sábado, 3 de maio de 2025

Os anos do deus menor

 



Quando Deus precisa de descansar, se é que precisa, muito provavelmente Ele nomeia um auxiliar para o substituir, suponho, nos seus superiores atos de omnipresença, omnisciência e omnipotência.
Chamei deus menor a esse tal ente substituto.
Face aos casos maléficos que ocorreram à minha volta num certo período de tempo, quero acreditar que, infelizmente, Deus foi mesmo substituído.
Não vou começar esta história com as palavras “tal como me foi contado”. Podia ter acontecido ontem comigo, mas, em boa verdade, aconteceu mesmo.
Era verão e nada fazia prever...

 


As palavras não vão chegar para contar o que aconteceu hoje.
Começo por dizer que passei por uma experiência que nunca mais esquecerei.
Foi o abrir de mais uma cortina, das muitas que escondem o lado de lá, onde não posso chegar.
Levantei-me cedo. Como fora combinado com a minha prima Lenita e a Flora, mulher do tio Mourinho, tinha por missão levar à casa da praia uma senhora de nome Ema que morava para os lados da Estefânia. Essa senhora, supostamente tinha atributos mediúnicos.
Enquanto ligava o motor do Renault creme, pensava, de um modo quase obsessivo, no conselho que a Lenita me tinha dado.
«Quando fores a conduzir não fales com ela sobre coisas estranhas. Pode ser perigoso.»
A senhora entrava em transe, podia levar as mãos ao volante e íamos por uma ribanceira abaixo, por exemplo. Nada mais simples.
Sorri ironicamente ante aquele cenário macabro.
Mas o que se passava com o carro?
Com a breca! Não conseguia pôr o motor a funcionar!
Achei estranho porque o tempo não estava húmido e era verão. O Sol escondera-se, envergonhado, atrás do manto denso das nuvens e agora estava relutante em mostrar-se. Mas daí a haver muita humidade no ar ia uma grande diferença.
Passava-se alguma coisa que estava para lá do meu entendimento?
Insisti e voltei a insistir. Finalmente pegou. Fiz marcha atrás e o carro entrou na avenida. Meti a segunda e comecei a descer, ainda receoso de alguma avaria. Parecia que estava a adivinhar. Foi sol de pouca dura. O motor ia-se abaixo sempre que o carro parava num sinal vermelho. Ligava a ignição e o carro seguia. Um novo sinal vermelho e o motor deixou de funcionar de imediato.
Seria que era proibido continuar?
Pensei em desistir do carro e apanhar um táxi. Mas tinha que levar a vidente à casa de férias, onde havia familiares à nossa espera. O carro foi andando e parando, como se houvesse forças opostas em luta constante.
Tudo normalizou quando cheguei perto da casa dela, na zona da Estefânia. Aí, sim. O motor deixou de falhar.
Estava intrigado com o fenómeno. Fenómeno? Parecia ser. Talvez houvesse influências mais fortes cuja origem não atingia.
A senhora estava já preparada para sair quando toquei à campainha, pois apareceu de imediato no patamar. Observei-a de relance. Era baixa, forte, aparentando ter mais de setenta anos. Digamos que devia estar mais perto dos oitenta.
Já na rua, depois de me apresentar, contei-lhe o estranho caso do motor se ir abaixo sempre que parava num sinal vermelho. Claro que antes de entrarmos no carro, pois lembrei-me a tempo dos tais conselhos preventivos da Lenita.
«Parecia que o carro não queria vir...»
A sua reação traduziu-se num sorriso largo, indefinido. Não teceu qualquer comentário.
Pouco falámos pelo caminho. Ela, porque talvez não lhe apetecesse conversar com estranhos e eu porque estava avisado pela minha prima. A viagem ia ser monótona
Entretanto, aconteceu uma coisa que não posso deixar de relatar. Numa descida perto de Montachique, começou a esticar os braços para a frente, como que a espreguiçar-se. Talvez fosse um gesto nervoso, mas não deixei de a vigiar pelo canto do olho.
Julguei ver uma alteração no rosto da Ema. Logo de seguida, deu um arroto forte e voltou a esticar os braços. Comecei a ficar ansioso.
Perigo iminente! A mulher ia agarrar no volante?
Mas eu tinha ficado calado! Que diabo! Cumpri as ordens à risca.
Procurei não perder o controlo. Ela continuava de braços esticados e voltou a arrotar mais duas vezes. Os arrotos eram cavernosos. Vinham bem dos fundos. Nunca ouvira uma coisa igual.
«Eles não querem que eu diga!»
Agora sim! Não queriam o quê? E quem eram eles?
Achei por bem não perguntar. Podia arranjar um sarilho dos grandes. Nunca se sabia. Até porque notei uma alteração na voz. O tom era agora mais grave.
Estava na presença de uma médium a sério?
Era a primeira vez que me via metido em assados de tal natureza. Uma médium deste quilate, que soltava arrotos cavernosos nunca se encontrava todos os dias.
«Como?» perguntei, não resistindo à curiosidade.
Voltou-se para mim. Assustei-me. Tinha os olhos esquisitos. Parecia que iam soltar das órbitas. Bem me tinha avisado a Lenita
«Eles não querem que eu diga, mas digo! Vai escrever um livro?»
Fiquei estarrecido. Esperava tudo menos aquela pergunta.
«Não. Por acaso um amigo meu já escreveu um livro de contos. E fui eu quem lhe contou as histórias.»
E houve também uma novela de ficção científica, lembrei-me. Uma história apocalíptica de mundos paralelos e de fantasmas do passado. A Terra quase destruída por um cataclismo natural. Um homem e uma mulher unidos no último fragmento do futuro, aliás  nada promissor. Virados para o crepúsculo e esperando por um novo amanhecer.
Perdi o medo e perguntei
«Quem são eles?»
«Não posso dizer.»
Desconfiei. Foi a pior resposta que ouvi.
Ficámos por aqui. Era melhor dar atenção à condução na estrada, não fosse o diabo tecê-las.

Já na vila, recomeçou a arrotar quando entrámos na rua onde eu morava. Ao mesmo tempo que avançávamos, ia perguntando, fazendo lembrar um cego experimentando sensações:
«É aqui? É aqui?»
Frio, frio como a pedra do rio. Tinha pressa de chegar. E logo a seguir; morno, coma mão perto do forno. E finalmente, quente, quando a mão fica ardente.
Já estavam à nossa espera. Arrumei o carro quase à porta e encaminhei-as todas para a minha casa da praia. 
Então, houve uma sinfonia de arrotos pelas escadas acima. Desta vez, quentíssimo. Certamente o prédio estava muito habitado. Foi uma convicção a apontar quase para a certeza.
«Nunca a vi assim!» admirou-se a minha prima.
Foi com grande alívio que a vi entrar em casa.
Que diriam os meus vizinhos se tivessem ouvido toda aquela flatulência cavernosa nada sinfónica da vidente?
Não pude evitar um sorriso perante tais pensamentos. Mas estava um pouco preocupado com aquela cena pouco edificante.

