segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A história do cão

 

Uma história verídica extraída do romance  Manuela




Estás diferente e, paradoxalmente, tão parecida, quando percorro as ruelas que sussurram a mesma história que já vivi noutros tempos. És a cidade do “Alto Alentejo cercada” e os teus murmúrios são recordações que voltam no ressoar das minhas passadas pelas pedras gastas das ruas íngremes e estreitas, onde, um dia, caminhei ao lado da rapariga do vestido branco e olhos tristes. Foi há muitos anos. Ao fim de tantos anos e de coincidências in­críveis, dá para pensar. As recordações são tão fortes e obsessivas que têm calor suficiente para destruir o próprio presente que parece nada valer. Não resisto aos chamamentos que o passado me faz. E o passado reflete-se, fa­tal­mente, no presente e no futuro.
Não consigo concentrar-me porque aconteceu um fenómeno es­tranho. Posso chamar-lhe coisa. Também foi um amor à primeira vista.

Saí de casa dos meus tios por volta das oito da manhã. O calor prometia apertar. Antes de me dirigir para o jardim da Corredoura, tirei uma foto­grafia à Sé e outra ao monte da Senhora da Penha. 




Dei conta de um casal de jovens sentados num banco de tijoleira, virados para o monte, em contemplação e não só. Era cedo. Os namorados não se cansavam de trocar carícias. Podíamos ter sido eu e ela, pensei. Noutro tempo também estivemos ali e no miradouro de São Cristóvão.
A ideia fez-me sorrir. Era absurdo. Não podia estar a ver o passado. A máquina de viajar ao passado ainda não tinha sido inven­tada.
Mas o absurdo estava ainda para acontecer. 
Vi dois cães quando ia a atravessar o Arco do Bispo. Um deles aproximou-se. Pensei que o animal ia rosnar, tal como tinha acon­tecido, estranhamente (mas, o que é que não foi estranho?), em Estre­moz, no dia dois deste mês. Todos os cães que vi na zona da Torre antipatizaram comigo. Ladraram, raivosamente, à minha passagem, como que querendo dizer:
«Não és bem-vindo.»
Um dos cães aproximou-se. Era amarelo. De pelo luzidio, bem tratado. Via-se que tinha dono. Observei-o, cauteloso. Cheirou-me as calças e logo abanou a meia cauda. Fiquei descansado. Parece que tinha pas­sado no exame. Achei que o cão era simpático e disse-lhe duas pa­lavras amigáveis, justificando que não lhe fazia festas por ter as mãos ocupadas: numa tinha o dossier e na outra a máquina fotográfica.
Falar com um cão? Não estava bom da cabeça!
A resmungar, lá segui o meu caminho. E ele fez o mesmo. Com uma diferença. Resolveu ir atrás de mim. Como um cão que se prezava.
Parei.
«Não tenho nada para te dar...»
O animal também parou. Continuei a andar. E ele continuou a se­guir-me.
Como entrar na cabeça do cão e adivinhar os motivos que o levavam a seguir os meus passos?
Aquilo... era mesmo um cão?
O objetivo era a Corredoura, onde ia recordar o passado que me fugiu. Ver, de novo, o banco do jardim onde, tantas horas, eu e ela, estivemos sentados, entregues a contemplações apaixonadas. Foi nesse banco que o nosso amor ganhou raízes profundas e os olhares criaram os mais belos poemas que nunca consegui escrever. Foi aí que o céu virou azul para os dois. Definitivamente, adotámos o azul como estado de alma quando estávamos juntos.
Meti-me por atalhos. Tinha pressa de chegar. O passado estava à minha espera, sem ser preciso usar a máquina do tempo. De vez em quando, olhava para trás. Estranhamente, o cão seguia-me a poucos metros de distância. Sempre que parava, imitava-me e ficava a olhar para mim. Submisso. Talvez à espera de uma carícia. Talvez esperando um doce. 
Esqueci o cão. Naquele momento estava a chegar à Corredoura.
Seria que encontrava o banco?
Reconheci a zona. Havia dois bancos, lado a lado.
Qual deles?
Talvez fosse o que estava mais próximo.
Ou era o outro?
Sentei-me unicamente por intuição. Mas o cão, esse não esteve com dúvidas metafísicas. Encostou o focinho às minhas calças e levantou as patas, tentando saltar para o banco. Admoestei-o, sorrindo.
«Não é lugar para cães...» Disse, apontando para o chão.
Insistiu.
«Sim, o chão...»
Ficou decepcionado, a olhar-me com um ar suplicante e doce. Mas não contemporizei. Que diabo! Não passava de um cão rafeiro. Nem sequer tinha pedigree...
Obedeceu. Mas, sempre que havia um ruído anor­mal à sua volta, levantava-se, corria a investigar, tentava de novo sal­tar para o banco e, resignado, deitava-se aos meus pés. Tantas vezes tentou que acabei por ceder. Deixei-o fazer o que queria. Ganhara todo o direito do mundo. E assim ficou deitado a meu lado, de focinho encostado às calças e olhando meigamente para cima. Pouco depois dormia a sono solto.

