terça-feira, 25 de julho de 2023

O Bidon



O grande sonho de Cabral e Albuquerque foi seguir a carreira de oficial da Marinha de Guerra. Um sonho que não conseguiu concretizar. Ficou-se pela Marinha Mercante, onde chegou a comandante, segundo a opinião dos colegas, por obra e graça do Espírito Santo. Os que o conheciam melhor achavam que de inteligente tinha pouco e sim muito de fanfarrão. Vejam só. Teve o desplante de afirmar, mais que uma vez, perante uma assembleia de colegas, que o expulsaram da marinha de Guerra por ser dotado de personalidade a mais. Ele, D. Cabral e Albuquerque, duplamente nobre pelo lado do pai e da mãe.
No tempo em que ainda era terceiro piloto da Marinha Mercante, tanto se gabou em público pelo seu sangue azul, D., por parte do pai e também D., por parte da mãe, que um dos seus colegas, num oportuno momento de imaginação fértil, o alcunhou de Bidon. A alcunha pegou tanto ou tão pouco entre os colegas e restante pessoal da marinhagem que ficou Bidon enquanto vivo e também morto quando eram evocadas principalmente as partes gagas que tinham acontecido a bordo do paquete Infante D. Henrique, o seu último navio. E não foram poucas. Fanfarrão como era, e pouco dotado de inteligência, não conseguia evitar que as situações caricatas viessem ter com ele. E não foram poucas, diga-se.
Entre outros, tinha dois grandes prazeres na vida. Deliciar-se a degustar um frango assado avantajado e dedicar-se ao tiro aos pratos, neste último caso quando em terra e também a bordo.

O tempo correu. Foi sempre empurrado na progressão da carreira pelo dito Espírito Santo.
Corria já o tempo de comandante do Infante D. Henrique. As viagens no mar eram longas e monótonas. Era preciso ocupar o tempo quando não estava na ponte, ou a deliciar-se, no salão ou no camarote, com dois pequenos e suculentos frangos assados quando não havia grandes.
«Ó Leonel, traz-me um frango assado ou dois, se não houver frangos grandes. Vê lá se estão bem assados e recomenda que ponham bastante piri-piri. E quero um vinho branco alentejano. Fresquinho.»
O Leonel era o seu fiel criado para todo o serviço. Esperando uma ordem, ele e o seu casaquinho branco perfilavam-se a pouco mais de um metro, à espera de ordens.
«Sim, meu comandante. É para já.»
«Não demores, Leonel. Vai num pé e vem noutro. Quero-os bem quentinhos.»
Eram invariavelmente dois porque ele achava que não havia frangos grandes a bordo. E melhor do que ninguém a servi-lo, o fiel e zeloso criado nunca o deixava ficar mal.
«Já tens vontade de almoçar, Leonel?»
«Um pouco, meu comandante.»
«Vai lá. Mas não te demores. Mastiga bem porque podes ter uma indigestão. E hoje apetece-me dar uns tiros aos pratos e tens que montar a máquina.»
«Sim, meu comandante. Vou ser rápido.»
«Desaparece, rapaz.»
Homem de muito alimento, baixo, gordinho, com bigode a imitar o famoso e ridículo detetive Poirot, da Agatha Christie, celebérrima escritora de romances policiais, olhos mortiços, em virtude da sua posição hierárquica na Marinha Mercante, convidava, às vezes, alguns passageiros para a sua mesa e nessas alturas, com muito pesar escolhia outras ementas. Quando calhava ser à noite, havia baile ou cinema e aproveitava para se esgueirar e recolher ao camarote, onde se deliciava com uma aguardente S. Domingos velhíssima, uma fiel companheira que fazia inveja ao zeloso Leonel. Não fumava. E talvez por isso tinha sempre uma apetite insaciável, principalmente quando defrontava os saborosos frangos assados, bem regados com o tal branco alentejano fresquinho.
Acontecia com frequência o ambiente aquecer logo a seguir às refeições. Compreendia-se. Os vapores etílicos eram os grandes responsáveis, mas ele acreditava que o ar condicionado não estava a funcionar devidamente.
«Ó Leonel, vai chamar o chefe Silvinha Saltitão.»
«É por causa do ar condicionado, não é, meu comandante?»
«Eu é que sei. Vai chamá-lo, anda.»
Ele e o chefe de máquinas eram muito amigos e de longa data.
E lá vinha ele, com toda a calma do mundo.
«Ó chefe, anda cá!»
«O que é agora, pá?»
«Tens que pôr o ar condicionado mais forte. Está muito calor aqui. Isto está abafado.»
«Não está abafado.»
«Eu é que sei o que sinto. Trata lá disso.»
«Ó comandante eu não tenho culpa dessa manta de toucinho que tens à volta do corpo. O ar condicionado está no máximo.»
Eram amigos e tinham muita confiança um com o outro. Só assim se compreendia que o Cabral não entrasse em órbita.