Almoçámos no terraço. Nada aconteceu de especial a não ser numa altura em que alguém evocou uma tia já falecida. Foi o bastante para Ema sair de si e começar a falar e a fazer gestos que interpretei como sendo da minha tia Clarinha. Parecia criticar a nora. Pelo menos foi também a impressão de quem estava presente.

Só começou a trabalhar depois do almoço. A primeira pessoa a ser atendida foi a minha prima. Depois fui eu. Estávamos em volta de uma mesa circular de pé de galo, encostada à parede da entrada. Por cima podia ver-se o fenomenal relógio falante.
A existência daquela mesa era um mero acaso. Nunca fora usada para qualquer sessão de espiritismo. Pelo contrário, decorreram nela muitos jogos de lerpa, onde quatro ou cinco artistas exibiram os seus dotes de jogadores exímios, tentando especializar-se na arte de se enganarem uns aos outros, e eu incluído, usando o bluff como trunfo, que não é só uma peça exclusiva do póquer. Faz parte da vida
Enquanto conversámos, não deixou de arrotar. A casa estava possuída pelos espíritos, pensei. Mas também podia ser encenação. Iria ficar muito atento. Tinham-me alertado para todos os truques, possíveis e também os que pareciam ser impossíveis.
A certa altura, mostrei-lhe várias fotografias de pessoas. Mortos misturados com vivos, para lançar uma grande confusão, julgava eu. Ela usava óculos de ver ao perto, mas tinha-os postos em cima da mesa.
«Esta mulher desviou-lhe o destino.» Disse, muito séria.
Era uma fotografia da Simone. Uma coincidência algo curiosa, pensei. A vidente tinha toda a razão [1].
Logo a seguir, a vidente começou a falar de uma casa que tinha como particularidade uma cercadura de arbustos e mais coisas que esqueci por desinteresse, em virtude de desconhecer a tal casa. Por certo improvisava, pensei. Bem me tinham dito para ficar atento aos truques da vidente. Aí tinha um. A mulher era muito ardilosa!
«Não conheço essa casa.» Disse.
Indiferente ao comentário, continuou a descrever a casa, até que a Olinda, a minha irmã, exclamou, com convicção:
«É a casa de campo da Simone!»
Como podia a Ema saber, se eu também desconhecia a existência de tal casa, pois não era do tempo em que eu e a Simone nos namorámos?
A minha ligação com a Simone não passou de fumo de verão. Apareceu e desapareceu meteoricamente na minha vida. Afinal o namoro foi só um obstáculo para me afastar da Manuela.
A própria vidente falou a seguir de uma rapariga (não disse mulher) loura que gostava muito de mim e que desviou o meu destino. Sem que eu previsse, acabava de meter o dedo na ferida.
Olhei para ela, intrigado. Respirava serenidade e deixara de arrotar. Os óculos de ver ao perto continuavam sobre a mesa.
O tema da Simone não tinha pernas para andar e esgotou-se quase de seguida.
Não perdi tempo. Pensei que era então o momento crucial de mostrar uma fotografia da Manuela.
Como ia reagir?
Parece que leu o meu pensamento, pois, sem qualquer hesitação, afirmou:
«Essa, sim, essa fazia-o feliz.»
“Fazia-o feliz” significava passado e talvez a sua perceção que a visada já tinha morrido, o que me deixou abismado.
Não havia hipótese de fraude. E mesmo que ela visse bem ao perto sem óculos, certamente que não conhecia a Manuela.
O caso começava a tornar-se sério e tinha que rever o ceticismo com que encarara aquela reunião. A mulher estava a acertar em cheio. Era mesmo uma bruxa genuína.
Então, lembrei-me que para uma outra médium, a Flora, que considerava ser mais fraca de dons paranormais, e que não estava presente nesse dia, a Manuela era responsável por a minha vida estar em letargia há mais de quinze anos.
Tinha afirmado que nem sequer tinha coragem de aparecer. Era um espírito mau. Mesmo muito mau. Sentia raiva porque não me teve em vida. Ouvia-a chorar com raiva de não me ter.
A Ema continuou…
Outra pessoa já morta, que tinha muita luz, protegia-me e queria que eu fosse para a frente.
Segundo ela, havia também mais alguém que tinha luz e esse mais alguém só podia ser a rapariga da segunda fotografia.
«A Flora disse-me que já a ouviu chorar de raiva.»
Sim. Era verdade que chorava, mas, segundo ela, com pena de não me ter. E queria ajudar-me. Só me queria ajudar.
«Era uma pessoa meiga...»
Confirmação!
«E triste.»
Concordou comigo.
Quase logo a seguir, pôs-se a andar pela casa. Eu e a minha prima fomos atrás dela. Parou para ver uma montagem de fotografias num quadro que estava na parede do corredor. As fotografias tinham sido montadas por mim.
Fiz uma ou duas perguntas que não tiveram respostas relevantes e, entretanto, ela voltou à sala. Agora o seu passo era miudinho.
Já na sala, aconteceu o imprevisível. A minha prima pareceu adivinhar, pois foi logo atrás dela, embora já atrasada para o caso de haver uma eventualidade.
A vidente estatelou-se de súbito no chão e ficou inerte, junto à mesa de pé-de-galo.
Não sei explicar como aquilo aconteceu. Uma pessoa forte e idosa estatelar-se daquela maneira, como se fosse uma ginasta que sabia cair, era obra!
Olhei para a Lenita, num misto de intrigado e apreensivo.
«É melhor levantá-la. Parece que lhe deu uma coisa!»
É que a senhora tinha quase oitenta anos!
«Deixa ver o que isto dá. Entrou em transe.» Disse a minha prima, com a maior das calmas. 
Era mais experiente do que eu nestes casos.
E se houvesse um problema grave?
A mulher estava inerte. Era transe a mais, pensei.
Tentámos erguê-la. Impossível. A mulher pesava que nem chumbo. E assim ficou. E eu em ânsias. Só conseguimos levantá-la quando nos pediu ajuda. Nessa altura foi fácil. Coisa estranha! Dava para pensar e voltar a pensar.
«Que aconteceu, Ema?»
Olhou-me com ar estranho. Outra vez aquele olhar penetrante, mas agora vazio. Os olhos pareciam vidrados.
«Vi um padre. Estava a abençoá-lo.»
Então, receei o pior.
«Não me diga que vou marchar desta para melhor!»
Tranquilizou-me de imediato. Nada disso. Tratava-se de um ato natural e positivo. Mas, quanto a ela, não era o padre que tinha luz.
Não compreendi esta observação que fez. Preferi seguir uma pista falsa ao abordar a figura do padre.
«Como era ele?»
«Para o forte...»
«Com cara de bebé chorão?»
«Sim.»
Não demorei muito tempo a descobrir a pessoa que tinha cara de bebé chorão.
Talvez se estivesse a referir ao padre Onofre. Foi meu professor de Moral nos tempos do liceu. Conservei sempre uma boa imagem dele. Nunca quis impor as suas ideias religiosas, ao contrário do padre Luís [2]. Aí tinha que recuar mais no tempo e entrar pelas salas de aula onde aprendi a ler e foram também lançadas as bases que me afastaram da igreja. É que o padre Luís obrigava os alunos a beijar a mão e, rebelde como era, custava-me vergar à força superior de alguém cuja atitude negativa me desviou para outros horizontes menos fundamentalistas, só pelo motivo das minhas crenças não serem as suas. Por causa desse padre decidi que, quando fosse crescido, não seria frequentador da igreja. Nessa altura era ainda uma criança, mas sempre fui muito independente nas minhas ideias, quer fossem certas ou erradas. Não me deixava influenciar facilmente.
Quando me libertei das aulas do padre Luís, dei de caras com o padre Onofre. Entrara no liceu e sentia-me quase um homem. Encarei o novo professor de Moral com natural desconfiança. Cedo descobri que as pessoas não são iguais. O padre Onofre até nos levava a passear pelos campos e a jogar futebol no campo do clube da terra com bolas de dimensões reais. Nunca nos obrigou a rezar e a beijar a mão. Era mais um amigo e um companheiro do que um professor como o padre Luís que só falava do perigo do pecado e da gula e nos fulminava com o seu olhar acusador quando nos esquivávamos a beijar-lhe a mão.
O padre Onofre chegou a dizer que se aprendia à custa do erro e tal atitude permitida era uma forma de uma pessoa consolidar os seus ideais.
Os meus ideais?
Não mais os recuperei porque era tarde para os agarrar. Foi o futebol (de nada valeu ser o campeão dos marcadores de golos nos torneios da escola que nunca chegavam ao fim por motivos ligados à pancadaria entre os adeptos fervorosos das diferentes turmas). Foi a música (o rouxinol não educou a voz). Foi o amor sentido por uma mulher que sempre desejei que durasse até à eternidade. Perdi tudo.
Vi no padre Onofre um amigo, alguém sempre pronto a encorajar, a dar uma palavra de conforto. Foi ele que me batizou aos trezes anos.
Inevitavelmente o tempo passou e acabei o liceu. Abriram-se na minha frente novos e ambiciosos horizontes. Nunca o procurei, mas também não o esqueci.
O padre Onofre. Seria ele?
Ele, na verdade, tinha cara de bebé chorão. Hoje sei que está muito mal. Completamente esclerosado. Esquecido do mundo. Esquecido que existe. A caminho do outro mundo. Com guia de marcha para breve. Talvez que nessa altura, quando chegar a esse tal mundo de que dizem maravilhas e de que não há provas palpáveis da sua existência, ele me dê um sinal, levante um braço para mim e assim seja concretizada a visão da Ema. 
Mas não era o padre Onofre que tinha luz porque ainda estava vivo.
Entretanto a Ema tinha dado por terminada a sessão.

