Fugi como um cobarde no dia dos anos do Sérgio. Preferi ficar toda a manhã deitado em cima da cama, a olhar para a mesa redonda do meu quarto na Cecílio de Sousa, a tentar ganhar forças para me agarrar às folhas de Análise Química 1. Quanto a ir às aulas práticas, nem pensar nisso nesse dia.
Por volta das sete da tarde fui a um restaurante da rua dos Douradores e jantei filetes com arroz e salada mista. Não resisti à tentação de comer, como sobremesa, um pudim flan. A conta veio mais pesada, mas agora tinha mais dinheiro porque montara há pouco tempo uma indústria de explicações. Às oito da noite não sabia o que fazer e entretive-me, como pude, até à hora do filme da noite que ia no Chiado Terrasse, um cinema antigo que fora inaugurado em 1908. Aliás, eram dois filmes. Quase que batia o meu recorde que já vinha do tempo em que estava na pensão da Aninhas-morte-lenta. Num célebre dia vi dois filmes na primeira matiné do Rex e um outro, na segunda e não sei onde. Fui a correr à pensão e engoli o jantar que a Aninhas tinha guardado: dois filetes de pescada com arroz de tomate. Tudo engolido à pressa e com sorte por não me ter engasgado com uma espinha traiçoeira, desenquadrada da norma. Depois, ainda tive tempo para papar os dois filmes da noite. Uma barrigada de filmes e também uma enorme dor de cabeça que veio por acréscimo. Mas isso já era passado.
O último filme acabou só à meia-noite. As pessoas dispersaram-se e acabei por ficar sozinho junto à estátua do poeta Chiado. Tive um arrepio. Acaso fosse Lua Cheia, segundo rezavam as crónicas, era a hora dos lobisomens. Eles andavam por ali...
«Cuidado, Mário! É Lua Cheia...»
«Ernesto?»
«...»
Sorri, desdenhoso, perante a recordação do meu amigo imaginário que já tinha há muito passado à história, mas não deixei de olhar para um lado e para outro. Que opção tomava? Não hesitei e segui o meu instinto. Fui para sul e desci a rua do Alecrim. Parei ao fundo da rua. Já sabia o que fazer. Não andei muito até encontrar um bar no Cais do Sodré. O primeiro que apareceu na minha frente. Ainda hesitei à entrada, por momentos, mas acabei por entrar.
Perante uma sala cheia de fumo procurei um lugar discreto que fosse, ao mesmo tempo, um ponto de observação. Tentei ambientar-me. A música parecia vir de muito longe, rompendo, com dificuldade, o tom muito alto das vozes já enrouquecidas pelo álcool e pelo ambiente irrespirável.
«Que faço aqui, neste antro de Lolas e Perdidos?»
Admiti que não era nenhum Perdido à procura de uma Lola. Ou era e não sabia?
Deduzi que a música que estava a ouvir vinha de um disco. Os músicos estavam em intervalo, provavelmente tomando uma refeição leve.
Apurei melhor o ouvido. Pareceu-me que a música que estava o ouvir no momento era conhecida. Tinha-a ouvido num filme. Agora já ouvia melhor e tinha a certeza de ser a Maria Bonita, música de fundo de um daqueles filmes trágicos que encharcavam lenços das mulheres. Senti vontade de mandar calar todos os idiotas presentes para ouvir melhor a melodia tocada em estilo de valsa. Parecia que a última parte da noite começava bem.
E a minha Maria Bonita?, porque foi que desisti dela?
Muito simples. Era menor e tive medo de sofrer as consequências se não cumprisse com a minha obrigação [2].
A música deixou no ar os últimos acordes e toda a magia do momento desapareceu. Das mesas continuavam a sair ruídos cada vez mais altos, mais ensurdecedores e então a mímica era última solução para as pessoas se entenderem.
Quando entrei no bar fiz uma entrada discreta, conforme desejava fazer. Nem sequer o empregado deu pela minha presença. Só algumas mulheres olharam, por momentos, fazendo uma rápida análise ligada a cifrões, para logo voltaram para os seus mundos. Estava posto de parte.
«Tem ar de teso...» Devem ter pensado.
Enganaram-se. As explicações prosperavam a olhos vistos, a ponto de ter recusado um emprego numa seguradora onde ia ganhar metade do que rendiam as explicações.