A alergia voltou. Comichão no nariz, na garganta. No outro tempo, ela tinha a alergia no fim da primavera e eu não. Só a tive mais tarde. E uma alergia não se pegava. Aparecia. Apenas aparecia. Mas porque me apareceu a mesma alergia que tinha a Manuela?
O cão adormeceu. Ainda não são nove horas da manhã e sinto-me bem. O ar vai aquecer mais. Tudo é silêncio. Oiço apenas o chilrear dos pássaros.
Olho o cão amarelo e sou apossado de uma ideia maluca. Penso que estou a ser castigado. Ter um cão por companhia, quando, noutro tempo, a mulher única, que sempre vi jovem, estava ali, a meu lado. O sonho da companhia imaginada eterna de uns olhos tristes e meigos que ainda hoje não esqueci e os olhos meigos de um cão que veio, não sei de onde, para seguir, fielmente, os meus passos. Coisa surreal esta última, Um cão que me seguiu e que agora dormia ao meu lado direito.
Como era no tempo que nos fugiu?
Ela ficava do lado esquerdo. Julgo que era assim. Era mesmo. Tenho a certeza.
E depois?
Depois parti para outras madrugadas. E tu também, estrela. Mas as tuas madrugadas acabaram cedo. Tinhas trinta e dois anos quando caíste na penumbra e ficaste a flutuar durante longos anos no éter, desorien­tada, até que me encontraste. Hoje talvez vivas cá dentro. Sangrando neurónios. Dia após dia. Descobri-te mais tarde, entre os neurónios que sangravam. Tentei dar-te luz. Penso que era o teu desejo. Mas não quiseste partir. Continuas ainda à minha volta. Por vezes, dentro de mim. Tens medo de partir para uma viagem sem regresso. E choras... dizem que choras com pena de não me teres! Nunca te ouvi chorar. Mas há quem oiça.
Algo veio alterar a situação. Dois cães de pêlo castanho e focinhos alongados, de uma beleza canina nada comparável ao rafeiro deitado ao meu lado, fixaram os olhos no banco. Penso que chegou a hora da partida. O cão já deu conta da presença. Levantou o focinho. Trava-se um diálogo telepático que não atinjo. A seguir, m dos cães afasta-se. O meu salta para o chão.
«Quieto!»
Olha meigamente para mim e parece dizer:
«Tenho que ir...»
Entendi. O outro cão... é uma cadela. Mudou de posição e pude identificar o seu sexo. Cheiram-se. Trocam carícias. Mais uma linguagem que não entendo. Talvez se trate também de um amor à primeira vista. Tudo se passa de forma rápida. Lá vão, Corredoura acima, e eu fico sozinho, tentando estabelecer um paralelismo entre a súbita e nobre amizade de um animal e a paixão que senti um dia por uma mulher especial.
Quando a vi pela primeira, numa noite cálida de setembro, tive a intuição certa. Era a mulher única que estava a ver nos olhos, tristes e ternos, de uma adolescente.

