Ainda no tempo do covid...
Há quase quatro anos que não via o Maurício. Achei-o mais magro, algo abatido. Talvez estivesse doente. Ou então havia qualquer problema de cariz psicológico que lhe carregava o semblante.
«Há quase três anos, amigo!»
«Não, António. Vai para quatro.»
Foi ele que me reconheceu no momento em que bebia uma imperial ao balcão de uma cervejaria da zona do Lumiar. Esta chatice de termos que andar de máscara por causa do Covid-19, embora fosse estritamente necessário e principalmente agora que o Ómicron, muito mais contagioso que as variantes anteriores, andava por aí à solta (ele e também as muitas pessoas assintomáticas) impossibilitava-nos de reconhecer à primeira vista as pessoas. E foi o que aconteceu. Por coincidência ele sentou-se ao meu lado e preparava-se para pedir algo ao empregado. Foi então que o reconheci.
«Estás na mesma, pá.»
A pandemia não tinha impedido que trocássemos um abraço caloroso.
«Que tens feito nestes quatro anos, Maurício?»
Lançou-me um olhar de amargura antes de responder. Percebi logo que ali havia coisa. Mal de amor ou então doença. Não sabia em que apostar e por esse motivo não lancei para o ar qualquer hipótese. Tinha confiança suficiente para lhe perguntar, mas preferi esperar. A paciência era boa conselheira.
«Olha, António, acho que fiz porcaria.»
Entretanto já tinha na sua frente uma imperial preta, como era usual. Enquanto o via a dar o primeiro gole pensava no que podia estar a acontecer ao meu amigo.
«Lembras-te de dizer-te que estava a tentar escapar da envolvência com uma mulher que só me atraía fisicamente?»
«Há quase três anos, amigo!»
«Não, António. Vai para quatro.»
Foi ele que me reconheceu no momento em que bebia uma imperial ao balcão de uma cervejaria da zona do Lumiar. Esta chatice de termos que andar de máscara por causa do Covid-19, embora fosse estritamente necessário e principalmente agora que o Ómicron, muito mais contagioso que as variantes anteriores, andava por aí à solta (ele e também as muitas pessoas assintomáticas) impossibilitava-nos de reconhecer à primeira vista as pessoas. E foi o que aconteceu. Por coincidência ele sentou-se ao meu lado e preparava-se para pedir algo ao empregado. Foi então que o reconheci.
«Estás na mesma, pá.»
A pandemia não tinha impedido que trocássemos um abraço caloroso.
«Que tens feito nestes quatro anos, Maurício?»
Lançou-me um olhar de amargura antes de responder. Percebi logo que ali havia coisa. Mal de amor ou então doença. Não sabia em que apostar e por esse motivo não lancei para o ar qualquer hipótese. Tinha confiança suficiente para lhe perguntar, mas preferi esperar. A paciência era boa conselheira.
«Olha, António, acho que fiz porcaria.»
Entretanto já tinha na sua frente uma imperial preta, como era usual. Enquanto o via a dar o primeiro gole pensava no que podia estar a acontecer ao meu amigo.
«Lembras-te de dizer-te que estava a tentar escapar da envolvência com uma mulher que só me atraía fisicamente?»
Não foi difícil chamar a recordação a primeiro plano.
«Sim, recordo-me. A atração era só física, confessaste na altura. Acho que andavas com uma mulher que consideravas um portento na cama. A outra..., como se chamava?»
«Sim, recordo-me. A atração era só física, confessaste na altura. Acho que andavas com uma mulher que consideravas um portento na cama. A outra..., como se chamava?»
«Isabel.»
«É verdade. essa mulher já nada te dizia. Foi a última conversa que tivemos. Depois, perdi-te o rasto.»
«Roubaram-me o telemóvel e fiquei sem todos os contactos. Mas falando da Celeste, não sei como foi que me enfeitiçou. Aliás, a relação com a Isabel nunca teve pernas para andar.»
«Roubaram-me o telemóvel e fiquei sem todos os contactos. Mas falando da Celeste, não sei como foi que me enfeitiçou. Aliás, a relação com a Isabel nunca teve pernas para andar.»
«Então conheceste a Celeste.»
«Sim. Com o passar dos dias a coisa complicou-se. Principalmente quando uma noite convidou-me para jantar em sua casa. Jurei a mim mesmo que ia resistir. E não consegui.»
«Misturou qualquer coisa na comida...»
«Não sei. A tentação da carne venceu. Ela era uma mulher muito sensual. Provocadora. Com ideias novas...»
«Ideias? Era revolucionária?»
