quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Os longos dias cinzentos de Mário (1)


Tempo de recordação e de reflexão
Tudo tem o seu tempo. E eu também tenho o meu tempo, sinal de que ainda estou vivo. Doutra forma estaria agora vivendo um certo tempo sem tempo algures num mundo paralelo para aqueles que acreditam que qualquer ser vivo pode viver em múltiplos destinos nos controversos universos paralelos. Mas não é por aí que quero ir, embora fosse a solução para o meu problema principal.
Continuando a falar do tempo, do meu tempo que tive, haveria de mal dizer, até ao fim do meu fim, o motivo porque ele se tornou cinzento quando estava destinado para ser um tempo de longos dias azuis.
Quantos são hoje? Não interessa começar hoje, porque agora hoje e amanhã são dias onde me sento à lareira a remexer as cinzas de ontem e mais nada. Tudo vai ficando apagado. Irremediável esquecimento. Para a frente só há crepúsculo.
Podia ter sido muito azul o meu tempo, por exemplo a partir de ontem, quando estava no quintal a fazer exercícios físicos, sob a orientação do meu primo Justino que ia registando numa folha os números que quantificavam a desejada evolução física que tardava em aparecer. Eram as flexões, os exercícios destinados aos abdominais, os lançamentos do peso, a corrida, o salto em altura. Nada de cambalhotas por causa do empedrado do quintal e não só, porque nunca gostei de dar cambalhotas. E pasmem. No quinto ano do liceu fiz parte de uma classe especial de ginástica.
Até parecia que estava a levar a sério a tentativa de melhorar os índices físicos. Preparava-me meticulosamente para um objetivo ainda não definido. De certeza que ia ser muito diferente de hoje. E, de repente, esses objetivos estavam definidos. Azar o meu! Em agosto ia para a tropa e deixava o curso a meio. Foi o luto académico. Foi a perdição em Lisboa. Foi também a cabulice. Foi a perda da mulher única.
Acabaria alguma vez o curso?
Um interrogação que se punha. Havia vozes, vindas dos ditos velhos do Restelo, que falavam duma congelação provocada pelo marasmo da vida militar. Não queria acreditar, mas talvez fosse acontecer. 
Sem apelo nem agravo o Porto ia ser o meu novo destino…

Tempo de serviço militar
Foi boa sorte fazer a recruta no Porto e não em Mafra. Uma recruta leve. Ao meu alcance. Sem mácula, ou “cunhas”, penso. A esse respeito nunca conhecerei a verdade.
Passados três meses de recruta adivinhei que teria o resto duma tropa tranquila, isto caso não fosse mobilizado para a guerra. Sem surpresas de maior, enquanto muitas vidas desgraçadamente se perdiam na guerra do Ultramar e outras acabavam estropiadas, física ou psiquicamente, os meus momentos militares estavam a ser quase sempre calmos, com poucos sobressaltos.
Fiz parte de um “fantástico e grandioso” pelotão de futuros oficiais milicianos ineptos e oportunistas, alguns porque não conseguiam ultrapassar um simples muro de terceira categoria, ou saltar o galho, ou subir ao pórtico, e outros porque fingiam ter dificuldades, pura e simplesmente. O seu problema não era só fingimento. Havia muito medo e cobardia à mistura. De certa forma ganhei vantagem porque não fui mobilizado para a guerra e à frente explico porquê. Mas congelei. Congelei durante três anos e três meses. Isto não contando com o difícil tempo de adaptação ao novo ritmo de trabalho quando passei à disponibilidade. Foram mais de dois anos em que tive de sobreviver num emprego que mal dava para pagar o aluguer da casa e, ao mesmo tempo, reaprender a estudar. Mas isso é outra história e não cabe aqui.
Lembro-me do discurso de despedida atabalhoado que fiz no bar da sala de oficiais, na presença do implacável comandante que carregava muito nos “ss”. Lamentei mais a “traição” de dois camaradas oficiais que também iam passar à disponibilidade e que, no momento, me passaram a “batata quente” do famigerado discurso, do que descobrir mais tarde que o comandante se estava borrifando para meia dúzia de patacoadas que um simples miliciano lançou cá para fora em menos de meia dúzia de minutos. Provavelmente queria dizer outras coisas, mas quem tem cu tem medo.
Respirei de alívio por não ter sido mobilizado para o Ultramar, mas não tive um bom recomeço de vida. Sem o curso acabado, sem dinheiro, senti-me escorraçado para o deserto onde sabia que moravam os meus longos dias cinzentos que podiam ter tido um pouco de azul. 
Vamos então para a recruta. Esquerdo, direito, um, dois. Direita, volver. Ombro arma. Um passo em frente. Muitos à retaguarda.

1963. Fins de julho...
O inferno bem pode esperar. Ninguém me disse ao ouvido tais palavras, nem o célebre passarinho, mas não saí deste belo canteiro à beira-mar plantado para dar lugar a um outro futuro que me foi destinado por Deus, se é que esse Deus existe e é infinitamente Bom e Omnipotente, ou que então não existe, ou que então foi “destacado” para me guiar um tal suspeito deus menor e assim posso dizer que fui posto a novas provas, caminhos de alta pressão psicológica, tortuosos, alguns com meandros tais como os de um rio que não tem pressa em chegar à foz, cheios de afluentes que eu subia até julgar que já tinha chegado à nascente. 
Alongo a vista pelos horizontes do passado e sinto sempre um sabor amargo a missão não cumprida. Não fui feliz, nem fiz ninguém feliz. Não tive êxito profissional, nem fracassei. Assim, considero-me um vulgar homem de fato cinzento que, o tal que mesmo depois de o despir, continuou sempre com ele vestido. Também não fui escolhido para “matar”. Viveria num patamar tranquilo, destinado aos favorecidos pela sorte, com a contrapartida pesada de permanecerem desencantados com a vida, de nunca estarem satisfeitos com o que tinham e de lamentarem que perderam o comboio que não podia voltar atrás. Desse patamar estático vejo o fracasso dos meus sonhos sem poder intervir. Nunca terei o futuro que desejei. Não existe. É utópico. Passou ao lado ou então não o vi passar. 
Mas vamos lá para a minha breve carreira militar...



Recruta de ineptos...
Não pode haver condutor mais aselha que eu. Tenho desculpa porque estou a aprender a conduzir e parto com atraso para a classificação final. O ingénuo do Valdo, filho do major que gere as mobilizações fatais e comanda o destino rumo ao paraíso, confiou-me o carro e lá vamos na estrada que liga o Porto a Lisboa. O medroso (ou merdoso?) diz que não se sente seguro. Apesar de ele ter carta de condução, é melhor ser eu a conduzir. Santa ignorância, a minha! Tenho meia dúzia de lições de condução que o sargento se dignou dar, mal e porcamente. Contudo, não me atrapalho. Como estou na tropa, é lógico que seja mais arrojado, mais inconsciente. É o efeito do comprimido do toca a desenrascar. 
A viagem continua, aparentemente sem perspectivas de sobressaltos. Atrás, o filósofo Valeriano deve estar a pensar que já não é tão porreiro ir para Lisboa comigo ao volante. Ai não é, não. Que triste ideia tiveste, ó Valdo da porra!

Onde é a embraiagem, meu sargento?
Três alunos num Mercedes, não contando com o sargento. Todos muito atrofiados, como é natural. O soldado-cadete agarrado ao volante, receoso dos ralhetes da besta do sargento, e os outros dois muito encolhidos, atrás, à espera do momento da tortura. Eu era um deles.
Ah!, aquela cena da rampa até teve graça.
O sargento da instrução mandou o Pincariço levar a alavanca das mudanças a ponto morto e puxou o travão de mão para cima. Ato contínuo, saltou do carro e pôs-se a falar com outro camarada de igual patente. A conversa ia animada. Falavam de um negócio de galinhas ou de coelhos. Apurei o ouvido. Azar do diabo. Moléstia fatal. Muitos animais mortos. Negócio completamente falhado. Conversa e mais conversa. Tretas.
Mas o que estava a acontecer no interior do carro da tropa? Carro da tropa. Pois. Está-se mesmo a ver. Pouca coisa. Apesar de travado, o Mercedes começou a deslizar, lentamente, na rampa. Perigo iminente, pensámos os três. O "Valeriano-porreiríssimo-tudo-bem" fez cara de caso e eu encolhi-me no meu lugar, instintivamente. Parecia adivinhar o que estava para acontecer. Quanto ao Pincariço, esse agarrou-se ainda mais ao volante, sem saber o que fazer. Mas como era alentejano de gema, não perdeu a calma ou continuou a pensar com demasiada calma, mantendo em vigília o número mínimo indispensável de neurónios. Tanto fazia uma coisa como outra porque não adiantava. A sua calma era atávica. E o carro a deslizar, já dois metros à frente do sargento-instrutor, fora de controlo, a aumentar a velocidade.
O Pincariço começou a desesperar. Despertava, enfim, da letargia. Já não era sem tempo.
«Meu sargento, por favor... onde é a embraiagem?»
Ideia brilhante! Queria travar e ficou indeciso. Três pedais. O maldito homem nunca lhe disse que havia três pedais! Lembrou-se da embraiagem. Afinal qual era deles o pedal da embraiagem?
Finalmente o sargento deu conta da situação. Largou de imediato aquela coisa do negócio fracassado dos frangos ou dos coelhos e correu para o carro. Ainda de fora, puxou mais para cima o cabo do travão de mão e ficou com ele na mão. Um carro militar era sempre imprevisível quanto à resistência do seu material.
Pânico generalizado com a carro à deriva rampa abaixo.
«Trave, trave!, nosso cadete!»
O cadete Pincariço esforçou-se um pouco mais e encontrou finalmente a desejada embraiagem no momento em que o carro travou no muro, dez metros mais abaixo.
«Merda de vida a minha!» desabafou o sargento. «E agora?»
«Porreiríssimo!» deve ter filosofado o Valeriano com um sorriso entre dentes.
Naquele dia não havia mais instrução para o grupo. Quanto ao carro foi direto para o estaleiro com a frente toda metida para dentro.
Pouco depois estávamos no nosso quarto de seis camas, por sinal uma das quatro enfermarias adaptadas para quartos. O Valeriano fumava cachimbo e deslocava-se, algo inquieto, da janela para a porta e vice-versa, procurando entender o que se tinha passado ou como se tinha passado. Vá lá acreditar naquela treta da fadiga do material. Depois... mas afinal para que servia a embraiagem? Também tinha o mesmo problema do seu camarada Pincariço. Que se lixasse. Encolheu os ombros e deixou de pensar numa coisa que era só para os técnicos. Ora ele cursava Filosofia e podia ser amigo da sabedoria por outras vias. Ou melhor, para outras vias.
«Porreiro! Os outros continuam na instrução e nós aqui no bem bom...»
O Pincariço estava preocupado com o enigma da embraiagem. Não se sentia no bem bom. Tinha despido a camisa cinzenta e deitara-se na cama, de papo para o ar, exibindo a floresta "tufosa" de pêlos implantada no peito e parte dos ombros. Parecia adormecido, mas continuava às voltas com a porra da história da embraiagem. A culpa ia toda para o sargento que nunca lhe disse que havia três pedais à frente dos pés de quem guiava. E, que ele soubesse, só alguns sensitivos é que viam com os pés.
«Não gastes mais as solas das botas, Valeriano que ainda pagas umas novas ao Estado» disse eu, algo irritado. «Vê se te acalmas, homem!»
«Já viste o que podia ter acontecido?»
«Não te chega o carro enfeixar-se na parede? Querias também que batêssemos com os cornos na dita cuja?»
«Mas podia ter sido pior!»
Entretanto apareceu o Fonseca e viu o Pincariço de papo para o ar e com as mãos na nuca. Aproveitava ao máximo o prazer que lhe davam os raios solares que entravam por uma das várias janelas. Era mesmo alentejano!
Fez-me um sinal de silêncio e fiquei na expectativa. Então, pé ante pé, aproximou-se da cama do Pincariço e sorriu para mim. Ato imediato, agarrou num tufo de pêlos do seu peito.
«Par ou ímpar?» perguntou, piscando o olho para nós.
Ao mesmo tempo segurava com dois dedos um tufo do peludo Pincariço que, entretanto, ainda não dava um mínimo sinal de reação. No momento pensava nas delícias escaldantes da planície alentejana e na possibilidade de dar uma queca, ao luar, na moça dos recados da tia Gracinda. Nem que fosse debaixo de um chaparro. A gordinha não queria outra coisa! Andava sempre a roçar-se por ele na cozinha que nem uma cadela com o cio. E quando mais cedo, melhor. Pimba, pimba! Tinha-lhe dito que era romântica e queria passear com ele ao luar. Ele lhe dava o luar em noite de lua nova no fim-de-semana que se aproximava.
«Fecha os olhos, Clotilde e imagina que está uma noite de luar.»
«Ah, Pincariço querido! E está mesmo uma bela noite de luar.»
«Até vais ver estrelas e todo o cortejo astral. Cometas e assim.»
Curiosamente, aquele alentejano dum cabrão já era lesto para esses trabalhos. Vá lá entender. Mistérios da vida...
Só de pensar na moça e em todo o resto, fechou os olhos e começou a sonhar. Que boa montada em toda a sela. Aguenta, Clotilde que lá vai obra!
Mas o que era aquilo?
«Está... quie...to, Fon...se...ca...»
O outro, ao mesmo tempo que exibia o troféu entre os dedos, voltou a perguntar:
«Par ou ímpar?»
Estranhamente o Pincariço continuou a sonhar, impávido e sereno, com a tal moça rechonchuda que ia comer com todos os requintes no fim-de-semana.

Voltando…
A princípio, tudo bem. Primeiro contacto com o carro. Um apalpar das mudanças. Travão de mão. Pedais (eram três!). Motor de arranque. Estava tudo identificado.
E aí fomos nós. Um esticão. Primeira para segunda. Afinal, era fácil. Mas o carro estava aos solavancos, porquê?
«Dá-lhe gás» aconselhou o Valdo, enervado. «Carrega mais no acelerador, pá!»
Onde era o acelerador?
Pincariço! Pincariço!
«Não traves nas curvas! Acelera agora, porra...»
Maldita confusão. Parecia mesmo uma barata tonta. Conduzir era muito mais complicado do que parecia. Principalmente quando a experiência era pouca ou quase nenhuma.
«Ainda vais mais devagar que a tartaruga do Valdo!»
Provocação do Valeriano que desvalorizei parcialmente. Não devia ter reagido, mas enervei-me ainda mais ao sentir-me picado.
«Vá lá, Mário, o carro está a pedir a redução de segunda para terceira. O motor queixou-se de novo, não ouviste? E não te esqueças de acelerar em ponto morto.»
«Devias ter embalado mais o carro!» sentenciou o filósofo.
Irritei-me com a história. O facto é que ainda não tinha os ouvidos afinados para estas contingências automobilísticas.
«Queres vir para aqui?»
Arroz queimado. Estava a perder o controlo por causa daquele caniço pensante. Afinal travava ou reduzia?
Decidi mudar de terceira para quarta numa curva apertada, o que significava meter uma mudança no momento menos aconselhável. Pânico imediato, mas o carro aguentou-se.
«Quase fomos para as couves!» exclamou o Valeriano.
«Quais couves, qual carapuça. Agora é que estou a dominar a fera. Aceleremos.»
Curva e contracurva. Tudo muito bem. Outra curva e esta ainda mais apertada que a outra. Fui apanhado à traição. Não contava. Juro que não contava!
«Reduz, reduz!» 
«Com um caneco!»
Tentei a redução já demasiado tarde. Por sorte não travei. O carro ficou em ponto morto e começou a fugir para a esquerda. Deixei-o ir. Foi o melhor que a minha intuição aconselhou. E em boa hora. Felizmente que não vinha nenhum outro carro em sentido contrário. A culpa era do grande sacana daquele sargento-instrutor que só pensava na doença dos coelhos e fazia tudo menos ensinar-nos a conduzir. O exemplo estava patente no caso da rampa. Em teoria era tudo fácil. O resto vinha a seguir. Ó se vinha!
Levei o carro até à mão e encostei de imediato à berma. Não ganhara para o susto. Mais do mesmo, não. Desisti.
«Para mim já chegou a experiência. Volta para o volante antes que haja uma desgraça. Ainda não me sinto devidamente preparado.»
Nunca devia ter aceitado o convite do Valdo. Nitidamente ainda não tinha unhas para conduzir um carro, qualquer que ele fosse.
«Porreiro!» exclamou o Valeriano. «Agora é que já posso dormir descansado.»
Fiz-lhe um manguito e explodi:
«Vai mas é ver se estou lá fora!»
A partir daquele momento não ultrapassámos os cinquenta. Não houve mais sobressaltos. Chegámos tarde a Lisboa, mas sãos e salvos.
Se fosse contar tudo o que me aconteceu na tropa ainda hoje estava de volta com esta história. Vou só contar algumas.

