quinta-feira, 13 de julho de 2023

O mistério das cinco noites e cinco dias

 


Figueira da Foz. 1960, mais ano menos ano. O avô Manuel estava a passar na casa do meu pai alguns dias como era hábito no verão. Nesse tempo eu devia ter pouco mais de dez anos e adorava estar presente, a seguir ao jantar, para ouvir as histórias de vida do avô Manuel, quase todas ocorridas na solidão mar/céu, onde passou grande parte da sua vida exercendo a profissão de "chefe de máquinas". Nunca me falou de avistamentos de objetos voadores não identificados, nem de monstros vindos das profundezas do Atlântico, mas o início das suas histórias deixava sempre no ar um suspense de algo imprevisível que parecia estar a acontecer. Mas, bem no fundo, as suas narrativas eram simples e apenas polvilhadas por um rasto de um pequeno mistério que não deixava de ser aliciante para despertar a imaginação de um jovem de dez anos, sempre pronto a aumentar de intensidade o mistério de uma coisa qualquer por mais simples que parecesse ser.

Foi o caso dessa noite. Uma noite escura de céu encoberto, reforçada também pela fase de lua nova...
«Se não se importam, hoje fico-me pela varanda. Estou um pouco cansado e preciso de restaurar as forças.»
«Está bem, pai. Mas se quiser ir ter connosco, encontra-nos no "Picadeiro". Ou talvez no café Caravela.»
«Eu fico com o avô.»
«Mas não queres deliciar-te com um gelado?» perguntou o meu pai.Não sei porque carga de água fiquei a fazer companhia ao meu avô. Ou melhor, sei. Gostava muito de ouvir as suas histórias. O apelo do mar já me corria nas veias.

«Penso que ainda não te contei esta, José.»
«Qual, avô?»
Fiquei a vê-lo tirar do bolso do casaco de malha fina um maço de cigarros "Português Suave", sem filtro. Logo a seguir chegou-me às narinas o odor do tabaco queimado, odor esse que, infelizmente, me agradou [2].
«Olha, foi uma coisa que me deixou a pensar. O porquê daquele estranho caso se repetir sistematicamente sempre na mesma região.»
«Que situação? Conte, avô, conte...»

Por volta de 1920...
O Cais da Rocha era normalmente o ponto de partida da viagem que fazia no "Ganda I" ao largo da costa ocidental de África, sempre com rumo para sul. Quanto ao navio, o Ganda, foi um dos setenta e dois navios alemães que estavam parados em Lisboa e noutros portos que Portugal apresou, dando origem à declaração de guerra alemã a Portugal (1914-1918). A apreensão ocorreu em 1916 e também o Cassequel, onde também andou, foi apreendido.
Em baixo, na máquina, estavam os fogueiros [3], os chegadores [4] e os azeitadores [5]. O oficial de quarto vigiava e regulava todo o processo de funcionamento das máquinas a vapor. Quanto ao chefe de máquina ia verificar todo aquele processo rotineiro que se desenrolava e dava as sua ordens caso fosse necessário. O acesso à casa da máquina era perigoso e naturalmente fazia-se por escadas. Uma queda podia ser fatal. 
Manuel Soares deixou a Marinha Mercante em 1922, passando a desempenhar serviços em terra. 
Quanto ao "Ganda I" teve um fim dramático [6].

Foi nessa noite que me contou a passagem do navio "Ganda I" (houve três "Gandas") ao largo da Serra Leoa e da Libéria.
Ao primeiro sinal de borrasca refugiou-se no tombadilho e começou a assistir a uma forte trovoada, acompanhada de chuva intensa e relâmpagos incessantes, de meter respeito, que iluminavam intensamente o céu da noite.
«O mais curioso, José, é que a tempestade prolongou-se por cinco noites e cinco dias.»
«Tanto tempo, avô! É estranho.»
«Tens razão. E mais estranho ainda porque, sempre que passei ao largo noutras alturas, e não foram poucas, a tempestade aconteceu e durou sempre o mesmo.»
«Mais que estranho, avô. Um dia também vou passar por lá.»
«Ainda és muito novo. Olha que a vida no mar é solitária.»
«Quero seguir as pisadas da família, avô!»
«Hum!, veremos, meu rapaz.»