«No aspeto sexual.»
«Ah!»
«E ainda continua a ser.»
«Então?»
«Olha, podemos jantar por aí se não tens qualquer compromisso. Conheço um pequeno restaurante que serve um polvo à lagareiro que é de comer e chorar por mais. Que achas, António?»
Percebi que o meu amigo queria desabafar. Mas nesse começo de noite tal comida indigesta não era lá muito aconselhável para a nossa idade. Mas noites não eram eram noites.
«Tudo bem, amigo. Vamos recordar os velhos tempos.»
«Não. Quero só desabafar.»
Fitei-o frontalmente. Ele queria mesmo desabafar. Mas eu só queria recordar "noites indigestas".
«Então?»
«Olha, podemos jantar por aí se não tens qualquer compromisso. Conheço um pequeno restaurante que serve um polvo à lagareiro que é de comer e chorar por mais. Que achas, António?»
Percebi que o meu amigo queria desabafar. Mas nesse começo de noite tal comida indigesta não era lá muito aconselhável para a nossa idade. Mas noites não eram eram noites.
«Tudo bem, amigo. Vamos recordar os velhos tempos.»
«Não. Quero só desabafar.»
Fitei-o frontalmente. Ele queria mesmo desabafar. Mas eu só queria recordar "noites indigestas".
A princípio a relação entre ambos correu nas nuvens depois daquele jantar em que ela quase o embriagou e essa tentativa foi meio caminho andado para o vale dos lençóis. Não que tivesse sono.
Com o passar dos dias as coisas complicaram-se. Ela atraía-o cada vez mais e dava-lhe uma atenção especial, como nunca outra mulher lhe dera. Isto para não falar no sexo que era uma coisa do outro mundo. Sempre com novidades.
«Compreendes, António? Ela era irresistível. Perfeita. Não só quando se entregava, como na relação normal do dia a dia. Uma companheira exemplar.»
Que queria dizer com companheira exemplar?
Talvez boa dona de casa. Culta. E assim.
Entendi. Filho único e mimado por pais que morreram cedo, foi um alvo fácil para uma mulher que de parva não devia ter nada. Inteligente ou esperta, tentou tornar-se imprescindível aos olhos do amigo. O que foi fácil, dada a carência afetiva que ele devia manifestar claramente. Só não entendia porque o meu amigo se sentia tão infeliz. Se ela o cativava com mil e uma atenções e era um portento de imaginação na cama, nada fazia prever que, de um momento para o outro, se desentendessem.»
«Foi ela quem acabou?» arrisquei.
«Mais ou menos.»
«Então?»
«Penso que tudo se resumiu a dinheiro. Devia estar mal informada quando começou a insinuar-se. Como sabes, vivo do meu trabalho e nunca fiz pé-de-meia. Chapa gasta, chapa gasta foi sempre o meu lema. Depois do que aconteceu aos meus pais, admiti que não podia dar muita atenção às poupanças. Estamos apenas de passagem neste mundo e não está na minha índole acreditar em outras vidas depois da morte.»
«Bem sei. Discutimos muito esse tema.»
Que queria dizer com companheira exemplar?
Talvez boa dona de casa. Culta. E assim.
Entendi. Filho único e mimado por pais que morreram cedo, foi um alvo fácil para uma mulher que de parva não devia ter nada. Inteligente ou esperta, tentou tornar-se imprescindível aos olhos do amigo. O que foi fácil, dada a carência afetiva que ele devia manifestar claramente. Só não entendia porque o meu amigo se sentia tão infeliz. Se ela o cativava com mil e uma atenções e era um portento de imaginação na cama, nada fazia prever que, de um momento para o outro, se desentendessem.»
«Foi ela quem acabou?» arrisquei.
«Mais ou menos.»
«Então?»
«Penso que tudo se resumiu a dinheiro. Devia estar mal informada quando começou a insinuar-se. Como sabes, vivo do meu trabalho e nunca fiz pé-de-meia. Chapa gasta, chapa gasta foi sempre o meu lema. Depois do que aconteceu aos meus pais, admiti que não podia dar muita atenção às poupanças. Estamos apenas de passagem neste mundo e não está na minha índole acreditar em outras vidas depois da morte.»
«Bem sei. Discutimos muito esse tema.»
Depois do polvo ingerido à noite e de três ou quatro canecas de cerveja, não havia volta a dar. Ou melhor, íamos dar muitas voltas naquela noite tépida de agosto até que o dito molusco fosse digerido.
«Lembras-te daquele tempo em que nos reuníamos, à noite, na cervejaria do Primo?»