Estou ansioso que chegue sexta-feira. Vou levar a vidente a casa da Lenita, e vai haver um encontro entre ela e a Flora.
Promete ser um espetáculo dos grandes, digno de ser visto.

Ainda em relação ao que se passou na casa da praia, não posso deixar de falar duma coisa que a vidente me disse em jeito de aviso. Devia ter cuidado com o que se passava à minha volta, pois não estava ainda preparado para ver. Devia ir devagar.
Nesse dia ainda houve mais coisas estranhas passadas na casa da praia.
Quando ela me benzia, a certa altura voltou-se para mim e fez-me uma pergunta que considerei estranha:
«Tem pera?»
«Como?»
Repetiu a pergunta.
«Nunca tive!»
«Vi em si uma pera. Por isso é que perguntei.»
Achei estranho.

Aconteceu na casa da praia com a Ema. Uma casa povoada, como ela disse. Estava num ponto alto e tornava-se bastante vulnerável à entrada de seres não esclarecidos que vagueavam nas camadas mais inferiores e impuras do mundo astral. Eram esses seres que me perturbavam. Tinha que aprender a libertar-me deles.
Outra coisa: prometeu-me que um dia me ensinava a voar.
E a Manuela era um desses seres não esclarecidos?
Não. Ela já tinha luz. De certa maneira queria ajudar-me, mas também podia prejudicar-me de forma involuntária. Devia deixá-la partir. Afinal era eu que a agarrava, quem chamava por ela.
No final todos foram benzidos e foi usado o álcool canforado. Um de cada vez. Seguiram-se as rezas e benzeduras por toda a casa.
(há uma reza que diz para o álcool canforado entrar em casa e os espíritos maus saírem...)
A propósito dos espíritos, contei-lhe alguns dos casos insólitos ocorridos, entre eles o da cassete suspensa. Explicou-me que existem espíritos brincalhões que mudam o sítio às coisas.
A esse respeito penso que os chamamentos à minha atenção não foram provocados pelos espíritos brincalhões.

Estava uma noite morna, agradável para dar uma volta pelas ruas de Lisboa. Tinha jantado mais que o habitual e precisava de fazer uma boa caminhada.
Mas aonde ir?
Talvez ao acaso. Sentia que o meu horizonte já não se localizava no sítio do costume. Olhava mais para diante, para outros objetivos que ambicionava atingir. Nada tinham a ver com os pensamentos materialistas que me massacravam no dia a dia. Antes pelo contrário. Agora, já sem qualquer sinal de medo, tentava penetrar nos mistérios daquilo que passei a chamar Os anos do deus menor. O primeiro embate com o relógio que falava, a cassete suspensa e outros mais casos, fez-me oscilar um pouco, talvez só o tempo para tomar fôlego, ganhar coragem e seguir em frente com o objetivo de descerrar cortinas a seguir a cortinas. Sem receio. Não olhando para trás. Contudo, tinha plena consciência que estava a entrar num ciclo muito complicado que talvez não tivesse regresso.
Não me lembro onde estive, ou se estive. Nesse intervalo de tempo chamei à memória todos esses acontecimentos estranhos para os quais não encontrei explicação lógica, ligações coerentes, pistas.
Nada. Ao mesmo tempo, sabia que as coisas não iam ficar por aqui e, por esse motivo, devia ficar mais atento do que nunca a todos os sinais.
Engano o meu. Tudo continuaria a ser igual. O que se estava a passar era incontrolável para um sensitivo como eu que funcionava só com uma espécie de canal onde iam dar sinais incompletos ou com falta de lógica. Só depois de acontecer, surgia a lógica de dois mais dois, igual a quatro e essa incapacidade atormentava-me o espírito.
Por que razão Deus me tinha dado um dom que não servia para nada?
Passava da meia-noite quando regressei a casa. Precisava de falar para o Canadá, mas não seria ainda naquela noite. Estava cansado de tanto andar pelas ruas ao acaso, à procura de respostas para as múltiplas angústias que me atropelavam a mente.

