sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Mistério na esplanada

 


Passou pela antiga padaria onde o pai encomendava as carcaças antes de se dirigir à praça para comprar o peixe, a carne, as frutas e os vegetais, fazendo o trajeto ao contrário, sem encomendar o pão. Aliás, na praça havia duas ou três bancas de venda de pão. O chamado pão saloio, a carcaça e a bola de mistura, para não fazer referência aos bolos secos e suspiros confecionados com açúcar louro, menos refinado que o branco.
Esteve parado um minuto em frente a uma dessas bancas e acabou por decidir que passava depois pela padaria. Ainda foi buscar o saco da fruta que dera a guardar à vendedora do costume e só então sentiu que já levava muito peso.
«Faz favor?»
«Quatro bolas e cinco carcaças. Mal cozidas...»
Não acabou a frase. Provavelmente o “por favor”. O motivo foi simples. Uma criança muito morena, de rosto sujo, surgiu ao seu lado direito e pediu-lhe um copo de leite. Sem mais nem menos. Esperava tudo. Por exemplo, que a criança pedisse uma esmola, como era natural. Mas não. A miúda queria apenas um copo de leite.
Olhou para ela e depois para a empregada que o ia atender e que, entretanto, suspendera a sua atividade e estava de mãos nas ancas, na expectativa.
«Queres um copo de leite. Muito bem. Pois então, vais beber o leite todo, percebes?»
A miúda, de etnia cigana, disse que sim com a cabeça.
«Elas só estragam.» Afirmou a outra empregada, que na altura fazia um troco na registadora e seguia com atenção a cena.
Mas a ciganinha já fizera novo pedido. Não era apenas um copo de leite. Um bolo. Queria um bolo.
A empregada que o atendia na altura continuava de mãos nas ancas. Em face do novo pedido abanou negativamente a cabeça. Ele fingiu não reparar no aviso.
«Está bem. Vá, escolhe o bolo.»
Má escolha, para ele. Um mil folhas.
«Esse faz-te mal.» Negou.
Censura pouco democrática, mas certa. A criança apontou para mais três ou quatro bolos todos com o peso negativo do primeiro.
Teve que ser ele a decidir.
«Queres um pastel de nata?»
O menos mau dentro do mau. A empregada, que continuava junto da caixa registadora, voltou a insistir que a miúda ia estragar. A outra já estava a guardar as carcaças e as bolas no saco de papel. Finalmente atirara-se ao trabalho. Não era sem tempo.
«Comes tudo?»
Disse que sim e ele fez um sinal para a empregada.
«Quanto devo de tudo?»
Pagou com uma nota de cinco euros e ficou à espera do troco.
«O que é que se diz?» perguntou a empregada, voltando-se para a miúda.
«Obrigado.»
«Ah!»
Queria o leite quente. A empregada dizia-lhe que já estava quente e ela negava.
«Não posso aquecer mais. Depois queimas-te.»
Começou a beber o leite no momento em que entrou um cliente que se encostou ao balcão a cerca de um metro de distância dela. A criança pousou o copo no balcão e atacou logo o cliente. Desta vez pediu dinheiro.
«Não podes fazer duas coisas ao mesmo tempo. Primeiro, bebes o leite e comes o bolo.» Ordenou.
A miúda não respondeu, mas desistiu da pedincha, voltando ao copo com leite e ao pastel de nata e os dois clientes trocaram um sorriso cúmplice.
Recebeu o troco e, antes de sair, virou-se para a miúda:
«Daqui a pouco passo por aqui e pergunto às senhoras se comeste tudo, ouviste?»
A criança acenou afirmativamente com a cabeça.
Deu os bons dias e foi à sua vida, queixando-se, num resmungo interior, do peso excessivo que carregava. Tinha abusado na quantidade da fruta que comprou.

Já perto de casa, ao sentar-se num banco do jardim para dar descanso às pernas e aos braços, lembrou-se de uma história que lhe tinha contado como verdadeira a coordenadora de Setúbal no tempo em esteve destacado no Ministério da Educação, no Projeto de má memória, no aspeto profissional e não só.
Nunca pôde averiguar a veracidade daquele caso, mas na altura acreditou tal a veemência com que a Idalina lhe relatou a história. De certa forma, com muita boa vontade, encaixava-se no que acabava de lhe acontecer naquela padaria que já não era só padaria e cada vez seria mais replicada no futuro.

