domingo, 4 de outubro de 2020

Eternamente em encanto

 


Rolando, o cavaleiro solitário do deserto, sentiu-se perdido. Olhou mais uma vez em volta. O desânimo estampava-se no rosto. Conhecia o segredo das dunas inconstantes que a força do vento insistia em alterar, as formas caprichosamente erodidas das rochas, as alterações subtis da vegetação xerófila, os pormenores que ficavam, indeléveis, mesmo depois das tempestades de areia aplacarem a sua ira. O deserto era a toda a sua vida, o seu mundo, o seu destino, o único horizonte que os olhos abrangiam e que conhecia e controlava.
Com perícia, fez o cavalo voltear, lentamente. Sul, poente. Lá estava, ao fundo, o vermelho a carregar o horizonte já sem o astro-rei.
Que estaria para lá do crepúsculo?
Era rei no deserto e vulnerável no oásis, fatalmente, uma miragem. Um convite para desistir.
Esfregou os olhos. Sentia uma vontade irresistível de os fechar. De dormir. Sonhar. Esquecer a viagem que acontecia todos os dias, sempre igual. Como se houvesse sempre um mesmo dia, com dunas diferentes, mas iguais. A obsessão da procura dizia-lhe sempre o mesmo. Que não procurasse o que nunca tinha perdido. Porque, no deserto vermelho do ocaso, estava tudo perdido e tudo achado.
Enfiou a mão na saca dos mantimentos que deslizou até ao fundo. Já tinha mastigado o último naco de carne há quatro horas. Do cantil não escorria uma única gota de água. Não ia resistir muitas mais horas. Flecha, o companheiro das longas caminhadas pelas areias tórridas, também estava a atingir os limites da resistência.
Já não acreditava no oásis que avistava ao longe, embora soubesse que o fim estava escrito nas estrelas longínquas, para lá do sol e do cortejo de astros, seus prisioneiros. As células do seu corpo tinham sido formadas por biliões de átomos de hidrogénio que vinham dos tempos da grande explosão. 
Era eterno e ia morrer!
Tentou aliviar o sofrimento do nobre animal, saltando para o chão. Cambaleou e viu o companheiro dobrar as patas, ajoelhar. Afagou-lhe a cabeça. O relincho do animal foi mais uma despedida que um ganho de alento, desistindo, aos poucos, de viver.
Como podia estar perdido entre as areias que tão bem conhecia?
Desta vez fora vencido. Sentia-se exausto. As pernas pesavam-lhe. A vista distorcia as imagens. Colavam-se as paredes do estômago e a garganta seca suplicava por água. Era cada vez mais doloroso dar uma passada.
Conseguiu. Outra. Ainda outra. A vertigem. A agonia. O delírio. Outra passada. Mais lenta. A vertigem, de novo. O desejo de parar. De fechar os olhos. Sentia a presença sinistra da morte simbolizada pelos abutres que descreviam círculos cada vez mais apertados e baixos sobre a zona onde o bravo Flecha desistira de viver. Com a morte do animal acabara de morrer um pouco de si e as defesas abriam-se, talvez para a entrada do fim dos fins. 
Afinal sempre sonhara descobrir o que poderia encontrar ao transpor os limites do crepúsculo onde talvez ia travar a última batalha. Não lhe restava outra opção senão caminhar em frente sem vacilar, até atingir a porta que os olhos enxergavam ao longe.

Mas... e o lago que nascia a seus pés?
Baixou-se. As águas eram límpidas, tão límpidas que podia ver a imagem do rosto espelhada nelas. Finalmente ia poder matar a sede milenária que o atormentava.
Havia outro rosto refletido nas águas do lago.
Virou-se.
Era uma mulher. Tinha cabelos negros, pendentes pelas costas. Cobria-a um longo vestido azul cuja transparência. a não escondia nada do seu corpo.

«Onde estou?»
A mulher respondeu com um sorriso enigmático.
«Estás num sítio onde a vida ganhou raízes de eternidade.»
Olhou-a, admirado. Bebeu a doçura do seu olhar.
«Devo estar no paraíso!» exclamou.
Ela voltou a sorrir.
«Gosto desse sorriso. Parece-me puro como a água que acabei de beber.»
«O teu olhar despe-me...»
«Estou a viver um sonho. Desculpa, és bela!»
Manteve-se calada.
«Como te chamas?»
«Dinares...»
«Dinares?»
«O meu nome não te diz nada.»

Fez-se o silêncio das recordações ausentes. Num minuto deixou vir a si imagens soltas de uma vivência que há muito deixou para trás. Só num minuto porque logo o homem consciente bloqueou a passagem de mais imagens.
Rosas vermelhas?
Sentia no ar o odor de esferas invisíveis que o olfato identificava como amor à primeira vista, o que era um paradoxo. Estava calmo. Queria entender. Descobrir toda a verdade. 
Ficou a pensar. Tudo se modificava. Não podia haver amor à primeira vista.
Aquele corpo, tisnado pelo sol, atraía-o, irresistivelmente.
É tudo uma mentira que vem do oásis!
Ela pareceu adivinhar os seus pensamentos.
«Não sou uma miragem. Deixa acontecer. Aos poucos. E não me olhes assim! O teu olhar despe-me, mas ainda é cedo. Estava escrito que virias ao meu encontro. Mas cuidado, deixa chegar o momento no seu tempo.»
«Tempo? É coisa que já não tenho.»
«Estás confuso.»
«Posso acariciar o teu rosto?»
«Não!» 
«Então estou a sonhar. Sempre atravessei a porta dos limites

Os lábios entreabriram-se, mas voltaram a cerrar-se e perdeu-se em pensamentos que só tinham a ver com tentação. Aquela mulher atraía-o. Sentia o desejo a crescer, sempre a crescer.
«Pelo amor do Profeta não faças isso!»
Profeta?
Aproximou-se mais dela, até aos limites da tentação.