O louvor
Aquela do louvor foi surrealista. A parada era um campo aberto onde todo o mundo militar podia fazer juízos de valor do que se passava e não passava aí.
Nessa manhã chovia torrencialmente e o cagão do alferes Bragança, instrutor do nosso pelotão, não desarmava e apertava connosco. Molhados até aos ossos, maldizíamos a triste sorte de estarmos reduzidos à ínfima espécie de cadetes. Havia ordem unida, quer chovesse ou fizesse sol. E bico calado, senão aquele militarão de carreira, mais vermelho que um pimento maduro, ainda nos dizia das boas. 
«Esquerdo, direito. Direita, ro...dar! Esquerdo, direito... um dois... Pelotão... alto!»
Inevitável. O Pincariço chocou com o camarada da frente.
Este virou-se para trás e vociferou:
«Alentejano dum cabrão!»
«Que se passa aí...?» perguntou o alferes.
Ninguém se acusou.
E não caía um raio em cima do alferes Bragança?
Fiquei mais que estragado ao adivinhar que o pior vinha a seguir. Resguardado da chuva, o comandante seguia, à distância, a marcha do pelotão. O alferes também o viu e esmerou-se ainda mais, subindo o tom da voz:
«Esquerdo, direito... um dois. Vamos a mostrar cagança, suas "amélias"! E não quero ninguém com o passo trocado. Já sabem como se destroça. Vejam bem...»
E exemplificou:
«Assim... um, dois.»
Foi o caos. Parte do pessoal quis experimentar e o alferes levou as mãos à cabeça.
«Mas que merda é esta? Vamos lá... Esquerdo, direito... esquerdo, direito... um, dois!»
Triste ideia a sua! E o comandante a assistir…
A marcha estava para dar e durar. O comandante não arredava pé e o alferes mostrava-se mais cheio de cagança do que nunca.
«Senhor Pincariço! Mais parece um vinte e nove, trinta improvisado! Que é que lhe deu hoje? Isto é para homens de barba rija. Ora marche lá como deve ser se não quer ter um trabalho especial daqui a pouco.»
Caramba! Além de ser peludo, tinha uma barba rija. Cerradíssima. E não dava uma para a caixa.
Mas em que consistia esse trabalho especial?
O Pincariço já conhecia a receita de cor. Era muito simples. O alferes metia-lhe uma vassoura nas unhas e dava uma ordem:
«Ombro… arma!»
E a seguir:
«Em frente… marche! Nosso furriel, acompanhe essa avantesma ao longo da parada até ele estar afinado na marcha que nem um relógio de pêndulo. Se for preciso fique esse nabo o resto da manhã, entende?»
O Pincariço suspirou profundo. Já conhecia sobejamente a merda daquela receita.
«Par ou ímpar?» sussurrou o Fonseca.
«Vaaaiii-teee f...»
Estivemos uma hora inteira a marchar debaixo de chuva. Finalmente veio a ordem desejada:
«Pelotão, des... troçar!»
Era o que queríamos ouvir. Cada um a ver se corria mais do que o outro. Só se ouvia praguejar de cabrão do alferes para cima.
Já recolhido nos claustros com os outros cadetes, reparei no Valinho ainda à chuva, aparentemente com vontade de se molhar mais um pouco. A sua indiferença à chuva tinha uma explicação lógica, mas o comandante não sabia de nada. Como resultado, o Valinho recebeu um louvor por espírito de sacrifício e abnegação. E outras tantas palavras bonitas que fizeram o Valinho inchar como um peru.
O prémio dado pelo comandante foi recebido pela malta com muito gozo. É que o Valinho simplesmente tinha dificuldade em correr porque em Vendas Novas passou-lhe por cima dum pé a roda de um canhão de obus catorze. Teve sorte no meio da desgraça. Baixou à enfermaria e deram-no logo como incapaz, passando aos serviços auxiliares.
Quanto ao alferes Bragança que leu o louvor em voz alta com o pelotão formado, não conseguiu conter um sorriso irónico. Claro que ele também sabia que o desgraçado do Valinho pertencia à família dos vinte e nove, trinta.


Sabia que o meu calcanhar de Aquiles, não tomando em conta a aprendizagem, cheia de obstáculos, da arte de bem conduzir, esteve sempre presente na cambalhota para a frente dada na companhia importuna da velhinha espingarda Mauser. Cambalhotas, só se fossem dadas à retaguarda, no tempo das peladinhas em que a inércia pregava partidas e o corpo respondia por instinto a defender-se. Nesse tempo era o ás da bola e das deslocações para o sítio certo, que conduziam quase sempre a uma travessia do deserto que prefiro esquecer. Desisti do sonho,
Não gostava lá muito do salto para o galho, mas nunca me neguei e nem sequer falhei o salto. Entre outros, o Valdo, o Pincariço e o Luís subiam as escadas toscas com as pernas tremelicando e, lá em cima, quase se borravam ao contemplar o galho em frente, ameaçador, a chamar por eles. Depois olhavam a medo para baixo e ficava o caldo definitivamente entornado. Pronto. Missão por cumprir, por mais que o alferes lhes chamasse amélias e outros nomes menos edificantes para o brio que não tinham. Avisei-os mais que uma vez que o problema no galho era olhar para baixo antes de saltar. Por mais que fossem avisados, não resistiam à tentação de olhar para o abismo. Diziam que não com a cabeça e nada a fazer senão descerem as escadas sob o gozo dos raros valentes que enfrentavam o galho, o pórtico e outras coisas quejandas, como muros. Quanto ao meu desempenho na carreira de tiro, com a velhinha Mauser de menos de oito milímetros e a pistola Walther de nove milímetros, era um autêntico desastre. Raramente metia uma bala no alvo, o que me danava. Não tinha qualquer lógica, até porque era perito em acertar no alvo no tempo em que jogava à pedra com o Armando Slimpas por um mero boneco da bola (leia-se cromo). Só descobri uns anos mais tarde a razão daquele desacerto quando, já em tempo de professor, comecei a ver na sala de aula os rostos desfocados dos alunos. Diagnóstico fácil do oftalmologista: 
«O senhor tem miopia.»
Falando da pista de obstáculos, nunca tive problemas com muros de primeira categoria ou paliçadas e outros obstáculos. O único problema residia em transportar na parte final um saco de areia com mais de vinte quilos. Faltavam-me as forças, não por ser a parte final mas pela grande dificuldade em transportar o dito saco.
Quanto ao primeiro trabalho de estrada que fiz, com extensão de três quilómetros, foi coisa para esquecer. Rebentei para meu desespero e o mesmo aconteceu a quase todos os outros. Concluí então que a preparação física, supervisionada pelo Justino, foi assaz imperfeita na parte que dizia respeito à corrida. Mas evoluí e fui resistindo bem ao aumento da quilometragem. Acabei em glória na chamada prova dos nove. Uma marcha final que tinha de tudo menos marcha. Digamos que foi a apoteose. E a dificuldade não estava só na extensão do percurso que perfazia dezassete quilómetros. Essa marcha, que não era marcha, teria que ser feita sempre a correr e com traje de gala: fato de macaco, espingarda Mauser e botifarras, um acréscimo insignificante de peso, diga-se ironicamente. Corriam também com a nossa nata os soldados milicianos do C.S.M. Um despique que prometia algumas surpresas.
A princípio estava apreensivo pois diziam cobras e lagartos desse trabalho de estrada. Optei por seguir no meio do pelotão. E logo para começar, o alferes Bragança ofereceu-nos um aperitivo ao decidir puxar a frio. O resultado não se fez esperar. Esfrangalhou o grupo. Bufei, algo desagradado. Com grande esforço consegui acompanhar o grupo principal. Sabia que na cauda, uma Morris levava uma vassoura bem à vista. Uma tentação sintomática. Teria muitos clientes, principalmente os do meu curso. Os fracos e os que fingiam de fracos.
Deixei de olhar para trás e dei mais atenção à corrida, pois era perigoso perder o contacto com os da frente. O alferes controlava entretanto as operações, deixando-se ficar para trás com o fim de incentivar aqueles mais desanimados, os coxos vinte e nove-trinta, como o tenaz Valinho que enganou involuntariamente o comandante e recebeu um louvor, os menos coxos que pensavam no descanso que lhes proporcionava a Morris-vassoura, os ronhas e também os acidentados que tinham tropeçado nos altos ou nos baixos do acidentado do terreno. Entretanto, à frente, aproveitava-se para refrear a corrida e conversar um pouco. Era sol de pouca dura. Logo o alferes chegava e acelerava o ritmo da corrida.
Os quilómetros pesavam-me já nas pernas mas acreditava que ainda conseguia aguentar.
A certa altura dei conta que só éramos seis. Cinco do C.S.M. e eu, a minha briosa e pouco esclarecida pessoa. Sábia tinha sido a decisão dos fracos e também dos manhosos.
«Último quilómetro. Vamos ver quem tem canetas. Aguentem o esticão.»
Amaldiçoei o alferes e todas as suas caganças. Talvez por isso fui buscar as últimas energias à raiva que sentia. Corria já sem sentir as pernas.
O homem queria chegar sozinho ou quê?
Suspirei de alívio. Já se via ao longe o pessoal da receção. Era o fim de uma corrida de loucos. Finalmente podia descansar. Dezassete quilómetros a correr de botas, Mauser e fato de macaco era obra.
«Bravo, Mário! O senhor esteve à altura. Por onde é que tem andado, que não o vi?»
Para o diabo as saudações do alferes que tinha sido atacado de cegueira. Eu estive sempre presente.
Entretanto o almoço foi bacalhau com batatas e couves. O bacalhau estava muito salgado. Acho que foi de propósito porque obrigou-nos a ingerir muita água. Nesse dia, nada de vinho branco maduro ou verde tinto, este para os nortenhos.
No dia seguinte foi o almoço-convívio de despedida que teve o inevitável discurso do alferes.
«Se eu adivinhasse… o cadete Mário teria outra classificação. Lamento. O que já está, já está.»
«Ou se pudesses...» Pensei.
Com tantos filhos de "tubarões" e das cunhas feitas pelos ditos cujos, em que alguns dos protegidos nem sequer saltavam um muro de terceira categoria, como podia ele ser justo?
 
Então terminei o curso com um rasgado elogio do alferes à minha pessoa. Fiquei em décimo terceiro, precisamente a meio. Alguns dos que ficaram à minha frente na classificação eram autênticas nulidades na componente física. Para mal dos meus pecados, outra componente contava muito para a classificação. A que estava ligada à condução. Sabia que não podia ter feito mais, dadas as condicionantes, para melhorar a minha classificação. Uma delas, as fortes cunhas, credenciais que ele não podia ignorar; a outra, porque a maior parte dos meus companheiros, gloriosos cadetes, abnegados até dizer chega, conduziam já os seus brutos carros na vida civil. Nem sequer conseguiram saltar um muro de terceira classe ou abraçar o galho e ficaram à minha frente.



Paciência. Estávamos a queimar os últimos dias e os dados já tinham sido lançados. Mas havia uma realidade no horizonte. Com o Valdo em último lugar ninguém seria mobilizado. Tive muita sorte nesta santa tropa.
Só mais uma coisa e esta inesquecível. Despedi-me em beleza do Porto com uma monumental bebedeira.
Tudo começou com o dia passado em casa de um casal amigo, onde almocei e jantei. Eram nove da noite quando cheguei ao quartel. Naquela noite ia fazer tudo à minha maneira. Para começar, fora nomeado cadete de dia e tinha faltado ao jantar dos soldados. Pouco me interessava. Estava como os outros que tinham optado pela Morris-vassoura.
Havia animação quando entrei no quarto. Uma viola, meia dúzia de indivíduos estranhos ao quarto e três garrafas de bebidas brancas, a saber, L34, Gin e uma aguardente velha sem marca. Toca de cantar e de beber que o resto viria por acréscimo.
Deitei-me perto da meia-noite ao ouvir no corredor a voz do oficial de dia:
«Onde está o sacana do cadete de dia?»
Logo de seguida entrou no quarto a dizer palavrões. Fez-se um silêncio de morte. Resolvi esconder a cabeça debaixo do lençol. Seria um gato escondido com o rabo de fora acaso alguém desse à dica.
«Alguém viu o cadete de dia?»
O Luís perguntou:
«Quem é o gajo?»
«Se eu soubesse quem ele era bem o f...»
Pi…
«Ah!, o meu alferes não sabe. Se aqui ninguém se acusa é porque o cadete de dia pertence a outro quarto.»
«Uma merda! Vocês estão todos feitos com ele. Já venho dos outros quartos. Este é o último.»
Assunto arrumado. Não para mim. Por volta das quatro da manhã acordei muito mal disposto. Levantei-me em sobressalto e tive um vómito. Fiquei parado a meio do quarto, muito tonto. Premonição. Ia vomitar. Só tive tempo de correr para a casa de banho e sentar-me numa das sanitas. Que náuseas!
Quem me mandou meter em altas cavalarias?
Vomitei por cima e por baixo. Foi um desastre. A cabeça estava em vias de estalar e a culpa foi do L34, admiti. Desculpa esfarrapada. A culpa foi de um conjunto de circunstâncias alcoólicas. E ali estive, no vale solitário onde dizem que a vaidade se apagava. Deitei fora tudo o que tinha e o que não tinha. Na metafísica das causas e dos efeitos, fiquei a deitar culpas a tudo e todos menos a mim, até que dei por encerradas as limpezas da tripa e do estômago. Fiquei mais uns minutos à espera de melhoras ou de nova recaída. Sinal positivo. A intempérie já tinha passado. Mais aliviado, voltei então para a cama e adormeci quase de imediato.
Acordei ao som de uma voz forte:
«Viram o cabrão do cadete de dia?»
Tinha sido promovido de sacana a cabrão. Felizmente que o alferes não passou das promoções e saiu quase logo a seguir do quarto.
Levantei-me a custo e lavei-me de uma forma muito económica para o Estado.  
Sentia-me aéreo, nas nuvens. E a imagem que vi no espelho em nada ajudou.
Que grande ressaca!
Alguém disse que estava a chover e resolvi ir para a parada para ver se acabava a ressaca. De facto caía uma chuva daquelas de molha tolos. Por esse motivo, não vi qualquer BMW em movimento. A rapaziada devia estar na messe a tomar o pequeno almoço. Só de pensar no café com leite e no pão com manteiga senti uma revolução no estômago. Maldita bebedeira! Não, nada de pequeno almoço.
Foi então que tive uma ideia cujo resultado ficou para abrilhantar a minha história. Não esqueceria a sessão musical da véspera..
«Talvez que uma voltinha de moto me areje a mioleira. E é para já!» pensei.
Peguei numa BMW à sorte e montei-me nela. Pareceu-me mais pesada que nunca.
Não me lembro como aquela geringonça funcionava, mas penso que havia um binário guiador esquerdo/pedal. Bom, isso não interessa. O importante foi ter desafiado a sorte.
Dei algumas voltas pela parada, sempre em primeira, segunda. Não mais do que isso nos primeiros minutos. Mas o mal foi ganhar confiança. 
Resolvi então fazer uma experiência. Começar o trajeto desde o início da parada até às proximidades da porta de armas. E assim foi que aconteceu. Meti todas as mudanças a que tinha direito e alcancei uma velocidade razoável. A meio da parada comecei a reduzir. Era lógico. Meio por meio. Chegava o momento ideal para desacelerar. Dito e feito. Tudo corria bem e ia reduzindo a velocidade à medida que a porta de armas ficava mais próxima. Já perto, reduzi para segunda. Não entrou a mudança. Nova tentativa. Dei conta que já não havia pedal e que a porta de armas estava cada vez mais perto. Pânico total. Numa fração de segundo vi-me a passar pela porta de armas sem ter tempo para fazer a continência ao sargento da guarda.
Foi um milagre ter conseguido curvar para a esquerda no último instante e entrar, incólume, no claustro. Consegui, finalmente, parar a moto e apeei-me com a sensação que tinha acabado de enfrentar os inimigos do infeliz D. Quixote. O susto foi tal, que decidi, convicto:
«Nunca mais!»
É verdade. Foi tal o susto que nunca mais andei de moto. A única coisa positiva desta experiência desmiolada foi que me passou de imediato o maldito peso na cabeça.
Aproximava-se o Natal. Era o fim da recruta e da estadia no Porto. Em breve iria ser promovido a aspirante e com a promoção viriam outras responsabilidades. Em janeiro esperava-me Coimbra, a cidade dos estudantes. Mas o destacamento não passou de um equívoco, para não dizer coisa pior.