Agora veio um sinal mais forte e o cão esqueceu o dono, par­tindo para um novo rumo. Aconteceu o mesmo comigo. Mas nunca te esqueci. As cartas que trocámos ontem, fizeram-se em cinza. O teu corpo é pó. Hoje só a recordação arde em chama lenta. Mais nada. Tenta compreender. Deves partir. Já és livre. Tens luz!
Na sexta-feira levei-te rosas vermelhas. Ainda estavam as outras rosas do dia três. Secas.
Continuo sem saber como morreste.
É esse o segredo...?, não podes partir porque...?
O teu silêncio dilacera-me a alma. Sinto as garras da culpa. Quando te vi pela primeira vez acendeu-se logo uma luz. Eras tão frágil!
Continuando a pensar no paralelismo entre o cão e o que aconteceu connosco, um dia decidi seguir outro caminho. Agora é o cão que se afeiçoa. Mas um outro valor, mais poderoso, leva o animal a afastar-se em definitivo. De certo modo, fui também um cão para ti. Errei e estou a pagar. Mas tenta compreender. A liberdade é a única coisa que é dona de todos os seres vivos e ninguém deve impedir que cada um siga o seu caminho. Mesmo que não seja o caminho certo.
Também não te posso prender desse lado da porta!

Ontem fui com a Olinda e o tio Carolino a uma "soldadora" do Caia que vivia numa terrinha a poucos quilómetros de Por­talegre. Queria fazer uma experiência. Testar se os meus dons sempre existiam ou se, pelo contrário, em nada evoluíra.
O que viu ela em mim? Uma pessoa nervosa (coisa fácil de desco­brir) e com a boca do estômago inflamada. Nada de grave. Depois, havia a inveja de uma mulher. Tentei obter mais dados. Primeiro eu fazia o trata­mento. Depois se descobriria. Se a situação se inver­tesse, seria mau para mim. Jamais me curaria.
Boa maneira de fugir à informação e de me impingir medicamentos naturais.
Sugeri que talvez fosse um encosto. Nada de espíritos mortos. O meu mal vinha de uma pessoa viva que me invejava muito. E, surpresa das surpresas! Era uma mulher!
Então contei-lhe uma história ligada a uma mulher de vermelho. Não comentou. A fase da medicação tinha chegado. Era sagrado, admiti. Inevitável como um dia seguir a outro. Escreveu numa folha tudo o que devia fazer. Depois, levantou-se para ir buscar os remédios. Descobri um deles antes de ela o recolher. 
«Nervite.»
Sorri, ao ver que tinha acertado. 
«O senhor tem uma corrente muito boa!»
Fiquei a pensar. Tinha uma corrente muito boa. E para que servia se não passava de um canal por onde tudo passava e não podia intervir?

Foi bom retornar ao passado. Recordar. Foi bom encontrar o cão que me seguiu. E não precisei de descobrir. Mas a minha intuição disse-me. O que tem que acon­tecer, acontece mesmo.
Quando um dia te vi, envolta num manto negro de tristeza e fatalidade, acreditei que os meus passos acompanhariam os teus a vida inteira. Enganei-me. O nosso caminho não foi o mesmo. Mas aconteceu amor. De­pois, desencontro. Frustração. E agora, que es­tás do lado de lá, recordo o passado com saudade. Mas não te tenho nem me tens. Nem sei se o que sinto agora é a tua presença. Só me resta o poder do pensamento que é livre. Sonhar.
Como será o amanhã sem ti?
Na véspera da sua morte, Fernando Pessoa disse:
«Não sei o que me reserva o amanhã...»
Também eu não. Apenas tenho a certeza que um dia destes estarei contigo. Pode demorar muito tempo, mas esta premonição vai cumprir-se.

Oiço o ladrar desesperado dos cães. Talvez seja o aproximar do auge sexual. Com os outros animais está o cão amarelo. Um cão que apenas existiu para fazer paralelismo com o passado. Um cão que não foi miragem. Tirei-lhe uma fotografia no jardim da Corredoura. Ficou a olhar para mim, junto ao banco. Que cão tão estranho para ser o que era. E o que era? Um cão que queria, à viva força, deitar-se ao meu lado. E tanto tentou, que conseguiu, ador­mecendo encostado às minhas pernas. Um simples animal irracional concretizou tudo o que foi impossível para nós.
Agora estou neste banco à espera que nada aconteça. Só. Com as imagens do passado. Com o vazio do presente e com a promessa absurda do futuro voltar tal como o sonhámos e que nunca será.
«Está frio!»
«Não, está fresco.»



terça-feira, 16 de setembro de 2025

Vou passando por aqui

História escrita há quatro anos atrás e que volta a primeiro plano... 