Levantei-me cedo, como de costume. Passei algum tempo a arrumar coisas, ou talvez a arrumar as ideias. Depois, dei um salto à Baixa a dar ordens de compra e venda de ações para uma sociedade de que era um dos representantes credenciados. Voltei para casa à hora do almoço e resolvi aquecer no forno elétrico um resto de empadão que sobrara da véspera. Só então entrei no quarto.
Quedei-me à entrada e fiquei a pensar. O quarto estava como o deixei, mas qualquer coisa tinha a ver com a cama.
Seria a almofada?
Não era a almofada. Estava no seu lugar. Observei melhor. Alguma coisa estava mal. A roupa. Era isso. Toda puxada para cima do meu lado e desmanchada do outro. Precisamente ao contrário do que era habitual e de como deixara. Como se alguém tivesse feito a cama do meu lado e desmanchasse o lado oposto só para chamar a atenção.
Não tinha respostas. Era mais uma chamada de atenção do que outra coisa. O mais estranho é que de manhã, quando me levantei, não dei por nada. Portanto, tudo devia estar normal nessa altura. E mais, tinha a certeza de não ter feito a cama antes de ir para a Baixa.
Como a hipótese posta de parte da empregada ter interferido, uma vez que tinha vindo trabalhar na véspera, passou-me pela mente uma ideia absurda. Alguém dormiu comigo na cama e esse alguém esteve invisível aos meus olhos. Mas quis deixar um sinal da sua presença!

No dia seguinte quando me levantei da cama fi-lo como era hábito. Saí pelo meu lado e a roupa ficou levantada para trás só desse lado. Já no hall, no momento em que ia a sair, observei que o cinzeiro em forma de pé, que foi oferecido pelo meu primo Hélder, e viera do Canadá, estava em cima de vários livros empilhados na estante que enquadrava com a porta. Tudo bem. O que achei estranho foi ver duas buchas vermelhas, utilizadas nas paredes, para suportarem quadros ou um espelho, por exemplo, colocadas sobre o cinzeiro, formando uma cruz. Um sinal negativo, pensei.
Mas que significado podia dar?
Mau presságio. Morte. Talvez a morte de alguém.
Observei melhor. Debaixo das buchas ainda estava um papel que deixei escrito para a mulher-a-dias. Aí explicava que deixava o dinheiro, em virtude de chegar tarde. Mas havia outra coisa: um desses livros relacionava-se com o Canadá e os outros versavam temas insólitos. Um deles tinha um título sugestivo: “As aparições da Virgem Maria”.
Nessa manhã encontrei-me com a Lina perto da escola. A Lina era minha colega e tinha-me pedido dinheiro emprestado para um negócio de trapos. Cinquenta contos.
Combinara com a Ema o encontro junto à paragem dos autocarros e aproveitava para a apresentar à Lina, a minha colega da feitura dos horários para os professores, que precisava do seu auxílio pois estava a passar por um momento complicado na sua vida conjugal.
Era cedo. Faltava um quarto de hora para o encontro, mas pareceu-me que estava a ver a vidente mais adiante. Quem quer que fosse, olhava, ora para um lado, ora para outro, procurando algo.
«Veio mais cedo.» Comentei com a Lina.
«É a tal senhora?»
«Sim.»
Apressámos o passo. Pouco depois cheguei ao lado da senhora e, quando olhei para ela, senti que qualquer coisa estava mal. Devo ter mostrado uma cara algo aparvalhada.
«Não me conhece.» Disse ela, com uma voz seca.
De facto, não a conhecia. Certamente não era a pessoa que procurava. Ela, sim, parecia andar à procura de alguém e não disse.
«Eu sou América... América em Portugal.»
Não entendi.
«E vai pedir-me desculpa.»
Pedir desculpa. Dava para pensar, mas fiz-lhe a vontade.
«Tem razão, desculpe. Julgava que era outra pessoa.»
Afastou-se. Comentei a estranha ocorrência com a Lina. A mulher tinha uma cara esquisita, muito amarela, desagradável de ver (a minha amiga confirmou). Parecia um fantasma. A cor de cera no rosto, o tom de voz ríspido, desagradável. Decididamente falara com um fantasma e pela primeira.
Outro pormenor: levava um saco azul, em vez da mala. O saco era de asas e em plástico.
Finalmente, à hora combinada, chegou a vidente e apresentei-a à Lina que ficou de lhe telefonar. Depois, despedimo-nos da minha colega e seguimos para a casa da Lenita.
Mal pude, contei à Ema o que me aconteceu. Não só aquele caso da América em Portugal como o da cama desfeita ao contrário e também o das buchas vermelhas.
Já na casa da Lenita, cheguei mesmo a atirar com uma das buchas para cima de uma mesa e esta ficou na vertical.
«Vê?»
Nada via de mal.
«Se a bucha ficou nesta posição é porque vai acontecer alguma coisa horrível!»

Começámos a sessão depois do almoço.
A primeira coisa que fiz foi ligar o gravador.
Como ia reagir aos meus poemas e, principalmente, à Analogia?
Observei-a com atenção. Só a princípio. Depois, deixei-me levar na torrente das palavras que falavam do desespero e da saudade dum grande amor que deixei fugir para sempre há muito tempo.
Desliguei o gravador e fiquei à espera. Foi curiosa a forma como reagiu. Curiosa e dececionante. Consegui que avivasse o passado. Mas não o meu. Sim o dela. Com sentimentos saudosistas contou-nos um caso de amor passado com ela, sabe-se lá há quantos anos! A porta que se abriu não foi a minha.
Mostrei-lhe umas fotografias. Não estava nos seus dias. Notei que trocava tudo. Por exemplo, mostrei-lhe uma fotografia de uma falsa amiga que (diziam) fazia bonequinhos de trapo onde espetava alfinetes. Ficou serena e calada. Não deu os arrotos habituais, nem sequer esticou os braços.
«Ela chama-se Carlota. Disseram-me que faz bonecos onde crava alfinetes.»
Referia-me a magia negra.
«Não gosto dela.»
Estava mesmo em dia não. Ou então não tinha ainda aquecido os motores. Talvez a minha gravação tivesse sido afinal um elemento bloqueador.
Só quando chegou a Flora é que as coisas animaram…