Simone e o meu destino
Antes de seguir em frente quero pôr em cena um interlúdio que deu para o torto. Vou falar ao de leve da Simone, uma portalegrense que me seduziu e com quem me deixei envolver. Uma mulher bonita que me atraiu e nunca amei, mas que me desviou o destino.
Aconteceu em agosto, um ano antes da ida para o Porto fazer a recruta. A Simone era bonita, sedutora, talvez com a maior parte dos predicados para fazer feliz um homem. Digo talvez porque nunca a conheci intimamente. Mas eu era o homem errado para ela porque, conforme já disse, nunca a amei. Apenas deixei-me seduzir e pronto. Foi curta a nossa relação. Acabei com o namoro quando caí em mim.
Um ano depois, já em tempo de recruta, tive uma pequena recaída num fim-de-semana de agosto.
A Simone estava a passar as férias em casa dos meus pais e isso representou uma pequena contrariedade para mim. Mais uma vez não ia conseguir resistir à tentação da carne. No sábado ainda tudo esteve bem. Defendi-me o melhor que pude. Mas no domingo as coisas complicaram-se porque o tio Mourinho organizou um piquenique no campo, provavelmente uma sardinhada porque não me recordo muito bem.
Tudo correu dentro da normalidade até à hora do almoço. Defendi-me com unhas e dentes das suas investidas. Igualmente durante o almoço. Só que nesse dia não se fez o habitual jogo do chinquilho, jogo em que, em norma, só tinham lugar os homens. Machismo da época e que infelizmente perdura.
O céu estava encoberto e a temperatura abafada convidava à sesta.
Cuidado com a Simone!
Aí começou o grande problema. Não sei como foi. Só sei que foi. Deitados sob o mesmo cobertor, enrolámo-nos, beijei-a várias vezes na boca, apalpei-lhe os seios e retomámos, aparentemente, uma relação interrompida. O que me valeu foi regressar ao Porto ao fim da tarde.
Acompanhou-me à estação. Demos as mãos, o que parecia ser um novo compromisso. Estava a deixar-me embalar e surdo para o sinal de alarme que começou a tocar com estridência. Mesmo assim não ouvi o canto da sereia.
Antes do comboio entrar na estação, ofereceu-me uma pequena medalha de ouro que tinha gravada uma mensagem que dizia "Deus te guarde". Tive sorte. Deus guardou-me, mas não quis que fosse para o aconchego da Simone. Hoje seria um homem rico. Mas o que mais me honra é não ter faltado à verdade e não troquei a minha integridade a troco da "quimera do ouro" e de uma futura e humilhante dependência. Paciência, nunca fui rico nem serei.
Quando entrei para aquele comboio ronceiro esperava-me uma noite longa para meditar em consciência nas consequências de me envolver outra vez com a Simone. Não devia voltar a cometer o mesmo erro. Ela uma mulher atraente e seria certamente um boa dona de casa e mãe dedicada de futuros filhos. Mas eu não a amava e já tinha perdido, por sua causa e também, diga-se, da minha fraqueza, aquela que considerava ser a mulher única e se chamava Manuela. 
Em meados de outubro de 1959 surgiu mais uma variável que viria a perturbar a minha rotina de vida. Entrei para a Faculdade de Ciências, concretizando um sonho antigo e também do meu pai que se sacrificou para que eu tivesse um outro futuro, bem diferente do seu. 
Nos primeiros tempos perdi-me em Lisboa. A capital deslumbrou-me. Era o começo de uma vida diferente. A liberdade. A independência. O desejo de me perder na cidade e cortar todos os cordões umbilicais. Fantástico, mas perigoso, se me deixasse ir na onda para o mar alto, onde, provavelmente, ficaria indefeso. Isto se não tomasse as devidas precauções e assim pudesse estar atento aos exageros.
A ida para a Faculdade de Ciências em nada alterou a relação com a Manuela, a mulher que era para mim aquela que me acompanharia no futuro. Pelo menos enquanto existiu um compromisso mútuo de confiança. 
A maior parte do tempo daquele namoro à distância passou-se com trocas de cartas, de cá para lá e de lá para cá, quase todos os dias. Tudo estava bem. Tínhamos um sonho lindo. Fazíamos projetos. O tempo corria. Nunca nos cansámos de escrever, mas claro que roçámos muitas vezes a banalidade e por essa razão tentei dar a volta, inventando histórias que pedia para ela continuar. Nunca o fez. Confessava que não tinha jeito. E eu danava-me, mas era só no momento. Gostava muito dela. Dizia que era a mulher única e que nunca a ia perder. Seríamos os eternos enamorados.
Bem me enganei. A maldição, vinda não sei de onde, caiu forte sobre nós quando entrei na faculdade de Ciências de Lisboa e aluguei um quarto na rua de S. Bento. O serviço de refeições era requintado e cada hóspede tinha a sua mesa privativa. O pequeno-almoço era bom, à descrição. Pão com manteiga ou doce, pãezinhos de Deus, leite do dia servido em leiteira de inox, um bule com chá, uma pequena cafeteira para o café. Tudo disposto sobre uma toalha branca, muito limpa. As outras refeições também eram fartas e de qualidade razoável. Quanto aos hóspedes, aí torcia o nariz porque eram todos indianos e achei-os muito falsos, o que ocasionou um ou outro conflito de que saí sempre por cima.
Para amenizar o ambiente havia a Rosa Maria, uma jovem algarvia muito simpática que se tornou minha protegida quando me pediu um dia para despedir o explicador de Português. E foi fácil despedi-lo. Recebi-o à porta e disse-lhe, cara a cara, com firmeza, que a menina Rosa não queria mais explicações. Não tugiu, nem mugiu. Nem sequer pediu dinheiro das explicações. Desapareceu sem uma palavra, com o rabo entre as pernas. Estranhei a atitude dele. Havia ali coisa grossa. Lembrei-me que a Rosa Maria estava muito nervosa quando me pediu para o despedir.
Que motivo forte levou à despedida do explicador? Meteu-lhe as mãos nas coxas gordas ou então aconteceu outra coisa ainda pior. Foi o que pensei. Mas a Rosa Maria não me contou o que a levou a desistir das explicações com o fulano. Também não lhe perguntei. Nada tinha a ver com o seu dia a dia. Mas estava na Rosa Maria o pomo da discórdia com a minha namorada e fui um ingénuo. Caí na boca do leão, sem sequer haver um leão. Nunca houve nada entre nós senão amizade. Então? O mal foi contar à minha namorada tudo o que se passava na pensão e provavelmente falei muitas vezes da Rosa Maria. As cartas que trocávamos eram quase diárias e naturalmente o assunto faltava. Daí fazer uma espécie de diário de tudo o que se passava na pensão. Ela desconfiou do que leu. Por mais que insistisse que a Rosa Maria não passava de uma amiga e que se sentia deslocada de todo no ambiente em que se inseria, não acreditou na sinceridade das minhas palavras. Não era um santo, mas falei verdade quando disse que a Rosa Maria precisava de proteção porque estava rodeada de indianos imbecis que julgava não terem as melhores intenções. Foi assim que vi nascer o ciúme doentio na nossa relação e começou a definhar o amor que jurámos ser eterno. 
Entretanto enchi o saco por causa dos indianos que estavam a criar demasiadas intrigas entre mim e a Rosa Maria e decidi mudar-me no princípio do ano para um quarto na travessa de S. Sebastião. Era um terceiro andar com alguma vista sobre a parte norte da cidade. Havia uma varanda larga e alguns dos quartos davam precisamente para a dita varanda, um dos quais o que ocupava.
A pensão, com cerca de dez comensais e nunca para menos, todos homens, era gerida pela mal encarada "Aninhas-morte-lenta". Ficava ainda mais perto da Faculdade de Ciências.
Por causa Rosa Maria ficou-me a dever uma, a acrescentar às outras que não pagou. Mas não senti o mínimo ressentimento (era lá com ela) quando, um mês mais mais tarde, um "amigo" indiano, que me tinha emprestado cinquenta escudos para ir ao Bolero (1), contou-me ela estava numa ligação perigosa com um dos indianos, precisamente o indivíduo que me disse uma vez que sabia “ler as mãos” e viu-me a palma da mão direita, julgando encontrar numa estrela um sinal positivo, levando a crer que acabaria por tornar-me um homem célebre. No momento acreditei, mas o tempo viria a demonstrar o contrário, uma vez que uma estrela não é, normalmente, um sinal positivo, muito menos quando se localiza nas proximidades da linha da saúde. Na verdade não fui feliz naquela pensão. Por causa da Rosa Maria e dos consequentes ciúmes da Manuela, pois caí na patetice de contar-lhe a história das explicações e algo mais. A relação azedou-se ao ponto de acordarmos que devíamos interromper o namoro por tempo indeterminado. E aí entrou o aproveitamento da bela e insinuante Simone. E também teve influência o mau ambiente criado pelas sucessivas intrigas e teias fatais dos indianos. Resultado: saturou-se daquele ambiente que me provocava náuseas e resolvi que era tempo de respirar outros ares. 
Mudei-me para a pensão da Aninhas "morte-lenta" que se situava na travessa de S. Sebastião, uma senhora que tinha um gatarrão pardo, a atirar para o sinistro, com um miado roufenho e com uma resistência paranormal às quedas da varanda do terceiro andar para a calçada granítica por onde se subia em esforço até à rua da Escola Politécnica. O animal tinha por hábito adormecer, instalado no cimo das grades, logo a seguir a um lauto banquete proporcionado pela dona, bem mais pródiga para com ele do que para os comensais que não tinham outro remédio senão apertarem o cinto. E o resultado via-se. O gato devia pesar à volta de dez quilos. Nunca cheguei a saber se o gatarrão caía das grades porque adormecia ou era empurrado amistosamente por um dos comensais que gostavam mais dele. 
Fiquei encantado com o quarto, muito mais amplo que o outro da rua de S. Bento. Uma porta dava para a varanda que se estendia a todo o comprimento para os outros quartos da ala norte, com separadores.
«Senhor doutor...»
«Ainda não sou essa coisa. Chamo-me Mário Fonseca. Pode tratar-me por Mário, dona Ana.»
«Muito bem. Sabia que há uns bons anos dormiu neste mesmo quarto uma jovem estudante universitária da sua terra?»
«Pois estou agora a saber.»
Não. Fantasmas não!
«Morreu aqui?»
«Longe vá o agoiro. Era uma jovem muito simpática. Deixe verse me lembro do nome... Valéria. Não. Esta memória!»
Sorriu, embaraçada por não se lembrar do nome. O rosto corado mostrou o tom levado ao extremo.
«Hoje deve meter-se nos púcaros...» Pensei.
O seu rosto inchado lembrava a fábula do sapo e do boi.
«Quando chegar à minha idade compreenderá melhor.»
«Não se preocupe, minha senhora. Depois lembra-se. E oxalá eu chegue à sua idade.»
Observei com mais detalhe a Aninhas, dona do gato barítono. Achei-a velha. Devia andar pelos sessenta anos. Para mim era velha.
«Acho que estudava Germânicas. Ah!, já me lembro. Vera. É isso. Chamava-se Vera.»
«Curioso...»
«Diga, diga.»
«Foi a minha professora de Português no quarto ano do liceu. Tinha uns bonitos olhos azuis. Pena usar óculos.»
«Exatamente. A atirar para o gordinha.»
«Isso. Rechonchuda.»
Foi então que vi a outra cama.
«Mau mau...» Pensei.
«Esqueci-me de dizer-lhe que é um quarto de duas camas. De momento só está o senhor.»
Tinha que haver um inconveniente.
«Olhe, senhor Mário. O almoço é à uma. Convém que chegue a horas. Costumo dar um toque ligeiro na porta.»
«Há problema em entrar na sala de jantar um pouco mais tarde?»
«Sim.» Não explicou porquê. «Já ao jantar não há problema. É servido entre as sete e as oito. Quanto ao pequeno almoço, pode tomá-lo das oito às dez. Banhos, três vezes por semana.»
«Entendi tudo.»
«Então, com sua licença...»
Qual seria o problema?, perguntei para os seus botões. E fiquei a matutar no que raio podia ser.
«Bom, vamos arrumar a roupa. Não tarda que a velha bata à porta.»
Descobri a coisa logo no primeiro dia. Mas problema maior era o de dez matulões ao mesmo tempo na casa de banho. Obra complicada. Decidi que tomava banho à noite, ao deitar.
Ao fim de meia dúzia de dias desisti de fazer a barba com a navalha, tal o perigo que esta passou a representar para o meu rosto. As lâminas de cabo azul da Gillette eram mais eficazes a manobrar em espaço disponível tão pequeno em que até o bidé estava normalmente ocupado por um indivíduo barbudo que era de Mouriscas, perto de Coimbra, e que fazia questão de lavar as partes íntimas na intimidade dos utentes da pensão. Gostos estranhos.
De facto a cena do almoço com os outros nove companheiros de mesa foi esclarecedora. Mal a travessa com o guisado aterrou no centro da mesa, assisti, espantado, a um daqueles momentos surrealistas protagonizado pelos galifões que atacaram o guisado com unhas e dentes. Inimaginável. Num minuto a travessa ficou vazia de carne, batatas e molho e eu fiquei de prato vazio, muito sério e desanimado. Agora compreendia o aviso da Aninhas. Mas ela não tinha dito o porquê da pontualidade à mesa ser importante.
«Tens que ser mais rápido, amigo.» Disse, a sorrir, o companheiro à direita. «Quando a marabunta ataca, há que imitá-la.»
«Ah sim.»
«Para a outra vez já sabes. Nada de cerimónias. Atira-te para a frente.»
Felizmente que a Aninhas levou a travessa para dentro e trouxe-a, desta vez meia, com muito mais molho que o resto.
«Não há mais.» Sentenciou, muito séria.
«Ah! Então é isso.» Falei para mim.
Fiquei chocado, mas aprendi rápido como reagir naquela mesa sem rei nem roque. Mesmo assim preferi as ações de guerrilha entre gente de sangue na guelra, aos salamaleques da dona da outra pensão em que tinha uma mesa só para mim e era servido com todos os requintes. Terrina para a sopa e tudo mais. Até os guardanapos em pano, muito alvos, faziam a diferença. Mas só de lembrar-me dos malditos indianos senti náuseas. Antes o caos e a comida enfarta brutos da Aninhas vermelhusca.
Numa coisa fui favorecido. O vinho tinto, servido num "palhinhas" de dois litros, não oferecia problemas. Poucos eram os que bebiam. Não faltavam na pensão da Aninhas os chamados "copinhos de leite". Mas parecia que o vinho escorregava bem pelas goelas abaixo. Quase certo estar batizado. Certo. Não, certíssimo. Mas do mal, o menos.
Entretanto o meu pai perguntou-me se estava a gostar da nova pensão. Respondi logo que sim, que não se comparava com a outra em termos de requinte, mas sentia-me bem.
«O ambiente é bom. São só homens, pai.»
«E come-se bem?»
«É... é razoável.»
«Que queres dizer com razoável?»
Tinha metido a pata na poça.
«Não é mau. Temos é que ser rápidos.»
«Como assim?»
«Para apanharmos o melhor da travessa. Mas há sempre segunda dose.»
«Uhm!»
«Não se preocupe, pai. Até estou mais gordo. E já não tenho na frente os malditos dos indianos. Só de pensar nisso...»
«Bom, na quarta-feira o Maurício vai lá almoçar para ver se está tudo bem. Não te esqueças de avisar a senhora da pensão.»
«Está bem, pai.»
E o Maurício, empregado do meu pai, foi almoçar comigo e mais nove matulões. Pelo sim pelo não avisei-o logo para ser lesto no ataque à travessa.
«Porquê?»
«Ora, é que o pessoal é muito rápido a servir-se. Uma espécie de marabunta, Maurício.»
«Ah!, entendido.» Disse, cofiando o bigode fino que lhe daria um ar de galã se não fosse um pouco a atirar para o marreco.
Parece que a impressão com que ficou não foi das melhores. Para ampliar a má impressão, o pessoal portou-se mal naquele dia.
Já na rua, com o cigarro ao canto da boca, curvou um pouco a coluna para ficar mais próximo de mim e confessou que não ficara nada agradado com o que viu e principalmente com o que não comeu.
«Mas não faz mal. Até não aprecio muito iscas.»
«Bem o avisei. Não diga nada ao meu pai, Maurício. Eu gosto muito deste ambiente. É tudo boa rapaziada e não se come tão mal como isso. Hoje foi um dia mais turbulento. Eram iscas e o pessoal gosta muito, compreende? A velha até é boa cozinheira.»
«A velha?»
«A Aninhas.»
«Ah sim. Mas aquilo era para quem tinha boa dentadura! Fique descansado, menino Mário. Faz de conta que vou falar verdade. O que interessa é que se sinta bem aqui. A minha boca será um túmulo.»
O Maurício era um notívago inveterado. Uma espécie de inspetor-morcego. Sempre com o cigarro ao canto da boca, encostava-se a uma esquina e aí ficava parte da santa noite a tentar descobrir os podres da vila. Não era informador da Pide, mas sabia, como ninguém, da vida de muito boa gente, principalmente daqueles e daquelas que de bom tinham pouco.
«Não há nada que aquele sacana do marreco não saiba...» Comentavam.
A outra cama do seu quarto acabou por ser ocupada por um colega de Biológicas, acabado de cumprir o serviço militar em Mafra. Em poucos dias tornámo-nos bons amigos, embora não imaginasse que o perigo rondou sempre à minha volta. Coisa simples para a época. O meu colega de quarto, o Alberto, era informador da Pide! Só soube quando me mudei para um quarto na rua Cecílio de Sousa, pagando menos e gozando do privilégio de todas as mordomias porque era um dos dois hóspedes.
Fui-me adaptando às condições inóspitas na casa de jantar e em pouco tempo era mais um dos bravos guerrilheiros à mesa da Aninhas. Quanto ao gato, não se via na casa de jantar. Havia umas almas caridosas que encarregavam-se de corrê-lo ao pontapé, isto à socapa da hospedeira do rosto avermelhado, talvez pelo tinto que certamente não era batizado como aquele que, santinho, chegava à mesa.
Depois havia ações subversivas quando ao almoço era servido bife do tipo sola que viria a conhecer mais tarde no "Come e Bebe", sito na rua do Coliseu. Quanto ao jantar desse dia era, invariavelmente, croquetes com arroz de tomate, além da sopa. A dita cuja ação subversiva consistia em mentalizar os mais sensíveis que os croquetes não eram outra coisa senão eram restos e mastigados do intragável bife do almoço. Lá que dava resultado, isso dava. Havia sempre menos gente a jantar. Eu também ajudava à festa e era dos que não desistia do jantar que tinha croquetes à descrição. Era uma festa!
Mas nem tudo acontecia num mar de rosas dentro daquelas ondulações calmas que se processavam na pensão da Aninhas. Um dos hóspedes, mais velho do que eu, andava a dar-me água pela barba com certas intervenções de gozo que não estava a encaixar bem. Não entendia porque o outro embirrava comigo. Mas tudo bem. Fui suportando. Até que um dia veio a guerra de todas as guerras. Não estranhei. Era só uma questão de dar tempo ao tempo.
«Porque não reajo a este gajo?» perguntei aos seus botões. «O tipo anda a merecê-las.»
Uma da tarde. Pontualidade no toque habitual dado pela Aninhas na porta do quarto. Encaminhamento rápido para a sala, não evitando que o gato barítono entrasse no quarto.
«Olha, o maldito gato entrou para o teu quarto.» Informou o amigo do quarto contíguo.
«Deixa. Não há tempo para correr com ele.»
«Tens razão. Vamos, antes que seja tarde.»
Lugar disponível no sítio do costume.
Pergunta do companheiro do lado:
«Sabes o que temos hoje para o almoço?»
Como estava mais próximo da cozinha achei por bem levantar-me e espreitar. A Aninhas estava à volta de um tacho grande, coberto pela tampa. O odor dos vapores vindos da cozinha permitiu uma conclusão sem motivo para dúvidas. O almoço era caldeirada de bacalhau. Uma ementa frequente, provavelmente porque não saía cara à hospedeira. Fiz um gesto para me sentar e só então reparei que já não tinha cadeira. Claro que o autor da proeza era o meu inimigo público número um. Desta vez é que ia acontecer. Não hesitei e atirei-me a ele.
«Larga a cadeira, sacana!»
Enfrentámo-nos como dois galos e começou a briga. Só não houve mais pancada porque alguns companheiros nos agarraram. Mas o certo é que a cadeira voltou ao seu lugar e o outro nunca mais me chateou. Remédio santo.
Foi quando estava na pensão da Aninhadas que tive conhecimento do baile de receção aos caloiros da Faculdade. Não havia praxes em Lisboa, razão porque decidira não ir estudar para Coimbra. Livrei-me das praxes mas perdi duas oportunidades que podiam ter influenciado o meu futuro. A primeira, já que tinha jeito para a bola, não ter hipótese de ir para a Académica. A segunda, não aprofundar os meus dotes de cantor do fado de Coimbra. Mas, em relação ao baile, lembro-me de estar, à tarde, na varanda e olhar em frente. Talvez para espiolhar uma jovem em trajes ligeiros na casa em frente que se "esquecera" de fechar a janela, mas principalmente para dar largas ao pensamento. Não tinha grande esperança que a Gina (2) fosse ao baile, o que seria um grande contratempo. Por outro lado, ansiava pela chegada da noite. Talvez encontrasse alguém a meu gosto para dançar. Mau dançarino como era tinha que encontrar o par certo. E foi quase premonição, pois nessa noite conheci a Odete (3) e dancei com ela toda a noite, apesar das tentativa do meu companheiro de quarto para a arrebatar dos meus braços.
Há histórias de vidas muito longas que ficaram por contar porque não tinham história. Nada deixaram de bom ou de mau e foram engolidas por um boqueirão onde imperava o silêncio. Outras, muito mais curtas e simples, mesmo que só com um rasto de história, foram sempre motivo para serem lembradas, pelo menos em parte. Quanto às histórias vividas acontece que contei as que quis e como quis, verdadeiras ou não.
Terei vivido alguns meses na pensão da "Aninhas-Morte-Lenta", também conhecida por "Aninhas-Passa-Fome", ou tudo não passou de imaginação minha?
Mas o caso amoroso com a Odete aconteceu. Disputei-a com o meu colega de quarto e ganhei. Dançámos toda a noite. Tivemos momentos bons, como aquele em que fomos a Sintra de comboio, ou as tardes passadas no café Tic-Tac (3), à avenida de Roma. Aí dava-lhe explicações de Físico-Químicas e de Matemática. E não só. Por baixo da mesa havia um jogo de pernas, um pequeno aquecimento para acontecimentos futuros. E falando de futuro, acontece que a Odete podia ter sido a mulher dos meus sonhos mas não foi. Havia sempre uma sombra a impedir que continuasse em frente. A Manuela (4). Mesmo depois de terminarem o namoro continuou presente nos meus sonhos, ou na irrealização dos mesmos. Sem que desse por isso, a busca constante de uma mulher feita à minha imagem estava a destroçar-me. Nunca encontraria alguém igual a ela. E a continuar assim, seria a sua rainha mesmo depois de morta. Até que um dia fosse ao seu encontro.
Apareceu a Odete. Apareceu a Natália. E outras. Mas o lugar da Manuela continuou vazio no meu coração. O pior de tudo ainda é que não acabámos a bem. Trocámos cartas e prendas. Foi ela a primeira a fazê-lo. Fiquei revoltado e fui para o quintal, onde ateei uma grande fogueira com as cartas que me devolveu. Foi um impulso de que me arrependi logo. Até trocámos as alianças em prata com a flor-de-lis.
Não era eu quem deitava carta após carta para a fogueira que estava a consumir o amor. Tínhamos jurado amor eterno e agora estava a queimar as próprias palavras do juramento escritas com muito amor.
Quem nos afastou tão de repente?
Estivemos quase dois anos de costas voltadas, sem saber um do outro. Da minha parte, dois longos anos com sabor a desencanto. Mas nunca dei parte fraca. Nem ela.