«Está tudo em ordem, Leonel?»
«Sim, meu comandante.»
«E puseste a saí-los para a direita?»
«Como o senhor ordenou.»
«Bom, vê lá o que fizeste. Hoje há muita gente a assistir e não quero ficar mal visto.»
O bom do Leonel desceu para o sítio onde estava a máquina de atirar pratos e esperou pelo sinal do comandante.
«Agora!»
Então carregou num botão e os pratos começaram a sair para a direita, com um intervalo de meio minuto. E mais acima, o D. Cabral e Albuquerque, com a espingarda de cinco tiros apontada na direção da máquina, foi vendo os pratos saírem para a direita e não falhou um único tiro. Pratos estilhaçados e a assistência a apreciar o grande atirador, não se poupando a calorosas salvas de palmas. Bem merecidas porque ele era um atirador fantástico, a ponto de alguém lhe perguntar se já tinha ido aos jogos olímpicos.
«Por acaso não. O meu cargo é muito responsável e dedico-me a ele a tempo inteiro. De alma e coração, sabe?»
«Mas devia tentar.»
«Vou pensar nisso.»
Entretanto tinha chegado o Leonel.
«Então?»
«Aguardo ordens, meu comandante.»
«Olha, agora é para a esquerda.» Disse, em voz baixa. «Vai lá. E não te esqueças...»
«De quê, meu comandante?»
«Para a esquerda, burro!»
«Ok.»
«Que disseste, ó Leonel?
«Sim, meu comandante.»
«Ah! Tinha percebido mal.»

Uma vez saiu tudo mal. A máquina de atirar pratos começou a executar a sua função de forma aleatória. Um prato para a esquerda, outro para a direira, outro em frente, outro para a direita, outro para a direita. Foi um fiasco. Não conseguiu acertar num prato porque reflexos era coisa que não tinha. Cinco tiros e cinco melros a safarem-se. E em vez de aplausos, houve risos e mais risos. O grande atirador falhou em toda a linha.
«O que foste fazer, Leonel, grande cabrão?»
«Não tive culpa, meu comandante.»
«Não tiveste?»
«Juro que não. Alguém pôs os pratos a saírem ao calhas.»
Ai Bidon, B
idon! 
«Não suspeitas de ninguém?»
«Há muitos brincalhões por aí...»
Pensou no seu amigo Silvinha Saltitão.
«Talvez que...»

Um cruzeiro às Seychelles, Maldivas, Maurícias, Madagáscar, Lourenço Marques, com partida da Cidade do Cabo, deve ter ficado na memória do comandante Cabral e Albuquerque pelas piores razões. Por motivos imprevistos foi cancelado o desembarque numa ilha cujo nome não é mencionado, cancelamento que só foi comunicado aos passageiros no segundo dia. Tal ocorrência deixou um certo mal estar nos passageiros que se foi avolumando com o passar do tempo.
Naquele cruzeiro o Bidon levou também consigo a esposa que se relacionou muito bem com os passageiros. Era uma senhora muito simpática, ingénua, comunicativa. Não o deixava mal visto.
Então o que aconteceu?
Coisa muito simples. Alguns passageiros reuniram-se secretamente e elaboraram um texto em que protestavam veementemente por causa do cancelamento. Se fosse só isso, tudo bem. Estavam no seu direito. O comandante lia e relia a folha de protesto e acabava-se logo a questão.
Mas não foi bem assim que aconteceu. Convenceram a senhora que se tratava de fazerem um elogio ao comandante pelo modo como as coisas estavam a correr e ela assinou prontamente de cruz o dito protesto. Portanto, o abaixo assinado tinha à cabeça a dona Celeste, mulher do Bidon.
Entretanto foi escolhida uma comissão para apresentar o documento ao comandante. Nessa comissão estava incluída a dona Celeste.
No momento da entrega, por acaso o comandante estava na ponte, juntamente com o pessoal de quarto. Tudo bem. Elogios eram elogios e ficavam na sua folha de serviço. Portanto, todo ele era sorrisos. Mas quando começou a ler o documento e viu o logro em que caiu, a expressão do rosto alterou-se e virou-se, irado, para a esposa:
«Também tu, puta?»
O que aconteceu na intimidade ficou no segredo dos deuses.
Uma coisa é certa. Depois desse momento, durante o resto do cruzeiro não mais o dedicado Leonel armou a máquina dos pratos que tanta admiração causava nos passageiros.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Do Cassequel para a barbearia