Estávamos reunidos na sala. Tinha à minha esquerda a minha prima e a Ema. A outra vidente estava do lado da janela, à minha direita.
Estabeleceu-se logo um diálogo vivo entre as duas mulheres. A princípio não dei conta do que se estava a passar. O diálogo parecia normal. Mas à medida que o diálogo evoluía, comecei a perceber que havia qualquer coisa diferente e fiquei mais atento. Duma conversa animada entre duas pessoas, passou-se para outra muito azeda, de ataque e defesa, em que as intervenientes já não eram elas. Por um lado, estava a Manuela (Ema); por outro, a minha companheira, ausente no Canadá (Flora).
A Manuela atacava forte a minha companheira, dizendo que me deixava só e apenas lhe interessavam as viagens. A outra dizia que não era bem assim.
Logo de seguida exaltou-se e excedeu-se no palavreado.
«Minha puta!»
Fiquei chocado. Nunca a vi sob esse prisma. Na altura em que a conheci ela era uma rapariga sensível e muito educada. Não era pessoa para dizer palavrões, mas o certo é que a exaltação tinha-a feito estalar o verniz.
De súbito, a suposta Manuela levantou-se e caminhou na direção da outra. Ato contínuo, deu-lhe um bofetão vigoroso.
Ficámos estupefactos com o sucedido.
Finalmente sentou-se e acalmou. Mas, logo a seguir, continuaram a discutir. Tudo isto no meio dos arrotos e do esticar de braços da Ema.
Resolvi também interferir na altura. Tinha o meu plano que só pus em ação no momento em que achei oportuno.
Voltei-me para ela e perguntei-lhe, de chofre:
«A propósito, quem é que dormiu anteontem na minha cama?»
Lembrei-me daquele momento estranho que aconteceu na quinta-feira de manhã quando encontrei a cama feita do meu lado e desfeita do outro, ao contrário do que era habitual. Como se alguém tivesse mexido outra vez na cama, ou então eu tivesse dormido no outro lado da cama, o que ia contra a lógica.
Fez-se um silêncio de morte. A suposta Manuela, olhou para mim, muito séria. Observei que estava um pouco transtornada. Tinha ar de quem fora apanhada em falso.
Estava a demorar a reagir, Pensei que o barro atirado à parede caíra no chão. Mas não. Voltou a levantar-se e dirigiu-se para mim.
Ia dar-me também uma chapada?
Então, respirei fundo e preparei-me para o pior. Mas reagiu de forma diferente. Ajoelhou-se aos meus pés e começou a chorar baixinho, com as duas mãos pressionando os meus joelhos. E eu fiquei calmo. Muito calmo. Uma calmaria de mar feito num lago.
Logo a seguir, o meu olhar cruzou-se com o da minha prima.
«É a Manuela.» Disse, convicta.
Não queria acreditar!
«Deixa sair a mentirosa para ela falar verdade!»
Pintura borrada!
A Flora insinuou que um espírito brincalhão acabava de interferir. Fiquei indeciso. Não perguntei mais nada e ela estava ali, à mercê das minhas palavras. E perdi a oportunidade quando a Flora insistiu nos seus comentários negativos e a Ema já não reagia.
Por outro lado, segundo a Lenita, acabara de entrar em transe.
A minha prima e a Flora aproximaram-se e começaram a acalmá-la, pegando cada uma num dos braços da médium, no momento sem qualquer ação
A Flora recebeu um esticão e a Lenita não foi repelida.
Coincidência?
Então, fiz a experiência, usando as duas mãos. O mesmo braço que repelira a Flora, continuava a reagir de igual forma. E quanto ao outro manteve-se inerte.
Que conclusão a tirar de reações tão estranhas?
A seguir tentámos os três levantá-la e repetiu-se a mesma cena da casa da praia. E desta vez havia mais uma pessoa a ajudar.
Que raio de força poderosa era aquela que mantinha o corpo da vidente agarrado ao chão como se fosse um penedo?
Só quando pediu é que conseguimos levantá-la e já sem o mínimo sinal de esforço.
Voltou ao lugar e iniciou um monólogo, bem mais calma. Era o segundo transe. Agora falava uma pessoa, ao mesmo tempo que gesticulava, dando ênfase às palavras. Defendia-se com convicção. Comecei a reconhecê-la pelos gestos vigorosos do braço direito. A voz era diferente, mas os gestos eram tal e qual os da minha companheira. Não queria acreditar no que os meus olhos estavam a ver. Do Canadá, a muitos quilómetros de distância, ela fazia, com uma certa veemência, a sua defesa. Que não, não me deixava só. Gostava de viajar e eu não me importava. Não fazia as viagens com a intenção de me magoar. Eu até gostava que ela fosse.
Seguia mais os gestos que as palavras e estava abismado. Não podia haver imitação melhor, pensei. E a Ema não podia imitar uma pessoa que nunca tinha visto. O certo é que a imitação foi perfeita, o que considerei um absurdo visto que desafiava toda a lógica. Abriu-se, por momentos, uma porta e não consegui espreitar para o outro lado só por culpa da interferência da estúpida da segunda vidente!

Dois dias depois do encontro na casa da Lenita deu-se um desastre de viação em que morreu um amigo. A mulher e a filha tiveram mais sorte. Escaparam com algumas fraturas de membros.
Só tive conhecimento quando recebi um telefonema duma amiga. O impacto foi o de uma bomba. Naquele momento estava longe, muito longe.
Amanhã vou encontrar-me no hospital de S. José com a minha amiga e o Sérgio para saber notícias da evolução das fraturas das minhas amigas.
Os sinais que recebi (a bucha vermelha!) foram demasiado fortes para passarem despercebidos.

Num destes dias apareceu uma coisa estranha gravada no lençol da cama, do lado esquerdo. Parece um rosto de mulher índia. Notam-se os contornos da cara, dos olhos e do nariz, este de contornos grosseiros. Há também um esboço de trança ou uma espécie de uma trança. Já dei voltas e mais voltas à cabeça e não encontrei qualquer explicação para esta estranha ocorrência.
Resolvi não apagar a gravação no lençol, pelo menos nos próximos dias.

Neste momento são sete horas da manhã. Vou tomar um duche, vestir-me e a seguir passar pela escola. Depois sigo direto para S. José para visitar a mulher e a filha do meu amigo falecido.
A morte marcou encontro com ele. Uma morte violenta que talvez pudesse ter evitado, se a clarividência tivesse estado comigo, pois houve hipótese, na véspera, de ser alterado o rumo dos acontecimentos. Bastava não ter passado pela casa da praia na viagem de regresso a Lisboa e dar boleia à Laurinda, a filha do meu amigo. Mas o destino estava traçado talvez naquele encontro com a mulher do rosto cor de cera.
«Eu sou América... América em Portugal.»