(1) Bolero
(2) Outra mulher de olhar triste
(3) Tic-Tac
(4) Manuela

O compromisso
Um dia, recebi uma carta sua. Sugeria que reatássemos em setembro, em Portalegre. Era uma oportunidade única para ver se nos entendíamos, e não podíamos perdê-la. Concordei logo com ela e comecei a sonhar...
Mas o destino tem muita força e contra ele não se pode lutar, embora alguns entendidos afirmem que somos nós que construímos o próprio destino. E aconteceu o improvável. Uma certa "Julieta sem Romeu" seduziu-me e esqueci estupidamente o compromisso assumido. Não sei como aconteceu. Que foi estranho, foi. Muito estranho. Esqueci-me de todo desse encontro que tínhamos combinado para setembro, em Portalegre.
Como aconteceu e porque foi que me esqueci do compromisso?
A Olinda, minha irmã, convidou a Simone para passar o mês de agosto na nossa casa e ela aceitou de imediato, claro. Foi um maná que lhe caiu do céu, pois ela continuava vidrada em mim. Assim, não deixou perder a oportunidade e fez tudo para me conquistar. Já tentara, sem sucesso, o envolvimento quatro anos atrás.
Era uma mulher atraente, insinuante e eu estava perturbado, sem rumo definido. As ligações que tivera todas elas tinham sido efémeras. A liberdade que apareceu de mão beijada quando fui estudar para Lisboa em nada de positivo contribuiu para eu crescer e tornar-me um homem maduro, responsável. Antes pelo contrário. Deixei-me seduzir pela sua beleza. Resisti durante mais tempo porque tinha a companhia do meu primo Justino e saíamos muitas vezes, para grande desespero do Necas, o irmão, que não tinha ainda idade para nos acompanhar.
O caso começou a complicar-se a meio do mês. Tentei não ouvir o canto da sereia, mas era muito difícil. Ela fazia-me um cerco sistemático e sabia atacar, como mulher atraente que era. Estava quase a ceder à tentação. Era só uma questão de dias.
Uma tarde, desesperado, cheguei a fazer a mala e a encaminhar-me para a estação de camionagem. Tinha que afastar-me para qualquer lado onde não sentisse a presença da sedutora da Simone. Arrependi-me no último momento ao lembrar-me que os meus pais iam ficar preocupados. Desisti daquela intenção drástica e voltei para trás. Foi o canto do cisne. Caí que nem um patinho nos braços da tentação. Penso que ela não fez por mal.
Julgo que foi nesse dia, em que deixei cair por terra a última resistência aos encantos da Simone, que me esqueci de vez do encontro que tinha combinado com a Manuela.
Já com o namoro oficializado, eu e a Simone fizemos de comboio a viagem para Portalegre e não posso esquecer-me da receção principesca que tive na casa mãe da Simone. Tínhamos na nossa frente uma mesa lauta, apresentada com todos os requintes.
Pela primeira vez tive um momento de lucidez. Olhei, desconfiado, para aquelas iguarias. Resisti tanto ou tão pouco a ponto de dar, no momento, um conselho ao Justino:
«Não comas nada! Faz como eu.»
«Porquê?»
«Não discutas.» Disse, entre dentes. «Depois conto-te.» 
Não me recordo se lhe contei ou não. É secundário.
Na verdade nada comi. Desculpei-me que estava enjoado. A razão era outra. Pensei que a mãe da bela Simone tinha posto qualquer coisa ruim na comida para fazer magia de amarração comigo. A mulher tinha ar de bruxa, ou era eu que a via como bruxa.
Seria ela a responsável pela amarração?
Ainda bem que não comi nada nessa noite senão ainda teria sido mais forte a ligação que só durou enquanto ela me teve perto da vista. O feitiço, começado em agosto, consolidou-se em setembro. Corriam tempos desfavoráveis, talvez geridos pelo deus menor. De certeza que sim. Ainda hoje não consigo explicar como foi que me esqueci do compromisso que tinha assumido com a Manuela. Na teia que me prendeu aos encantos da Simone deve estar a explicação. Talvez tenha sido feita magia. Não sei. Só sei que ela me desviou o destino.

O dia do desencontro
Meio da tarde. Já em Portalegre, cidade do Alto Alentejo cercada, eu e o Justino descíamos a rua do Comércio, também chamada rua Direita, mas muito torta, como é habitual acontecer nas terras que têm uma rua com esse nome. Conversávamos sobre assuntos banais. Ao mesmo tempo que falava, ia olhando em frente, aparentemente concentrado nas pessoas que subiam a rua. Um velho hábito que tinha. Ou um pressentimento vindo da parte mais profunda, cega, mas poderosa do cérebro. O subconsciente queria avisar-me mas eu não sabia. Contudo, parecia pressentir que pairava no ar qualquer coisa estranha. 
«Mais pareces uma ventoinha, Mário. Fazes-me confusão, pá.»
«Não sei de que estás a falar...»
Tinha consciência de me sentir nervoso. Só não sabia porquê.
«As pessoas do signo Escorpião é que são assim. Antes de entrarem numa sala onde está muita gente, olham para todo o lado, desconfiados. Só depois é que se aventuram a entrar.»
Um comentário do Justino que não entendi. Sentia-me nervoso, apenas.
«Eu não estou desconfiado» desculpei-me. «É a minha forma de ser.»
Também não fazia sentido a última parte da resposta.
Foi então que a vi. Lembrei-me de imediato do encontro que tínhamos combinado para tentarmos reatar uma relação adormecida. Face ao que tinha acontecido com a Simone, estava já num outro jogo depois das cartas terem sido baralhadas e distribuídas. Era um novo tempo e ia magoar a Manuela mais uma vez. Tempo passageiro, mas real.
Como me esqueci totalmente do encontro?
Em vez de me penitenciar deitei as culpas para quem tinha as costas largas e não podia responder-me à letra ou então não queria. E assim lamentei a minha triste sorte. Deus não existia, ou fazia de conta, ou então fora substituído no momento do esquecimento pelo deus menor. O verdadeiro Deus falava comigo e não me ia abandonar num momento tão decisivo como era aquele.
Ou estava enganado?
Desta vez a Manuela não tinha aquele olhar triste que tanto me impressionou. Sorria, feliz, e vinha ao meu encontro. Eu também me aproximei.
Pouco depois estávamos frente a frente, sorridentes e felizes de nos encontrarmos de novo. Mas foi só um momento. Foi só um momento feliz, seguido de outro horrível e eterno, como eterna será a minha sensação de culpa. Porque só então me lembrei do compromisso. Imperdoável ter-me esquecido. Um mês inteiro. Não conseguia encontrar explicação.
Se pudesse desaparecer por um buraco que não existia, ou se tivesse poderes para fazer desaparecer a Simone e o novo destino que veio atrás dela com o estranho envolvimento de um agosto certamente sem luar.
Passado aquele momento de sentimentos e emoções indescritíveis nada seria comparável no futuro.
Se não tivesse sido seduzido pela Simone, naquele momento em que ficámos frente a frente, eu e a Manuela estaríamos envolvidos no processo de reconstrução dum futuro a que agora era impossível chegar porque a realidade era outra.
Os erros pagam-se caros. Ela era a mulher certa e agora namorava a mulher errada. Não percebi que o nosso destino ia ser desviado talvez para sempre por uma mulher que me enfeitiçou. E ali estava ela. E ali estava eu. Erro fatal pensar que tinha um compromisso com a Simone quando o outro, mais antigo, falava de feromonas cujo efeito duraria até à eternidade, se é que a eternidade existe para lá da morte física.
Falhei redondamente na análise que fiz. Era tudo muito simples. Bastava substituir uma variável por outra e seguir os passos normais de resolução de uma equação possível e determinada. Tinha também que levar em conta a hipótese da amarração.
Não me lembro das frases que trocámos. Apenas sei que a Manuela quis, à viva força, visitar a minha família e não tive coragem para dizer-lhe que namorava com a Simone. Mais um erro incrível que tentei remediar propondo que a visita fosse no dia seguinte, mas ela insistiu em ir nessa noite. Então engendrei um esquema porque havia um problema bastante complexo de resolver. A Simone ia ter comigo a casa dos meus tios porque íamos ao cinema. Se ela chegasse mais tarde e a Manuela mais cedo, talvez que não se encontrassem. Talvez.
Marquei então as horas. Não deu resultado porque uma chegou mais cedo e a outra mais tarde. Mesmo assim fui um fraco, pois tentei ainda esconder-lhe a verdade.
Ela chegou e mal houve tempo para conversarmos. Tinha jogado com o tempo e falhei. A outra já estava a bater à porta, o que considerei muito estranho. Julgo que alguém a avisou que nós íamos ao cinema. Mas quem?
A Manuela compreendeu logo o que estava a passar-se comigo e, cumpridas as formalidades dos cumprimentos aos meus tios e à minha avó Maria, deu uma desculpa e saiu. E foi assim que desapareceu da minha vida. Quanto à Simone não passou de um joguete do destino para me afastar da Manuela. Gostava de mim, mas eu não gostava dela. Tivemos um verão escaldante e pouco mais. Em fins de outubro acabou tudo. Lógico. A nossa relação foi só fumo que passou. Mais nada senão fumo que me tapou o discernimento e serviu para me afastar definitivamente da Manuela. Nem o dinheiro da Simone constituiu um incentivo para imitar o amor.
Não contactei a Manuela porque o Leão é assim. Não gosta de perder nem a feijões. E, na incerteza, não arrisca. Assim, perdi-a de vez tem tentar a aproximação.
Depois veio o inverno do meu descontentamento. Um inverno com novas madrugadas a augurarem dias aparentemente azuis, mas com umas pinceladas fortes de cinzento escuro.
Anos mais tarde, a Manuela partiu para longe num barco que estava destinado a permanecer à beira-mar mas que mudou o seu rumo. Fez-se ao largo e eu não encontrei forças para a demover de seguir na viagem.
Mas a nossa história não acabava aqui. Vê-la-ia mais vezes e estaríamos de novo muito perto e ao mesmo tempo muito longe.
E mesmo depois da sua morte receberia muitos sinais estranhos supostamente seus…

A Simone não desistiu...
Aproximava-se o Natal. Estava a chegar o fim da recruta e da estadia no Porto. Em breve iria ser promovido a aspirante e com a promoção viriam outras responsabilidades.
Em janeiro esperava-me Coimbra, a cidade dos estudantes. Mas o destacamento não passou de um equívoco. Houve irregularidades no concurso e as colocações foram alteradas. Acabei por ficar colocado na Figueira da Foz. Quem estava colocado em Coimbra foi para a Figueira e os da Figueira malharam com os costados em Elvas, em pleno Alentejo profundo.
Na zona dos quartos vi um certo rancor nos olhares do Valdo e do Valeriano e julguei adivinhar logo onde estava a origem dos erros na colocação dos aspirantes a oficiais milicianos. Afinal daquela vez Deus apareceu e escreveu direito por linhas tortas. Mas teria sido melhor para mim e para a Manuela se Ele nos tivesse unido e afastado desde o início a bela Simone. Mas não quis. 
O meu quartel era um Centro de Adaptação de viaturas. Passei a conduzir o Jipe Willis, o Jipão, a GMC, a Morris Tractor, o camião Barreiros e o inesquecível Unimog a diesel. A este último veículo chamávamos o “Gafanhoto” pela luta que dava por ser muito instável, em virtude da desproporção altura-largura. Era também uma espécie de comandante de pelotão auto, juntamente com o Almada, o meu colega de quarto. Curiosamente também ocupara o quarto do quartel do Porto, juntamente com o Pincariço, o Valeriano e mais dois de cujos nomes não me recordo. Depois havia os monitores, soldados já feitos e os cabos, que davam instrução aos recrutas em fase de adaptação a outro tipo de viaturas, ligeiras e pesadas. Confesso que foi um trabalho que me deu grande gozo, não só na tarefa de fiscalizar os circuitos das escolas de condução, mas também na condução de viaturas pesadas, tais como o Barreiros e os Unimog. Falando ainda da estrutura, acima de mim e do meu colega de quarto, o Almada, estava o Morais, um alferes que era adjunto do comandante de Bateria, um capitão miliciano carismático e controverso que tratava geralmente os soldados por "ó meu paneleiro", embora fosse o primeiro a correr em defesa deles quando fosse caso disso.
Aventurei-me pela cidade logo no primeiro dia, a seguir ao "toque à ordem" e tive a sorte de encontrar um refúgio. Era um snack bar localizado na marginal, donde se avistava o extenso areal e o mar. Fiquei tão fascinado com o local que o tempo passou na esplanada sem dar por ele. O pôr do sol visto do interior do snack era um espetáculo magnífico. Indescritível pela beleza. Não esperava, verdade se diga.
Entretanto arrefeceu e refugiei-me no interior, jantando numa mesa junto à vidraça que ligava com o exterior a todo o comprimento. O horizonte estava vermelho e anunciava que o crepúsculo tinha chegado.
À esquerda do balcão, rodeado de bancos altos giratórios, havia uma máquina de discos. Não resisti à tentação de pôr uma moeda e escolher “I’m sorry”, a minha canção preferida. A Brenda Lee, com a sua voz doce, trazia-me recordações de tempos perdidos e tragados pelo deus menor.
Comi um bitoque com um ovo a cavalo e acompanhei com Grão Vasco tinto. A sobremesa foi arroz doce. Para rematar a refeição, bebi um café. Fiquei ainda mais algum tempo a saborear o silêncio da noite naquele snack quase às escuras. Voltaria lá muitas vezes.
Foi tão grande a fascinação por esse meio envolvente que nessa mesma noite comecei a imaginar uma novela que tinha como personagem principal um desencantado da vida que também se chamava Mário. Nasci nessa noite.
Aquele janeiro de sessenta e quatro foi excecionalmente ameno e azul a ponto de passar as tardes na esplanada, logo a seguir ao toque à ordem. Sentia-me bem naquele recanto acolhedor. Livre para deixar soltar a imaginação. E foi assim que “Os longos dias azuis” começaram a tomar forma. O meu amigo António Ildefonso empenhou-se mais do que nunca a escrever a novela que era uma metáfora que um caso real escondia.

As chávenas repousam, lado a lado, vazias.
Patrícia, voltada para a rua, contempla as nuvens negras que parecem formar uma linha de continuidade com o mar cinzento. Apenas o levantar de uma ou outra onda quebra a imagem formada. Uma gaivota desce, em voo picado, até à ondulação e, por momentos, contacta a superfície espumosa, procurando o peixe aventureiro que subiu demasiado. Depois, saciado o apetite, volta a ascender no ar carregado de ozono. Patrícia segue a evolução da ave e boceja. À volta estão as outras mesas, brilhantes como antracite; de frente, o balcão circular que tem bancos esguios por todo o percurso; do lado direito e mais ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. De resto o snack está mergulhado num torpor de uma tarde abafada de Maio, tão característica de F... como, também, indolente. Os dias quentes ainda não chegaram e domina um estado intermédio, que não tem pretensão de inclinar para um qualquer dos extremos.
O companheiro de Patrícia agita paulatinamente o copo meio de água, sem que esta ultrapasse a linha que delimita o bordo superior. É mais a atitude de ausência do que a monotonia de um puzzle. Ela deixou de seguir a gaivota e voltou-se para o companheiro. Do voo premeditado de uma ave e do movimento de rotação de partículas de água, dentro de um espaço que as confinou, ficou só a reminiscência de tempo inútil que se consome como areia fina que passa no crivo de malhas constantes.
Homem e mulher deixaram as ocupações para se olharem com algum interesse. Era um absurdo pensar que estavam ocasionalmente sentados na mesma mesa. Mas nas suas expressões havia algo de estranho. Os olhos dela, claros, contrastavam com o rosto moreno, por natureza. No Inverno e no Verão todo o seu corpo era moreno. O mesmo não se podia dizer dos seus olhos, que passavam por diversas tonalidades claras, sendo cinzentos, azuis, verdes. Ele igualava-se a si próprio: o mesmo rosto, a aparência pendular de homem pensativo, a pouca verbosidade de todos os dias. Patrícia fora comunicativa, entusiástica. Mas o tempo e a presença dele encarregaram-se de esfumar, lentamente, aquela vitalidade preciosa que a tornava sempre jovem. De repente, deu consigo triste, reservada. Os primeiros sintomas tinham surgido no começo do ano. A erva ruim germinara da semente do contágio e proliferara com rapidez. Nada havia a fazer. Sentia-se vazia. Ausente. Talvez por isso, olhavam-se como se fosse a primeira vez que se encontravam, tentando descobrir no ar as feromonas que já não existiam.
O tempo vai correndo devagar, sem alterações sensíveis no campo que depende dele. Também, devagar, as nuvens vão tomando a configuração de monstros idealizados por génios maquiavélicos. Ora são figuras horrendas de hidras de múltiplas cabeças, ora tentáculos viscosos que tudo parecem agarrar.
«As tardes são mais longas...»