 

A

ntes de entrar nesta história não resisto à tentação de falar de anomalias que ocorrem no casino que frequento cada vez com menos assiduidade por razões óbvias que já aqui foram explicadas em tempos, mas que é importante lembrar. Numa palavra. Alta corrupção. Aliás, estas anomalias são transversais a todos os casinos. É o que penso. Tranquilizem-se. Não se passa de anomalias no tecido do espaço-tempo, tão do agrado dos escritores de ficção científica e que também me agradam, embora não me considere um escritor ligado a esses temas. Sou um contador de histórias, algumas vividas, outras contadas e outras fruto da minha imaginação. E daí não passo. 
Chamando à coação as anomalias que, por sinal, não defini, deixo-as ainda de parte porque quero falar de outras também transversais que têm vindo em crescendo a perturbar a nossa sociedade já muito martirizada recentemente pelo SARS-Cov - 2. O mais estranho de tudo é que têm sido tratadas com luvas, pinças e outras merdas, e aí incluo o pântano em que está atolado o nosso Ministério Público que deixa avançar as ditas anomalias causando uma perplexidade inimaginável, bem como revolta nos cidadãos comuns.
Então, qual é a coisa qual é ela...?
Já todos adivinharam que se trata da corrupção. E esta, por sua vez, não passa sem a companheira designada por "lavagem de dinheiro", uma lavandaria com muitas e diversas ligações que se perdem de vista. Há muitos casos já investigados e também muitos que não conduziram a parte alguma. Enfim, é o país que temos e merecemos ter. Pior, talvez seja a "repúblicas da bananas" e mesmo assim tenho as minhas reservas.
Levando o fenómeno da corrupção para o casino do qual sou utente que cada vez o frequenta menos por razões que estão à vista, recordo o não saudoso tempo em que me lancei em reclamações diversas que acabaram por dar em nada. Fiscais, chefes de sala e inspetores juraram a pés juntos que os jogos nas máquinas eram aleatórios e que não havia as designadas salas de controle. Tudo não passava de teorias da conspiração, sacos onde caíam todas as revoltas silenciosas dos utentes, uma espécie de zombies, cadáveres reanimados com ideias insufladas por agitadores escondidos nas sombras que só queriam provocar o caos. Pobres utentes que faziam as suas queixas no maior do secretismo não fossem chamados a depor e assim revelarem o vício que não os largava. Nesse tempo já se falava à boca cheia de corrupção e conhecia de cor e salteado os beneficiados, embora não tivesse provas diretas para os acusar de ligações a fiscais ou chefes de sala. Os atos de favorecimento eram feitos com alguma discrição, ao contrário do que vem acontecendo agora em que os ditos são feitos à descarada. Entretanto há uma nova ordem entre os utentes queixosos. Parece que estão, aos poucos, a sair do medo de serem descobertos como viciados e os seus protestos começam a ouvir-se mais alto (1). Só não entendo por que motivo os corruptores e os corrompidos agem tão à descarada. Da maneira como estão as coisas dentro em breve tudo vai mudar. A não ser... que haja algo que eu desconheço. Por exemplo, que já se saiba nos bastidores que a sociedade que gere o casino está em risco de perder no fim do ano a concessão. Daí o desespero instalado a nível de alguns funcionários.  Daí as máquinas em geral estarem a não corresponder em restituição de prémios ao que está estabelecido na lei. Daí o saque ser agora maior e mais que evidente e os que ganham estarem a ganhar mais e os que perdem estarem a perder mais. Perante o que está a acontecer, quem não está dentro do esquema não intervém. Nem sei porquê. E neste jogo dentro do jogo, segundo as informações recolhidas pelo Mário, constato que apareceram novos jogadores a atacar forte, bem como outros que já eram utentes há mais tempo, e que a maior parte está a ter retorno. Quanto aos que jogam mais baixo têm vindo, salvo raras exceções, a pagar mais uma vez a fatura. Mas atenção para alguns que jogam alto e não fazem parte dos "protegidos". Agora estão a ganhar, mas, de um momento para o outro, a sorte pode virar. Estejam atentos, façam a sua contabilidade e não se deixem viciar. Continuando a jogar alto é o pior que podem fazer. Não pensem que a sorte pode mudar outra vez. O esquema já vem de longe e faz lembrar aquela história do cão de guarda que deixa entrar o ladrão e abocanha-o à saída.
Prevejo um futuro muito negro para o casino se os responsáveis pela gestão não souberem ou não forem capazes de estancar a estruturação caótica provocada pelo "sistema" que controla a manipulação das máquinas porque já a curto prazo vão perder muitos clientes que estão nos limites.
Que saudades tenho dos tempos em que eu e o Raul jogávamos neste casino que nos dava um dia de sorte e outro de azar!
Um desabafo desagradável face à situação que se vive agora no casino, segundo as informações que recolho. Longe vão os tempos em que jogava nas máquinas dos corações dourados e aquela noite em que descobri uma mulher de etnia cigana que jogava em duas das três máquinas dos corações dourados, usando a alavanca como se estivesse a extrair leite de vacas na estrebaria. Gestos, que me escaparam, daquela mulher que vestia de negro e jogava com satisfação porque o jogo corria-lhe bem. Pelo pouco que vi admiti que ela estava a ganhar. Daí talvez jogar em duas máquinas.
Uma noite, joguei na terceira máquina disponível e o resultado não se fez esperar. Perdi e lamentei estar com azar.
«Jogue naquela máquina, senhor [2]
E indicou a máquina.
«Mas é uma máquina de vinte cêntimos!»
«É preciso acreditar, senhor! Jogue...»
«Perdido por cem...» Pensou.
Joguei e ganhei. 
Tal como tinha acontecido a muitos utentes a mulher deixou-se envolver na teia urdida pelos manipuladores e começou a perder uns dias depois. Até que nunca mais voltou.
Foi nessa altura que conheci a Mariana.