«Se me lembro. Tínhamos que dar voltas e mais voltas pela vila até digerirmos a maldita salada de polvo. Bons tempos aqueles que já não voltam.»
«Como hoje vai acontecer...»
«Sim. Acho bem.»
«Sim. Acho bem.»
«Achas bem, não. Tem que ser!»
«Vamos então.»
«E um dia ela descobriu que eu era um teso. É o que eu penso.»
«Pensas ou tens a certeza?»
«Bom, desconfio.»
«Ainda demorou mais de três anos para concluir que não tinhas peva de cheta e só vivias do teu trabalho. Embora...»
«Sim?»
«Não haverá um mal entendido? Outra coisa?»
«A outra coisa é que a Celeste só descobriu tardiamente que eu não era o seu futuro e entrou em rota de colisão. Mas acredita que me afeiçoei a ela. E, julgo eu, ela a mim.»
«A Celeste tem emprego?»
«Sim. Trabalha numa imobiliária. Não é por aí... Até há meses em que ganha mais do que eu. Mesmo com a crise não deixou de vender andares e mesmo imóveis e de ter as suas comissões de cinco por cento. Quanto às despesas da casa eram divididas ao meio.»
Franzi o sobrolho. Não estava a entender. Precisava de encontrar uma brecha na muralha.
«E quem fazia a gestão da casa?»
«Ela. Dava-lhe o dinheiro que me pedia. Nunca exigi que apresentasse contas.»
Lembrei-me então de uma coisa.
«E então o casino, ó pá? Deixaste de jogar?»
«Não.»
«Ah!»
Finalmente. Estava ali o problema.
«Mas ela nunca soube.»
«Como assim?»
«Lembras-te que eu fazia serões na empresa…»
«Ah sim.»
Admiti que alguém, conhecido dos dois, o viu no casino e foi contar à companheira. Só podia ser isso. Até apostava que foi uma mulher.
«Já sei o que aconteceu.»
Adivinhou o meu pensamento.
«Estás enganado. O motivo não foi esse.»
«Então?»
«A causa foi outra. Uma amiga dela atirou-se a mim, mas nunca aconteceu nada. Essa sua amiga tinha um fraquinho por mim.»
«Atirou-se a ti.»
«Sim. E imagina que é uma mulher temente a Deus. Daquelas que andam com o livro de missa debaixo de braço, percebes?»
«Ainda demorou mais de três anos para concluir que não tinhas peva de cheta e só vivias do teu trabalho. Embora...»
«Sim?»
«Não haverá um mal entendido? Outra coisa?»
«A outra coisa é que a Celeste só descobriu tardiamente que eu não era o seu futuro e entrou em rota de colisão. Mas acredita que me afeiçoei a ela. E, julgo eu, ela a mim.»
«A Celeste tem emprego?»
«Sim. Trabalha numa imobiliária. Não é por aí... Até há meses em que ganha mais do que eu. Mesmo com a crise não deixou de vender andares e mesmo imóveis e de ter as suas comissões de cinco por cento. Quanto às despesas da casa eram divididas ao meio.»
Franzi o sobrolho. Não estava a entender. Precisava de encontrar uma brecha na muralha.
«E quem fazia a gestão da casa?»
«Ela. Dava-lhe o dinheiro que me pedia. Nunca exigi que apresentasse contas.»
Lembrei-me então de uma coisa.
«E então o casino, ó pá? Deixaste de jogar?»
«Não.»
«Ah!»
Finalmente. Estava ali o problema.
«Mas ela nunca soube.»
«Como assim?»
«Lembras-te que eu fazia serões na empresa…»
«Ah sim.»
Admiti que alguém, conhecido dos dois, o viu no casino e foi contar à companheira. Só podia ser isso. Até apostava que foi uma mulher.
«Já sei o que aconteceu.»
Adivinhou o meu pensamento.
«Estás enganado. O motivo não foi esse.»
«Então?»
«A causa foi outra. Uma amiga dela atirou-se a mim, mas nunca aconteceu nada. Essa sua amiga tinha um fraquinho por mim.»
«Atirou-se a ti.»
«Sim. E imagina que é uma mulher temente a Deus. Daquelas que andam com o livro de missa debaixo de braço, percebes?»
«E?»
«Ignorei sempre os seus olhares de carneiro mal morto.»
«Tu? Não podes ver uma burra de saias!»
«Mudei muito, amigo.»