Sonhei com a Manuela…
A casa dela estava totalmente em ruínas. Já não tinha telhado. Parecia que fora destruída por um incêndio. Havia um jardim atrás da casa. Era um jardim suspenso com catos enormes. Vi também um grande terraço.

Mudou o cenário. Ia a caminho do cemitério. Fiquei admirado. Havia uma feira instalada no seu interior. Continuei a caminhada em direção ao sítio do jazigo.
As pedras das campas estavam deslocadas dos locais primitivos e todas encostadas ao muro.


Encontrei uma hipotética explicação para a primeira metade do sonho. A casa em ruínas e o telhado desfeito podem significar um casamento fracassado. Nunca poderia dar certo o casamento da Manuela com o homem que mais odiava. Quanto ao jardim com catos que vi junto à casa seria a causa da separação. Eu, hipotético amante e colecionador de catos, devia ter sido a sombra que pairou sempre entre os dois.
Quanto à segunda parte do sonho, esta ainda não tem solução. No cemitério desloco-me da esquerda para a direita e isso significa que ainda não aconteceu [3].

Desde segunda-feira que sabia. O grupo da praia tinha marcado um almoço de caça em Estremoz. Viagens! E eu aceitei o convite. Sem hesitação. Muito estranho!
E lá fomos a Estremoz.
Não vou falar do almoço, que foi soberbo.
Estive no cemitério por duas vezes. Da primeira, pouco passava do meio-dia e estava fechado. Voltei cerca das três e meia da tarde e vi tudo arrasado na zona onde se encontrava a campa. Falei com o coveiro. Disse-me que, sempre que morria alguém da família dos falecidos naquela zona, a campa era mudada para outro sítio a que chamou a parte nova. Perguntei-lhe onde era. Apontou para o fundo do cemitério.
Quem teria morrido?
Travei então uma luta contra o tempo. O grupo estava à minha espera. Como por milagre não demorei muito tempo a encontrar a campa. Ali estavam os restos daquela que tinha sido o grande amor da minha vida. Se houvesse uma outra vida para lá da porta de certeza que a Manuela estaria à minha espera.

Quanto ao rosto gravado no lençol…
Naquela sexta-feira em que fui ao hospital de S. José, passei depois por casa com a Hermínia e o Sérgio. A cama ainda estava por fazer. Mostrei-lhes o lençol e pedi para analisarem bem.
Ele disse que não via nada de especial e a Hermínia exclamou logo:
«Isto parece um rosto!»
Então não era alucinação.
Mas de quem é aquele rosto de índia?

Aconteceu numa tarde encoberta de setembro, quando eu me preparava para sair de casa. Tinha metido a chave à porta e logo tocou o telefone. Era a Sofia, a presidente do Conselho Diretivo. Tratava-se de um assunto que dizia respeito a serviço de horários. Uma coisa muito simples.
Fiquei logo de pé atrás porque já tinha recusado, ainda antes de férias, o convite pomposo para dirigir ou fazer parte da equipa de horários. Justifiquei-me no momento que me sentia cansado [4]. Se houvesse algum problema, então em setembro daria uma ajuda. Mas só em última instância.
E que me disse a Sofia?
A Lina precisava de ajuda nos horários. Estava encalhada na parte final, precisamente o osso mais duro de roer.
Era curioso. Concretizava-se assim um sonho que tivera dias antes.
Nesse sonho ajudei a Lina a procurar o marido.

Encontrámo-lo, depois de algumas cenas rocambolescas, em que houve murros e pontapés. Estava acompanhado de outra mulher que deduzi ser a amante. Chamei-o à pedra e deu-me uma resposta torta. Depois acordei.

Comecei então a trabalhar numa segunda-feira e, como de costume, apaixonei-me logo pelo trabalho, desgastante intelectualmente, mas compensador à medida que se progredia no sentido de chegar ao fecho dos horários. A chamada apoteose. Mas, por vezes, a simples falta duma sala disponível deitava abaixo o trabalho de uma ou duas horas. Nesse tempo nós ainda fazíamos os horários à mão, usando mapas, pranchetas, pregos coloridos e muita imaginação e paciência.
Mas não era sobre este tema que queria falar. Assim, salto para o dia seguinte porque é nesse dia que recomeça esta história macabra que teve como ponto de partida o segundo convite da Sofia.

Almocei em casa e ainda fui à escola, onde estive até às quatro a dar voltas à cabeça para tapar uns tantos furos que havia nos horários dos professores. Depois, segui para a casa da praia.
Deixei o carro numa oficina só para serem tirados uns pontos de ferrugem e regressei a Lisboa de autocarro. Era quase noite quando entrei em casa, ainda a tempo de ver o telejornal. Chamou-me a atenção, pelo dramatismo, a notícia sobre uma explosão numa das avenidas principais. O sinistro ocorreu numa caixa de eletricidade de média voltagem que estava dissimulada no chão por uma das muitas tampas que se veem habitualmente nos passeios, e, neste caso, a poucos metros de distância da banca de venda de jornais onde, por coincidência ou não, era cliente. A caixa explodiu inopinadamente e atingiu quatro ou cinco pessoas que ficaram gravemente feridas. No momento do acidente estava em casa, a almoçar.
Voltei à escola e ninguém me falou no desastre por uma razão muito simples. Fui direto para a sala onde a Lina trabalhava nos horários.
«Podia ter sido comigo!» desabafei.
Mal sabia o que estava por detrás de tudo isto. Uma das pessoas atingidas foi a vendedora dos jornais. Atravessou a avenida a correr, transformada num archote, até que caiu no chão, ainda a arder.
Mas, antes de continuar, é importante voltar a segunda-feira, depois do almoço…

Quando entrei no corredor que dava acesso às salas do primeiro piso, uma empregada pôs um braço na minha frente e disse-me, a brincar:
«O senhor doutor não pode passar!»
Pensei que era a sério. O sorriso da funcionária fez-me cair na realidade.
«Porquê?» perguntei.
«Preciso de meter uma cunha.»
Ah sim. Uma cunha. Então o que era?
Nada complicado. Uma jovem e o namorado queriam fazer um pedido.
«Não é a melhor altura. A minha colega está à espera. Mas o que se passa?»
Ouvi-os. Uma aluna que eu tivera a Matemática o ano passado numa das turmas queria matricular-se em duas disciplinas que lhe faltavam e não a deixavam por ter expirado o prazo. Claro que não havia prazos para os alunos do curso noturno. Pagavam só a multa e pronto, estava tudo resolvido.
O problema era outro. Havia excesso de matrículas.
Fui ao Conselho Diretivo e expus o caso à Sofia.
«Já sei de quem se trata. Não há vagas, bem sabes.» Disse logo ela, a tentar despachar-me em grande velocidade.
Teimei.
«Não é um caso vulgar de inscrição. Faltam apenas duas disciplinas à rapariga. E estás enganada. Olha que ainda temos vagas.»
«Então vai ver à secretaria.»
Achei estranha a teimosia dela ao afirmar, categórica, que não havia vagas. Entrei na secretaria e quem me atendeu foi a Otávia. Por sinal dava explicações gratuitas ao filho.
Expliquei-lhe em poucos segundos o que estava a passar-se e ela foi perentória. Claro que havia vagas.
Era só o eu que queria ouvir. Nem sequer passei pelo Conselho Diretivo. Voltei ao átrio principal e disse à jovem:
«Está tudo resolvido. Pode dizer à Mónica para ela fazer a sua matrícula.»
Perguntou-me se podia fazer a matrícula por ela.
«Por que motivo não vem a Mónica?»
«Está empregada e não lhe convém faltar ao emprego.»
«E não tem sequer uma hora para tratar do assunto?»
Olhou-me, em silêncio, muito séria. A expressão de súplica foi mais convincente que mil palavras.
«Bom, então pode ir à Secretaria. Fala com uma senhora que se chama Otávia e diz que vai da minha parte. Ela já sabe do que se trata.»
«Obrigadíssimo...»
Sorri para a jovem e fui ter com a Lina. Nunca mais esqueceria aquela palavra. Obrigadíssimo.