Já depois da meia-noite decidi jogar numa máquina do primeiro piso, de nome Fox on the Run. Logo a seguir ao êxito dos quarenta euros tinha jogado numa dessas máquinas e dera-me bem.
No momento, três jovens, um homem e duas mulheres, olhavam com curiosidade para uma das máquinas. Instalei-me e logo se afastaram. Para meu espanto, pouco depois estavam sentados atrás de mim, feitos mirones, mas mantendo a distância. Não foi a presença deles que me irritou. Já não vinha bem do piso de cima por causa de uma máquina que achei estar a ser manipulada.
«Teoria da conspiração.» Teria dito o Raul.
Aproveitei para expor o meu ponto de vista acerca da manipulação programática de todas as máquinas. Estavam organizadas por temas, formando os tais blocos em que tenho vindo a insistir.
A conversa tomou um rumo tão interessante que até me desinteressei do jogo e tentei estudar as pessoas com quem falava. Uma das mulheres, com olhos escuros e cabelo curto, mostrava-se menos do que a outra. Curiosamente não me era estranha. A outra, mais próxima de mim, de olhos esverdeados, melosos, era tão simpática quanto curiosa de saber coisas sobre o jogo.
Estabelecemos desde logo uma química de comunicação fora do comum.
Vou dar nomes aos três intervenientes nesta  história [3]. A mulher dos olhos melosos, serena, envolvente e incisiva pode chamar-se Mariana. Quanto à companheira dos olhos escuros, que parecia esconder-se de mim, dou-lhe o nome de Carla. E ele, Francisco.
«Já estudou o algoritmo da máquina?» perguntou a Mariana.
Seriam os processos de cálculo? As operações lógicas?
Insistiu.
«Cada máquina tem um algoritmo.»
Seria mais favorável o jogo numa máquina a dezassete linhas? E o dia seguinte? Talvez sim, talvez não. Além disso, devia haver toda uma sequência de acontecimentos que poderiam ser alterados por muitos if... else... then e muitas mais complicações lógicas que "atacavam" situações fora do comum, como apostas fortes, alterações bruscas de valores de créditos apostados, abandonos provocados por prémios (altos ou baixos), entrada dum ticket doutra máquina, uma nota de quinhentos euros introduzida, etc, etc...
«E a roda da sorte?» perguntou a Mariana.
«É uma grande aldrabice. Os prémios não compensam o investimento. Para haver hipótese de acesso à roda é preciso investir continuamente oitenta créditos. E se calha o prémio de trezentos créditos, o mais baixo?»
«Pois é.»
«E qual é para si o melhor jogo?»
«Depende...»
«Depende de quê?»
Senti um brilho novo nos olhos da Mariana.
«Prometo que vou deixar um comentário no blogue.» Disse. «Vocês gostam sempre que se escreva...»
A Mariana prometeu. E também o certo é que promessas levava-as o vento.
«Esta história com vocês vai aparecer.» Prometi.
Pareceu entusiasmada.
«Escreva, escreva.»
"Escreve, escreve, António Ildefonso."
O jovem do fato castanho perguntou:
«Porquê tantos blogues?»
«Uns já acabaram e outros começaram.» Tentei esclarecer.
Entretanto a Carla continuava a mostrar-se discreta.
Esgotou-se a conversa e despedimo-nos. A Mariana reforçou a promessa de deixar o tal comentário.
Fui para a esquerda e eles para a direita. Raciocinei rápido. Aí encontrámo-nos de novo.
Mas onde eram as máquinas do leilão?
«São estas.» Informou a Carla.
Só podia ser aquele grupo de seis máquinas.
«Foi nesta que joguei.» Disse o Francisco, apontando para a máquina do meio.
«Tens cinco euros que me emprestes?» perguntou o Francisco à Mariana.
Procurou na carteira algo que não encontrou. Pelos gestos lentos pareceu-me que procurava de verdade, mas a expressão do rosto dizia o contrário.
«Está bem, abelha...» Deve ter pensado.
Já sabia o que a casa gastava. Ou então, como jogadores compulsivos que me pareceram ser, tinham jogado até à última nota.
Despedi-me mais uma vez.
«Então até à vista...»O olhar fixou-se na Mariana. Foi a última imagem de um filme mal contado, já que, desde o princípio, qualquer coisa não funcionava bem.
Encolhi os ombros e subi as escadas rolantes.
Sabia muito bem que as histórias sem continuidade chegavam quase sempre a um beco sem saída. E esta história da Mariana dos olhos melosos não tinha pernas para andar.
«Vocês gostam sempre que se escreva...»
Dinheiro deitado à rua. Sonhos adiados. Noites mal dormidas. Quase tudo por uma nova história.Mib Men in Black... mais uma máquina para testar.
«Qual é o teu algoritmo?»
A resposta veio quase de seguida. Joguei, perdi e não descobri qual era o algoritmo da máquina...