A fita do tempo foi-se desenrolando. Inevitavelmente. E o meu desejo cumpriu-se. Entrei para a Marinha Mercante. Curiosamente fiz a primeira viagem no "Vera Cruz" e o destino quis que passasse, tal como o meu avô, ao largo da Serra Leoa e da Libéria. 




Quanto à tempestade, esta aconteceu. Durou no máximo seis horas e lançou-me na dúvida se aquela história não teria passado de uma fantasia do meu avô. Queria acreditar que não, pois ele não era pessoas que deixasse sair mentiras da sua boca. Mas tornava-se complicado.
Esqueci. A fita do tempo continuou a desenrolar-se naturalmente. Até que chegou a hora da reforma. Mas ainda não tinha chegado ainda o tempo do "descanso do guerreiro". Continuei ligado ao mar, mas numa empresa de assistência naval.
Por um mero acaso fiz a mesma viagem da tempestade a bordo do "Montalvo", um rebocador da empresa "Rebonave" que tinha uma potência de 6000 KWatt. Na altura rebocava dois batelões que se destinavam a Lomé, capital do Togo, onde havia obras no cais. Ia voltar a rever as tais tempestades ao largo da Serra Leoa e da Libéria.



E o que aconteceu?
Aconteceram as cinco noites e os cinco dias!
Porquê só ao fim de um pouco mais de trinta anos?
Fiquei a cogitar. Talvez tivessem voltado os tempos do meu avô. As alterações climáticas eram evidentes. Tal como acontecimentos da História aquele acontecimento estranho estava a repetir-se, pensei. Ao mesmo tempo admiti que era uma explicação simplista e pu-la de parte.
Mas então...?
Coisa muito simples. Uma espécie de ovo de Colombo.
No tempo do meu avô, a velocidade do "Ganda I" andava pelos 2, 3 nós. Quanto à velocidade do "Vera Cruz" era, no máximo de 21 nós. A rebocar os dois batelões a velocidade do "Montalvo" andava perto da do navio do meu avô. Assim, estava esclarecido o mistério das cinco noites e cinco dias. A tempestade estava visível durante os momentos de passagem dos navios. Quanto mais rápida fosse a velocidade do navio, menos tempo parecia durar a tempestade.


[1] O chefe de máquinas é o profissional da carreira de máquinas de categoria mais elevada numa embarcação da Marinha Mercante. O chefe de máquinas exerce a chefia da secção de máquinas competindo-lhe a supervisão das tarefas da condução e manutenção dos sistemas de propulsão e de produção de energia da embarcação.
Consoante o tipo de embarcação e a potência dos seus sistemas propulsores, a função de "chefe de máquinas" pode ser exercida por um oficial de máquinas ou por um maquinista prático/condutor de máquinas (Wikipedia).

[2] No futuro viria a ser um fumador inveterado que só largou o cigarro por uma questão de saúde. Viver mais anos foi sempre o meu lema.

[3] Marinheiros que alimentavam a caldeira com carvão, muito provavelmente hulha, um dos carvões naturais com alto poder calorífico.

[4] Homens que chegavam o carvão aos fogueiros.

[5] Marinheiros que oleavam a máquina.

[6] Junho de 1941. A história do torpedeamento e afundamento do vapor “Ganda”, cujo relato publicamos nos posts seguintes, parece que aconteceu há muito tempo, mas quando apreciado em termos históricos, verifica-se que decorreram apenas 72 anos sobre o incidente, portanto a poder considerar-se plenamente contemporâneo. Trata-se de um episódio ocorrido durante a IIª Grande Guerra Mundial, e por conseguinte verdadeiramente aterrador, pela certeza da existência de muitas pessoas que o viveram de perto, perfeitamente capazes de recordá-lo e penosamente incapazes de o esquecer!

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