Agora já era aspirante.
Estive menos de um mês colocado em Coimbra. Foi um equívoco nas colocações ou então um engano propositado. Tive que sair de Coimbra. Gostava da cidade e especialmente do meu pelotão 54, formado por um conjunto de homens rudes, diamantes ainda em bruto, que, aos poucos, iam sendo lapidados. Eles também gostavam do seu oficial de instrução e, de facto, eu não tinha nada a ver em atributos humanos com o alferes Bragança.
Deixei-os cedo, mas tenho a certeza que, se fôssemos para a guerra, eles seguir-me-iam até ao inferno.
Foi a única experiência que tive de instrução militar, mas os homens do pelotão 54 deixaram-me muitas saudades e ainda hoje me lembro deles.

Há muito que o Morais tentava convencer-me a sair da messe de oficiais e a tomar as refeições numa pensão. Em parte concordava com ele. Só se comia bem na época balnear, quando os militares, no ativo ou não, e as suas respetivas famílias, tomavam as refeições principais na messe. Eram os chamados para-quedistas, que caíam de repente na messe e atrasavam muito o serviço. Em contrapartida, havia dois pratos ao almoço e a qualidade melhorava a olhos vistos. Depois havia outro contratempo que não se podia evitar. Entrava o comandante e logo todo o mundo se levantava. A seguir vinha a mulher do comandante. Nova agitação na sala. Depois a filha, trintona, sempre de olho nos aspirantes novos. Toca a levantar outra vez. O bacalhau assado no forno esfriava e perdia a graça.
Que olhares mais inflamados, os dela!
«Não me levarás comigo!» admiti logo, convicto.
Claro que não ia ter uma ligação com a charmosa mas envelhecida filha do comandante para um jovem como eu. Os sorrisos eram provocantes até ao limite e precisava de defender-me bem. Não era isso que me preocupava. O que pretendia era deixar de frequentar a messe. Talvez me saísse um pouco mais caro e o dinheiro fazia-me falta para algumas coisas.
Para alcançar a fama a contar histórias, algumas delas verdadeiras?
Se um dia viesse a acontecer era com o António. Ninguém iria recordar o protagonista.
Novo acesso de tosse. Tudo bem.
Um amigo tinha-me pedido para ver o que se passava com um livro de poemas que mandara imprimir numa tipografia da cidade. Acedi. O dono era simpático e tive a ideia de lhe perguntar se queria imprimir um livro de contos. Estava a tentar satisfazer um pedido do António.
«Não vejo qualquer inconveniente, meu bom amigo. Até tenho muito prazer.»
«Muito obrigado pela sua atenção, senhor Cardoso. Só queria pedir-lhe mais um favor...»
«Já sei o que me vai pedir. Respondo que sim. Pode pagar-me a prestações. Sei das dificuldades que vocês, jovens, têm.»
«O senhor caiu do céu.»
«Não me faça cair que parto-me todo. Tenha pena da minha idade, senhor aspirante Mário!» ironizou.
Foi tudo muito simples, como já contei. O bom do homem disse que sim e assim nasceu o livro no mês de abril.
Foram dias que nunca mais esquecerei. A entrega do manuscrito do António. A composição tradicional. O entusiasmo com a revisão de provas. A impressão feita em folhas grandes que depois se dobravam, formando pequenos fascículos. A capa. O livro feito. Pronto a ir para o mercado.
O que mais me impressionou na primeira fase foram os conhecimentos da língua portuguesa do operário compositor.
«Olhe, senhor Mário. Tem escrita a palavra "núvens". Não leva acento.»
«Tem a certeza?»
«Absoluta.»
«Acredito. Agradeço que corrija e também todo o texto. E não precisa de consultar-me. A sua experiência vale ouro.»
Na maior parte dos dias desse época troquei o snack da Sacor pela tipografia do senhor Cardoso. Até que o "meu livro" nasceu…
E o que veio a seguir?

Tudo começou em mais um dia azul de agosto. Eu e o Morais tínhamos combinado almoçar na praia.
Comprámos um polvo na praça e preparámos o pitéu. O polvo foi cozido na casa onde ele estava hospedado.
«Devias alugar um quarto numa casa como esta. Não pago muito mais e tenho serventia de cozinha. Além disso, a velhota que me alugou o quarto deita-se muito cedo e calmamente posso trazer para cá uma garota de ocasião. Ela tem o sono muito pesado. Toma sempre um comprido para dormir.»
«E depois?»
«Depois, o quê?»
«Os vizinhos e a velha? Deve levantar-se cedo, como todas as velhas.»
«Não há vizinhos.»
Era verdade. A casa tinha um só piso. Depois, se a garota saísse de madrugada não havia qualquer problema…
«Claro que não tenho interesse que elas durmam cá. Saem sempre a meio da noite e não há mais problemas.»
«Elas? Não é a tua namorada?»
«Isso é outra história. A Francisca é um caso complicado e tenho que ter muita paciência para conseguir levar a água ao meu moinho. Olha, destapa a tampa do tacho que está a deitar água por fora. Mais um quarto de hora e o polvo está cozido.»
A namorada era um caso complicado?
Provavelmente jogava à defesa e ele queria marcar golos.
Um quarto de hora volvido o polvo estava cozido.
«Queres ver como se faz, Mário?»
O garfo entrava com facilidade nos tentáculos do polvo.
Mandava a tradição juntar ao polvo uma cebola. Parece que dava a cor avermelhada que o tornava agradável à vista. Ou talvez fosse sinal de alarme para o polvo não ser cozido de mais e ficar seco. Culinária não era a minha especialidade na altura.
Fiquei a pensar no Morais.
A namorada era a sério ou não passava de um simples passatempo de verão?
«Que horas são, Mário?»
«Meio dia e um quarto.»
«Boa hora para sairmos. Era bom não demorarmos muito tempo. O problema não reside no polvo, mas nas batatas. Ficam intragáveis se requentarem.»
«Tens razão. Só falta fazermos uma coisa antes de irmos para a praia. Comprarmos uma garrafa de tinto. Do carrascão. É um vinho mais barato e sei de um sítio onde é mesmo bom. Fica no caminho. Vamos nisso, Morais?
«Um almoço destes sem bom vinho não é nada.»
«Ainda bem que concordas.»
Alugámos uma barraca na praia para nos resguardarmos dos efeitos do sol. Quanto ao polvo estava saboroso e eu tinha razão em relação ao vinho. Não era nada mau. Um carrascão com bouquet.
«Onde descobriste esta especialidade, Mário?»
«Ora, um dia apeteceu-me comer uma sande de chouriço e beber um copo e entrei ao calhas na taberna onde há pouco comprámos o vinho. Gostei do vinho e é tudo.»
«Sandes de chouriço?»
«Sande porque está no singular.»
«Está-se sempre a aprender.»
O Morais primava pela boa disposição e não podia ver um “rabo de saias”. Tinha sempre anedotas atualizadas e sabia contá-las picantes, sem pressa e com arte. Eu, pelo contrário, era amorfo e gostava mais de ouvir. Se me calhasse contar uma anedota, fazia-o em poucos segundos, sem a mínima graça, como quem desejava livrar-se de uma batata quente. Só queria que o relato da dita anedota acabasse depressa.
Três da tarde. Sentia-me quase a adormecer. Efeitos de uma refeição pesada e também do álcool.
«Tenho uma surpresa para ti.» Disse ele a certa altura.
Franzi o sobrolho. Tudo o que vinha do Morais era imprevisível.
Respondi com o silêncio, mas fiquei mais acordado.
«Não reages?»
Reagi.
«Então o que temos?»

«Adivinha?»
«Bem gostava de ser bruxo!»
Fiz uma careta à curiosa da barraca do lado. Virou o olhar de imediato.
«Encomendaste sobremesa. E já sei o que é: uma das tuas amigas da noite. Uma, não. Duas. Mas cuidado que estamos a fazer a digestão. Sabes que o polvo demora muitas horas a ser digerido?»
«Quase acertaste. Pelo menos no número.»
«Então o que poderá ser? Não me digas que andas feito com a filha do comandante!»
«Cala-te com isso. Só de ouvir falar dela até perco a tusa.»
«Já andaste de volta dela? Olha que não é feia. Só é pena ter a idade que tem.»
«Essa mulher não faz o meu género. Além disso, acho que é uma mulher desesperada. Ela tem mais de trinta anos e a idade tornou-a uma predadora perigosa.» Disse o Morais.
«Perigosa?»
«Pois. Com a idade que tem não deseja outra coisa senão casar. Depois, ser filha do comandante não ajuda. É quase uma missão impossível tirar proveito da situação e fugir. Mas olha, apesar de tudo parece que o peixe já mordeu o isco.»
«Não me digas! E quem é o infeliz?»
«O Martinez.»
«Ah sim. Não tenho pena dele. Sabe muito bem o que está a fazer e porque quer fazer. Mas esse já está mobilizado.»
«Então é golpada.»
«Bruxo!»
Completamente fora do contexto. Por outras palavras, a leste do paraíso. E sempre perdido de sono.
Contaram que esse inconsciente adormeceu nos exercícios finais de Vendas Novas à beira de um obus catorze que troava que nem um desalmado. E aquela besta continuou a dormir como se nada estivesse a acontecer!
Acreditei na informação do Morais. Pelo pouco que vi dele no quartel era bem possível ter acontecido tal como contava. Agora meter-se com a filha do comandante, ávida de carne fresca, mas sonhando com vestidos brancos até aos pés, era demasiada areia.
«E o namoro está oficializado. Vi os dois pombinhos na rua acompanhados da mãe. Mais ainda. Disseram-me que o lorpa já entra na casa do comandante.»
«Chama-lhe lorpa. Come a namorada e esquece a porra de vida que o espera quando bater com os cornos no Ultramar.»
Compreendia a atitude dele. Era mais um aproveitamento da situação do que amor declarado. Provavelmente foi apanhado, como eu, a meio do curso. Só que era pior. O seu destino ficava incerto por ter sido mobilizado. Não sabia se regressava do Ultramar, com vida ou estropiado. Nós, os rodoviários do curso do Valdo, tínhamos melhor sorte. Havia a certeza de ninguém ser mobilizado. Agora os desgraçados de Artilharia, muitos dos quais eram meus amigos, tinham o destino traçado. Três, quatro meses no quartel mobilizador e a incerteza do amanhã.  Bem fazia ele em aproveitar. Para a frente, Martinez!
Era vê-los partir, os da Artilharia. Já poucos restavam da fornada de janeiro e algumas das notícias que vinham dos que já tinham sido mobilizados não eram nada animadoras.
«Bem faz ele, coitado. Na incerteza do amanhã, ao menos goza enquanto é tempo.»
A filha do comandante. É verdade. Uma vez apanhou-me em falso. 
«Tens razão. Mudando de assunto, lembrei-me daquele dia em que o Almada te convidou e a mais três para irem a umas Caves...» 
«Nem me fales disso!» 
«Então...?» 
«Fomos muito bem, mas voltámos muito mal.» 

Saíamos logo a seguir ao toque à ordem. Foram também connosco mais três camaradas de Artilharia: o Alexandrino, o Carmona e o Cabral, todos eles condenados à roleta russa das mobilizações. Comprámos conservas e pão, a contar com o embate contra um adversário poderoso que era o álcool.
Com o Almada a carregar no prego a fundo, demorámos pouco tempo a chegar à Mealhada e desta vez não parámos para comer leitão, pois o fim era outro.
Primeiro foi a visita às caves. Não vou perder tempo com descrições para quem já sabe como são e como não são, até porque já não me lembro. Aliás, foi um dia para esquecer. Provámos tudo e mais alguma coisa. Não fiz contagem, mas foi muito e do bom. Seco, meio-seco, doce, bruto, reserva especial. Principalmente, “eu sei lá”. Foi uma mistura alargada de paladares, acompanhados da degustação de pão e conservas de atum e sardinha. Mas a prevenção não chegou para estancar o avanço inevitável dos vapores etílicos.
Parece que estou a ver o Alexandrino de perfil, sentado numa cadeira, braços caídos, a rir que nem um perdido. De repente, largou uma golfada de uma mistura de contrastes. Um perfeito arco daqueles que se descreviam na Artilharia quando do lançamento de um obus. Ficou-lhe bem porque era da especialidade. Mas ele é que não ficou nada bem. As náuseas provocadas pelo espetáculo balístico do Alexandrino ditaram o fim do repasto. Se continuássemos naquele desassossego das provas não sei o que podia acontecer.
«Ainda tenho um bruto de estalo» disse, em ar de gozo, o Almada. «Vou abrir.»
«Tu não abres mais merda nenhuma, meu grande sacana!» avisou o Cabral, com a voz perturbada. «Queres é ver a malta bêbeda.»
«Pronto, pronto, gordinho...»
Ainda estávamos na sala quando o Carmona começou a ficar amarelo. Logo a seguir, branco, como a cal da parede.
«A casa de banho é ao fundo. Depressa, borrachão! Não me cagues mais esta sala.»
Fim de festa. Hora do regresso. Não havia mais secos nem especiais para ninguém.
Parámos ainda num café da Mealhada para beber uma bica. Erro fatal.
«Maldita bica!» desabafei mais tarde.
 Só podia ter sido a bica porque o vinho era inofensivo. Havia sempre um bode expiatório.
Da outra vez deitei as culpas para o L34.
Regressámos ao carro e a viagem recomeçou com grandes cantorias e vivas por tudo e por nada. E palavrões à mistura. As vozes eram muito altas e ninguém ouvia ninguém.
Surgiu um sinal de alarme.
«Quem foi a besta que se descuidou desta maneira tão primitiva?» perguntou o Almada, receoso que tivesse acontecido como no caso da anedota todos nós nos enganámos.
O Cabral tinha uma dor de barriga das fulminantes. Prevaricadora. Confirmado cem por cento com o cheiro nauseabundo a gás sulfídrico que invadiu barbaramente o interior do carro.
O Almada travou a fundo e mandou o Cabral sair. Receava pelo pior.
À direita havia uma vinha e o desgraçado do gordinho desapareceu nos mistérios da noite. Entretanto a conversa continuou alegre. Continuou, continuou e o Cabral não aparecia.
Um apito estridente e eis que surgiu, todo ele feito guerreiro, com uma mão nas calças a cair e a outra segurando um calhau.
«Aquele fulano enlouqueceu?» preocupou-se o Carmona.
Rimos da situação caricata do desgraçado Cabral, receoso que o carro abalasse.
Largou o calhau e entrou no carro. Havia uma explicação para a presença do pedregulho. À falta de papel higiénico…
«Maldito vinho que deu a volta toda! Foi por baixo e por cima...»
«Porquê o calhau? E as parras das videiras?» perguntou alguém.
«Ah! Pois é. Não me lembrei das parras.»
«Estás bonito, minha besta quadrada!» gozou o Almada.
Risada quase geral. O Alexandrino dormia no lugar da frente e eu passava por uma fase má.
Aguentava-me?
Resposta imediata mal o carro arrancou. Aquilo veio de repente e foi a minha vez de entrar em cena.
Numa ação quase impossível do tipo James Bond atirei-me para a porta e abri-a, gritando:
«Para! Para!»
Tive a sorte pelo meu lado porque o Carmona segurou-me. Ao mesmo tempo que o carro parava, comecei a vomitar para o alcatrão.
«Este gajo é louco! Para para e nem sequer deixou parar o carro...»
Foi assim que caiu por terra o quarto guerreiro. O último herói.
Finalmente chegámos ao quartel.
Entrámos pelo portão da messe e da casa do comandante. Não tinha dado ainda meia dúzia de passos vacilantes quando dei de caras com um sentinela que achei logo não estar dentro dos parâmetros. Não hesitei em dar-lhe uma ensaboadela. Os outros só riam.
Foi então que apareceu a filha do comandante, acompanhada pela mãe. Fez-se silêncio. Eles deixaram de rir e eu calei-me de imediato.
Apanhado em flagrante delito, tentei endireitar-me. Ela sorriu e passou por nós.
No dia seguinte, pelas oito da manhã estava na parada. Na ausência do comandante de bateria e do meu amigo alferes Morais fui eu quem apresentou o agrupamento ao comandante. Sentia-me mais nas nuvens do quem em terra. Maldita dor de cabeça!
Visitas a caves particulares ou outras que tais, nunca mais. Juro pelas alminhas...

O Carmona está mobilizado. Admirei-me porque tinha estado com ele há pouco tempo. Já sabia e não me disse nada. Fiquei triste com a notícia. Era mais um amigo que partia para o Ultramar.
«Ainda ontem deu-me uns desenhos para ilustrarem contos do livro. O sacrista estava com cara de caso, mas não atingi. Ando obcecado com o raio do livro e o resto passa-me ao lado.»
«É verdade, o livro... Está adiantado o trabalho na tipografia?»
O livro? Continuava a mentir na perfeição, usurpando o lugar do meu amigo António. Mas ser escritor era outra coisa. Gozava de um estatuto incontornável.
«Penso que vai sair dentro do prazo previsto. Um dos desenhos do Carmona que ilustram os contos mostra um homem nu, com uma lança, a virar costas a um polvo. Claro que é tudo simbólico. Acho que o desenho está muito bem concebido para o tema.»
«E sobre a capa?, o que é que resolveste?»
«Ficou o projeto do Justino. Quanto a mim é o melhor. No meu ponto de vista, claro. A capa vai ficar com um aspeto cinematográfico. Os rostos de um homem e de uma mulher que deixam transparecer um certo dramatismo. Mário e Patrícia? Mário e Manuela? Ainda não sei. Só dois rostos que traduzem o desencontro na Terra de um homem e uma mulher ou de um homem e duas mulheres.»
«Logo duas! Onde ficamos?»
«Isso gostava de saber...»
«És um gajo muito complicado!»
«A quem o dizes...»
Qual é o teu real e qual é o teu fictício?