A partir daquela noite comecei a pensar com frequência na Mariana. Aquela mulher de olhos melosos tinha qualquer coisa em si que me atraía. Infelizmente não voltara a vê-la no casino.
Tinha prometido deixar um comentário no blogue e até à data não o tinha feito. Longe da vista, longe do cumprimento das promessas. Os dias iam passando e continuava sem a ver.
Nesses tempos a gestão das máquinas, mais próxima do cumprimento da lei, permitia que Mário frequentasse com mais frequência o casino e começasse a descobrir alguns podres entre os jogadores. Não entendia porque uns perdiam muito mais do que outros. Por exemplo, um utente que jogava baixo, que alcunhei de Palrador era um dos grandes beneficiados. Não era lógico e comecei a investigar. Foi então que um passarinho disse-lhe ao ouvido que havia uma forte amizade entre ele e um certo chefe de sala que já vinha do tempo do Casino Estoril.
«Então é isso?»
A dúvida ficou estacionária a partir de uma certa noite quando me dirigia para as Star Wars e encontrei-me frontalmente com a Mariana que acabava de levantar dinheiro numa ATM perto do bloco de máquinas do Zorro. Quem estivesse a observar-nos talvez tivesse notado algo diferente nas expressões dos nossos olhares. Ou então equivoquei-se, o que era mais natural dada a diferença de idades. Talvez houvesse uma atração mútua e nada mais.
Apanhados de surpresa, apenas trocámos meia dúzia de frases banais. 
Tinha sido tudo muito rápido, pois o encontro foi interrompido por causa de um grupo de mulheres que vinham a descer as escadas rolantes que ligavam o segundo piso com o primeiro.
«São as minhas amigas. Tenho que ir. Gostei do que li no blogue. Não me esqueci ainda de deixar o comentário...»
«Quando...?»
Aquela pergunta não tinha jeito. O que mais me interessava era saber quando ela voltava ao casino, como se chamava e se podia deixar o número do telemóvel. Nada disso aconteceu.

