foi o vinho branco gelado. Bem podia ter ido no tinto.
«E foi há quanto tempo que ela desapareceu?»
«Há cinco dias.»
«Levou o telemóvel?»
«Sim. As chamadas vão todas parar ao Voice Mail
«Coisa estranha. A conta bancária continua intacta?» perguntei.
«Sim.»
«E os cartões?» perguntou o Vicente.
«Também.»
Então o Vicente admitiu a hipótese de ela ter sido atropelada ou sentir-se subitamente mal.
«Negativo. Já fui aos hospitais. De cá e de Lisboa.»
«Ah!»
«Que foi, Ricardo?»
«Vai ali!»
Levantou-se como uma mola e correu na direção da porta do café, saindo de imediato. Ficámos a olhar um para o outro.
«Que mosca lhe mordeu?»
No momento uma mulher passava pelo passeio junto à esplanada e ainda pudemos vê-lo a interpelá-la. O que lhe disse ficou no segredo dos deuses, mas a resposta da mulher, com uma valente bofetada, foi sintomática.
Regressou, cabisbaixo. Deixámos que recuperasse daquela emoção repentina.
«Porra, era outra! Quem me manda falar-lhe antes de tempo?
Daí o bofetão.
«Deixa lá. para a próxima comes mais.» Disse o Ricardo.
«Não brinques.»
«Desculpa, pá. Olha lá, tens a chave da casa dela?»
«Sim. Fui lá no dia a seguir ao seu desaparecimento. Estava tudo muito arrumado. Ela é uma mulher meticulosa. Não encontrei nada de suspeito.»
«Nem uma fotografia escondida?»
«Onde quer chegar, amigo Mário?»
«Não sei. Podia ter alguma relação antiga.»
Admitiu que podia ter razão. Inclusivamente voltou à danceteria e fez algumas investigações que resultaram em nada. Quanto aos cartões de crédito, que eram todos seus, continuavam sem qualquer movimento.
«A Virgínia tinha relutância em usar cartões porque achava que os juros eram muito altos.»
Estava com carradas de razão. O Estado devia intervir, mas dava-lhe jeito por causa do imposto de selo.
«Já consultaste o gestor de conta?»
«Para quê?»
«Não sei. Pode ter dado alguma ordem para curto prazo. Quem me diz que amanhã...?»
«Amanhã?»
O Vicente tinha razão.
«Nada perde se for ao banco.» Aconselhei. 
«Vou já lá. Mas antes não querem um digestivo?»

Continuei a frequentar a esplanada. Os dias tinham aquecido e voltava a ser agradável apanhar um pouco de ar relativamente puro, continuar com os meus resumos e falar com os novos amigos.
A espuma dos dias manteve-se e as rotinas não foram alteradas.
Depois daquele dia dos pezinhos de coentrada e do arroz de tamboril que achei demasiado picante não voltámos a ver o infeliz Ricardo, ficando sem saber o que aconteceu de verdade, principalmente no que se relacionou com a sua ida ao gestor de conta.
«Tive uma ideia sobre o caso do Ricardo.»
«Então, que ideia?»
«Olhe...»
Hesitei.
«Não sei se diga o que estou a pensar. É capaz de ser uma blasfémia.»
«Conte lá essa blasfémia.»
«Será que a viu com o antigo namorado e depois discutiram e a seguir aconteceu uma tragédia?»
«Que teoria da conspiração, Mário!»
«É o que penso.»
«Bom, tenho que contar. Em parte tem razão. Esse namorado antigo existia e ela voltou para ele. Para muito longe. E só quinze dias mais tarde é que lhe escreveu a pedir desculpa. Que ele era um bom homem e não merecia o que lhe fez. Bla, bla, bla. O costume. Estes casos tanto dão num homem como numa mulher.»
«E onde está ela agora?»
«No Canadá. Contou-me tudo logo a seguir a ter recebido a carta. Estava destroçado. O nosso amigo estava muito agarrado a ela.»
Imaginei como ele devia ter ficado depois de ter recebido aquela carta.
«Mas a vida continua. Há danceterias e outros locais e momentos ocasionais em que tudo pode mudar num instante.»
«Pois há.»
«E porque nunca mais voltou à esplanada?»
«Porque não pode.»
«Não pode?»
«Enforcou-se

(1) Flora