segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A história do cão

 

Uma história verídica extraída do romance  Manuela




Estás diferente e, paradoxalmente, tão parecida, quando percorro as ruelas que sussurram a mesma história que já vivi noutros tempos. És a cidade do “Alto Alentejo cercada” e os teus murmúrios são recordações que voltam no ressoar das minhas passadas pelas pedras gastas das ruas íngremes e estreitas, onde, um dia, caminhei ao lado da rapariga do vestido branco e olhos tristes. Foi há muitos anos. Ao fim de tantos anos e de coincidências in­críveis, dá para pensar. As recordações são tão fortes e obsessivas que têm calor suficiente para destruir o próprio presente que parece nada valer. Não resisto aos chamamentos que o passado me faz. E o passado reflete-se, fa­tal­mente, no presente e no futuro.
Não consigo concentrar-me porque aconteceu um fenómeno es­tranho. Posso chamar-lhe coisa. Também foi um amor à primeira vista.

Saí de casa dos meus tios por volta das oito da manhã. O calor prometia apertar. Antes de me dirigir para o jardim da Corredoura, tirei uma foto­grafia à Sé e outra ao monte da Senhora da Penha. 




Dei conta de um casal de jovens sentados num banco de tijoleira, virados para o monte, em contemplação e não só. Era cedo. Os namorados não se cansavam de trocar carícias. Podíamos ter sido eu e ela, pensei. Noutro tempo também estivemos ali e no miradouro de São Cristóvão.
A ideia fez-me sorrir. Era absurdo. Não podia estar a ver o passado. A máquina de viajar ao passado ainda não tinha sido inven­tada.
Mas o absurdo estava ainda para acontecer. 
Vi dois cães quando ia a atravessar o Arco do Bispo. Um deles aproximou-se. Pensei que o animal ia rosnar, tal como tinha acon­tecido, estranhamente (mas, o que é que não foi estranho?), em Estre­moz, no dia dois deste mês. Todos os cães que vi na zona da Torre antipatizaram comigo. Ladraram, raivosamente, à minha passagem, como que querendo dizer:
«Não és bem-vindo.»
Um dos cães aproximou-se. Era amarelo. De pelo luzidio, bem tratado. Via-se que tinha dono. Observei-o, cauteloso. Cheirou-me as calças e logo abanou a meia cauda. Fiquei descansado. Parece que tinha pas­sado no exame. Achei que o cão era simpático e disse-lhe duas pa­lavras amigáveis, justificando que não lhe fazia festas por ter as mãos ocupadas: numa tinha o dossier e na outra a máquina fotográfica.
Falar com um cão? Não estava bom da cabeça!
A resmungar, lá segui o meu caminho. E ele fez o mesmo. Com uma diferença. Resolveu ir atrás de mim. Como um cão que se prezava.
Parei.
«Não tenho nada para te dar...»
O animal também parou. Continuei a andar. E ele continuou a se­guir-me.
Como entrar na cabeça do cão e adivinhar os motivos que o levavam a seguir os meus passos?
Aquilo... era mesmo um cão?
O objetivo era a Corredoura, onde ia recordar o passado que me fugiu. Ver, de novo, o banco do jardim onde, tantas horas, eu e ela, estivemos sentados, entregues a contemplações apaixonadas. Foi nesse banco que o nosso amor ganhou raízes profundas e os olhares criaram os mais belos poemas que nunca consegui escrever. Foi aí que o céu virou azul para os dois. Definitivamente, adotámos o azul como estado de alma quando estávamos juntos.
Meti-me por atalhos. Tinha pressa de chegar. O passado estava à minha espera, sem ser preciso usar a máquina do tempo. De vez em quando, olhava para trás. Estranhamente, o cão seguia-me a poucos metros de distância. Sempre que parava, imitava-me e ficava a olhar para mim. Submisso. Talvez à espera de uma carícia. Talvez esperando um doce. 
Esqueci o cão. Naquele momento estava a chegar à Corredoura.
Seria que encontrava o banco?
Reconheci a zona. Havia dois bancos, lado a lado.
Qual deles?
Talvez fosse o que estava mais próximo.
Ou era o outro?
Sentei-me unicamente por intuição. Mas o cão, esse não esteve com dúvidas metafísicas. Encostou o focinho às minhas calças e levantou as patas, tentando saltar para o banco. Admoestei-o, sorrindo.
«Não é lugar para cães...» Disse, apontando para o chão.
Insistiu.
«Sim, o chão...»
Ficou decepcionado, a olhar-me com um ar suplicante e doce. Mas não contemporizei. Que diabo! Não passava de um cão rafeiro. Nem sequer tinha pedigree...
Obedeceu. Mas, sempre que havia um ruído anor­mal à sua volta, levantava-se, corria a investigar, tentava de novo sal­tar para o banco e, resignado, deitava-se aos meus pés. Tantas vezes tentou que acabei por ceder. Deixei-o fazer o que queria. Ganhara todo o direito do mundo. E assim ficou deitado a meu lado, de focinho encostado às calças e olhando meigamente para cima. Pouco depois dormia a sono solto.