«Não, Rolando!»
Sabe o meu nome…
As barreiras tinham caído. Em todas as buscas que fizera havia um fim. Um fim inevitável. Descobrir quem era aquela mulher que esperava por ele para lá do crepúsculo. E, quando acontecesse, certamente que os cabelos se soltariam, livres, ao vento.
«Não!»
A desconhecida afastou-se na direção do lago. As águas ficaram ainda mais límpidas e espelhavam agora a verdade. Mas também podia ser uma armadilha que o deserto era fértil em oferecer.

Cuidado!, que ela não existe. É uma miragem…
Baixou-se e começou a agitar a água com os dedos. O desejo não parava a crescer e podia tornar-se incontrolável de um momento para o outro.
Desistiu de agitar a água e levantou-se. Olhou-a intensamente e ela não fugiu ao olhar. 
Aproximou-se mais. Tocou levemente com os dedos no seu rosto e a desconhecida não fugiu. Acariciou os seus cabelos. Os seus braços nus.
«Não pode acontecer!»
Teve uma reacção fraca.
«Pressinto que cheguei ao meu destino.»
«Tens razão. Estava à espera de ti. Mais tarde ou mais cedo virias do deserto para me encontrares neste oásis me encanta e acolhe. Tu saíste do deserto. E eu quero sair do oásis. Contigo.»
«Para o deserto outra vez?»
«Talvez que deixe de haver deserto se encontrarmos a porta da saída.»
«Uma porta para entrar e outra para sair. Não faz sentido
«Como assim?»
Ronaldo queria entender. Aqueles olhos lembravam-lhe alguém. Pensou, pensou, mas sentiu a força do bloqueio. Com o passar do tempo talvez conseguisse. 
De repente, apertou-a nos braços, puxou-a para si e beijou-a com paixão. Os corpos uniram-se e o relógio do tempo parou por momentos.
Ela libertou-se suavemente dos seus braços.

«Estou presa neste mundo virtual e nem o teu amor pode libertar-me do encantamento.»
«Porquê, bela Dinares?»
Os olhos da desconhecida toldaram-se de lágrimas.
«Amámo-nos noutro tempo e vamos amar-nos no futuro. Mas há um feitiço que nos afasta quando me abraças e beijas, como no tempo do primeiro amor.»
«Encontrámo-nos no passado?»
«Sim.»
«E porque foi que te perdi?»

Ela olhou-o com uma infinita tristeza estampada nos olhos.
«Estás condenado a errar no deserto. É a tua maldição. E vais voltar sempre ao lago com a mesma sede infinita, não para te saciares, mas para veres a imagem do meu rosto espelhada no lago...»
«Para tudo acontecer de novo!»
«E nunca te vais lembrar de mim.»
«Não acredito! Foge comigo para o deserto!»
Abraçou-a.
«Não posso, Rolando. Estou presa a um encantamento de vingança.»
«Diz-me quem te encantou!»
«Um dia apareceste e apaixonámo-nos, mas alguém denunciou-nos ao meu meio-irmão que me escravizava.» 
«Como podia ser tão cruel?»
«Odiou-me sempre porque nunca me submeti aos seus desejos carnais.»
«Mas eu não fugi! Enfrentei-o, não foi?»
«Sim. Combateram por mim num duelo e tu venceste-o, ferindo-o com gravidade. A tua bondade não permitiu que desses o golpe final.»
«Antes desse.»
«Sim. Ele tinha grandes poderes ocultos e antes de morrer lançou um feitiço terrível sobre nós.»
«Compreendo. Mas agora encontrei-te!»
Dinares abanou negativamente a cabeça.
«Impossível, meu amor. Fiquei prisioneira neste oásis para sempre e condenou-te a errar entre o deserto e o oásis.»
Rolando teve uma ideia. 
«Um dia vou voltar. Antes que seja atraído pela tua beleza, amarra-me os braços para resistir à tentação de te beijar.»
«Vou tentar. Agora tens que voltar ao deserto. Adeus, meu Rolando.»
Estava de novo no deserto. No mundo que conhecia mesmo de olhos fechados e onde se perdeu e sempre se encontrou. O deserto da sua solidão.
Ergueu os olhos para o céu e pensou que o azul era a sua cor. Por momentos julgou ver uma nuvem semelhante a um rosto de mulher, deitando uma lágrima doce, mas foi pura ilusão. Não havia nuvens no céu. Só um azul intenso e um sol escaldante, companheiros inseparáveis de um cavaleiro solitário montado num cavalo que galopava, veloz como o vento, em direção ao oásis maravilhoso do próximo futuro... 

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