Vapor Cassequel (1)



Esta é mais uma história contada pelo meu avô Manuel. Foi passada com um cunhado, pessoa divertida, bem disposta, amigo do seu amigo e com um fraco notório por qualquer "rabo de saias" que surgisse, disponível, no seu generoso e amplo horizonte. E, por falar em horizonte, era também um homem do mar, sempre pronto a deixar a sua marca em cada porto a que chegasse. É um exagero. Fiquemo-nos por mais ou menos.
Aconteceu nos anos vinte, quando o meu tio-avô era terceiro maquinista e fez uma viagem a bordo do Cassequel, um dos mais de setenta navios apresados aos alemães durante a primeira Grande Guerra. Chamava-se José Florêncio. A sua atração fatal pelo sexo fraco, por vezes levava-o ao limite dos limites das linhas vermelhas possíveis e imagináveis. Não é bem o caso da história que o meu avô contou, mas até podíamos imaginar que teria ido por aí caso as coisas seguissem por outro rumo. Quis um percalço que não fosse assim. Mas antes de entrarmos na história, tão simples quanto imprevisível, convém dar ênfase ao seu lado de homem mulherengo, começando por um pequeno e singelo exemplo.
A certa altura da sua vida esteve a trabalhar em Aveiro nas obras de ampliação do porto. Todos os sábados regressava à Figueira da Foz a tempo de jantar em casa do meu pai, não sem antes passar pela casa da amante, onde deixava a mala. A seguir ao jantar borrava a pintura e dormia na casa da amante. A mulher morava distante, em Lisboa, na zona de Alcântara. Faltava à mulher mas não faltava à amante.  Por ela, ou por outra, corria todos os riscos possíveis e imaginários. Ele era assim. Um mulherengo viciado e sem hipótese de emenda, com um vício algo comparável à cocaína, ou assim.
Mas vamos à história que começa numa tarde, quando o Cassequel aportou a um cais de Glasgow para ser abastecido de carvão, combustível à época fundamental para produzir vapor e dar aso à navegação. A caldeira não funcionava sem o imprescindível carvão de pedra de alto poder calorífico, carvão esse explorado numa das mínas da Escócia. Quanto ao oxigénio, o comburente, não faltava e tinha preço zero. 
Os dias de permanência forçada no porto do Cassequel perfaziam talvez uma semana, dada a morosidade do processo de carga do carvão, o que não desagradava à tripulação, sedenta de ir a terra "matar saudades", e que assim tinham todo o tempo do mundo à sua disposição para fazerem certas diligências que nada tinham a ver com o turismo, talvez desconhecido na altura. 
Não interessam para o caso as tais digressões. Adiante. Mas antes, havia que dar aso a uma coisa sagrada, ao mesmo tempo muito simples.

«Qual é a coisa qual é ela...?»
«Já sei, avô.»
«Está bem. Mas é outra coisa...»
«Então venha ela.»