Finalmente, chegou o empregado.
«Que deseja, senhor?»
Decidi-me por um café.
«Um café é quase tão caro como uma bebida.»
Mas uma bebida predispunha o consumidor para um outro estado de alma.
«Obrigado. De momento só quero um café.»
«Como queira.»
Senti que estava no olho de um furacão e tinha que me acautelar. Logo se via depois, porque pressentia que a noite ainda era uma criança, como era vulgar dizer-se.
Veio o café. Pus o nariz quase em cima da chávena e tentei tirar uma conclusão.
«Parece robusta.»
Não tinha como provar, mas devia ter acertado. O aroma condizia com o gosto muito acre. E de que estava à espera? Arábica, nem pensar nisso. Pus de lado o café e mandei vir um brandy. Estranhamente senti-me morno, entorpecido, pronto a esquecer-me do problema da idade da Natália que ia de certeza atirar-me de cabeça para uma aventura perigosa. Aqueles seus olhos negros faziam-me maluco e levavam-me para lá dos limites controláveis. Não era a frescura da sua juventude, nem a diferença cultural. Era o medo de perder a liberdade, a mesma liberdade que me permitia estar, àquela hora, no local onde estava.
Mas valia a pena dispor destes estranhos momentos de libertinagem?
Admiti que era melhor ver o que se passava à minha volta. Por exemplo, os dois apaixonados que pareciam fazer preliminares para o sexo, tal como um motorista aquecia o motor do carro em tempo frio. Depois, reparei no homem de costas para mim, rodeado de mulheres. Encontrei logo uma história para ele. Um franzino moço de recados que subiu na vida a pulso e que agora arrotava postas de milhões. Tinha tudo. Tudo ou quase tudo? Se ele tivesse tudo não estava ali, rodeado de mulheres, a sugar o tutano da noite escura e a ser sugado por elas, embriagado pela força do dinheiro que comprava os corpos, e pelo álcool, e sem que a verdadeira vida o embriagasse.
Uma das suas companheiras, a mais nova e atraente, tentava convencê-lo a emborcar mais um whisky. Mas ele sentia-se nauseado e afastou o copo com um repelão, chegando mesmo a atingi-la com uma cotovelada violenta no busto.
«Bruto! Magoaste-me...»
«Ó filha, desculpa. Se eu beber mais, depois como é? Fico a chuchar no dedo?»
Então era isso.
Arrastou-a para a pista de dança. A mulher ia contrariada. Encolheu os ombros quando passou por mim. A força do dinheiro vencia com toda a naturalidade, pensei.
Sorriu para mim.
«Já venho ter contigo.»
Porquê eu?
De certeza que não ouvi bem. Era absurdo um brandy ser o bastante para causar-me alucinações auditivas. Homem rico. Homem pobre. Ganhava o pobre? Nem pensar em tal.
«Que é que lhe disseste, cabra?» perguntou o outro.
«Pedi desculpa porque o pisei.»
«Ah, sim...»
Foi a minha vez de sorrir. Vi-os misturarem-se na pista de dança com os outros pares. Muito agarrados, fingiam dançar e fiquei a pensar que certamente não eram amantes da dança.
Na mesa ao lado um indivíduo tinha a cabeça sobre a mesa e ressonava que nem um porco.
«Já tem a sua conta.» Admiti.
Voltei a olhar para a pista de dança, desta vez com mais atenção. Não os via. Os outros pares arrastavam-se estupidamente ao som de uma música entorpecedora, adivinhando-se nos corpos, quase imóveis, uma luta contra o ritmo e a favor do desejo erótico que certamente crescia. Os músicos já tocavam, mas pareciam mais interessados em revezar-se a bebericar numa garrafa que continha um líquido castanho-amarelado. Enquanto a garrafa não ficou de todo em todo vazia manteve-se aquele ritmo monótono, como se eles receassem acordar os pares no auge da marmelada.
Subitamente, aconteceu algo imprevisto. Por sinal coincidiu com o meu ataque a mais um cálice de brandy, que bebi de um trago e sem fazer uma careta.
«Bonito, Mário! Já não vais no caminho certo.» Disse, em voz baixa para os meus botões.