Quarta de manhã encontrei a Otávia quando subia a escadaria que dava acesso ao átrio principal. Notei um certo ar de preocupação no seu semblante.
«Que se passa?» falei para mim.
«Então, senhor doutor, já sabe da explosão?»
«Vi na televisão. Foi uma coisa terrível. Também costumo passar por ali. Podia ter acontecido comigo.»
«Mas o senhor não sabe tudo.»
«Não sei o quê?»
«Lembra-se da rapariga de ontem?»
«Sim. Aquela jovem que veio matricular a irmã do namorado. Mandei-a ir ter consigo. Porquê? Houve algum problema com a matrícula?»
«Nada disso. É que infelizmente...»
«Sim?»
«Ela foi uma das pessoas apanhadas pela explosão!»
Devo ter feito uma cara esquisita. Talvez de quem levou uma grande martelada na cabeça, que a deixou a vibrar.
A região de Lisboa tinha cerca de um milhão de habitantes e logo ia acontecer a tragédia com a pobre rapariga que me agradeceu, com voz simpática:
«Obrigadíssimo.»
E explicou-me…
Na manhã seguinte ao pedido vieram matricular a Mónica. A jovem, a mãe da jovem, o pai e o namorado. Demoraram o tempo normal de uma matrícula sem problemas e depois foram conversar com a mulher dos jornais. Pouco passava do meio-dia quando se deu a explosão. Estavam lá, junto à mulher dos jornais, à espera da morte.
Lembrei-me logo da mulher com rosto da cor da cera que tinha visto, dias atrás.
«Eu sou América... América em Portugal.»
Talvez tivesse falado com um espetro.
Primeiro morreu a mãe da jovem. A seguir, ela. Depois a mulher dos jornais. O pai ficou em estado de choque e o namorado salvou-se porque escorregou pelas escadas do metro e o fogo apagou-se quase de seguida.
Eis como vou alterar involuntariamente o destino de várias pessoas. E tudo aconteceu porque tive um sonho movimentado em que ajudei a minha colega, porque fui chamado para o serviço de horários para a ajudar no fecho, porque ajudei também uma jovem a matricular a irmã do namorado e, principalmente, porque, entre umas tantas centenas de milhar de pessoas que têm, no país, mais probabilidade de se cruzarem comigo, alguém me escolheu para conduzir vítimas indefesas para a morte, mais concretamente a uma caixa de eletricidade de média voltagem, pronta a explodir quando as vítimas estivessem a conversar com a vendedora de jornais.
Não era a pessoa que procurava, mas fui mais tarde um instrumento involuntário dos baixos desígnios, esses conscientes, da mulher com o rosto cor de cera, talvez o disfarce que Satanás (por sua vez também mascarado de deus menor) usou nesse fatal fim de manhã.
Só podia concluir que, em boa verdade, Deus não gostava de mim, ou ignorava que eu existia. Era mais próprio acreditar que Ele não gostava mesmo nada de mim.

E continuou a não gostar de mim no dia 13 de outubro. Antes desse caso preciso de introduzir uns dados que considero estranhos.
Duas amigas estavam interessadas em consultar a Ema e tentei várias vezes contactar a vidente.
Depois de várias tentativas frustradas, a Ema pediu-me para telefonar na terça-feira 13 de outubro, fecho das aparições da Senhora aos três pastorinhos. Justificou o atraso, porque na semana anterior tivera um “trabalho” a fazer em Setúbal.
Tudo ficou adiado porque as minhas amigas não estavam disponíveis nesse dia.
Num dos dias antes de terça, comecei a sentir as pressões habituais que costumava ligar a coisas estranhas que estavam para acontecer. Nessa terça-feira levei os meus pais, que estavam a passar uns dias connosco, a visitar a dona Francisca. Por esse motivo, passei de carro por duas vezes perto da igreja de Fátima [5] e recordei-me, com saudade, da Manuela. Entretanto, durante a visita passou-se qualquer coisa estranha a certa altura, pois senti uma indisposição, felizmente temporária.
À noite fui dar aulas. Na segunda aula, que era a última, comecei, a certa altura, a sentir um grande cansaço, sem encontrar um motivo de explicação.
Já no caminho de regresso a casa dei comigo atrás de um carro que estava parado em frente aos semáforos do viaduto do Campo Grande. O sinal estava verde, mas o carro não arrancava. Os outros carros passavam, entretanto, por ambos os lados e eu continuava sem reagir, como se tivesse mesmo que ficar parado.
Que sucedera?
Senti-me aturdido. No separador da esquerda vi duas pessoas. Parecia que discutiam. Dentro do carro não havia ninguém. Queria entender o que se passava comigo, e também lá fora, mas não conseguia. De súbito, dera comigo atrás daquele carro sem ocupantes. Absorto nos meus pensamentos, e sabe-se lá por onde os mesmos andavam. Não tinha dado conta que aquele carro estava parado, embora o mesmo tivesse os piscas a funcionar.
Deviam ser dez e meia quando entrei em casa. Os meus pais estavam na casa de jantar e parecia que cochichavam. Não entendi. Entrei no quarto. A Raquel estava deitada. Notei que tinha um ar estranho, pois olhava fixamente em frente. Estaria doente? Não. O caso era outro e tardava em esclarecer-me.
Morrera o filho de um amigo nosso num desastre horrível. Teve uma morte brutal. Instantânea. A mais de cem quilómetros por hora, o seu carro embateu com violência na traseira de um pesado que estava imobilizado perto da portagem da autoestrada.
Embriagado pelo entusiasmo da velocidade, voou para a morte de forma violenta e dramática.
Fiquei pregado ao chão. Sem palavras. Queria reagir e não con­seguia. Era doloroso. Revoltante. Um rapaz na força da vida, a respirar saúde, com dinheiro, namorada para casar, e também uma marcação da partida para o “outro lado da porta”. E porquê? Porque a sua mãe, que também já partira, afinal lhe deixara o dinheiro destinado a comprar o instrumento da morte. Um carro potente que embriagava mesmo sem ser álcool. Uma estranha chamada para a morte.
Sentado no lado direito da cama, caí em mim e comecei a ouvir com mais detalhe a versão da Raquel. A brutalidade do choque e uma morte inevitável. Inevitável? Sim, porque tinha vindo ao despique com o condutor de outro carro. Ora um à frente, ora o outro atrás. Até que aconteceu o inevitável.
E porquê os avisos que começaram com a passagem pela igreja de Fátima, a indisposição na casa da dona Francisca, o cansaço na escola, a paragem sem explicação atrás do carro que tinha os piscas ligados [6].
Olhei para a mesa de cabeceira. Já não sabia se estava a ouvir o relato da Raquel se a “ver” o que faltava em cima da mesa. Uma imagem da Virgem. A mesma Virgem que, diziam os crentes, nos protegia de todo o mal que pudesse vir a acontecer.