«Não posso querer que já não és o inveterado D. Juan do costume. Elas caíam na sopa julgando que era mel. Muito me admira que não te tivesses aproveitado. Dantes não perdias pitada. Mas dizes que mudaste. Quero acreditar.»
«Não brinques. Eu amo a Celeste!»
«Mudei muito, amigo.»
«Não posso querer que já não és o inveterado D. Juan do costume. Elas caíam na sopa julgando que era mel. Muito me admira que não te tivesses aproveitado. Dantes não perdias pitada. Mas dizes que mudaste. Quero acreditar.»
«Não brinques. Eu amo a Celeste!»
«Mas não era só atração física?»
«Que é que tu queres? Tudo mudou...»
«E a atiradiça? Nem sequer deste uma escapadela? Não me faças acreditar nessa.»
«Porra, António!»
«Estou a brincar, pá.»
«Mas porque foi...?»
«Vou contar-te o que aconteceu. Isto não tem pés nem cabeça.»
Tudo se complicou num restaurante por causa de umas pedras roladas, transparentes, que estavam dentro de uma pirâmide em plástico e serviam para ornamentação. O Maurício já tinha visto outras iguais na despensa, dentro de um saco de plástico. E ao lado, uma pirâmide em plástico.
«E a atiradiça? Nem sequer deste uma escapadela? Não me faças acreditar nessa.»
«Porra, António!»
«Estou a brincar, pá.»
«Mas porque foi...?»
«Vou contar-te o que aconteceu. Isto não tem pés nem cabeça.»
Tudo se complicou num restaurante por causa de umas pedras roladas, transparentes, que estavam dentro de uma pirâmide em plástico e serviam para ornamentação. O Maurício já tinha visto outras iguais na despensa, dentro de um saco de plástico. E ao lado, uma pirâmide em plástico.
Chegados a casa, dirigiu-se logo à despensa. Abriu a pirâmide e deitou o conteúdo do saco no seu interior. Não satisfeito, levou para a sala a pirâmide com as pedras e perguntou à Celeste onde queria que a pusesse. Foi então que ela se enervou. Devia tê-la consultado. Coisa estúpida, mas foi mesmo assim que a cena ruim começou.
«Só queria ajudar, Celeste. Mas estás a exceder-te.»
«Não sabias para que fim tinha destinado as pedras que estavam no saco. Nem tens que saber.»
«Achas que não?»
«Sim.»
«Desculpa, vou voltar a metê-las no saco.»
«Deixa. Está feito, está feito. A coisa é irreversível.»
«Desculpa, vou voltar a metê-las no saco.»
«Deixa. Está feito, está feito. A coisa é irreversível.»
«A coisa?»
Não respondeu.
Mas o caso não ficou por ali. Foi então que ela subiu mais o tom de voz e descontrolou-se e o Maurício tirou uma conclusão que julgou ser acertada.
«Estás assim por outra coisa. A causa não diz respeito ao problema das pedras. Tenho razão. Voltaste a consultar aquela espírita aldrabona, não foi? Sabes muito bem que não posso com ela.»
Da última vez que a Celeste consultou a espírita, parece que algo veio do além e aconteceram três coisas estranhas. Os óculos de ver ao perto da Celeste apareceram no armário das mercearias, um CD caiu no chão e ficou na vertical e uma borracha que ela tinha atirado à gaiola dos periquitos para os fazer calar, pois havia no momento uma guerra entre os dois, macho e fêmea, apareceu mais tarde entre uma pasta e um dossier na estante onde também havia os CD.
Tentou encontrar uma solução lógica para aquilo que considerava serem três fenómenos, mas desistiu. Não havia explicação lógica para casos como aqueles.
«Até agora não encontro um motivo, Maurício.»
«Pois não. Espera...»
Mas o caso não ficou por ali. Foi então que ela subiu mais o tom de voz e descontrolou-se e o Maurício tirou uma conclusão que julgou ser acertada.
«Estás assim por outra coisa. A causa não diz respeito ao problema das pedras. Tenho razão. Voltaste a consultar aquela espírita aldrabona, não foi? Sabes muito bem que não posso com ela.»
Da última vez que a Celeste consultou a espírita, parece que algo veio do além e aconteceram três coisas estranhas. Os óculos de ver ao perto da Celeste apareceram no armário das mercearias, um CD caiu no chão e ficou na vertical e uma borracha que ela tinha atirado à gaiola dos periquitos para os fazer calar, pois havia no momento uma guerra entre os dois, macho e fêmea, apareceu mais tarde entre uma pasta e um dossier na estante onde também havia os CD.
Tentou encontrar uma solução lógica para aquilo que considerava serem três fenómenos, mas desistiu. Não havia explicação lógica para casos como aqueles.