O homem dos ritmos atacou, estranhamente possuído pela magia do ritmo, todos os instrumentos disponíveis na bateria, num ato demorado, terminando com um assombroso e forte toque de pratos. Os corpos em pista estremeceram e voltaram-se para aquele conjunto musical, talvez revoltados pela interrupção do enlace hedónico.
Seria que o baterista tinha enlouquecido?
Agora era o homem do trompete que executava, levantado da cadeira, um solo improvisado, desafiando o clarinetista, que também entrou no diálogo que considerei soberbo. Então as pessoas ficaram expectantes, tentando entender o que se passava no momento. Foi-se o calor do abraço. Foi-se o desejo. O último momento de tesão.
O diálogo vivo entre os músicos continuou. Cada vez mais frenético, a ponto de entusiasmar as pessoas que estavam na pista que tinham deixado de dançar e agora olhavam, suspensos, para os músicos.
Mudança brusca! De novo o baterista tomou conta do diálogo, com os seus movimentos frenéticos de braços. Pressenti que era o fim. A apoteose. E por sinal, acertei.
Primeiro, foi o silêncio da surpresa. Depois, a explosão dos aplausos. Um mundo estranho, aquele! Até o bêbado deixou de ressonar.
Vi-o chamar o empregado, acenando-lhe com uma nota de quinhentos escudos. O empregado apareceu logo, solícito, trazendo já consigo o troco. Uma nota de cinquenta, outra de vinte e uns trocados.
«Grandessíssimo ladrão!» comentei só para mim.
O homem demorou a encontrar a saída, lembrando um carteiro da minha terra que gostava pouco de vinho. Era uma tragédia a sua entrada no portão entreaberto que dava acesso a uma porta secundária do velho edifício dos Correios. O espaço era suficiente para uma pessoa sóbria passar, mas ele não atinava com o dito cujo. Era um espetáculo digno de se ver e pouco edificante para a personagem em frente ao portão. Primeira tentativa, segunda, terceira. Levantava o boné de pala e coçava a cabeça, muito preocupado. Dialogava surdamente com o álcool etílico que fervilhava à volta dos seus pobres neurónios. Depois, recuava, cambaleando, uns dois ou três passos, e atirava-se para o portão, que nem um touro. Até que que finalmente entrou e encaminhou-se para a porta secundária em passadas ondulantes.
«Como vês, cumpro o que prometi.»
Levantei a cabeça, aturdido. Era ela.
«Ah... já o deixou.»
«Trata-me por tu, querido. És novo por aqui. Zangaste-te com ela?»
Fugi dela...
«Não existe uma “ela”. E que aconteceu ao brutamontes?»
«Olha, não posso com ele. Ofereceu-me dinheiro e atirei-o à cara.»
Lembrei-me da cena à mesa.
«Mas tu estavas a dar-lhe mais bebida.»
«Era para ver se o embriagava de vez e se ele me largava da mão.»
«Perdeste dinheiro que amanhã vai fazer-te falta. E eu...»
«Deixa-te disso. Não estou a pedir nada. O dinheiro não é tudo na vida.
Uma vez por outra podemos passar sem ele.»
Era o que fazia quando precisava de estudar. Gastava o que não fazia falta.
«Que viste em mim?»
«Nada de especial. Simpatizei contigo. Só isso.»
«Assim já fico mais descansado. Só queria estar sozinho e beber um copo. Por vezes a vida é muito chata e uma pessoa precisa de sair da rotina.»
Teve um gesto de desprendimento. Percebi a intenção e pus-lhe uma mão sobre o ombro.
«Não faças caso. Já não quero estar sozinho. Queres acompanhar-me numa bebida?»
«Se te disser que peço um whisky e eles trazem-me um copo com chá, acreditas? É melhor não pedir nada. Gastas menos. Eu sento-me na mesma ao teu lado. Como te chamas?»
«Mário.»
«E o que fazes na vida?»
«Estudo na Faculdade de Ciências. Eu, como te chamas?»
«Eu sou a Selma. Escuso de dizer o que faço na vida.»
«Selma. É um bonito nome. Pois bem, Selma, não vou perguntar pelo teu emprego, nem quero saber o que te levou a seguir esta vida.»
Fez um gesto largo.