O barco ancorado
Nesse fim de manhã dei ordens ao cabo que conduzia o Jeep Willis para regressar a pé ao quartel e deambulei pela marginal, entregue aos meus pensamentos, pensamentos esses que me levavam sempre para fora do limiar da realidade. Não tinha culpa. Sempre fui assim e nada havia a fazer.
Encostei o jipe à berma da estrada, hesitei um pouco e acabei por saltar para o chão. Sentia-me entorpecido e precisava de exercitar as pernas.
«Vou andar um pouco a pé.» Decidi. 
Precisava também de arrumar as ideias porque um novo "rabo de saias" tinha entrado bruscamente na minha vida sem ao menos um convite prévio, depois daquele dia em que eu e o Morais combinámos almoçar na praia polvo cozido com batatas. Foi uma ideia que pôs logo de parte a hipótese de tomarmos banho depois do repasto. E então o Morais falou-me de uma surpresa que tinha preparado. A surpresa chamava-se Maria José, era natural de Portalegre e entrou bruscamente nos meus dias azuis e cinzentos passados na Figueira, cem por cento por causa do livro do António, indevidamente apropriado pela minha pessoa. De facto "Os longos dias azuis" funcionaram na perfeição como uma ponte.
Ao aproximar-me do passeio reparei melhor no aspeto do muro. Afinal, não era branco, mas sim, cinzento. Olhei em frente. O mar parecia um lago e estava cinzento porque não havia sol. Resisti à tentação de tirar os sapatos e as meias para sentir o frio da água ao molhar os pés.
Como frio estava o corpo de Manuela. Uma interferência que nada me agradou.
Àquela hora os carros da tropa já tinham recolhido ao quartel e as mulheres dos tabuleiros almoçavam na praia, em grupo, retirando, colher após colher o pouco do guisado que havia na lancheira porque a jorna não dava para muito. Fiquei a vê-las, por momentos. Uma delas acenou-me. Era a Alma. Atraía-me. Talvez um dia...
Afastei-me, sentindo com mais força no rosto a brisa que soprava do lado do mar. Logo a seguir risquei um fósforo e acendi um cigarro. Fumava mais para passar o tempo do que por vício. Em certos momentos sentia necessidade de aspirar uma longa fumaça que não chegava a engolir, expulsando, de imediato, o fumo intruso que nunca me dominaria. Tinha a certeza.
Continuei a andar ao acaso, até que parei. Uma muralha colocada de topo foi a causa. Intrigava-me. Aquilo parecia um porto de abrigo. Aproximei-me mais. Então avistei um velho barco ancorado. Alguns homens, pendurados por cordas, pintavam-no, como se fosse coisa importante que não era, no meu ponto de vista. Pensei que era uma operação de cosmética tardia. Segundo a minha opinião de leigo, aquele barco só tinha condições para ser desmantelado. Mas era a minha opinião, que pouco ou nada valia.
Tentei descobrir que tipo de barco era aquele.

  

«É um bacalhoeiro. Encalhou.»
Olhei, admirado, para o homem que fez o comentário. Tinha adivinhado o meu pensamento.
«Encalhou? Mas não está ancorado? E o que fazem aqueles homens a pintarem um barco condenado?»
Observei melhor. O barco parecia adornado. Tanto pior para ele. A minha hipótese prevalecia. Estava pronto a ir para a sucata.
«Vai desencalhar na maré cheia. Daí a poucas horas...»
«Ah! Oxalá.»
O homem cheirava a peixe que tresandava. Talvez fosse do avental de plástico.
«Tenho estado a observá-lo» disse o homem, já entrado na idade. «Li na sua cara espanto e ignorância. Desculpe, não estou a querer ofendê-lo. O senhor não pertence aos da nossa laia. É militar.»
«Não faz mal. Estou a gostar de o ouvir. Continue, por favor.»
«Este barco encalha e desencalha todos os anos.»
«Coisa estranha!» pensei.
A camisa do velho exposta ao sol feria a vista. Devia ser pescador de muitas fainas e preparava-se talvez para mais uma.
«Engana-se.»
«O quê?!...»
«Já não vou voltar ao mar.»
O velho adivinhou de novo o meu pensamento.
«E porquê?»
«A morte é uma situação de mudança inevitável. Com deve saber, estamos todos entre a vida e a morte desde que nascemos. Uns mais para o lado da vida. Outros menos. O seu caso. O meu caso.»
Tentei adivinhar o que se passava, mas ele é que trazia o dom consigo.
«Bem. Confesso que estou baralhado. O senhor tem um dom estranho.»
Fingiu não ouvir o comentário.
«Cheguei à minha foz. Já me restam poucas marés. As vivas, essas já lá vão. E não voltam, quer tenha ou não a força do desejo comigo.»
A história era comum, pensei. O velho tinha uma doença ruim e quanto a isso não havia nada a fazer. Setenta, setenta e cinco anos de sonho e tudo se acabava em breve. Era a lei natural da vida. 
«Engana-se no seu palpite. Não tenho nenhuma doença grave.»
«Mas, meu amigo, eu não falei em voz alta para me ouvir!» Ignorou o meu comentário.  
«Chamo-me Antoine Roquetin. Nasci em França. O meu pai era um pescador francês e a minha mãe, uma portuguesa da Costa de Lavos. Sabe onde é?»
«Muito bem. Jantei lá, num bar-restaurante à beira-mar, na noite a seguir à minha apresentação como militar nesta terra simpática, muito acolhedora. Fizeram-nos uma festa de receção e tive a oportunidade de comer uma bela caldeirada e depois uns... não me lembro agora o nome.»
«Machinhos.»
«Isso mesmo. Os machinhos fritos são deliciosos.»
O velho puxou de um pacote com tabaco de onça e sacou uma mortalha da pequena embalagem que as continha. A seguir, sem pressas, colocou o tabaco sobre a mortalha começou a enrolar um futuro cigarro. Dei-lhe lume.
«Obrigado pela atenção, senhor militar . O meu pai morreu no mar quando eu tinha cinco anos. Sem meios, a minha mãe voltou à Costa de Lavos. Fiz-me homem muito cedo e o mar adotou-me. Não conheço outra vida.»
«Então... e já não faz mais viagens?»
O olhar do velho Antoine, à medida que ia falando, alongava-se pelo mar adentro e transfigurava-se a olhos vistos. Queria compreender mas faltavam-me dados.
«Estou velho. Descartaram-me. Já não me querem para a faina do bacalhau. É uma vida muito dura e as forças começam a faltar-me. E o que me resta? Não sei fazer mais nada!»
«O senhor Antoine tem histórias para contar aos netos. Já viveu muito. Aposto que apanhou alguns sustos no mar.»
«Não tenho netos. Nunca me juntei com uma mulher.»
«Mas as histórias...»
«Sim. A voz do mar já me contou muitas histórias e vi companheiros serem chamados por ele. Vou acabar os restos dos meus dias a sonhar com essas histórias. Às vezes passam-me ideias esquisitas pela cabeça e tento logo afastá-las. Mas um dia vai acontecer...»
«Não pense nisso. E se comprar um pequeno barco?»
«Agora foi você quem adivinhou. É mesmo isso que vou fazer. Quero morrer aos poucos. E oxalá um dia, quando as últimas forças me faltarem, o barco me leve para o largo, cada vez mais para o largo... onde o meu pai espera por mim.»
O velho transfigurou-se outra vez.
«Mas o fim demora a chegar. Antes disso, este bacalhoeiro, que vai desencalhar na próxima maré cheia que está quase a acontecer, tem à sua espera a última viagem. Vão todos para o fundo do mar. Tive um sonho ruim.»
Olhei para o barco ancorado e vi-o também no fundo do mar. Coisa estranha. Era uma visão terrível que à viva força quis apagar. Não!, aquele homem tentava sugestionar-me. Devia reagir ao seu poder de sugestão.
«Também já viu o mesmo que eu.»
«Oh!»
Coisa mais estranha estar em sintonia com ele. Fiquei a pensar. Não havia volta a dar.
Virei-me para ele e afirmei:
«A única certeza de agora é que o barco está ancorado.»
«Será?»
Olhei para o cais e já não vi o barco.
«Então...»
Virei-me para o velho.
«O barco desapareceu como que por encanto. E também os homens que estavam a pintá-lo! Isto é magia.»
«Desculpe, dá-me lume?»
Risquei um fósforo na lixa da caixa e estendi o braço.
«Aqui tem, senhor Antoine. Mas...» 
O homem que me pedia lume nada tinha a ver com Antoine, o velho marinheiro.


Uma paixão perigosa



Três da tarde. Sentia-me quase a adormecer. Efeitos de uma refeição pesada e também do álcool.
«Tenho uma surpresa para ti.» Disse ele a certa altura.
Franzi o sobrolho. Tudo o que vinha do Morais era imprevisível.
Respondi com o silêncio, mas fiquei mais acordado.
«Não reages?»
Reagi.
«Então o que temos?»
«Adivinha?»
«Bem gostava de ser bruxo!»
Fiz uma careta à curiosa da barraca do lado. Virou o olhar de imediato.
«Encomendaste sobremesa. E já sei o que é: uma das tuas amigas da noite. Uma, não. Duas. Mas cuidado que estamos a fazer a digestão. Sabes que o polvo demora muitas horas a ser digerido?»
«Quase acertaste. Pelo menos no número.»
«Então o que poderá ser? Não me digas que andas feito com a filha do comandante!»
«Cala-te com isso. Só de ouvir falar dela até perco a tusa.»
«Já andaste de volta da mulher? Olha que ela não é feia. Só é pena ter a idade que tem.»
«Essa mulher não faz o meu género. Além disso, acho que é uma mulher desesperada. Ela tem mais de trinta anos e a idade tornou-a uma predadora perigosa.» Disse o Morais.
«Perigosa?»
«Pois. Com a idade que tem não deseja outra coisa senão casar.»
«Tens razão. Mudando de assunto, uma vez comprei um polvo na praça e cozi-o. Nem sequer foi para a mesa. Estava podre. Mas este foi de comer e chorar por mais.»
Na messe de oficiais comia-se bem no verão. Sopa e dois pratos. E também sobremesa. Tudo por causa dos oficiais superiores que passavam férias na Figueira e "asilavam" na messe. Mas, retornando ao momento, aquele polvo estava saboroso, bem como as batatas. E do vinho não era preciso falar muito. Quase que soube a pouco. A seguir, bem comidos e bebidos, estendemos as toalhas de praia e começámos a fazer o quilo. Era perigoso aventurar-nos nas águas do Atlântico.
«E afinal a surpresa?»
O Morais estava deitado de barriga para o ar e entreabriu um olho, e sorriu.
«Tem calma. Já faltou mais. Aproveita para passares pelas brasas que é muito bom.»
Acordei sobressaltado. Não tinham passado mais que dez minutos.
«Olha, aí vêm as surpresas. Levanta-te.»
Virei-me na direção em que o Morais apontava. Afinal não era uma única surpresa.
«Quem são elas?»
«A Francisca e a prima. Tira o sentido da Francisca que essa é a minha namorada. Resta-te a prima e não ficas nada mal servido, Mário. Atira-te a ela que é rica. Fazes um bom casamento.»
Franzi o sobrolho ao lembrar-me do envolvimento com a Simone e das consequências que daí resultaram.
«Gosto mais das ricas mulheres do que das mulheres ricas. Mas se puder juntar o útil ao agradável, então digo que sim.»
Já estavam na nossa frente. O Morais fez as apresentações.
«A Francisca e a sua prima, a Maria José. O Mário...»
Tudo feito a correr porque tinha pressa de ir namorar com a sua Francisquinha.
Ficámos sós. Ela tinha uma conversa interessante, de uma pessoa com cultura média. Não era bonita nem feia. Com uns óculos mais leves ficava outro tipo de mulher. Foi o pormenor menos positivo que assimilei.
Continuei o meu estudo anatómico, ouvindo apenas parte do que dizia. Óculos escuros que escondiam os olhos. Corpo bem feito. Estatura baixa (mulher quer-se como a sardinha), busto médio. Ah! O sotaque. Despertou-me logo a curiosidade.
«É alentejana?»
«Adivinhou.»
Não podia deixar de ser. Um sotaque inconfundível.
«Donde, posso saber?»
«Sou de Portalegre.»
Não havia mais cidades alentejanas?
«Ah!, Portalegre cidade do Alto Alentejo...»
Sensação de nostalgia.
Abstrais imenso...
«Disse alguma coisa?»
Não disse. Pensei em voz alta. A ferida ainda não tinha sarado.
«Conheço muito bem. Tenho família em Portalegre e o meu pai é de lá.»
«Que coincidência!»
Acenei apenas com a cabeça.
«Costumava passar o mês de setembro em Portalegre, antes de ter sido chamado para a tropa.»
«Ficou triste. Não me diga que foi mobilizado?»
A tristeza era outra. Não sabia como tinha dado aquele tremendo pontapé na sorte.
«Longe vá o agoiro! Sou rodoviário de Engenharia. O último classificado do meu curso é filho do major que trata das mobilizações. Compreende a situação? Ninguém vai antes dele e o pai tudo fará para que o curso do Porto fique intacto. Tenho pena dos meus camaradas de Artilharia. Vão bater todos com os costados no Ultramar. Não escapa um. Mas diga-me: o que faz na vida, Maria José?»
Esboçou um sorriso largo.
«Dou aulas. Sou professora primária. Mas ainda não me disse o seu nome. Não disse, mas já sei. O Morais apresentou-nos a todo o vapor. O senhor chama-se Mário.»
«Dispenso o senhor. De facto sou o Mário. Bem-vinda ao reino da ilusões, Maria José.»
Ligeira pausa.
«Não me diga que é ilusionista!»
«A vida é que é uma ilusão. Belisque-me. Há pouco estava a comer um polvo apetitoso com o Morais e a beber um ou dois copos de tinto carrascão e agora sonho com os tempos em que era criança para a poder ter como minha professora. Aprendo depressa. Prometo ser um aluno disciplinado e aplicado. Porto-me bem. Acredite em mim.»
«Tantos predicados. Vou pensar nisso. Na nossa idade já não há tempo para ilusões. O que é, é. Depois... foi. Mas não julgue que o polvo se transformou em Maria José. Pode tirar o cavalinho da chuva...»
Engoli em seco. Ela acabava de entrar em confusões metafóricas.
«Olhe, Maria José, acredite que não tive a mínima intenção de lhe dizer que ia tornar-me num predador. Sem querer, talvez tenha insinuado. Peço desculpa.»
«As suas palavras confundiram-me. Eu é que fiz ilusionismo. Julgava que estava a transformar-me num polvo.»
«Ah!»
«Mas não julgue...»
«Não julgo. Ainda bem que compreendeu. Estou mais aliviado. Bom, e agora que já não está desconfiada das minhas supostas intenções, digamos... predadoras, acho que podemos falar mais à-vontade e sem pés atrás. Vem todos os verões a banhos para a Figueira, Maria José?»
«É verdade. Só eu e a minha mãe. O meu pai fica em Portalegre a tratar dos negócios e a ganhar para nós gastarmos. Ele é armazenista. Quem lhe tira o trabalho, tira-lhe tudo. Posso saber o que o Mário fazia antes de ser chamado para a tropa?»
«Era universitário. Fui apanhado a meio do curso. Disse que o seu pai é armazenista. Desculpe a indiscrição, armazenista, de quê?»
«De produtos alimentícios.»
Soltei uma exclamação.
«Porquê tanta admiração?»
«Por nada, por nada...»
«Mudando de assunto, está a gostar da sua permanência na Figueira?»
Levantou-se uma dúvida.
«Profissionalmente?»
«Claro que não pensava nessa vertente.»
«Ah!, claro que sim. Sinto-me em casa, mas sou suspeito. Adapto-me por natureza a qualquer ambiente.»
«Sim?»
«Gosto mais da Figueira fora da época balnear. Tem um clima ameno, muito agradável. As pessoas são simpáticas e dadas ao diálogo. E sabe o que me encantou mais?»
«Ainda não me disse.»
«Tem razão. Um cantinho que descobri na marginal onde passo parte do tempo depois do toque à ordem.»
«E posso saber como se chama esse santuário?»
«Pois pode, claro. Não é secreto. O cantinho chama-se snack da Sacor. Tem uma pequena esplanada muito acolhedora e, quando a noite se aproxima, está-se bem lá dentro. Janto muitas vezes no snack. Mas quando chegar o fim do verão acaba-se tudo. Transformo-me numa ave de arribação.»
«Vai para onde?»
«Ainda não sei. Quero aproximar-me de Lisboa.»
«Muito me conta. Parece ser uma pessoa que leva uma vida calma, não tendo em conta a componente militar. E o que faz durante esse tempo todo em que está no seu cantinho. Chamemos-lhe assim. Não me diga que passa as horas a contemplar o mar?»
«E não só, Maria José. Também observo o voo planado das gaivotas e sonho que sou livre como elas, olho para as pessoas que passam do outro lado da estrada e levam consigo o destino que entretanto inventei. Também gosto de assistir ao pôr do sol, já dentro do snack-bar, porque, entretanto, arrefeceu. E por causa de tudo isto e mais outras coisas, penso e crio a minha ficção.»
Menti. Eu contava histórias e o António escrevia-as.
«O homem sonha e a obra nasce. Deduzo que o Mário gosta de escrever.»
«Sim. Nas horas de solidão.»
Outra mentira.
«Desculpe... é solteiro?»
Sorri ante o embaraço dela. Mas insistiu.
«Não... não tem namorada?»
«As minhas namoradas estão no papel. Tento contar histórias em que elas são as principais protagonistas.»
«Gostava de ler as suas histórias.»
Sobressaltei-me. Estava a apropriar-me do alheio e sentia que agora não podia voltar atrás. O que estava feito, estava feito.
Admiti ser possível em breve. Adivinhei a pergunta que ela ia fazer a seguir.
«E o que está a escrever agora?»
«Nada» sorri. «De momento nada. Procuro inspiração.»
«Ah sim. Acredite que inspiração não lhe vai faltar...»
Incluía-se?
«Não tenho razão de queixa. Mas desta vez a estratégia será outra. Vou usar mais a imaginação.»
Tirou os óculos escuros.
«Pura ficção?»
«Pura ficção.»
Apontou-me o indicador delicado. Nela tudo era delicado. Os gestos. O olhar. A voz.
Mário, Mário! Cai em ti...
«Quer dizer que os seus contos se baseiam em casos reais?»
«Alguns.»
Mais palavra, menos palavra tínhamos ido direito ao meu suposto livro.
«O título tem forte relação com as histórias? Ou melhor, com uma em particular?»
«É uma delas que dá o nome ao livro.»
«A mais real?»
«A mais conseguida. Os Longos Dias Azuis. Inspirei-me nas tardes muito azuis que passei no snack durante todo o mês de janeiro. O tempo ajudou-me. Na minha vida nunca tive dias tão amenos e com muito sol.»
«Só?»
«Como assim?»
Anotei que a Maria José desbravava o caminho com rapidez excessiva. Deixei-me ir atrás da catana que cortava o mato.
«Viveu mesmo esses dias azuis?»
«Que se transformaram em cinzentos sem que desse por isso.»
O livro foi o abre-te, Sésamo para os meus objetivos inconscientes.
«Conte-me como foi.»
«É um livro que fala do desencontro de um homem e uma mulher neste planeta azul que não acolheu bem o seu romance de amor. Não sei porquê, mas o sonho transformou-se em pesadelo. A seguir acontece o desencantamento entre o mesmo homem e outra mulher que o seduz só fisicamente. Há um fantasma entre os dois. Depois, vêm outros contos que considero menos importantes.»
«Deve ser uma história muito interessante, essa que fala dos desencontros.»
«E desencantamentos. A virtude dessa história é parecer real.»
«E não é?»
Sorri. Por vezes apetecia-me simular o mistério.
Pediu-me dados sobre os outros contos.
«Daqui a poucos dias terá oportunidade de se saturar com eles. Prometo que vai ser a primeira leitora.»
«Sério? Fico muito sensibilizada. Mas não seja tão hermético em relação às outras histórias. Estou ansiosa por ler o seu livro. Promete mesmo que vou ser a primeira leitora?»
«E crítica. Quero saber a sua opinião. Não me poupe, Maria José.»
«Ao seu dispor. Vai ser verdade?»
«Não demora muito tempo. O livro está no prelo.»
Fiz um gesto como aqueles que via nos filmes passados em tribunais quando dos juramentos.
«Não contando com o tipógrafo que tratou da composição, tem a palavra do Mário, contador de histórias e não só!»
«E não só?»
«Claro. Não conto só histórias. Gosto de viver. Amo a vida e aproveito ao máximo dela tudo o que de bom posso tirar. Sou um visionário. É assim que me vejo.»
«E como visionário?»
«Quero prever o que poderá vir deste encontro inesperado.»
«Ah sim...»