O caso passou-se no verão numa esplanada de Setúbal, onde se encontravam habitualmente alguns grandes industriais da cidade do Bocage, acompanhados dos respetivos cônjuges. Eram todos católicos praticantes, à exceção de um deles, ateu cem por cento, embora fosse uma pessoa de bom coração. Claro que nada tinha a ver a formação moral com a religião de cada um. Era uma questão de berço ou de estado moral inerente à pessoa. Quanto a ele, as pessoas não nasciam iguais no que dizia respeito aos sentimentos.
Acontecia que o nosso homem ateu nunca fechava a porta a um pedido que tocasse forte na sua sensibilidade. Não acreditava na existência de Deus, da Virgem Maria, de Jesus tal como contavam, muito menos, nos santos. Especialmente no fenómeno das aparições da Cova da Iria, para ele um acontecimento obscuro muito explorado pelos clérigos.
«Mas... e o milagre do sol? Muitas pessoas viram-no bailar! Ao menos leste os depoimentos do Século na época?»
«Por acaso até li e fiquei com mais dúvidas que certezas. Pensei muito e hoje acho que foi tudo um embuste. Quanto a mim, não passou de mais um caso de ovnis
«Isso é sacrilégio, Fragoso!»
«Seja. Mas lê o livro da Fina d´Armada e depois diz-me alguma coisa. Um sacrilégio, no vosso ponto de vista, mas respeitem a minha opinião que, aliás, nunca mudou. E jamais lhes neguei nada quando me vieram pedir uma contribuição para ajudar os vossos pobres, pois não? Escusam de insistir na vaca fria. Sou vosso amigo, mas não seguidor. Que fique bem esclarecido de uma vez por todas.»
«Pronto, pronto, não te exaltes.»
«É que vocês são mesmo teimosos! E só veem para a frente.»
Era verdade. Mas para contribuir tinha que se apoiar na multiplicação dos cifrões, como o tal Jesus que multiplicara os pães, embora desconhecesse a base logística em que se apoiava.
«Vem connosco à igreja. Assiste só. Não te pedimos mais nada.»
Irritou-se ainda mais.
«Nem quero ouvir o padre Luís e muito menos o padre Francisco que vai à noite de moto para Lisboa. E sabem onde o podem encontrar?»
«Lá estás tu a desconversar. E a irmã Sofia?, que tens a dizer dessa santa mulher?»
Era mais sensível à palavra das mulheres, mas resistiu.
«Nada tenho contra ela. Nem sequer a conheço...»
«Mais uma razão. Vem ter connosco à igreja que ninguém te come, grande teimoso.»
Como sair daquele imbróglio?
Foi então que uma ideia luminosa aflorou-lhe de repente a mente. Em boa hora.

Porque não se lembrara há mais tempo?
«Que estás a congeminar para aí, Fragoso?»
«Só vou à igreja com uma condição.»
Finalmente tinham conseguido o milagre. Que Deus fosse louvado!
«E qual é essa condição?»
«Só se um dia...»
Ficaram todos na expectativa.

«Diz. Desembucha, criatura de Deus!»
«Só se um dia o vosso Jesus pedir para tomar o pequeno-almoço comigo. Claro que tem direito a tudo menos ao café! O vosso Jesus não cometia o pecado de tomar uma droga, mesmo que esta fosse lícita. O ato de se dividirem as drogas em lícitas ou ilícitas é apenas uma convenção. Vejam o exemplo do álcool. Um alcoólico até chega a ter alucinações. Mas...»
«Deixa-te de discursos e de gozar connosco!»
«Não estou a gozar. Não saio da minha. Só se Jesus pedir para tomar o pequeno almoço comigo. Ponto final. Acabou-se a questão.»
Os amigos sentiram-se ofendidos e ele ficou livre de ser incomodado, pois que a sua condição, a roçar o absurdo, conduziu a uma rutura drástica. A partir daquele dia os amigos deixaram de frequentar a esplanada. Se ele se importou ou não, a narradora não disse.
O tempo foi correndo, impiedoso como de costume, mas não demorou um mês que um acontecimento algo estranho viesse confirmar uma máxima que dizia que o mundo dava muitas voltas. E de facto deu. Uma volta incrível!