Coisa de facto muito simples. Um corte de cabelo à maneira para embelezar a aparência. Isto antes de se "matarem as saudades".
Foi o que ele fez mal teve oportunidade de sair do navio. Desta vez não tinha à sua espera uma amante, nem sei o que procurava porque o meu avô não me contou.
O meu tio não conhecia Glasgow. Descontraído como era, deixou-se ir ao acaso pelas ruas. Até que parou. Quem porfia sempre alcança, diz o provérbio. E ele porfiou ao encontrar o que desejava encontrar. Uma barbearia.
«Hum! Parece demasiado fina. Mas seja. Dias não são dias.»
Antes de entrar, quase imitando um homem do signo Escorpião, viu três cadeiras giratórias cremes, com encosto, viradas para um espelho que ocupava quase toda a parede. Por cima, e ao meio, havia um relógio com numeração romana. Ao fundo, um lavatório. Também ao fundo, e à sua direita, uma exígua divisão. Finalmente, ainda à direita, encostadas à parede, quatro, cinco cadeiras. Os barbeiros, que vestiam batas brancas acima do joelho, eram três. Levantaram-se das cadeiras mal ele entrou. Portanto, era o único cliente na altura. Sorte a sua. Não gostava de esperar. Descontraído e sorridente, olhou para os profissionais da barba e cabelo. Um deles disse-lhe qualquer coisa, que não entendeu. Assim, ficou especado. À espera. Até que outro, com um gesto, mostrou-lhe as cadeiras.
«Yes. Já vi.»
Pois. Queriam que escolhesse a cadeira giratória. Entendeu. Ato contínuo sentou-se na cadeira mais próxima da entrada. E foi então que viu pelo espelho uma jovem morena a sorrir para ele. Vestia uma bata azul. Contou os barbeiros e as cadeiras giratórias. Eram três.
«Não pode ser mulher-barbeiro. Então?»
Pôs-se a adivinhar. Talvez fosse a manicura. Mas já o oficial da tesoura e navalha estava a dirigir-lhe a palavra.
«Ops! Que está ele a dizer?»
O homem repetiu as palavras. Moita, carrasco, voltou a não entender.
«Yes!» optou.
Só podia. Estava a pedir-lhe como queria o corte. Então, fez um gesto com as mãos para a zona acima das orelhas e também para a nuca. Reforçou no seu português correto.
«Atrás e aos lados.»
O outro ficou mudo e olhou para o colega da direita que lhe disse qualquer coisa em inglês, acabando por acenar com a cabeça.
«Finalmente o fulano compreendeu» pensou. 
«Yes.» Disse disse para o oficial de barbearia, em jeito de reforço.
Este virou-se para o tablier onde estavam os utensílios de corte e também um pente creme de tartaruga e começou de imediato a desbastar o cabelo do meu tio.
Pouco depois, o terceiro oficial de máquinas retirou uma mão debaixo do penteador e fez um gesto ao barbeiro que pareceu significar stop. Pelo menos este suspendeu o trabalho.
«Só a litle
O outro acenou afirmativamente com a cabeça.
«Lá compreendeste, sacana.»
E desacelerou o desbaste. Pouco depois chegou o momento de acertar as patilhas.
«Yes?»
«Yes.»
Primeiro, o corte tinha sido com a tesoura. A seguir entrava em cena a navalha. Não tinha pedido nada disso, mas paciência, dias não eram dias. O profissional retirou o assentador do tablier e passou várias vezes a dita navalha pela superfície escura do assentador. Foi nesse momento que viu junto à cadeira a manicura pelo espelho. Trazia consigo o seu banco baixo.
«Não te chamei, mas está bem. Yes.» 
A mulher sorriu. Pareceu-lhe que estava a gozar. Que se lixasse. Mais libra menos libra. Até porque a manicura não era mulher para se deitar fora. E aquele sorriso podia querer dizer outra coisa. Só havia um problema. Chegar à fala com ela e não sabia como. Logo se via. Um especialista como ele sabia muito bem como agir. Usava a mímica.
«Mau, mau!»
Que se passava?
A fase do cabelo tinha chegado ao fim depois do barbeiro trabalhar a máquina abaixo da nuca. Chamava-se disfarçar àquela operação de charme. Tuca, tuca, tuca tuca e já era. 
«Mas que se passa?» perguntou aos seus botões.
Era tarde para recusar aquele convite. E o sorriso meigo da manicura não era tudo. Sentiu que ela lhe apertava a mão com uma certa intencionalidade. 
«És mais sabida do que imaginava. Vejamos...»
E resolveu apertar também a mão dela. Se não resultasse, paciência.
«Porra!»
Algo correu mal. Com o gesto inesperado que fez, a tesoura da manicura foi-lhe à pele. Ela disse-lhe qualquer coisa que não percebeu e sorriu, como resposta, bem como com a voz.
«Yes yes!» 
E a seguir... 
«Mas não percebi patavina.»
No momento o barbeiro passava uma escova macia pela zona do pescoço onde tinha sido a intervenção pontual com a máquina. Admitiu que fosse pó de talco.
Esqueceu, por momentos a diligente manicura e seguiu pelo espelho o trajeto do funcionário até à tal casinha onde devia haver mais qualquer coisa que a retrete.