Alguns dias mais tarde saiu o livro e a Maria José foi a primeira leitora. Caso curioso, apaixonou-se pelas minhas histórias. Quis saber se a história que dava o título ao livro era, de todo em todo, real. Como resposta, respondi-lhe com meias palavras. À minha maneira, quando não quero expor-me.
«Assim não vale!»
Aquele olhar doce ia trazer-me complicações. Tinha que meter tração às quatro rodas no meu bólide que evitar uma capotagem. Ai tinha, tinha!
Ela própria organizou uma exposição numa livraria da cidade, apesar de lhe pedir para não o fazer. Uma exposição dava muito trabalho.
«Claro que tenho muito gosto.»
A exposição redundou num tremendo fiasco, pois venderam-se ao todo nove livros, o que perfez uma receita de duzentos e vinte cinco escudos. Por aí vi como a carruagem andava. Por outro lado foi muito diferente. Se tivesse que escolher entre as duas hipóteses de êxito certamente a luta seria renhida. Assim, não tive dificuldade de escolha e deixei que viesse à cena naturalmente uma paixão anunciada. Uma paixão que podia tornar-se perigosa e que mesmo assim arrisquei para que tivesse êxito, custasse o que custasse. 
Primeiro, foram os encontros que tivemos pela manhã, antes da Maria José ir para a praia com a mãe. Fazíamos passeios ao longo do picadeiro, quase deserto, depois de conseguir "desenfiar-me" do quartel. À tarde, por volta das cinco, juntávamo-nos ao Morais e à companheira. E seguia-se a noite da Figueira, muito animada em agosto. Noite após noite.
«Como consegue estar aqui às nove e meia, Mário?»
«É simples. As classes de condução formam na parada, às oito e meia. Por vezes sou eu que apresento a bateria ao comandante, na ausência do capitão Pascoal e do Morais. Depois os veículos de instrução saem do quartel e também eu e o meu camarada Almada. Vou a conduzir o jipe mas levo sempre um soldado ao lado, compreende?»
«Certo. Estou a ver o resto do filme. Trocam de lugar e ele deixa-o fora do circuito. Depois o soldado vem buscá-lo à hora que combinaram. Tudo muito linear e eficaz.»
«Cem por cento. Acontece que o jipe fica estacionado, algures, no circuito da instrução. Se perguntarem por mim ao soldado, este está industriado para dizer que "o meu aspirante" anda num outro jipe a examinar um instruendo.»
«Um crime perfeito. Mesmo assim, é perigoso.»
«A quem o diz. Ainda ontem dei de caras com o segundo comandante no preciso instante em que este ia a sair do café Galeão. Tudo bem. Fiz-lhe a continência e ele correspondeu à saudação, sorrindo com uma certa cumplicidade.»
«Porquê?»
«É que ele também estava em falta. Àquela hora devia estar a despacho com o comandante.»
«A isso chama-se fazer chantagem, Mário.»
«Chame-lhe o que quiser que não me importo, Maria José. Gosto do seu nome.»
«Obrigada. Registo. Também gosto do seu. Correu um risco grande.»
«Para me encontrar consigo sou capaz de tudo...»
«Não queria que se expusesse tanto por minha causa.»
«Mas quero eu.»
Os nossos olhares cruzaram-se e senti pela primeira vez a presença das feromonas há uns tempos perdidas por outros caminhos.
Que se passa, Mário? Não te deixes envolver...
«Disse alguma coisa?»
«Desculpe. Estava a falar para dentro e...»
Ia dizer que falava com o meu amigo Ernesto, mas arrependi-me na hora. Era puro disparate, pois já não tinha cinco ou dez anos e os tempos fantásticos das conversas com o meu amigo invisível perderam-se na neblina dos tempos que ficaram para trás, embora por vezes parecesse que continuavam a existir.»
«E...?»
«Há qualquer coisa que está a acontecer e que não tenho vontade de travar. Conhecemo-nos há tão pouco tempo e parece que a nossa relação já vem de há muito. Acredita na existência de outras vidas passadas?»
Talvez cantando a estafada canção do bandido.
«Vou desapontá-lo já em relação à sua pergunta. A resposta é não. Sou cem por cento incrédula no que diz respeito a esses casos. Acredito, sim, nas amizades à primeira vista e na consolidação dessas amizades. E ainda mais, mas não digo.»
«Amor à primeira vista, não. Está decidido?»
«O melhor é mudarmos de assunto. Dê tempo ao tempo. Onde vamos logo à tarde, Mário?»
Senti a mudança do vento e recolhi-me num abrigo improvisado.
«Se quiser, a um dos cenários da minha história. Quer conhecer o local onde os soldados ficavam a ver as moçoilas que levavam à cabeça as caixas carregadas de areia? Já leu essa parte, não leu?»
O rosto iluminou-se com um sorriso atrevido de quem tinha descoberto um segredo.
«Afirmativo. E até achei interessante a descrição.»
«Mas não respondeu à minha pergunta.»
«Não quero eu outra coisa. Confrontar o real com o fictício. Você e o seu homónimo da história são muito parecidos. Já o apanhei mais do que uma vez a sonhar, principalmente quando estamos os quatro e a nossa conversa não lhe interessa. Gostava também de estar consigo nesse snack-bar fantástico, onde nada acontece e parece acontecer tudo, mas na condição de não ser a tal Patrícia. Acho que essa mulher tem má pinta. Será possível levar-me lá um dia?»
«Com todo o gosto, Maria José. Mas voltando à história, essa Patrícia duvidosa não tem todos os predicados que a estigmatizam. Foi uma mulher vivida, é uma mulher vivida. Tudo certo. Mas...»
«Mas?»
«Talvez tivesse sido diferente se a Manuela não existisse. É a forte presença dela que baralha dia a dia as cartas e modifica o sentido do jogo.»
«Não tinha visto a coisa por esse prisma. É capaz de ter razão.»
De repente tentei inverter a corrente do rio.
«Deixe-me olhar bem para os seus olhos.»
«O quê?»
Senti-a corar. Mas fez-me a vontade.
«Não tenha receio, Maria José. Claro que não são claros. São castanhos. De forma alguma se identifica com a Patrícia. Até porque a tal Patrícia, que tanto parece detestar, talvez nunca tenha existido. Nem o copo a rodopiar na mesa. As chávenas vazias, sim. Mas noutros momentos que nada têm a ver com a história. E quer saber mais uma coisa?»
«Quero saber tudo.»
Mau, mau!
«Só havia uma chávena de café sobre a mesa. Sempre todos os dias.»
«Não me diga!»
«Digo, digo. Nunca houve uma mulher naquela mesa. O Mário criou Patrícia para substituir o vazio deixado pela Manuela.»
«Na história. Foi tudo imaginação dele?»
«Talvez tenha sido.»
«Oh... Manuela! Não o deixou nunca. Como se fosse um fantasma. Essa mulher de olhos tristes existiu?»
«Existiu, sim, Maria José.»
«Notei um brilho estranho nos seus olhos quando disse: "existiu, sim". Amou-a assim tanto?»
Ainda hoje...
«A resposta é sim.»
«Já vi que não quer adiantar mais nada.»
«Fale-me de si.»
«Eu também existo, como a Manuela existiu. Chamo-me Maria José, sou boa rapariga, professora, tenho vinte e cinco anos e estou ansiosa por ver as suas gaivotas que mergulhavam na rebentação, à procura dos peixes aventureiros. E mais: ainda não acredito de todo nessa história que quer impingir-me. A tal Patrícia também deve ter existido. É tão real! Parece-me até mais real que a Manuela.»
Seria verdade?
«Pode ir ao snack quando quiser. Mas digo-lhe que o recanto é muito íntimo. Tem pouca luz direta.»
«Ah!»
Perigo na costa, Maria José!
«Assustei-a?»
«Logo se vê.»
«E o momento crepuscular? Consegue resistir a ele?»
«É um momento muito perigoso e está posto de parte» admitiu. «Não acha que estamos a andar muito depressa? A culpa não é só sua.»
Concordei e discordei. Logicamente atravessávamos uma fase inicial de convívio, de conhecimento um do outro. Ao mesmo tempo ela queria avançar porque previa que o agosto ia passar num segundo e depois o nosso futuro era a incógnita. Podia dar em fumo de verão.
Guardei os pensamentos e limitei-me a dizer:
«O tempo passa depressa. Por exemplo, daqui a pouco a sua mãe já está ansiosa, à sua espera. Onde foi a minha querida filha? Que lobo mau a levou?»
«Sou maior e vacinada. E você não é o lobo mau que me pareceu ser. Mas tem razão. Já é tarde. Vou-me embora antes que o lobo mau ataque.» Sorriu.
«Sempre sou o lobo mau. Cuidado, Maria José, que logo à tarde vamos passear para a marginal. O perigo espreita. Mas não vai faltar, pois não?»
«Tenho confiança em si. Não vou faltar.»
«E à noite?, costuma ir ao casino? Nunca nos encontrámos à noite. Começo a desconfiar que leva uma vida dupla.»
«Só para o contrariar vou convencer a minha prima a ir ao casino. Mas com uma condição. Sou muito persistente, sabe?»
Por instantes deixei-me embalar pelo sonho.
«E posso saber qual é essa condição?»
«Por agora, não. Mas vai já dizer-me antecipadamente que sim.»
«O que está a propor-me é pior que dar um tiro no escuro. Póquer puro. Desculpe-me pela dupla metáfora.»
«Joga póquer?»
«Às vezes. Adoro jogar bluff. A dinheiro, claro. Mas sem doer muito.»
«Como assim, bluff?»
«É uma variante do póquer.»
«Não conheço o póquer.»
«E eu aceito o risco.»
«Ah! Fico mais aliviada.»
Despedimo-nos com um aperto de mão. Reparei que a sua mão era muito pequena, graciosa.

Num fim de manhã dei ordens ao condutor para regressar a pé ao quartel e deambulei de jipe pela marginal, entregue aos meus pensamentos. Pensamentos que me levavam sempre para fora do limiar da realidade. Não tinha culpa. Sempre fui assim.
Encostei o jipe à berma da estrada, hesitei um pouco e acabei por saltar para o chão.
«Vou andar um pouco a pé.» Decidi.
Foi então que reparei melhor no aspeto do muro. Afinal, não era branco, mas sim, cinzento. Olhei em frente. O mar parecia um lago e estava cinzento porque não havia sol. Resisti à tentação de tirar os sapatos e as meias para sentir o frio da água ao molhar os pés.
Como frio estava o corpo de Manuela.
Àquela hora os carros da tropa já tinham recolhido ao quartel e as mulheres dos tabuleiros almoçavam na praia, em grupo, retirando, colher após colher o pouco do guisado que havia na lancheira porque a jorna não dava para muito. Fiquei a vê-las, por momentos. Uma delas fez-me um largo aceno de simpatia a que correspondi. Levantou-se de imediato, aproximando-se.
«Vejo que és oficial. Procuras alguém?»
Não era varina mas tinha as mãos à cintura. Achei piada ao arrojo em enfrentar-me.
«Só passei por aqui.»
«Olha, cuida bem dos teus soldados. São nossos amigos.»
«Amigos em que sentido?»
Sorriu, descarada.
«Ora, já sabes.»
Não precisei de pensar para descobrir que espécie de amigos se tratavam. E eles, na flor da idade, bem precisavam daquele tipo de amizade.
«Sempre cuidei.»
«Queres alguma coisa especial de mim?»
Sorri para a moçoila e aproximei-me mais. Tinha as maçãs do rosto coradas e uns peitos generosos. A avaliação que fiz não lhe passou despercebida.
Passou uma mão a alisar as madeixas que a brisa marinha atirava para a frente do rosto.
«Gostavas...?»
«Sim. Um dia destes conversamos sobre esse assunto.»
«Que assunto?»
«Não te faças parva que de parva não tens nada. Bem sabes qual é o assunto.»
«Desengana-te. Ia só a perguntar se querias conhecer o nosso bairro.»
Ops!
«Desculpa a minha ousadia. Ainda não sei o teu nome.»
«Alma.»
«Talvez calhe um dia, Alma.»
«Tens bom ar. As minhas amigas iam guerrear por ti.»
«Nunca se sabe.»
Ela fez um sinal de assentimento e afastou-se para junto das outras. Ficaram a cochichar, olhando com insistência para o local onde estava.
Deixei-me ficar mais um pouco. O tempo suficiente para a jovem se aproximar de novo.
«Elas ficaram interessadas. Quando voltas para combinarmos o dia?»
E esta, Mário? Paraste só para ver aquelas mulheres que transportavam a areia nos tabuleiros e vê lá a embrulhada em que te meteste.
«Um dia destes... quem sabe, Alma?»
Fiz-lhe uma carícia no rosto trigueiro e afastei-me, sentindo com mais força no rosto a brisa que soprava do lado do mar. Risquei um fósforo e acendi um cigarro. Fumava mais para passar o tempo do que por vício. Em certos momentos sentia necessidade de aspirar uma longa fumaça que não chegava a engolir, expulsando, de imediato, o fumo intruso que nunca me dominaria no futuro.

O fim da tarde não demorou a chegar.
Quando eu e o Morais entrámos na marginal vimo-las junto à esplanada do snack. Não pude evitar um sorriso cúmplice trocado com a Maria José. De certeza que pensámos o mesmo. Os dois, muito juntos, à espera que o sol caísse de todo no horizonte. Depois, passava o braço direito pelo ombro e encostava o rosto ao seu.
«Estavam aí há muito tempo?»
«Não, Mário. É hoje que vamos ver as tais mulheres?» perguntou.
«Sim, temos que andar um pouco. A esta hora só lá estão as mulheres porque os soldados já recolheram ao quartel.»
«Não percebo patavina do que vocês estão para aí a dizer» queixou-se o Morais. «Parece que falam em código.»
«São almas gémeas!» insinuou a Francisca.
«As almas gémeas não existem!» exclamámos em uníssono.
Fitei-a, espantado. Ela limitou-se a sorrir.
«Não se admire.»
«Já passou.»
«Passou o quê?» perguntou o Morais.
«Bom, chegou a altura de nos separarmos. Vocês não tinham que ir a qualquer lado, Morais?»
Acenou com a cabeça.
«Pois, é verdade. Já me esquecia.»
«Vamos aonde, querido?»
Apontou em frente.
«A qualquer lado. Não vês que eles têm um esquema montado?»
E para nós:
«Vão lá, pombinhos. E não deitem o ninho abaixo.»
«Parvo!» comentou a Maria José.
Sabia que não havia almas gémeas. Apenas queria aproveitar o tempo que estava a escoar-se e não tinha retorno. Mário, a personagem principal da novela, teve todo o tempo do mundo quando esteve só, no snack, à espera de alguém que só existiu no seu pensamento.