«Mas digo-te. Vim para Lisboa há pouco mais de um ano e trazia uma promessa de emprego certo. É uma história que se repete. Custa a primeira vez. Depois, entra-se na engrenagem. E compensa. Ganho bom dinheiro e qualquer dia tenho o meu pé-de-meia certo.»
«E o dinheiro gasta-se, Selma. Num ápice. Não se dá conta.»
«E tu, que te trouxe na verdade a este antro?»
«Vim conhecer-te.»
«Não brinques.»
«Está bem, Selma. Ando chateado com a vida. Os estudos não me correm bem e as mulheres que conheço não me satisfazem. Sinto-me só.»
Acenou com a cabeça e pareceu entristecer. Talvez saudades de outros tempos mais felizes.
Evitei a custo um desejo súbito de lhe acariciar os cabelos. Que estranho! Mal a conhecia! Ainda por cima uma prostituta!
«A solidão é o pior que nos pode acontecer na vida.»
«E não tem remédio.» «Precisas de carinho» disse, convicta. «Se quiseres, posso dar-te. Nem que seja só por uma noite. De graça, claro.»
«Estou sensibilizado, Selma!»
Era pena que aquela mulher fosse uma Selma perdida nos meandros das vidas complicadas. Uma entre muitas.
Pareceu adivinhar o meu pensamento e apertou-me a mão.
«Olha...»
«Sim?»
«Isto aqui dentro cheira a podre. Vem perder-te comigo.»
«Para onde?»
Levantou-se e ficou a olhar para mim, pensativa.
«Não sei se vou fazer disparate.»
«Porquê?» perguntei, intrigado.
«Não quero apaixonar-me.»
Sorri.
«De certeza que não te vais apaixonar, Selma.»
O mundo dava muitas voltas e não sabia se estava na volta certa.
«Vens comigo?»
«Merecias que alguém te tirasse desta vida, Selma...»
Perigo na costa...
«Onde julgas que vais, cabra?»
Falando forte e feio, havia agora merda no beco. Era o tal brutamontes sem leis. Ou melhor, regido pelas leis do dinheiro.
Estranhamente aquele bruto não me assustou. Olhei para ele fixamente. Pareceu adivinhar os nossos intentos.
«Ela vai comigo.» Disse, com firmeza.
«O merdas do valentão. Não querem lá ver?»
Levei a mão ao bolso das calças para tirar a carteira. O ex-moço de recados fez outra leitura. Compreendi a sua interpretação e deixei ficar a mão no bolso. O outro tinha compreendido outra coisa. Ainda bem para mim..
Pareceu-me que o brutamontes fazia cálculos de probabilidades e resolvi manter aquele meu ar duro número um. Já não adiantava recuar. Estava enterrado até à cabeça. E o seu cálculo estava a chegar ao fim.
«Está bem, está bem. Amanhã ou depois tudo volta ao normal e venho beber à fonte ainda com mais sede. Já paguei adiantado a essa cabra.»
«E eu atirei-te com o maldito dinheiro à cara, porco nojento!»
O outro esboçou uma reação forte, mas desistiu ao ver que eu continuava com a mão no bolso.
Sem o perder de vista, tirei finalmente a carteira do bolso e deixei uma nota de cem na mesa e depois ofereci o braço à Selma.
Já na rua inspirei o ar muito menos poluído.
«Ele teve medo de ti, porquê?»
«Confundiu-me com outra pessoa. Dizem que eu sou parecido com o Gregory Peck. Um duro. Foi o protagonista do filme Da Terra Nascem os Homens.»
«Não brinques comigo.»
«Está bem, Selma. Pensou que ia dar-lhe um tiro.»
«Um tiro? Mas estás armado?»
Sorri de novo.
«Sim. Com a carteira. Levei a mão ao bolso e ele teve medo...»
«Compreendo.»
Numa grande cidade como é esta minha querida Lisboa, muitos homens vagueiam à procura deles próprios. São os Perdidos. Os bares têm música, álcool e mulheres. O desencontro é permanente, mas o sonho tem mais força e eles voltam sempre, à procura de ilusões. Elas, as ilusões, chamam-se Lolas.
Olhei para a minha Lola e julguei que estava enganado.
«Aonde vamos, Selma?»