«Foi verter líquidos.» Pensou.
Acertou talvez parcialmente. O homem trazia nas mãos uma toalha branca retangular de pequenas dimensões que colocou no rosto do meu tio que nada pôde dizer de sua justiça porque não sabia patavina de inglês. E pouco depois o pincel começou a pintar de branco o seu rosto, inclusivamente abaixo do queixo.
«Mas ainda hoje fiz a barba pela manhã!» queixou-se.
Quando o barbeiro cumpriu a sua missão, não sem antes mostrar-lhe dois líquidos em frasco, também a manicura dos olhos marotos se tinha recolhido à sua zona, não deixando de o perder de vista. 
Escolheu o líquido rosado que devia ser sublimado. O incolor era álcool. Quanto à manicura...
«Como vou chegar à fala com a gaja?»
Coisa complicada. Mas logo se resolvia. Tinha todo o tempo do mundo. Esperava por ela lá fora. Que diabo! Valia bem a pena.
E elevou os seus pensamentos...
Fechou os olhos. Ia ser bacano namoriscar a morena.
«Que é isto? Porra!»
O barbeiro passava-lhe na altura pelo rosto uma toalha muito quente. Tinha sido apanhado de surpresa ao deixar-se levar pelo sonho que "comandava a vida".
Vai ser uma conta calada, Florêncio...
Instintivamente, levou uma mão ao bolso traseiro das calças e o rosto deve ter mudado logo de cor. Deu um salto na cadeira. Havia qualquer coisa que não estava a correr bem. Muito simples. Tinha-se esquecido da carteira no navio.
E agora? 
O barbeiro deve ter compreendido que ele não trazia dinheiro consigo e, de um momento para o outro, a expressão cordial do rosto mudou drasticamente. A seguir pôs-se a coçar o queixo.
«Que está a pensar o fulano?»
Não demorou que o infeliz do meu tio compreendesse. O homem começou a passar a navalha pelo assentador e não o fazia com meiguice. Entretanto a provocante manicura estava de braços cruzados a olhar para ele. Já não havia cordialidade no seu olhar. 
Algo desorientado, abriu os braços.
«Eu pago. É só ir ao barco. Posso?» 
Silêncio absoluto por parte do barbeiro. 
«Yes?» 
Qual yes, qual coisa. Está bem, abelha. O barbeiro estava a pensar noutra coisa como "este gajo julga que se safa?". 
E continuou a afiar a navalha, agora ainda com mais vigor.
Não te livras. Vais ser degolado. Ou assim. Principalmente assim.
Entretanto um dos outros barbeiros já estava, de sentinela, à porta da barbearia.
«Yes. Eu vou ao navio buscar a porra do dinheiro.»
É o ias. Dali não saía.
«Ora a minha vida!»
O caso manicura já era. Nem sequer teve oportunidade de saber o seu nome.
Mas ele era um homem de sorte. Dois amigos seus acabavam de entrar na barbearia.
«Estás pálido, Florêncio! Que te aconteceu?» perguntou um deles.
«Não sabem...?»
«Não me digas que ela te deu um chapadão?»
«Não foi isso.»
«Então?»
«É que esqueci-me da carteira no barco e não tenho como pagar a despesa.»
«Ah...»
«Emprestam-me algum?»
«Fica descansado.»
Virou-se para o barbeiro que continuava a afiar a navalha.
«Yes!»
E para a manicura:
«Yes?»
«Tira o cavalo da chuva, menino.»
Mas...?
Bem enganado foi. Afinal ela era portuguesa. Tentou dar a volta.
«Qual é a sua graça, menina?» 
«Vai-te encher de moscas!» 
«Não queres jantar comigo. Camarões como entrada?» 
A manicura lançou-lhe  um olhar de desdém e virou-lhe as costas. 
Um dos amigos já estava a pagar a despesa do meu tio.
«Quanto é, Leopoldo?» perguntou este.
«Perdeste a cabeça, sacana...»
«É muito?»
«Uma nota preta. Não te esqueças de pagar quando voltarmos ao vapor.»
«Yes.» 
Pela primeira vez sabia o que estava a dizer.  
«Yes?» 
Ignorou a pergunta.
«Vamos por aí beber umas cervejas?» 
«Primeiro tens que esperar.» 
«Ah... é verdade. Vocês também vão cortar o cabelo. Está bem, eu espero. Mas tenham cuidado. Nem toalhas quentes depois da barba e assim. Nem corte à navalha. Nem a sacana da manicura. É falsa, a gaja.» 
«Fica descansado. Não somos tansos como tu. E uma coisa...»
«Sim?»
«Devias aprender um pouco de inglês.»
Meia hora depois já estavam, ele e os colegas numa cervejaria, a deliciarem-se com cervejas bem fresquinhas. Só então o tio Florêncio voltou à sua normal boa disposição.
«Não te animes muito.»
«Há mal nisso?»
«Há. Para ti.»
«Porquê?»
«Olha...»
E olhou. Estremeceu com o que viu. Melhor ainda. O coração bateu forte. Era ela. A manicura.
«Como um raio!» pensou.
Viu-a dirigir-se para a mesa e levantou-se.
«Carlos, meu safado! Desculpa não te ter falado há pouco.»
Num repente, a manicura já estava a dar um beijo na boca do Carlos, o segundo piloto do Cassequel. 
«Senta-te e bebe uma cerveja connosco. Paga o Florêncio.»
Aconteceu um milagre quando viu os colegas entrarem na barbearia. Agora precisava de outro milagre que o fizesse desaparecer de imediato num buraco. 