Nesse ano a temperatura amena prolongou-se dezembro fora. Como de costume, estava a tomar o pequeno-almoço na esplanada. Chá e torradas. Estas barradas com manteiga que nada tinha a ver com sucedâneo. Manteiga genuína.
Amanhecera sem vento. A sua disposição não podia ser melhor. Certamente que o negócio de fornecimento de cortiça para exportação que talvez fosse selado nas horas mais próximas tinha boas perspetivas de êxito. Parecia-lhe que o negócio estava fechado e ele só tinha motivos para se sentir bem disposto.
Mas aquele dia prometia mais ainda, porquê?
Coisa muito simples. A inclinação da Terra alterou-se de um milésimo de milionésimo de grau e foi o bastante para provocar a tal alteração favorável. E as torradas estavam saborosas. Muito louras, quentes e bem barradas com manteiga genuína. Um sonho.
«Deixas-me tomar o pequeno-almoço contigo?»
Levantou os olhos, surpreendido. De surpreendido passou de imediato a cético.

Aqueles fulanos estavam a gozar com ele! Era pior que a vingança do chinês. 
Mas arrepiou-se. E os arrepios não estavam relacionados com a clássica história da vingança do chinês que utilizou um tijolo e uma corda atada ao dito cujo coiso, para um determinado fim que muitos de nós conhecemos e não é preciso contar mais.
«O que queres, gaiato?»
Um rapaz, de vestes coçadas e rosto tisnado pela exposição prolongada aos raios solares, sorria com doçura, para ele.
«O mesmo que tu. Chá e torradas. Menos o café que costumas beber a seguir.»
Ia desmontar a mistificação em menos de um minuto.
«Meu menino, como sabes que é este o pequeno-almoço que tomo todos os dias aqui? Diz-me lá. Não me mintas. Foram eles?»
Um novo sorriso iluminou o rosto da criança.
«E também quero as torradas com manteiga genuína.»
Os seus cabelos pareciam fios de ouro a pender ao longo dos ombros. Achou muito estranho. Felizmente que ainda não tinha almoçado, senão julgava estar sob o efeito do álcool.
«Está certo. Senta-te, então.»
«Obrigado.»
«Eu chamo o empregado. Ah! Já deu pelo meu sinal. Ele vem aí...»
«Estou a ficar confuso!» admitiu, pensativo.
O industrial nem queria acreditar naquilo que acontecia no momento. Ao mesmo tempo sentia-se ainda desconfiado.
«E queres um gelado?»
«Em boa verdade, não. Olha, não devias beber hoje o café do costume. Precisas de

estar calmo daqui a pouco porque não consegues vender a tua cortiça se te excitares muito.» Enfrentou a criança, de olhos nos olhos, sentindo que estava a perder o controle.
«Como sabes deste negócio de cortiça que vou ter esta tarde?»
«Em boa verdade, sei.»


O empregado já estava na sua frente.
«Falta alguma coisa, senhor Fragoso?»
«Sim. Traz outro pequeno-almoço. Menos o café, claro.»
«Menos o café. Espera alguém?»
O empregado não evitou exibir uma expressão de dúvida.
«Não faças essa cara de parvo. Vá, despacha-te, lesma. Não vês que ele está cheio de fome?»
«Pronto, senhor Fragoso. Já trago o outro pequeno-almoço.» 
«E não quero manteiga manhosa no pão!»
«Ele?» pensou o empregado.
Nunca se devia contrariar um maluco. Muito menos um visionário. 
«Não te demores senão perdes a gorjeta!»

O negócio do industrial realizou-se nessa tarde. Conseguiu vender toda a cortiça por bom preço que nem sequer foi regateado pelo importador. Mas, estranhamente, não ficou deslumbrado com o êxito do negócio. Um sorriso enigmático iluminou-lhe o rosto. Cismava naquele estranho caso da criança.
«Se não se importa passa-me dois cheques, cada um com metade da importância.»
«Que estou a fazer?» perguntou aos seus botões.
«Para que quer dois cheques?»
«Eu cá sei as linhas com que me coso.»
E sabia mesmo.
«Muito bem. Vou passar-lhe já os dois cheques.» Disse o cliente.