Ilusões, ilusões.
«Moro aqui perto.»
Ficou muito séria a olhar para mim e apontou-me um dedo ao peito.
«Ai de ti se me apaixono!»
«Nunca se sabe, Selma! A vida é toda ela uma caixa de surpresas.»
Não andámos mais que meio quilómetro.
«Olha, chegámos.»
Fiquei muito sério. O mundo dava muitas voltas, mas a cabeça mais voltas ainda dava. O meu lado bom dizia-me que não devia dormir nessa noite com aquela mulher. Quanto ao meu lado mau, esse dizia-me precisamente o contrário.
Resultado? Ganhou o lado bom.
«Olha, Selma, desejo que tenhas um bom resto de noite, Selma.»
«Mas...»
«Não é o que estás a pensar. Juro que não sou maricas.»
«Então, não vens comigo, porquê?»
«Não quero que te apaixones já» menti. «Precisamos de conhecer-nos melhor. Acho que hoje a cama é má conselheira.»
«És um homem estranho! Que se passa contigo?»
«Amanhã volto. Prometo. Vamos jantar a qualquer lado e conversamos. Olha, conheces a Briosa?»
O meu restaurante encantado onde também havia uma tasca que tinha um saboroso vinho que até se podia beber à gaiola, isto segundo os conhecimentos profundos na matéria do Briozoário, um empregado da secção de Geologia que não gostava nada de vinho.
«De certeza que não queres entrar?»
«É melhor não.»
Apertei-a nos meus braços e os lábios colaram-se num beijo longo que me soube a morangos silvestres. Ela olhou-me, muito séria.
«Que se passa, Selma?»
«Não beijo em serviço.»
«Não estás em serviço. Aconteceu.»
«Pois foi. O pior é que tenho o pressentimento que vou-me apaixonar.»
«E é mau?»
«Não sei, Mário.»
«Venho buscar-te amanhã, às sete. Achas que é boa hora?»
«Vou perder-te.»
«Não digas isso. Quase sempre cumpro o que prometo, Selma.»
«Quase sempre...»
«Sempre. Para ti. Juro.»
No dia seguinte voltei à hora combinada. Vinha cheio de ideias boas. Já não íamos à Briosa. Tinha descoberto outro restaurante mais airoso e não muito mais caro. Comíamos umas gambas como entrada, ou amêijoas ao natural, e logo se via o resto. Ao mesmo tempo, ia convencê-la a arranjar um emprego decente.
Ajeitei o nó da gravata e compus o cabelo.
Que se passa contigo, Mário?
Toquei à campainha e aguardei que me abrisse a porta. Sentia-me outro. Novo toque, este mais intenso. A Selma devia estar a dar os últimos retoques de batom nos lábios. Mas nada. Só ouvi ao meu lado uma voz desconhecida de mulher.
«Deseja alguma coisa, meu senhor?»
Devia ser a vizinha do lado. Uma velhota.
«Estou à espera da Selma.»
Certamente que a velhota queria tirar nabos da púcara, mas eu não ia na conversa.
«Ah, a Selma...»
«Então, minha senhora?»
«Deixou um recado para si.»
«Sim?»
Fez uma expressão trágica.
«Disse que voltava para a aldeia, senhor. E que lhe perdoasse...»
Fiquei a olhar para ela, aturdido.
«Mas não disse mais nada?»
«Não.»
Tive uma ideia.
«Por certo sabe qual é a aldeia onde ela mora?»
«Só sei que fica lá para o norte.»
«Boa ajuda! Como vou encontrá-la?» pensei, desanimado.
O meu destino também era para o norte. Muito simples: rua do Alecrim, Garrett, Carmo, Baixa.
Onde jantava?
Claro que no Come e Bebe. O velho bife duro como cornos com um ovo a cavalo e batatas fritas num óleo bem queimado, para não estranhar. E muita cerveja. Mesmo muita cerveja. Apesar de duro como sola, o bife do Come e Bebe primeiro, estranhava-se e depois, entranhava-se. E porquê? Talvez porque fosse barato e causasse habituação.
Nunca mais vi a Selma.
[1]
Jardim Cinema, localizado na Pedro Álvares Cabral, ao Rato.
[2]
Desculpa-me Natália. Foi melhor para ti.

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