(1) Nota: Segunda Grande Guerra, 1941 - O vapor "Cassequel" estava iluminado quando foi avistado por um submarino alemão decidiu-se pelo ataque e afundamento do mesmo pela impossibilidade de mandar parar um navio suspeito durante a noite.
Depois do primeiro torpedo, o vapor parou o andamento e, como se tivesse partido o hélice, a máquina começou a rodar desordenadamente...
  
   

segunda-feira, 17 de julho de 2023

A vida dramática de José Duro

O poeta esquecido... 


"José Duro nasceu em Portalegre em 22 de Outubro de 1875.  Morreu, com 23 anos, em Lisboa, a 18 de Janeiro de 1899.
Era filho de mãe solteira, a operária de lanifícios Maria da Assunção Cardoso, e do industrial José António Duro. O seu poema mais precoce, um soneto intitulado A Morte, escrito em Portalegre em 1895, revela já o temperamento melancólico, pessimista e mórbido do autor, que é ainda mais marcado na sua obra mais conhecida, Fel, livro escrito em 1898, quando a tuberculose de que sofria há muito e que provavelmente teve muita influência no seu carácter sombrio, anunciava a sua morte certa e iminente, que veio a acontecer apenas alguns dias depois da publicação.

Em 1896 publicou em Portalegre um folheto de versos que intitulou Flores.
A prostituição, a morte, a tuberculose e o desespero são os temas mais recorrentes da sua poesia, por muitos considerada a concretização mais negativista das correntes estéticas decadentistas em Portugal.

Fel é uma espécie de diário poético dos últimos dias do poeta. O poema Doente que encerra o livro é uma longa confissão de amargura e desespero de um jovem que sabe que a morte está próxima (Ademar Santos).

Um dia, o poeta que já publicara em 1896 o livro Flores, procura Mayer Garção porque queria imprimir o seu segundo livro e, antes de o publicar, gostava que alguém o lesse:
“Encontrei-me com José Duro na cervejaria do Gelo. Não esquecerei nunca a febre que reluzia nos olhos desse rapaz, em cujas faces se descortinavam já os estigmas da morte  próxima. 
Sentámo-nos a uma mesa, e, com voz rouca, durante longo tempo, ouvi a leitura do seu manuscrito, entoada com estranha paixão. Os criados perpassavam, servindo fregueses, àquela hora ainda raros, e, a essa banal mesa de café, eu assistia ao desenrolar de imagens, escutava a música dos ritmos, via  desfilar as visões daquele espírito amargurado. 

(…) ali, aquele poeta desgraçado e amargo despenhava perante mim os diamantes do seu espírito, porventura imperfeitamente lapidados, mas dum brilho, duma pureza, duma água tão cristalina que se diriam porvir da terra virgem, aliando à cor do sol o perfume das flores silvestres.
José Duro, com a sua voz rouca, quase não fazia uma pausa. OH! Rapidez terrível, aflitiva da sua leitura, a ânsia a exprimir em gritos o fruto da sua paixão! Dir-se-ia que esse rapaz, tão novo, receava não ter vida para chegar ao fim, e por isso traduzia a correr, a marcha final dos seus sonhos, na galopada frenética das suas palavras!”

Em 1950, a Câmara Municipal de Lisboa homenageou o poeta dando o seu nome a uma rua na zona de Alvalade, mais propriamente uma perpendicular sul à Avenida da Igreja.

Frequentou a Escola Politécnica de Lisboa, cidade onde, em tertúlias de café, veio a desenvolver o seu interesse pela literatura, nacional e estrangeira, sofrendo forte influência de Baudelaire e de António Nobre. De temperamento melancólico e pessimista, que se reflecte em Fel (1898), ficou conhecido pela veemência da dor, o sentimentalismo e o ambiente macabro e tétrico dos seus poemas. A valorização da sua poesia foi desigual, enaltecendo-o alguns e sendo alvo de troça por parte de outros. Morreu vítima de tuberculose. Para além de Fel, escreveu, em 1896, Flores. Em 1985, António Ventura havia organizado a edição de Páginas Desconhecidas, com obras de José Duro.