A alergia voltou. Comichão no nariz, na garganta. No outro tempo, ela tinha a alergia no fim da primavera e eu não. Só a tive mais tarde. E uma alergia não se pegava. Aparecia. Apenas aparecia. Mas porque me apareceu a mesma alergia que tinha a Manuela?
O cão adormeceu. Ainda não são nove horas da manhã e sinto-me bem. O ar vai aquecer mais. Tudo é silêncio. Oiço apenas o chilrear dos pássaros.
Olho o cão amarelo e sou apossado de uma ideia maluca. Penso que estou a ser castigado. Ter um cão por companhia, quando, noutro tempo, a mulher única, que sempre vi jovem, estava ali, a meu lado. O sonho da companhia imaginada eterna de uns olhos tristes e meigos que ainda hoje não esqueci e os olhos meigos de um cão que veio, não sei de onde, para seguir, fielmente, os meus passos. Coisa surreal esta última, Um cão que me seguiu e que agora dormia ao meu lado direito.
Como era no tempo que nos fugiu?
Ela ficava do lado esquerdo. Julgo que era assim. Era mesmo. Tenho a certeza.
E depois?
Depois parti para outras madrugadas. E tu também, estrela. Mas as tuas madrugadas acabaram cedo. Tinhas trinta e dois anos quando caíste na penumbra e ficaste a flutuar durante longos anos no éter, desorien­tada, até que me encontraste. Hoje talvez vivas cá dentro. Sangrando neurónios. Dia após dia. Descobri-te mais tarde, entre os neurónios que sangravam. Tentei dar-te luz. Penso que era o teu desejo. Mas não quiseste partir. Continuas ainda à minha volta. Por vezes, dentro de mim. Tens medo de partir para uma viagem sem regresso. E choras... dizem que choras com pena de não me teres! Nunca te ouvi chorar. Mas há quem oiça.
Algo veio alterar a situação. Dois cães de pêlo castanho e focinhos alongados, de uma beleza canina nada comparável ao rafeiro deitado ao meu lado, fixaram os olhos no banco. Penso que chegou a hora da partida. O cão já deu conta da presença. Levantou o focinho. Trava-se um diálogo telepático que não atinjo. A seguir, m dos cães afasta-se. O meu salta para o chão.
«Quieto!»
Olha meigamente para mim e parece dizer:
«Tenho que ir...»
Entendi. O outro cão... é uma cadela. Mudou de posição e pude identificar o seu sexo. Cheiram-se. Trocam carícias. Mais uma linguagem que não entendo. Talvez se trate também de um amor à primeira vista. Tudo se passa de forma rápida. Lá vão, Corredoura acima, e eu fico sozinho, tentando estabelecer um paralelismo entre a súbita e nobre amizade de um animal e a paixão que senti um dia por uma mulher especial.
Quando a vi pela primeira, numa noite cálida de setembro, tive a intuição certa. Era a mulher única que estava a ver nos olhos, tristes e ternos, de uma adolescente.

