O grande sonho de Cabral e Albuquerque foi seguir a carreira de oficial da Marinha de Guerra. Um sonho que não conseguiu concretizar. Ficou-se pela Marinha Mercante, onde chegou a comandante, segundo a opinião dos colegas, por obra e graça do Espírito Santo. Os que o conheciam melhor achavam que de inteligente tinha pouco e sim muito de fanfarrão. Vejam só. Teve o desplante de afirmar, mais que uma vez, perante uma assembleia de colegas, que o expulsaram da marinha de Guerra por ser dotado de personalidade a mais. Ele, D. Cabral e Albuquerque, duplamente nobre pelo lado do pai e da mãe.
No tempo em que ainda era terceiro piloto da Marinha Mercante, tanto se gabou em público pelo seu sangue azul, D., por parte do pai e também D., por parte da mãe, que um dos seus colegas, num oportuno momento de imaginação fértil, o alcunhou de Bidon. A alcunha pegou tanto ou tão pouco entre os colegas e restante pessoal da marinhagem que ficou Bidon enquanto vivo e também morto quando eram evocadas principalmente as partes gagas que tinham acontecido a bordo do paquete Infante D. Henrique, o seu último navio. E não foram poucas. Fanfarrão como era, e pouco dotado de inteligência, não conseguia evitar que as situações caricatas viessem ter com ele. E não foram poucas, diga-se.
Entre outros, tinha dois grandes prazeres na vida. Deliciar-se a degustar um frango assado avantajado e dedicar-se ao tiro aos pratos, neste último caso quando em terra e também a bordo.
O tempo correu. Foi sempre empurrado na progressão da carreira pelo dito Espírito Santo.
Corria já o tempo de comandante do Infante D. Henrique. As viagens no mar eram longas e monótonas. Era preciso ocupar o tempo quando não estava na ponte, ou a deliciar-se, no salão ou no camarote, com dois pequenos e suculentos frangos assados quando não havia grandes.
«Ó Leonel, traz-me um frango assado ou dois, se não houver frangos grandes. Vê lá se estão bem assados e recomenda que ponham bastante piri-piri. E quero um vinho branco alentejano. Fresquinho.»
O Leonel era o seu fiel criado para todo o serviço. Esperando uma ordem, ele e o seu casaquinho branco perfilavam-se a pouco mais de um metro, à espera de ordens.
«Sim, meu comandante. É para já.»
«Não demores, Leonel. Vai num pé e vem noutro. Quero-os bem quentinhos.»
Eram invariavelmente dois porque ele achava que não havia frangos grandes a bordo. E melhor do que ninguém a servi-lo, o fiel e zeloso criado nunca o deixava ficar mal.
«Já tens vontade de almoçar, Leonel?»
«Um pouco, meu comandante.»
«Vai lá. Mas não te demores. Mastiga bem porque podes ter uma indigestão. E hoje apetece-me dar uns tiros aos pratos e tens que montar a máquina.»
«Sim, meu comandante. Vou ser rápido.»
«Desaparece, rapaz.»
Homem de muito alimento, baixo, gordinho, com bigode a imitar o famoso e ridículo detetive Poirot, da Agatha Christie, celebérrima escritora de romances policiais, olhos mortiços, em virtude da sua posição hierárquica na Marinha Mercante, convidava, às vezes, alguns passageiros para a sua mesa e nessas alturas, com muito pesar escolhia outras ementas. Quando calhava ser à noite, havia baile ou cinema e aproveitava para se esgueirar e recolher ao camarote, onde se deliciava com uma aguardente S. Domingos velhíssima, uma fiel companheira que fazia inveja ao zeloso Leonel. Não fumava. E talvez por isso tinha sempre uma apetite insaciável, principalmente quando defrontava os saborosos frangos assados, bem regados com o tal branco alentejano fresquinho.
Acontecia com frequência o ambiente aquecer logo a seguir às refeições. Compreendia-se. Os vapores etílicos eram os grandes responsáveis, mas ele acreditava que o ar condicionado não estava a funcionar devidamente.
«Ó Leonel, vai chamar o chefe Silvinha Saltitão.»
«É por causa do ar condicionado, não é, meu comandante?»
«Eu é que sei. Vai chamá-lo, anda.»
Ele e o chefe de máquinas eram muito amigos e de longa data.
E lá vinha ele, com toda a calma do mundo.
«Ó chefe, anda cá!»
«O que é agora, pá?»
«Tens que pôr o ar condicionado mais forte. Está muito calor aqui. Isto está abafado.»
«Não está abafado.»
«Eu é que sei o que sinto. Trata lá disso.»
«Ó comandante eu não tenho culpa dessa manta de toucinho que tens à volta do corpo. O ar condicionado está no máximo.»
Eram amigos e tinham muita confiança um com o outro. Só assim se compreendia que o Cabral não entrasse em órbita.
«Está tudo em ordem, Leonel?»
«Sim, meu comandante.»
«E puseste a saí-los para a direita?»
«Como o senhor ordenou.»
«Bom, vê lá o que fizeste. Hoje há muita gente a assistir e não quero ficar mal visto.»
O bom do Leonel desceu para o sítio onde estava a máquina de atirar pratos e esperou pelo sinal do comandante.
«Agora!»
Então carregou num botão e os pratos começaram a sair para a direita, com um intervalo de meio minuto. E mais acima, o D. Cabral e Albuquerque, com a espingarda de cinco tiros apontada na direção da máquina, foi vendo os pratos saírem para a direita e não falhou um único tiro. Pratos estilhaçados e a assistência a apreciar o grande atirador, não se poupando a calorosas salvas de palmas. Bem merecidas porque ele era um atirador fantástico, a ponto de alguém lhe perguntar se já tinha ido aos jogos olímpicos.