José Duro, de quem hoje ninguém fala nem sequer recorda o nome, não foi um poeta consensual. Alguns riram-se mesmo dos seus poemas. É uma consequência, talvez, de ser demasiado ingénuo e autêntico, ao mesmo tempo que artificial e empolado. Outros porém respeitaram a obra deste sequaz satânico e decadente que bebeu em António Nobre (também tísico como ele) o gosto por cadaverosidades, em Guerra Junqueiro o uso do sarcasmo, da grandiloquência e do sensacionalismo, e em Baudelaire o engodo pelas Flores do Mal. Por alguma razão a obra conseguiu chegar à décima primeira edição."
(notas compiladas de várias fontes) 





O livro que aí vai - obra de um incoerente -

É um livro brutal, é um poema a esmo...

Pensei-o pela rua olhando toda a gente,

Escrevi-o no meu quarto olhando-me a mim mesmo... 

quinta-feira, 13 de julho de 2023

O mistério das cinco noites e cinco dias

 


Figueira da Foz. 1960, mais ano menos ano. O avô Manuel estava a passar na casa do meu pai alguns dias como era hábito no verão. Nesse tempo eu devia ter pouco mais de dez anos e adorava estar presente, a seguir ao jantar, para ouvir as histórias de vida do avô Manuel, quase todas ocorridas na solidão mar/céu, onde passou grande parte da sua vida exercendo a profissão de "chefe de máquinas". Nunca me falou de avistamentos de objetos voadores não identificados, nem de monstros vindos das profundezas do Atlântico, mas o início das suas histórias deixava sempre no ar um suspense de algo imprevisível que parecia estar a acontecer. Mas, bem no fundo, as suas narrativas eram simples e apenas polvilhadas por um rasto de um pequeno mistério que não deixava de ser aliciante para despertar a imaginação de um jovem de dez anos, sempre pronto a aumentar de intensidade o mistério de uma coisa qualquer por mais simples que parecesse ser.

Foi o caso dessa noite. Uma noite escura de céu encoberto, reforçada também pela fase de lua nova...
«Se não se importam, hoje fico-me pela varanda. Estou um pouco cansado e preciso de restaurar as forças.»
«Está bem, pai. Mas se quiser ir ter connosco, encontra-nos no "Picadeiro". Ou talvez no café Caravela.»
«Eu fico com o avô.»
«Mas não queres deliciar-te com um gelado?» perguntou o meu pai.Não sei porque carga de água fiquei a fazer companhia ao meu avô. Ou melhor, sei. Gostava muito de ouvir as suas histórias. O apelo do mar já me corria nas veias.

«Penso que ainda não te contei esta, José.»
«Qual, avô?»
Fiquei a vê-lo tirar do bolso do casaco de malha fina um maço de cigarros "Português Suave", sem filtro. Logo a seguir chegou-me às narinas o odor do tabaco queimado, odor esse que, infelizmente, me agradou [2].
«Olha, foi uma coisa que me deixou a pensar. O porquê daquele estranho caso se repetir sistematicamente sempre na mesma região.»
«Que situação? Conte, avô, conte...»

Por volta de 1920...
O Cais da Rocha era normalmente o ponto de partida da viagem que fazia no "Ganda I" ao largo da costa ocidental de África, sempre com rumo para sul. Quanto ao navio, o Ganda, foi um dos setenta e dois navios alemães que estavam parados em Lisboa e noutros portos que Portugal apresou, dando origem à declaração de guerra alemã a Portugal (1914-1918). A apreensão ocorreu em 1916 e também o Cassequel, onde também andou, foi apreendido.
Em baixo, na máquina, estavam os fogueiros [3], os chegadores [4] e os azeitadores [5]. O oficial de quarto vigiava e regulava todo o processo de funcionamento das máquinas a vapor. Quanto ao chefe de máquina ia verificar todo aquele processo rotineiro que se desenrolava e dava as sua ordens caso fosse necessário. O acesso à casa da máquina era perigoso e naturalmente fazia-se por escadas. Uma queda podia ser fatal. 
Manuel Soares deixou a Marinha Mercante em 1922, passando a desempenhar serviços em terra. 
Quanto ao "Ganda I" teve um fim dramático [6].