Então, lembrei-me. Nessa tarde, a imagem caiu no chão, tocada pela manga do blusão que vestia. Voltei a pôr a imagem no sítio. Reparei que faltavam as mãos. Procurei no chão. Lá estavam. Tive o cuidado de as colocar no sítio.
Ouvia a Raquel e, ao mesmo tempo, olhava para a imagem. Não via as mãos. A Raquel não se lembrava de ter deixado cair a imagem. Era natural. Limpara o pó da mesa na parte da tarde. A imagem podia ter caído. Não. Não se lembrava. Mas era assim tão importante? Para mim, era.
Procurei no chão. Acabei por encontrar as mãos, que formavam um bloco único, debaixo da cama, precisamente a meio. Achava que era uma distância considerável e parecia que as mãos tinham andado. Uma pancada na imagem, muito dificilmente levava as mãos para tal distância. Até porque elas não tinham forma esférica e, portanto, não rolavam. Longe disso. Mas a verdade é que as encontrei ali. E havia outro pormenor. Ambos tocámos na imagem e eu vi nas duas vezes que faltavam as mãos. Mãos do Álvaro [7] que também agarravam o volante de um carro.
Os avisos tinham sido muitos. Flagrantes. Mas para quê? Nada podia travar um bólide que voava, inevitavelmente, para a morte, ou travar o chamamento de uma mãe que, em vida, certamente adorara o filho.
«Não sou a pessoa que julga...»
Só podia concluir que, em verdade, Deus já não gostava de mim. Os avisos tinham sido muitos. Mas para quê?, repito?
O malogrado filho do nosso amigo também era sócio do “Totinveste”, uma sociedade de ações e obrigações que começou com seis sócios que tinham entrado, cada um, com cem contos e agora ultrapassava os vinte mil contos.
Por sinal concretizou a sua entrada na véspera do acidente fatal do meu amigo. Coincidência? Talvez. Falando de coincidências, ambos chocaram com um veículo pesado. Um pela frente e outro por trás.
Queria ser o sócio maioritário. Talvez viesse a ser. Talvez, se não tivesse acontecido a tragédia. Entrara recentemente e já era o segundo, em termos de posição.

Não vou relatar o drama que se passou no velório do Álvaro e no dia do funeral. No desespero do pai e nas crises histéricas da namorada do Álvaro. Na revolta que senti. Nas lágrimas de emoção e pesar que me escorreram pelo rosto no velório, no cemitério, já junto ao jazigo, principalmente desde o momento da aproximação do corpo ao jazigo e da inevitável entrada no mesmo. Vou falar noutra coisa. Tirei três fotografias importantes: duas à imagem (uma, sem as mãos; outra com as mãos) e a terceira à estante do hall, encaixada na parede da porta da rua, e onde está o livro sobre Fátima que comprei recentemente.
Ontem voltei a olhar para o pé/cinzeiro do Canada que esteve na origem dos fenómenos já relatados atrás. Estava lá tudo ainda. As buchas, os pregos, a borracha em forma de roda e o botão.
Mas havia uma coisa nova. Uma chave de mala de viagem, com um cordão vermelho. O botão que estava na vertical. Confrontei com a fotografia. Anteontem, o cinzeiro com a forma de pé não tinha a chave. Foi posta ontem pela Raquel...
Outro sinal: na marquise há um calendário-termómetro. Desde o princípio do verão que não altero a data [8].
E então?
Estava marcado o dia 13!

Os sinais multiplicam-se e a Senhora do Rosário parece estar no meio dos avisos. Sinto-me impotente. Não consigo atingir que mensagem me está a ser enviada. Ou então tudo não passa de uma cabala de que é responsável a Raquel. Mas não acredito. Não é suficientemente inteligente para fazer um “trabalho” tão perfeito.
Entretanto as pressões no peito voltaram e intensificaram-se. Será o resultado da resistência à ocupação do meu corpo pelo hipotético encosto?
Uma pergunta: que relação há entre o trabalho que a Ema foi fazer a Setúbal e a coincidência do Álvaro ter tido em vida uma casa aí, para onde iria viver depois de casado?

Para terminar…
Fazendo o papel do Todo-Poderoso, já que o Genuíno adormeceu, ou ignorou-me sempre, decreto que seja erradicado desta Terra maldita, em que estamos de passagem, e também erradicado dos céus, essa figura sinistra, que se conhece por muitos nomes, como deus menor, anticristo, belzebu, lúcifer, satanás, mafarrico, mula sem cabeça, 666...
Dizem que um anjo foi castigado por Deus e caiu dos céus.
Porque não foi destruído para sempre, como o foram Sodoma e Gomorra, ou, por exemplo, porque aconteceram as pragas que Ele lançou sobre o Egito de Ramsés e que tantas mortes e sofrimento causou para libertar um povo que continuou a sofrer?

 


[1] “Manuela” – Romance curto, mas de uma vida…

[2] “Os Verdes Anos de Mário Contador de Histórias”, coletânea de contos reais.

[3] Mas iria tornar-se realidade, anos mais tarde, em 1993…

[4] A razão era outra. Talvez me sentisse injustiçado. Não me lembro, mas pressentia que a razão era outra.[

5] Igreja onde se realizou em junho de 1974 o velório da Manuela.

[6] Um sinal para o choque do carro do Álvaro com o pesado?

[7] Assim se chamava o rapaz. O mesmo nome do meu amigo que tinha morrido num brutal choque com um camião.

[8] É uma fita com números que possui um marcador que desliza ao longo dela...






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