«Até agora não encontro um motivo, Maurício.»
«Pois não. Espera...»
Mas quando tentava acalmar-se e começou a alinhar livros na estante descobriu uma estampa de São Benedito. Foi então que se lembrou.
«São Benedito? Deixa. Explica-me antes a ligação da estampa do tal santo com o caso.»
«E é aí que entra a Amparo.»
«Quem é essa?»
«A amiga que se atirou a mim.»
«Ah!»
«Pois.»
«António, ela podia já ter descoberto a estampa e agora chamava à coação a mesma.»
«Também pode ser. Mas dizia eu...»
«Falavas na estampa do… como se chama ele?»
«São Benedito. Dizem que faz milagres. Mas continuando, a Amparo, sempre que estávamos os três juntos olhava-me de uma certa maneira… compreendes?»
«Só isso?»
«Não. Vou contar o resto. Com a imagem da relíquia do santo havia uma fotografia nossa e uma nota antiga de vinte escuros com a efígie de Gago Coutinho.»
«E depois?, por acaso sabes quem juntou toda essa porra?»
«Escuta. Aí ela deve ter desconfiado da Amparo. Já sabes como é o sexto sentido das mulheres.»
Por coincidência ou não, ele e a Celeste tinham ido dias antes ao convento do Varatojo, em Torres Vedras, e visitaram a igreja onde estavam as relíquias do santo. Aí mesmo o Maurício tinha tirado uma foto à companheira.
«E se levássemos para a Amparo uma imagem do S. Benedito? Que dizes, querido? Acho que ela vai gostar.»
O amigo concordou logo com a sua Celeste. Religiosa como era a Amparo certamente ia gostar.
«Começo a compreender. Se considerarmos a fotografia da Celeste junta com a imagem do santo não vejo nada de mal. Mas agora a nota de vinte…»
«Ligou-a ao dinheiro. Era uma mensagem.»
«O dinheiro ligo ao casino. Acho que é por aí que devemos ir. Contudo...»
«Continua.»
«Uma nota antiga que nada vale? Por aí afinal não vamos. A caminhada leva-nos a um beco sem saída. Mas espera. Voar, Maurício. É o significado dessa nota. As notas voam no casino. Sabes muito bem. E fico na minha. Ela soube que vais ao casino.»
«Nunca notei que desconfiasse...»
Seria mais lógico pensar que a Amparo queria roubar o namorado à sua amiga.
«São Benedito? Deixa. Explica-me antes a ligação da estampa do tal santo com o caso.»
«E é aí que entra a Amparo.»
«Quem é essa?»
«A amiga que se atirou a mim.»
«Ah!»
«Pois.»
«António, ela podia já ter descoberto a estampa e agora chamava à coação a mesma.»
«Também pode ser. Mas dizia eu...»
«Falavas na estampa do… como se chama ele?»
«São Benedito. Dizem que faz milagres. Mas continuando, a Amparo, sempre que estávamos os três juntos olhava-me de uma certa maneira… compreendes?»
«Só isso?»
«Não. Vou contar o resto. Com a imagem da relíquia do santo havia uma fotografia nossa e uma nota antiga de vinte escuros com a efígie de Gago Coutinho.»
«E depois?, por acaso sabes quem juntou toda essa porra?»
«Escuta. Aí ela deve ter desconfiado da Amparo. Já sabes como é o sexto sentido das mulheres.»
Por coincidência ou não, ele e a Celeste tinham ido dias antes ao convento do Varatojo, em Torres Vedras, e visitaram a igreja onde estavam as relíquias do santo. Aí mesmo o Maurício tinha tirado uma foto à companheira.
«E se levássemos para a Amparo uma imagem do S. Benedito? Que dizes, querido? Acho que ela vai gostar.»
O amigo concordou logo com a sua Celeste. Religiosa como era a Amparo certamente ia gostar.
«Começo a compreender. Se considerarmos a fotografia da Celeste junta com a imagem do santo não vejo nada de mal. Mas agora a nota de vinte…»
«Ligou-a ao dinheiro. Era uma mensagem.»
«O dinheiro ligo ao casino. Acho que é por aí que devemos ir. Contudo...»
«Continua.»
«Uma nota antiga que nada vale? Por aí afinal não vamos. A caminhada leva-nos a um beco sem saída. Mas espera. Voar, Maurício. É o significado dessa nota. As notas voam no casino. Sabes muito bem. E fico na minha. Ela soube que vais ao casino.»
«Nunca notei que desconfiasse...»