Agora veio um sinal mais forte e o cão esqueceu o dono, par­tindo para um novo rumo. Aconteceu o mesmo comigo. Mas nunca te esqueci. As cartas que trocámos ontem, fizeram-se em cinza. O teu corpo é pó. Hoje só a recordação arde em chama lenta. Mais nada. Tenta compreender. Deves partir. Já és livre. Tens luz!
Na sexta-feira levei-te rosas vermelhas. Ainda estavam as outras rosas do dia três. Secas.
Continuo sem saber como morreste.
É esse o segredo...?, não podes partir porque...?
O teu silêncio dilacera-me a alma. Sinto as garras da culpa. Quando te vi pela primeira vez acendeu-se logo uma luz. Eras tão frágil!
Continuando a pensar no paralelismo entre o cão e o que aconteceu connosco, um dia decidi seguir outro caminho. Agora é o cão que se afeiçoa. Mas um outro valor, mais poderoso, leva o animal a afastar-se em definitivo. De certo modo, fui também um cão para ti. Errei e estou a pagar. Mas tenta compreender. A liberdade é a única coisa que é dona de todos os seres vivos e ninguém deve impedir que cada um siga o seu caminho. Mesmo que não seja o caminho certo.
Também não te posso prender desse lado da porta!

Ontem fui com a Olinda e o tio Carolino a uma "soldadora" do Caia que vivia numa terrinha a poucos quilómetros de Por­talegre. Queria fazer uma experiência. Testar se os meus dons sempre existiam ou se, pelo contrário, em nada evoluíra.
O que viu ela em mim? Uma pessoa nervosa (coisa fácil de desco­brir) e com a boca do estômago inflamada. Nada de grave. Depois, havia a inveja de uma mulher. Tentei obter mais dados. Primeiro eu fazia o trata­mento. Depois se descobriria. Se a situação se inver­tesse, seria mau para mim. Jamais me curaria.
Boa maneira de fugir à informação e de me impingir medicamentos naturais.
Sugeri que talvez fosse um encosto. Nada de espíritos mortos. O meu mal vinha de uma pessoa viva que me invejava muito. E, surpresa das surpresas! Era uma mulher!
Então contei-lhe uma história ligada a uma mulher de vermelho. Não comentou. A fase da medicação tinha chegado. Era sagrado, admiti. Inevitável como um dia seguir a outro. Escreveu numa folha tudo o que devia fazer. Depois, levantou-se para ir buscar os remédios. Descobri um deles antes de ela o recolher. 
«Nervite.»
Sorri, ao ver que tinha acertado. 
«O senhor tem uma corrente muito boa!»
Fiquei a pensar. Tinha uma corrente muito boa. E para que servia se não passava de um canal por onde tudo passava e não podia intervir?

Foi bom retornar ao passado. Recordar. Foi bom encontrar o cão que me seguiu. E não precisei de descobrir. Mas a minha intuição disse-me. O que tem que acon­tecer, acontece mesmo.
Quando um dia te vi, envolta num manto negro de tristeza e fatalidade, acreditei que os meus passos acompanhariam os teus a vida inteira. Enganei-me. O nosso caminho não foi o mesmo. Mas aconteceu amor. De­pois, desencontro. Frustração. E agora, que es­tás do lado de lá, recordo o passado com saudade. Mas não te tenho nem me tens. Nem sei se o que sinto agora é a tua presença. Só me resta o poder do pensamento que é livre. Sonhar.
Como será o amanhã sem ti?
Na véspera da sua morte, Fernando Pessoa disse:
«Não sei o que me reserva o amanhã...»
Também eu não. Apenas tenho a certeza que um dia destes estarei contigo. Pode demorar muito tempo, mas esta premonição vai cumprir-se.

Oiço o ladrar desesperado dos cães. Talvez seja o aproximar do auge sexual. Com os outros animais está o cão amarelo. Um cão que apenas existiu para fazer paralelismo com o passado. Um cão que não foi miragem. Tirei-lhe uma fotografia no jardim da Corredoura. Ficou a olhar para mim, junto ao banco. Que cão tão estranho para ser o que era. E o que era? Um cão que queria, à viva força, deitar-se ao meu lado. E tanto tentou, que conseguiu, ador­mecendo encostado às minhas pernas. Um simples animal irracional concretizou tudo o que foi impossível para nós.
Agora estou neste banco à espera que nada aconteça. Só. Com as imagens do passado. Com o vazio do presente e com a promessa absurda do futuro voltar tal como o sonhámos e que nunca será.
«Está frio!»
«Não, está fresco.»



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