A propósito do jogo aleatório nas máquinas que fiscais, chefes de sala e inspetores tanto defendiam, uma noite aconteceu algo que me deixou a pensar. Jogava nas máquinas dos cifrões que, na altura, se localizavam para os lados do bar numa orientação quase paralela. Jogava e estava a perder cerca de duzentos euros. Contra o que era costume nela, face à realidade já devia ter abandonado a máquina. Mas não. Teimava. Ela tinha que abrir ao bónus. Entretanto, um fiscal seu conhecido tinha-se aproximado de mim. Assustei-me, pois mal dei conta da sua presença. 
«Senhor Mário, como vai o jogo?»
Olhou frontalmente para mim.
«Mal.»
Não precisava de dizer mais que uma palavra para definir como ia o jogo.
O outro também foi pródigo nas palavras.
«Então, boa sorte.»
E afastou-se. Não decorreu um minuto para a sorte mudar. Recuperei os duzentos euros e ainda fiquei com cerca de cinquenta euros de lucro.
«E esta?»
Carreguei logo num botão situado do lado esquerdo e saquei o ticket.
«Vá lá entender!» 
Mas entendia. Só podia ser interferência do meu amigo fiscal.

Voltando à Mariana, nunca mais a vi no casino. Entretanto o fio do tempo trouxe-me novos acontecimentos que me fizeram esquecer daquela jovem que me tinha informado que cada máquina tinha o seu algoritmo.
Só seis meses depois é que descobri por acaso que a jovem Mariana finalmente deixara o seu comentário na mensagem "A "Entrevista". Um comentário muito favorável para que terminava com a frase:
«Entretanto vou passando por aqui...»
Tentei responder ao comentário para agradecer, mas não consegui enviá-lo porque aquele comentário não aceitava resposta.
Ainda hoje penso na Mariana. Acredito que ela continua a frequentar o casino, mas nunca a irei descobrir porque já me esqueci do seu rosto. Coisa estranha! Eu, que me considero um bom fisionomista...
Quanto aos olhos melosos, quantos não há por ali?
O que mais desejo é que ela seja feliz e será muito bom sinal ter deixado de "passar por aqui", um local nada agradável, cinzento a aproximar-se do negro nos tempos que vão correndo e onde, segundo o que me disse uma vez em resposta um chefe de sala a seguir à minha acusação da existência de corrupção no casino: 
«Tenho confiança nos seus funcionários.»
Eu também "continuo a passar por aqui", embora cada vez com menos frequência, à espera de um milagre. Mas tudo continua como dantes.

[1] Bem me enganei (observação na hora)

[2] É preciso acreditar!

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Foi em setembro que te conheci

 


 