Seria mais lógico pensar que a Amparo queria roubar o namorado à sua amiga.
«E a Celeste sempre deu a estampa do santo à tal Amparo?»
«Não sei.»
«Continuo sem perceber.»
«Continuo sem perceber.»
«Deixa-me acabar, porra!»
«Eu deixo.»
«Um dia ela convidou-nos para jantar e à despedida beijou-me perto dos lábios. E a Celeste comentou mais tarde, quando chegámos a casa, percebes?»
«Pode ter acontecido por caso. Um pequeno desvio...»
«Mas ela disse que não era cega, António!»
«Um dia ela convidou-nos para jantar e à despedida beijou-me perto dos lábios. E a Celeste comentou mais tarde, quando chegámos a casa, percebes?»
«Pode ter acontecido por caso. Um pequeno desvio...»
«Mas ela disse que não era cega, António!»
«Não sabes onde está agora?»
«Não. Sinto a sua falta. Nunca desconfiei que não gostasse de mim.»
«Como assim? Foi ela quem se aproximou. O dinheiro não está em causa. E pelo que me contaste, julgo que ela gosta de ti. Pode não ser amor, mas gosta de ti.»
«Talvez. Mas para quê aquela cena?»
«Intriga-me o caso da imagem do santo e das outras coisas. Terá havido bruxaria? A Amparo...»
«Não sei, amigo. Só sei que me sinto um infeliz da porra desde que ela saiu de casa.»
«Como assim? Foi ela quem se aproximou. O dinheiro não está em causa. E pelo que me contaste, julgo que ela gosta de ti. Pode não ser amor, mas gosta de ti.»
«Talvez. Mas para quê aquela cena?»
«Intriga-me o caso da imagem do santo e das outras coisas. Terá havido bruxaria? A Amparo...»
«Não sei, amigo. Só sei que me sinto um infeliz da porra desde que ela saiu de casa.»
São Benedito entre o amor e o dinheiro. Coisa estranha. Não jogava a bota com a perdigota.
Nessa noite sonhei com toda uma confusão que pairava na minha mente depois de tudo o que o meu amigo contou. Foi um sonho incrível. Surrealista. Por um lado, havia duas mulheres nuas abraçadas na cama ao meu amigo. Não lhes via o rosto. O Maurício, sim, esse sorria de gozo.
E foi então que ele apareceu. O santo. Não caminhava. Flutuava, quase roçando os corpos enleados. A seguir, desapareceu e vi o rosto de uma das mulheres. A outra já não estava presente.
Acordei sem me lembrar quem era ela.
Um santo estava a chamar-me? Para quê?
“O Convento de Santo António do Varatojo – Torres Vedras é um convento franciscano fundado em 1470 por voto e devoção do rei D. Afonso V. Sofreu alterações no reinado de D. João III e novas ampliações nos séculos XVII e XVIII e já no século XX, entre 1903 e 1906.”
“A Igreja do Convento, de uma só nave, está decorada com painéis de azulejos do século XVIII e vários nichos para confessionários, com motivos alusivos â confissão. Os altares laterais estão revestidos de talha barroca. A capela-mor é o espaço mais rico da Igreja, quer pela sua abóbada de berço com caixotões, como pelos azulejos do século XVIII com cenas da vida de Sto. António. Por cima, quatro tábuas do final do século XVI, representam a Anunciação, a Adoração dos Reis Magos, a Adoração dos Pastores e a Aparição de Cristo. Ao centro, uma tela representando Sto. António Perante a Virgem que lhe Entrega o Menino. Na sacristia, destacam-se duas tábuas do século XVII, (representando o Milagre da Mula e o Pentecostes), os silhares de azulejos do século XVIII, vários armários de parede e um grande arcaz setecentista.
O claustro, de tipo gótico, apresenta dois andares com arcada ogival. No andar térreo, o tecto é decorado com o emblema de D. Afonso V. Na ala norte, uma porta manuelina decorada com largos florões dá acesso à capela do Senhor Jesus, forrada de azulejos de ponta de diamante. Aqui está o panteão da família nobre dos Soares de Alarcão, que tiveram a alcaidaria de Torres Vedras nos séculos XVI e XVII. Ainda no claustro, o nicho de Sto. António com azulejos policromados.
A sala do capítulo é também de grande interesse pelos seus azulejos de albarradas, do século XVIII, e pelas várias telas entre as quais se destaca a de Frei António das Chagas.