«Por acaso não. O meu cargo é muito responsável e dedico-me a ele a tempo inteiro. De alma e coração, sabe?»
«Mas devia tentar.»
«Vou pensar nisso.»
Entretanto tinha chegado o Leonel.
«Então?»
«Aguardo ordens, meu comandante.»
«Olha, agora é para a esquerda.» Disse, em voz baixa. «Vai lá. E não te esqueças...»
«De quê, meu comandante?»
«Para a esquerda, burro!»
«Ok.»
«Que disseste, ó Leonel?
«Sim, meu comandante.»
«Ah! Tinha percebido mal.»
Uma vez saiu tudo mal. A máquina de atirar pratos começou a executar a sua função de forma aleatória. Um prato para a esquerda, outro para a direira, outro em frente, outro para a direita, outro para a direita. Foi um fiasco. Não conseguiu acertar num prato porque reflexos era coisa que não tinha. Cinco tiros e cinco melros a safarem-se. E em vez de aplausos, houve risos e mais risos. O grande atirador falhou em toda a linha.
«O que foste fazer, Leonel, grande cabrão?»
«Não tive culpa, meu comandante.»
«Não tiveste?»
«Juro que não. Alguém pôs os pratos a saírem ao calhas.»
Ai Bidon, Bidon!
«Não suspeitas de ninguém?»
«Há muitos brincalhões por aí...»
Pensou no seu amigo Silvinha Saltitão.
«Talvez que...»
Um cruzeiro às Seychelles, Maldivas, Maurícias, Madagáscar, Lourenço Marques, com partida da Cidade do Cabo, deve ter ficado na memória do comandante Cabral e Albuquerque pelas piores razões. Por motivos imprevistos foi cancelado o desembarque numa ilha cujo nome não é mencionado, cancelamento que só foi comunicado aos passageiros no segundo dia. Tal ocorrência deixou um certo mal estar nos passageiros que se foi avolumando com o passar do tempo.
Naquele cruzeiro o Bidon levou também consigo a esposa que se relacionou muito bem com os passageiros. Era uma senhora muito simpática, ingénua, comunicativa. Não o deixava mal visto.
Então o que aconteceu?
Coisa muito simples. Alguns passageiros reuniram-se secretamente e elaboraram um texto em que protestavam veementemente por causa do cancelamento. Se fosse só isso, tudo bem. Estavam no seu direito. O comandante lia e relia a folha de protesto e acabava-se logo a questão.
Mas não foi bem assim que aconteceu. Convenceram a senhora que se tratava de fazerem um elogio ao comandante pelo modo como as coisas estavam a correr e ela assinou prontamente de cruz o dito protesto. Portanto, o abaixo assinado tinha à cabeça a dona Celeste, mulher do Bidon.
Entretanto foi escolhida uma comissão para apresentar o documento ao comandante. Nessa comissão estava incluída a dona Celeste.
No momento da entrega, por acaso o comandante estava na ponte, juntamente com o pessoal de quarto. Tudo bem. Elogios eram elogios e ficavam na sua folha de serviço. Portanto, todo ele era sorrisos. Mas quando começou a ler o documento e viu o logro em que caiu, a expressão do rosto alterou-se e virou-se, irado, para a esposa:
«Também tu, puta?»
O que aconteceu na intimidade ficou no segredo dos deuses.
Uma coisa é certa. Depois desse momento, durante o resto do cruzeiro não mais o dedicado Leonel armou a máquina dos pratos que tanta admiração causava nos passageiros.
«Há muitos brincalhões por aí...»
Pensou no seu amigo Silvinha Saltitão.
«Talvez que...»
Um cruzeiro às Seychelles, Maldivas, Maurícias, Madagáscar, Lourenço Marques, com partida da Cidade do Cabo, deve ter ficado na memória do comandante Cabral e Albuquerque pelas piores razões. Por motivos imprevistos foi cancelado o desembarque numa ilha cujo nome não é mencionado, cancelamento que só foi comunicado aos passageiros no segundo dia. Tal ocorrência deixou um certo mal estar nos passageiros que se foi avolumando com o passar do tempo.
Naquele cruzeiro o Bidon levou também consigo a esposa que se relacionou muito bem com os passageiros. Era uma senhora muito simpática, ingénua, comunicativa. Não o deixava mal visto.
Então o que aconteceu?
Coisa muito simples. Alguns passageiros reuniram-se secretamente e elaboraram um texto em que protestavam veementemente por causa do cancelamento. Se fosse só isso, tudo bem. Estavam no seu direito. O comandante lia e relia a folha de protesto e acabava-se logo a questão.
Mas não foi bem assim que aconteceu. Convenceram a senhora que se tratava de fazerem um elogio ao comandante pelo modo como as coisas estavam a correr e ela assinou prontamente de cruz o dito protesto. Portanto, o abaixo assinado tinha à cabeça a dona Celeste, mulher do Bidon.
Entretanto foi escolhida uma comissão para apresentar o documento ao comandante. Nessa comissão estava incluída a dona Celeste.
No momento da entrega, por acaso o comandante estava na ponte, juntamente com o pessoal de quarto. Tudo bem. Elogios eram elogios e ficavam na sua folha de serviço. Portanto, todo ele era sorrisos. Mas quando começou a ler o documento e viu o logro em que caiu, a expressão do rosto alterou-se e virou-se, irado, para a esposa:
«Também tu, puta?»
O que aconteceu na intimidade ficou no segredo dos deuses.
Uma coisa é certa. Depois desse momento, durante o resto do cruzeiro não mais o dedicado Leonel armou a máquina dos pratos que tanta admiração causava nos passageiros.

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