Foi em 9 de setembro de 1955. Ainda ontem era agosto. O tempo passa a correr. Não posso esperar mais. Quero sorrisos. Tenho urgência. Mesmo que não haja sorrisos, vou inventá-los. Imitar a vida que foi nossa e que me roubaram. Quero o amor de volta. Sem condições ou barreiras invisíveis. Bem sei que não consigo alterar o tempo. Voltar atrás até que surja aquela noite que nunca mais vou esquecer. Sei que é impossível. E se não for, então temos um paradoxo, porque ninguém pode mudar o passado. Bem o desejava, mas, ao contrário do desejo, tenho quase a certeza que o relógio acelerou de há uns tempos a esta parte. E cada vez vai acelerar mais, até que seja a única dimensão. O tempo a acelerar e o espaço a desaparecer da vista. Será esse o meu destino. Falando do destino, por causa da aceleração do tempo, tenho receio de ver passar o setembro em que quero reviver o que não vivi precisamente em setembro o nosso setembro que não voltou.
Só por isso e nada mais que isso.
Mas que setembro?
É lógico. Para uns até terá sido agosto. Para outros, talvez janeiro. Ainda para outros, seria necessário inventar um décimo terceiro mês. Cada um sabe de si e do seu mês. Se o deseja recordar ou esquecer. Mas do meu ninguém pode falar. O que aconteceu. Como aconteceu. Porque aconteceu. Porque não aconteceu. Podia não ter passado de um sonho.
E tu?, será que também foste um sonho?
Sim, porque há sempre uma ela com que podemos contar. Sem ela nunca podia haver setembro. A recordação não vem sozinha. Mas partiste, há muito, para uma longa viagem daquelas que não têm regresso. Partiste e perdeste-te com a tua solidão no constelado do céu.
É por isso que aqui estou todos os anos para recordar. Para reviver o que nunca vivi.
Podia ter acontecido. Talvez. Mas também talvez nunca como imaginei que viesse a acontecer.
Há outra coisa. Desta vez estou em agosto, porque disseram-me que o setembro podia não chegar. Não. Não é o fim do mundo. Mas pode ser para muita gente. 
Como foi no tempo em que te amei?

Aconteceu há muito tempo. Faz hoje anos que vi, pela primeira vez, o teu rosto triste. Era uma noite amena de setembro. Foi belo o que aconteceu depois. Mas, um dia, o maquinista da vida levou-me para outros destinos e tu ficaste no cais. Só. Mais triste que a tristeza dos teus olhos casta­nhos. Cada um ficou na sua estrela. Distantes. Só a sonhar com sonho azul.
Não sei porque foi, mas voltei a encontrar-te em cami­nhos paralelos. Esses teus olhos tristes e inquietos que já não eram meus. Foi um absurdo não ter deixado de te amar. Em pouco tempo inventámos o amor e depois deixei-te. De repente. Sem um aviso. Depois, não sei o que se passou contigo. Se continuaste a amar-me. Se me odiaste. Cada um fala de si e julgo que não possas falar-me ao ouvido. Nem tu, nem o teu fantasma.
Eras o meu destino e ainda hoje dizem que estás à minha espera, mas do outro lado da vida. Também ouvi dizer que se enamoraram de ti e não deu certo. De nada valeu para mim. Não te esqueças que nunca me contaram aqueles que hoje dizem que te ouvem chorar com pena de não seres minha.
Mas dirás, se é que podes dizer:
«Porque não vieste ao meu encontro?»
Lamento, estrela. Não sei voar. Assim, continuo preso às limitadas viagens pelas pedras já gastas da calçada. Cansado de viver sem ti. Sem o nosso sonho. Sem o desejo de partirmos para longe. Para a nossa ilha. Aquela ilha onde ninguém nos podia alcançar. Não aprendi a voar pelo azul constelado do céu, entre as estrelas, as galáxias e os universos paralelos e tudo o mais se existir mais. Buracos negros, quero-os longe. Mas adorava descobrir o que está para além deles. Se encurtam distâncias. Se são portas para outros universos. Se deixam que num deles possa ver o nosso sonho de amor tornado realidade. Se muitas coisas mais. 

Não tenho dons. Nem sou filho de Deus. Nunca O vi. Nunca falou comigo. Oxalá no outro universo não tenha interferido e que assim estejamos juntos na mesma estrela.
Dizem os iluminados que somos filhos das estrelas. Nos dois braços podemos ter átomos de hidrogénio que se originaram de estrelas diferentes.
Será mesmo verdade que existem universos paralelos e num deles, eu e tu, os eternos, aí somos felizes?

É um paradoxo ter gostado de ti desde o primeiro momento em que descobri o teu olhar triste perdido no horizonte.  Amo-te. Sempre e até ao fim do fim. Para lá do fim do fim. Na eternidade. Amo-te sem teres hipótese de saber quanto te amei e te amo!
Ainda me odeias?
Só mais seis palavras e depois vou-me embora de vez. São seis palavras mágicas. Pelo menos para mim.
Foi em setembro que te conheci...