No Convento, há ainda a realçar a Capela de Nossa Senhora do Sobreiro, em frente à entrada da Igreja, construída em 1777. O interior é decorado com talha dourada e mármores. No coro alto, podemos ver painéis de azulejos com molduras roxas e amarelas e com cenas da vida da Virgem até ao nascimento de Cristo.”
“Diz a lenda popular, que os frades do Convento do Varatojo cortam o cabelo e a barba à imagem (de cera) do Santo Benedito. Esta lenda é mito, e talvez surgiu por um visitante, por este, ter esperado algum tempo pela vinda do antigo porteiro do convento, e este, possivelmente terá dito que estaria muito ocupado e a cuidar da imagem deste Santo, e assim criando esta lenda popular.”
Era inevitável visitar o convento do Varatojo.
A primeira coisa que me chamou a atenção logo a seguir a ter entrado no convento foi um diálogo entre uma mulher e um irmão franciscano, o que me ajudou nas intenções. No momento, a dita mulher pedia para serem rezadas três missas por intenção de um tio já falecido. O motivo não disse, nem o franciscano perguntou. A seguir, dirigi-me ao irmão franciscano. Curiosamente o homem estava baralhado e não havia meio de dizer coisa com coisa. Talvez fosse um clarividente ou assim e a mulher o tivesse perturbado por qualquer motivo.
«Desculpe, irmão.»
«Está desculpado, amigo» pensei. «Tenho todo o tempo do mundo.»
Claro que limitei-me a sorrir.
«Queria também pedir para rezar seis missas por alma do meu padrinho.»
«E qual é o nome do seu padrinho?» perguntou.
À mulher não tinha perguntado. Lá encontrei um nome.
«Carlos. Carlos Silva.»
Tomou nota num caderno.
«E deseja mais alguma coisa?Temos um medicamento natural que cura muitas doenças. É à base do Aloe…»
«Pode ser um frasco. E mais uma coisa.»
«Sim?»
«Posso visitar a igreja?»
Acenou afirmativamente e disse que me acompanhava pessoalmente. Depois de receber o dinheiro das missas e o remédio fez-me um gesto para o seguir. A perturbação do bom do franciscano já tinha passado.
«Vem ver algo especial na igreja?»
Como adivinhou?
«Não bebe nem come e está sempre gordito…»
Limitou-se a acrescentar à minha provocação:
«Ah… o São Benedito.»
«O povo da aldeia tem devoção por ele, não tem?»
Teve um sorriso discreto. Apenas um sorriso.
«Chegou o momento de o deixar só.»
Já estava na igreja. Não foi difícil encontrar o recanto do santo. Estava deitado numa caixa prismática transparente com a cabeça orientada para quem o enfrentava. Havia dois bancos corridos, dispostos paralelamente.
Levado por um impulso sentei-me num deles e fiquei algum tempo a olhar para a imagem do santo. Talvez aquele momento fosse ridículo. Algo me obrigava a dirigir o olhar para ele. Era estranho. Embora não passasse de uma figura em cera parecia-me real.
«Cuidado, António. Isto é só aparência. Cai em ti.» Pensei.
Foi então que me pareceu que a sua cabeça se tinha movido na minha direção. Como uma mola, levantei-me. Não. Não tinha passado de uma alucinação. Fora tudo muito rápido.
Voltei a encontrar o irmão franciscano à saída da igreja. Não estava baralhado.
«É verdade o que o povo da aldeia diz dele?» perguntei.
Então, talvez como resposta, contou-me a história da imagem e o que o povo via nela. Era crença que cresciam a barba e as unhas ao São Benedito e que os frades faziam-lhe a barba todos os dias.
«Acha que sim?»
Ele, que estava no convento já há mais de vinte anos, nunca dera conta de coisa alguma. No entanto havia uma mulher do Varatojo, agora com cerca de sessenta anos, que contava um fenómeno ocorrido com ela, em jovem. Estava muito triste, em frente à imagem, sentada num banco baixo. Perdera a fé. A vida corria-lhe mal. Não sabia o que fazer. Sentia-se desesperada.
De repente, a imagem ergueu-se e abriu os olhos...
«E?»
«Tudo se resolveu a bem para ela. Mas isto é o que contam por aí.»
«E o que pensa o irmão?»
«Não posso dizer. Esta vida é muito complicada. Mas diga ao seu amigo que tenha fé. A sua angústia vai acabar. Ela regressa.»
Fiquei para morrer.
Como sabia o franciscano que não vinha por mim?
Almocei em Torres Vedras na cervejaria-restaurante “O Gordo”. O empregado que me atendeu recomendou-me frango assado com batatas fritas, acompanhado de uma salada de alface e tomate. E como sobremesa um pastel de feijão. Gostei. Ponto final. Ainda não. Já me esquecia. O café não era mau.