Foi nessa noite que me contou a passagem do navio "Ganda I" (houve três "Gandas") ao largo da Serra Leoa e da Libéria.
Ao primeiro sinal de borrasca refugiou-se no tombadilho e começou a assistir a uma forte trovoada, acompanhada de chuva intensa e relâmpagos incessantes, de meter respeito, que iluminavam intensamente o céu da noite.
«O mais curioso, José, é que a tempestade prolongou-se por cinco noites e cinco dias.»
«Tanto tempo, avô! É estranho.»
«Tens razão. E mais estranho ainda porque, sempre que passei ao largo noutras alturas, e não foram poucas, a tempestade aconteceu e durou sempre o mesmo.»
«Mais que estranho, avô. Um dia também vou passar por lá.»
«Ainda és muito novo. Olha que a vida no mar é solitária.»
«Quero seguir as pisadas da família, avô!»
«Hum!, veremos, meu rapaz.»

A fita do tempo foi-se desenrolando. Inevitavelmente. E o meu desejo cumpriu-se. Entrei para a Marinha Mercante. Curiosamente fiz a primeira viagem no "Vera Cruz" e o destino quis que passasse, tal como o meu avô, ao largo da Serra Leoa e da Libéria. 




Quanto à tempestade, esta aconteceu. Durou no máximo seis horas e lançou-me na dúvida se aquela história não teria passado de uma fantasia do meu avô. Queria acreditar que não, pois ele não era pessoas que deixasse sair mentiras da sua boca. Mas tornava-se complicado.
Esqueci. A fita do tempo continuou a desenrolar-se naturalmente. Até que chegou a hora da reforma. Mas ainda não tinha chegado ainda o tempo do "descanso do guerreiro". Continuei ligado ao mar, mas numa empresa de assistência naval.
Por um mero acaso fiz a mesma viagem da tempestade a bordo do "Montalvo", um rebocador da empresa "Rebonave" que tinha uma potência de 6000 KWatt. Na altura rebocava dois batelões que se destinavam a Lomé, capital do Togo, onde havia obras no cais. Ia voltar a rever as tais tempestades ao largo da Serra Leoa e da Libéria.



E o que aconteceu?
Aconteceram as cinco noites e os cinco dias!
Porquê só ao fim de um pouco mais de trinta anos?
Fiquei a cogitar. Talvez tivessem voltado os tempos do meu avô. As alterações climáticas eram evidentes. Tal como acontecimentos da História aquele acontecimento estranho estava a repetir-se, pensei. Ao mesmo tempo admiti que era uma explicação simplista e pu-la de parte.
Mas então...?
Coisa muito simples. Uma espécie de ovo de Colombo.
No tempo do meu avô, a velocidade do "Ganda I" andava pelos 2, 3 nós. Quanto à velocidade do "Vera Cruz" era, no máximo de 21 nós. A rebocar os dois batelões a velocidade do "Montalvo" andava perto da do navio do meu avô. Assim, estava esclarecido o mistério das cinco noites e cinco dias. A tempestade estava visível durante os momentos de passagem dos navios. Quanto mais rápida fosse a velocidade do navio, menos tempo parecia durar a tempestade.


[1] O chefe de máquinas é o profissional da carreira de máquinas de categoria mais elevada numa embarcação da Marinha Mercante. O chefe de máquinas exerce a chefia da secção de máquinas competindo-lhe a supervisão das tarefas da condução e manutenção dos sistemas de propulsão e de produção de energia da embarcação.
Consoante o tipo de embarcação e a potência dos seus sistemas propulsores, a função de "chefe de máquinas" pode ser exercida por um oficial de máquinas ou por um maquinista prático/condutor de máquinas (Wikipedia).

[2] No futuro viria a ser um fumador inveterado que só largou o cigarro por uma questão de saúde. Viver mais anos foi sempre o meu lema.

[3] Marinheiros que alimentavam a caldeira com carvão, muito provavelmente hulha, um dos carvões naturais com alto poder calorífico.

[4] Homens que chegavam o carvão aos fogueiros.

[5] Marinheiros que oleavam a máquina.

[6] Junho de 1941. A história do torpedeamento e afundamento do vapor “Ganda”, cujo relato publicamos nos posts seguintes, parece que aconteceu há muito tempo, mas quando apreciado em termos históricos, verifica-se que decorreram apenas 72 anos sobre o incidente, portanto a poder considerar-se plenamente contemporâneo. Trata-se de um episódio ocorrido durante a IIª Grande Guerra Mundial, e por conseguinte verdadeiramente aterrador, pela certeza da existência de muitas pessoas que o viveram de perto, perfeitamente capazes de recordá-lo e penosamente incapazes de o esquecer!