Figueira da Foz. 1960, mais ano menos ano. O avô Manuel estava a passar na casa do meu pai alguns dias como era hábito no verão. Nesse tempo eu devia ter pouco mais de dez anos e adorava estar presente, a seguir ao jantar, para ouvir as histórias de vida do avô Manuel, quase todas ocorridas na solidão mar/céu, onde passou grande parte da sua vida exercendo a profissão de "chefe de máquinas". Nunca me falou de avistamentos de objetos voadores não identificados, nem de monstros vindos das profundezas do Atlântico, mas o início das suas histórias deixava sempre no ar um suspense de algo imprevisível que parecia estar a acontecer. Mas, bem no fundo, as suas narrativas eram simples e apenas polvilhadas por um rasto de um pequeno mistério que não deixava de ser aliciante para despertar a imaginação de um jovem de dez anos, sempre pronto a aumentar de intensidade o mistério de uma coisa qualquer por mais simples que parecesse ser.
Foi o caso dessa noite. Uma noite escura de céu encoberto, reforçada também pela fase de lua nova...«Se não se importam, hoje fico-me pela varanda. Estou um pouco cansado e preciso de restaurar as forças.»
«Está bem, pai. Mas se quiser ir ter connosco, encontra-nos no "Picadeiro". Ou talvez no café Caravela.»
«Eu fico com o avô.»
«Mas não queres deliciar-te com um gelado?» perguntou o meu pai.Não sei porque carga de água fiquei a fazer companhia ao meu avô. Ou melhor, sei. Gostava muito de ouvir as suas histórias. O apelo do mar já me corria nas veias.
«Qual, avô?»
Fiquei a vê-lo tirar do bolso do casaco de malha fina um maço de cigarros "Português Suave", sem filtro. Logo a seguir chegou-me às narinas o odor do tabaco queimado, odor esse que, infelizmente, me agradou [2].
«Olha, foi uma coisa que me deixou a pensar. O porquê daquele estranho caso se repetir sistematicamente sempre na mesma região.»
«Que situação? Conte, avô, conte...»
Por volta de 1920...
Em baixo, na máquina, estavam os fogueiros [3], os chegadores [4] e os azeitadores [5]. O oficial de quarto vigiava e regulava todo o processo de funcionamento das máquinas a vapor. Quanto ao chefe de máquina ia verificar todo aquele processo rotineiro que se desenrolava e dava as sua ordens caso fosse necessário. O acesso à casa da máquina era perigoso e naturalmente fazia-se por escadas. Uma queda podia ser fatal.
Foi nessa noite que me contou a passagem do navio "Ganda I" (houve três "Gandas") ao largo da Serra Leoa e da Libéria.
Ao primeiro sinal de borrasca refugiou-se no tombadilho e começou a assistir a uma forte trovoada, acompanhada de chuva intensa e relâmpagos incessantes, de meter respeito, que iluminavam intensamente o céu da noite.
«O mais curioso, José, é que a tempestade prolongou-se por cinco noites e cinco dias.»
«Tanto tempo, avô! É estranho.»
«Tens razão. E mais estranho ainda porque, sempre que passei ao largo noutras alturas, e não foram poucas, a tempestade aconteceu e durou sempre o mesmo.»
«Mais que estranho, avô. Um dia também vou passar por lá.»
«Ainda és muito novo. Olha que a vida no mar é solitária.»
«Quero seguir as pisadas da família, avô!»
«Hum!, veremos, meu rapaz.»
A fita do tempo foi-se desenrolando. Inevitavelmente. E o meu desejo cumpriu-se. Entrei para a Marinha Mercante. Curiosamente fiz a primeira viagem no "Vera Cruz" e o destino quis que passasse, tal como o meu avô, ao largo da Serra Leoa e da Libéria.
Esqueci. A fita do tempo continuou a desenrolar-se naturalmente. Até que chegou a hora da reforma. Mas ainda não tinha chegado ainda o tempo do "descanso do guerreiro". Continuei ligado ao mar, mas numa empresa de assistência naval.
Por um mero acaso fiz a mesma viagem da tempestade a bordo do "Montalvo", um rebocador da empresa "Rebonave" que tinha uma potência de 6000 KWatt. Na altura rebocava dois batelões que se destinavam a Lomé, capital do Togo, onde havia obras no cais. Ia voltar a rever as tais tempestades ao largo da Serra Leoa e da Libéria.
E o que aconteceu?
Aconteceram as cinco noites e os cinco dias!
Porquê só ao fim de um pouco mais de trinta anos?
Fiquei a cogitar. Talvez tivessem voltado os tempos do meu avô. As alterações climáticas eram evidentes. Tal como acontecimentos da História aquele acontecimento estranho estava a repetir-se, pensei. Ao mesmo tempo admiti que era uma explicação simplista e pu-la de parte.
Mas então...?
Coisa muito simples. Uma espécie de ovo de Colombo.
No tempo do meu avô, a velocidade do "Ganda I" andava pelos 2, 3 nós. Quanto à velocidade do "Vera Cruz" era, no máximo de 21 nós. A rebocar os dois batelões a velocidade do "Montalvo" andava perto da do navio do meu avô. Assim, estava esclarecido o mistério das cinco noites e cinco dias. A tempestade estava visível durante os momentos de passagem dos navios. Quanto mais rápida fosse a velocidade do navio, menos tempo parecia durar a tempestade.
[1] O chefe de máquinas é o profissional da carreira de máquinas de categoria mais elevada numa embarcação da Marinha Mercante. O chefe de máquinas exerce a chefia da secção de máquinas competindo-lhe a supervisão das tarefas da condução e manutenção dos sistemas de propulsão e de produção de energia da embarcação.
Consoante o tipo de embarcação e a potência dos seus sistemas propulsores, a função de "chefe de máquinas" pode ser exercida por um oficial de máquinas ou por um maquinista prático/condutor de máquinas (Wikipedia).
[2] No futuro viria a ser um fumador inveterado que só largou o cigarro por uma questão de saúde. Viver mais anos foi sempre o meu lema.
[3] Marinheiros que alimentavam a caldeira com carvão, muito provavelmente hulha, um dos carvões naturais com alto poder calorífico.
[4] Homens que chegavam o carvão aos fogueiros.
[5] Marinheiros que oleavam a máquina.
[6] Junho de 1941. A história do torpedeamento e afundamento do vapor “Ganda”, cujo relato publicamos nos posts seguintes, parece que aconteceu há muito tempo, mas quando apreciado em termos históricos, verifica-se que decorreram apenas 72 anos sobre o incidente, portanto a poder considerar-se plenamente contemporâneo. Trata-se de um episódio ocorrido durante a IIª Grande Guerra Mundial, e por conseguinte verdadeiramente aterrador, pela certeza da existência de muitas pessoas que o viveram de perto, perfeitamente capazes de recordá-lo e penosamente incapazes de o esquecer!

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