Quando cheguei a Lisboa telefonei de imediato ao meu amigo. Julgava que ia dar-lhe uma novidade, mas enganei-me. Quem me deu a novidade foi ele. A Celeste tinha voltado.
«E revelou o motivo da sua zanga?»
«Não. Nem sequer lhe perguntei porque se agarrou muito a mim.»
«A nota de vinte escudos?»
«Deixa, amigo. Não falámos disso.»Tomou nota num caderno.
«E deseja mais alguma coisa?Temos um medicamento natural que cura muitas doenças. É à base do Aloe…»
«Pode ser um frasco. E mais uma coisa.»
«Sim?»
«Posso visitar a igreja?»
Acenou afirmativamente e disse que me acompanhava pessoalmente. Depois de receber o dinheiro das missas e o remédio fez-me um gesto para o seguir. A perturbação do bom do franciscano já tinha passado.
«Vem ver algo especial na igreja?»
Como adivinhou?
«Não bebe nem come e está sempre gordito…»
Limitou-se a acrescentar à minha provocação:
«Ah… o São Benedito.»
«O povo da aldeia tem devoção por ele, não tem?»
Teve um sorriso discreto. Apenas um sorriso.
«Chegou o momento de o deixar só.»
Já estava na igreja. Não foi difícil encontrar o recanto do santo. Estava deitado numa caixa prismática transparente com a cabeça orientada para quem o enfrentava. Havia dois bancos corridos, dispostos paralelamente.
Levado por um impulso sentei-me num deles e fiquei algum tempo a olhar para a imagem do santo. Talvez aquele momento fosse ridículo. Algo me obrigava a dirigir o olhar para ele. Era estranho. Embora não passasse de uma figura em cera parecia-me real.
«Cuidado, António. Isto é só aparência. Cai em ti.» Pensei.
Foi então que me pareceu que a sua cabeça se tinha movido na minha direção. Como uma mola, levantei-me. Não. Não tinha passado de uma alucinação. Fora tudo muito rápido.
Voltei a encontrar o irmão franciscano à saída da igreja. Não estava baralhado.
«É verdade o que o povo da aldeia diz dele?» perguntei.
Então, talvez como resposta, contou-me a história da imagem e o que o povo via nela. Era crença que cresciam a barba e as unhas ao São Benedito e que os frades faziam-lhe a barba todos os dias.
«Acha que sim?»
Ele, que estava no convento já há mais de vinte anos, nunca dera conta de coisa alguma. No entanto havia uma mulher do Varatojo, agora com cerca de sessenta anos, que contava um fenómeno ocorrido com ela, em jovem. Estava muito triste, em frente à imagem, sentada num banco baixo. Perdera a fé. A vida corria-lhe mal. Não sabia o que fazer. Sentia-se desesperada.
De repente, a imagem ergueu-se e abriu os olhos...
«E?»
«Tudo se resolveu a bem para ela. Mas isto é o que contam por aí.»
«E o que pensa o irmão?»
«Não posso dizer. Esta vida é muito complicada. Mas diga ao seu amigo que tenha fé. A sua angústia vai acabar. Ela regressa.»
Fiquei para morrer.
Como sabia o franciscano que não vinha por mim?
Almocei em Torres Vedras na cervejaria-restaurante “O Gordo”. O empregado que me atendeu recomendou-me frango assado com batatas fritas, acompanhado de uma salada de alface e tomate. E como sobremesa um pastel de feijão. Gostei. Ponto final. Ainda não. Já me esquecia. O café não era mau.
Quando cheguei a Lisboa telefonei de imediato ao meu amigo. Julgava que ia dar-lhe uma novidade, mas enganei-me. Quem me deu a novidade foi ele. A Celeste tinha voltado.
«E revelou o motivo da sua zanga?»
«Não. Nem sequer lhe perguntei porque se agarrou muito a mim.»
«A nota de vinte escudos?»
«E a Amparo?»
«Zangaram-se.»
«Ainda bem. Motivo?»
«Achei melhor não lhe perguntar.»
«Concordo contigo.»
«Olha, queres vir jantar connosco esta noite?»
«Grato, São Benedito.»
«Que disseste, António?»
«É um sim.»
«Achei melhor não lhe perguntar.»
«Concordo contigo.»
«Olha, queres vir jantar connosco esta noite?»
«Grato, São Benedito.»
«Que disseste, António?»
«É um sim.»
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