Depois do jantar foi a casa de um dos amigos que o recebeu com alguma estranheza e desconfiança.
«Tu, Fragoso? Que vens cá fazer?»
Foi direto ao assunto.
«Vinha entregar um cheque para a vossa festa de Natal que costumam fazer em benefício dos pobres da terra. Se precisarem de mais alguma ajuda podem contar comigo.»
«Mas... Não me digas, Fragoso que...»
Como foi que o amigo adivinhou?
«É verdade. Acertaste. O Menino Jesus tomou esta manhã o pequeno-almoço comigo. E não bebeu café, conforme previ. Nem quis sequer um gelado. Nem torradas com sucedâneo.»
«Este gajo está louco!» pensou o amigo.
«Suce...? Não brinques com coisas sérias, Fragoso, que é blasfémia!»
«Não estou a brincar. Mas ainda não me disseste se os posso ajudar ou não.»
«Claro, claro que podes. Mas reunimo-nos na igreja e vais ter que trabalhar com o padre Luís. Aquele que é muito chato. Que dizes?»
«Acho bem. Desde que ele não me chateie muito. Quando vamos?»
«Que mosca mordeu ao Fragoso?»

«Podes ir já comigo. Estava a preparar-me para sair.»
«Então, vamos. Antes que me esqueça, tenho outro cheque igual ao outro. Podem comprar presentes para as nossas crianças pobres e ornamentar a maior árvore de Natal jamais erguida cá na cidade.»
«Não quero pôr em causa o teu lado filantrópico. Sempre ajudaste as boas causas. Mas hoje chegaste ainda mais longe do que imaginei. Que te fez mudar de ideias, criatura de Deus?»
«Porque não acreditaste no que te disse há pouco, tenho que encontrar outra desculpa e não quero. Olha, e se ficássemos por aqui?»
«Só quero dizer-te que me sinto muito feliz.»
«E eu também. Mas continuo com as minhas convicções em relação aos padres e à igreja. Só há uma coisa que mudou, percebes? Não percebes. Também não faz mal. Vamos andando que ainda temos muito para fazer.» 
«Aquela história do Menino Jesus...? Não penses mais nisso, Cardoso. O homem pirou de vez!» confidenciou o amigo do Fragoso aos seus botões.

E pronto. A história continuou, mas para o narrador, Mário contador de histórias, acabava ali.
Levantou-se do banco em mármore do jardim, por sinal um dos quatro em meia-lua e onde na infância fazia com os amigos jogos de futebol, usando moedas e muita imaginação, pegou nos sacos e dispôs-se a fazer a última etapa até casa. Já tinha descansado o suficiente. Ou melhor, recordado a estranha história que uma coordenadora de distrito do Projeto lhe tinha contado como sendo verdadeira. 
Contornou o passeio exterior e parou logo a seguir, junto à zona do ecoponto.

Havia também um depósito metálico para as pessoas depositarem sacos de plástico com roupas que já não usavam.
Foi então que viu a ciganinha.
«Bebeste o leite todo?»
«Sim...»
Sorriu para a miúda e ignorou a atividade em que estava empenhada. Já tinha um saco de roupa na mão e preparava-se para tirar outro. Deixou ficar o braço em cima, à espera duma reprimenda que não chegou.
«Queres ajuda?»
«Não é preciso. Eu chego lá...»
«Adeus.»
Estava tão entretida na tarefa de tirar o segundo saco do depósito que não lhe deu resposta.
Quando chegou a casa, a primeira coisa que fez foi deixar os sacos das compras na cozinha.

Longe iam os tempos em que podia transportar sacos mais pesados. Aqueles minutos de descanso no jardim tinham sido providenciais.
Ainda tendo como referência aqueles dois casos, deixou o pensamento voar para longe, em liberdade, talvez procurando o limiar que separava o seu real do fictício. A eterna luta e a constante dúvida que o assaltava. Talvez que um outro Mário existisse nesse limiar a escrever o passado, o presente e o próprio futuro do verdadeiro Mário, rei das ilusões e senhor do desencantamento. E vice-versa.
«Atrasaste-te.» Comentou a irmã.
«Estive no jardim a aliviar os braços.»
«O pai fazia o mesmo.»
Quantas saudades! 

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