Acendeu um cigarro e debruçou-se a seguir no muro caiado. Os olhos percorreram, devagar, a terra de sílica, o verde-azul espumoso que se espraiava, de tempos a tempos, num abraço de fidelidade à areia amante. Ao largo, duas traineiras ensaiavam na ondulação uma dança suave. Os carros do quartel demoravam a deixar a estrada que confinava com a praia. Ficavam parados junto das mulheres que trabalhavam à beira-mar, enchendo tabuleiros de areia e levando-os à cabeça, para logo os atirarem sobre os montes de sílica que cresciam, lentamente. Depois, as mulheres demoravam, sorridentes, o tempo suficiente para ouvirem os galanteios dos soldados e voltavam à beira-mar, com os tabuleiros vazios. Os carros seguiam; e vinham outros, e as mulheres traziam mais uma vez os tabuleiros vazios que enchiam, de novo, com areia. E sorriam. E ofereciam miragens. E todo o santo dia a cena repetia-se.
A brisa suave vinda do mar tocava e corpo tisnado de Mário e levantava-lhe os cabelos, emprestando-lhe o ar de uma figura vinda da mitologia helénica. Mas nem o vento fustigava ali o mar Egeu, nem ele era grego. Uma coisa, no entanto, era certa. Recebia os fenómenos complexos da Natureza, digeria-os, e regurgitava-os ainda mais complexos. De nada valia cruzar as mãos no peito, olhar a imensidão atlântica, lá para longe, pois nunca atingiria a pureza do pensamento grego ao perguntar se o vácuo era admitido como real, ou se, como acreditava Demócrito, o nada era qualquer coisa como o ser. Os átomos agrupavam-se e formavam as coisas; quando se afastavam uns dos outros, as coisas desapareciam, mas nada voltava a ser como dantes.

«É tal e qual como descreve, Mário. A sua história fascina-me. Quanto mais vezes a leio, mais o admiro. Só há uma coisa. Até nas histórias é demasiado hermético.»
«Talvez. Tenho necessidade de me fechar na concha. Trata-se de uma defesa, acredite.»
«E estão ali dois soldados, encostados ao muro.»
«Saíram antes do toque à ordem.»
«Vai chamar-lhes a atenção?»
«Por quem me toma? O que interessa é que se desenrascaram.»
«Olhe... uma das mulheres parou e sorriu para eles. Aproximou-se mais. Estão a conversar. Consegue adivinhar o que dizem?»
«Não sou bruxo.»
«Tem razão, Mário. Mas olhe, parece que ela está a chamá-lo.»
«Alma! A grande sacana...»
«Como?»
«Desculpe, Maria José. Eu já venho.»
Ao fim de uma dúzia de passadas estava junto a eles. O soldado perfilou-se e cumprimentou-me fazendo a continência.
«Senhor aspirante, apresento-lhe o meu noivo.» Disse ela, exibindo um sorriso mordaz.
«À vontade, "Treze". Espero que os dois se entendam. Não o faça sofrer, Alma. Olhe que ele é bom rapaz ou não fosse do parque auto.»
«Fique descansado, senhor aspirante.»
O soldado estava mudo. Quem sabia o que lhe ia na alma. Alma! Que grande partida me pregaste!
Voltei para junto da Maria José.
«Conhece algum deles?»
«Os dois. Estão noivos.»
«E desejou-lhes boa sorte.»
«Mais ou menos. Agora façamos projetos para logo à noite.»
A Maria José avançou uma proposta.
«Se prometer que amanhã lanchamos no snack, então eu vou consigo ao casino!»
«Palavra de Mário. Mas diga-me uma coisa, interessa-lhe mais o herói da história ou este simples mortal sem mistérios e que tem a vantagem de ser de carne e osso?»
«Tem a certeza que ambos não são uma e a mesma pessoa?»

Fiquei deveras encantado quando a vi entrar no salão de baile vestida de vermelho vivo.
«Você está um sonho de mulher, Maria José!»
«Exagera, Mário. Dei uns simples retoques no rosto que ficou mais esborratado, a minha prima penteou-me a seu gosto e vesti este trapinho garrido. É tudo.»
«Fica-lhe muito bem o cabelo apanhado atrás. A sua prima teve uma boa ideia. Onde está ela?»
«Ficou para trás com o Morais.»
Pausa. Olhei-a fixamente.
«Nunca pensei que viesse. Agora está aqui, na minha frente. E eu na sua frente. Os dois. Imagine que estamos.»
«Estou a imaginar, Mário.»
«Não podemos perder esta oportunidade única. Olhe, na vida de cada um há uma maré que deve ser aproveitada como se fosse a última. Quem sabe até se não é esta!»
Sorriu, irónica.
«Já ouvi essa da maré em qualquer parte do seu livro. Preparou bem o discurso.»
Estava a ser imbecil com toda aquela conversa fiada.
«Uma noite de sonho, Mário. Eu e você, você e eu, ambos frente a frente. O objetivo é evidente. Você atrai-me. Mas primeiro gostava de saber uma coisa porque sou uma mulher mais segura do que pensa.»
«Sou todo ouvidos.»
«Há alguém na sua vida?»
Alto lá. Ela estava a abrir a porta principal e eu não gostava de mentir. Recuei no momento exato, ainda a tempo de esconder um hipotético namoro sério. A minha resposta podia ser sim ou não. Sim? Não?
«Sim.»
«Bem me avisou a Francisca. A minha prima nunca se engana. “Quem te avisa, teu amigo é”, diz a voz do povo. Bem me enganou, Mário!»
«Nem sempre a sua prima tem razão.»
«Também é verdade.»
Mais valia que a Francisca tivesse cuidado com o Morais. O perigo era ele e não eu.
«Ah... a sua prima já tem um conceito da minha personalidade. Não me resta senão confessar o crime que cometi. Mas prometa que vai perdoar-me, que ficamos bons amigos. Promete, Maria José?»
«Estou a ponderar. Mas desiludiu-me.»
«Porquê?»
«Porque sim.»
Não era eu que a atraía. Sim o outro Mário, amante de uma tal Patrícia que o deixou.
«Sim» repeti. «Há uma mulher na minha vida. Por mais que queira não o posso negar. Desde ontem. E neste momento estou a vê-la na minha frente.»
«Não entendo.»
«Entende, sim. Essa mulher veste de vermelho e tem o cabelo apanhado atrás. Os seus olhos estão muito abertos de espanto. Vá, não tenha medo de revelar os seus sentimentos que eu já revelei os meus. Pronto, gosto de si, Maria José. É tudo muito simples.»
«É melhor irmos para o salão nobre. Estou a ficar tonta. Importa-se?»
«Como queira. Temos o resto da noite para dançar. Gosto de músicas lentas. E a Maria José?»
Olhei-a intensamente e senti que estava perturbada. Não respondeu. Entrámos no salão nobre. Sentia-me leve, como se dançasse uma valsa. Uma valsa, não. Já me esquecia que detestava as valsas. Um bolero. Isso. Um bolero bem ritmado.
«Está ali ao fundo um sofá vazio.»
Escolha acertada. O local ideal para darmos o primeiro beijo.
Como seria?
Apanhava-a de surpresa, como quem apanha o peixe que morde o anzol, ou envolvia-a com palavras mágicas do tal homem das ilusões?
Pensando melhor, talvez a iniciativa partisse dela. Fiquei a aguardar.
«O local está muito escondido.»
Balde de água gelada.
«Porquê?, tem falta de ar? De facto o fumo concentra-se nos fundos dos salões e este não deve fugir à regra. Pode ser já aqui. Serve?»
Não consegui disfarçar a irritação.
«Tem razão. O outro sítio é mais recatado do que este. Já não sei o que quero. Desculpe a minha desconfiança. Aquela história do polvo deixou-me de pé atrás. A primeira impressão é sempre difícil de esfumar-se.»
Como podia entender as mulheres, se perdiam a desconfiança de um momento para o outro, mesmo sabendo que ficavam à mercê do sedutor e era só uma questão de tempo?
«De facto foi uma conversa muito indigesta mas já foi tudo digerido. Pronto. Cá estamos. Agora o que fazemos? Já sei. Olhamos um para o outro e ficamos uma eternidade neste ato de atração mútua.»
«Não sei.»
«Aconteceu tudo muito de repente. Atrais-me, Maria José. Gosto de estar contigo. Posso tratar-te por tu? O teu silêncio diz que sim. Esses olhos muito espantados não acreditam que o momento é real. Quero beijá-los. Assim. Estão húmidos de emoção. Os teus lábios entreabrem-se, à espera dos meus. Não. Não os mordas porque é uma evidência que estamos aqui, lado a lado, à espera que aconteça poesia.»
«Acho bem que nos tratemos por tu. Mas julgo que estás a avançar muito depressa. Mal nos conhecemos. Deixa acontecer. Não te apresses.»
«Maria José, a paixão não se controla. É um fogo que arde intensamente e no momento certo incendeia-nos e nós não temos culpa. Aconteceu uma coisa bela, uma atração mútua que não podemos travar. Não deixes que esta coisa bela acabe logo à nascença.»
Acariciei-lhe as mãos pequenas, macias. Ato contínuo, repeliu-me e simulou uma fuga.
«Não insistas. Tenta perceber que as coisas não são como pensas. Estás a lidar comigo como se fosse mais uma das tuas Patrícias. Se a Patrícia das tuas histórias nunca existiu, de certeza tiveste outras.»
Lancei o contra-ataque.
«Então há qualquer coisa que não estou a atingir. Perguntaste-me se havia alguém na minha vida. Agora chegou a altura de ser eu a fazer a mesma pergunta. Existe alguém na tua vida?»
«Não é isso que está em causa.»
«Então? Tudo não passa de fumo de verão. Já entendi. Foi o livro. O outro Mário. Apaixonaste-te por ele. Mas tem cuidado. É bem mais instável e perigoso do que eu. É um vendedor de ilusões. E a propósito, sabes quem compra quase todas as ilusões? Eu.»
Levantei-me e acariciei-lhe levemente os cabelos.
«É pena a nossa relação acabar sem sequer termos dançado um bolero.»
Saí do salão nobre e ainda a ouvi dizer:
«Estragaste tudo!»
Já à saída do salão, vi o Morais.
«Então quando é que as primas vêm?» perguntou. «Demoram tanto tempo a aperaltar-se que já acabou o baile quando chegarem.»
Qualquer coisa não batia certo.
Entrei de novo no salão nobre e quedei-me a meio. O sofá estava no sítio. Sem ninguém. Sem sequer o odor do perfume dela. Talvez me tivesse enganado. Olhei para os sofás mais próximos. Depois, fui alargando o campo de visão. Definitivamente ela não estava no salão.
Teria passado por nós no momento em que falávamos e apanhou-nos distraídos?
Voltei-me para a saída e contemplei um quadro insólito.
As duas primas conversavam com o Morais.
«Enfim chegaram.» Disse este.
Dei comigo a dizer à Maria José:
«Fica-lhe muito bem esse vestido vermelho. Mas agora reparo que o cabelo apanhado está um espanto!»
«A artista foi a Francisca. Não me atrofie com o seu olhar penetrante, Mário!»
«A orquestra começou a tocar um bolero. Antes que seja tarde, vamos dançar?»
Só eu entendi aquele "antes que seja tarde".
«Gosto muito de boleros. Aceito.»
Afinal de contas, com quem estive a falar há pouco?
«Disse alguma coisa, Mário?»
«Que eu saiba, não.»

Anoiteceu...
Num instante, as bicas e os copos estão sobre a mesa. Agradeço ao empregado. Está tudo igual. O snack tem poucos clientes. É bom porque podemos falar quase em sussurro. Depois, há o balcão. Os bancos altos, giratórios. O mar lá fora, hoje calmo como um lago. A máquina de discos, esquecida, ao fundo. Só a cadeira na minha frente desta vez não está vazia. Nem a noite é vazia e longa. Portanto, não devo falar do desencantamento de Patrícia. Mas quero falar mais uma vez da cor dos seus olhos. Talvez azuis, talvez verdes, talvez cinzentos. Da cor do mar. De uma das cores do mar...
Patrícia partiu sem uma palavra e Mário vai todos os dias ao snack, onde fica, à espera, naquela cadeira que teima em ficar vazia. Como vazia é a sua vida desde que Manuela desistiu de viver. Mas Patrícia também partiu, embora exista, sem existir, na cadeira vazia que tem na sua frente. É a noite longa, refletida na ausência eterna de Manuela. Mário sabe que virão outras Patrícias, de olhos da cor do mar, ou talvez castanhos, para se entregarem na cama até ao último desfalecimento. Um tempo infinitamente pequeno para o outro que passavam, frente a frente, vigiando, até ao pôr do sol, cada um o silêncio do outro, e seguindo, por vezes, o voo picado de uma gaivota até à rebentação das ondas.
Um dia, Patrícia cansou-se.

«Está-se bem aqui dentro, no teu santuário. Mas diz-me uma coisa: que pensamentos ele tinha quando se tornava dono do seu refúgio?»
Afastei os pensamentos estranhos para bem longe. Tudo aquilo tinha acontecido na ficção. A realidade era outra.
«Imaginei assim, Maria José. Na mesa do costume, um vulto de mulher, talvez duas chávenas de café, talvez um só copo meio de água, talvez nada. Sim, nada. Até porque o copo já não roda. As mesas continuam vazias. Ao fundo, a máquina de discos, silenciosa. O balcão circular com bancos, altos, esguios em todo o percurso. Os dias são azuis. O ar está carregado de ozono. É sinal de trovoada. As gaivotas já não descem junto ao mar, em voo picado. Não há snack mergulhado no torpor duma tarde abafada de maio, tão característica de F... como, também, convidando à indolência. Há só noite. A noite que caiu sobre a cidade e sobre ele.»
«É um poema do princípio ao fim. Obrigada por me teres trazido aqui. Nunca esquecerei este belo momento. Uma história arrancada do real que afinal talvez nunca tenha sido. Mas tudo existe. Basta sonharmos.»
«Sim, tudo existe. Quer no presente, quer no esquecimento. Sabes uma coisa?»
«Diz, Mário.»
«Esta novela foi a única coisa de jeito que escrevi. Vê os resultados. Nove livros vendidos. E no resto do país não sei o que vai acontecer. Vou começar a fazer a distribuição em breve. Mas diz-me uma coisa: é a personagem que te atrai?»
«E não só. Há todo um sortilégio e mistério à volta das duas mulheres. Já mudei de opinião. Agora apostava na Patrícia. Para mim, a Manuela nunca existiu da forma como a pintas. Não passa de um arquétipo que criaste para servir de instrumento de tortura. No fundo, no fundo, és masoquista.»
«Enganas-te redondamente. O escritor decidiu matar a Manuela porque esta era uma personagem incómoda, a razão principal na vida real dos seus remorsos. Quanto à Patrícia foi, ao longo dos tempos, um símbolo de todas as suas irrealizações.»
«Afinal gostava mais de ser a Patrícia.»
«Porquê?
«Para te dizer que nem todas as Patrícias são iguais à tua Patrícia. Este snack está cheio da sua ausência e não me importo. Se experimentarmos o silêncio das palavras talvez descubras uma coisa.»
Olhei-a intensamente.
«Já experimentei aqui o silêncio e a ausência. Deixemos isso para trás. Agora só quero falar contigo. Dizer-te que estavas muito gira no baile. Ainda sinto o calor do teu corpo. O odor do teu perfume. A sensação estranha quando os nossos rostos se encostaram um ao outro. Foi outro silêncio, Maria José. Um silêncio mágico que se sobrepôs aos sons da orquestra. E tu?, o que sentiste?»
Ela apertou-me a mão com toda a força que a sua fragilidade permitia.
«Senti que aquele momento nunca devia ter fim. Tal como este. Não quero que acabe. Agora sou a Patrícia cujo olhar se perde no horizonte e chega à conclusão que não há qualquer hipótese de continuar a viver com o Mário. Mas prometo não fugir.»
«Assim espero.»
«Não te zangas se disser o que me vai na alma neste momento?»
«Claro que não me zango, Maria José.»
«Tu não a compreendeste. Viveste só para o fantasma da outra mulher, para o remorso. Morreu no papel e agora queres tê-la na morte. No mínimo é um caso macabro.»
«Perdi-a para sempre. Fui estúpido.»
«Conta-me como foi.»
«Não vale a pena.»
«Os meus pressentimentos batem sempre certo. É por isso que quero ser a Patrícia que não deixaste que te amasse.»
Tomei-lhe as mãos e beijei-as. Ela não me repeliu.
Contava-lhe o que aconteceu naquele estranho encontro do casino?
Era melhor ficar calado e continuar a beijar-lhe as mãos, o pescoço escondido pelos cabelos sedosos, procurar os seus lábios.
«Quero saber tudo sobre ela.»
«Tudo?»
«Tudo.»
«Mas de quem estás a falar?»
«Da Patrícia, claro.»
«Mas essa mulher nunca existiu! Não passou da personagem de uma história que eu engendrei.»
«Não me convences.»
Chamei o empregado.
«Dê-me um apocalipse.»
Fez uma expressão incrédula.
«Como diz?»
«Não faça caso. Quanto devo?»
Ela ficou muito séria a olhar para mim. Não resisti e beijei-lhe os olhos.
«Não sei se faço bem.»
«Então?» olhei-a fixamente. «Vá lá, Maria José. Diz-me o que vai na tua alma neste momento.
«Não sei se faço bem.» Repetiu.
Fiquei expectante.
«Queres ir até ao apartamento?
Finalmente!
«E a tua mãe?»
Curiosamente nunca me foi apresentada.
«Foi ao cinema.»
Acariciei-lhe as mãos.
«Ah sim. Há coisas importantes para fazermos. Inadiáveis.»
«Por exemplo?»
«Contar-te como eu a e Patrícia nos amámos. Que dizes?»
«É um desafio aliciante.»
«E eu também aceito o desafio.»
«Ainda não aceitei, Mário!»
«Tens razão. Mas vou apostar no sim.»
Voltei-me para o empregado.
«Afinal sempre quero um apocalipse.»
Sorriu e virou-se de costas, começando a procurar uma garrafa nas muitas prateleiras ao fundo do balcão.
«Já sei o que ele me vai dar.»
«Consegues mesmo adivinhar?»
Disse que sim com a cabeça.
«É isto que quer?»
«Claro.»
Encheu um copo pequeno e bateu com o fundo no balcão. Respirei fundo e bebi de um trago. Senti um ardor quase insuportável a descer até ao estômago.
«Mário!»
«Sim?»
«Que bebida te deu ele?»
«A que adivinhei. Nada de especial. Absinto.»
«Absinto? Estás louco?!...»
«Louco por ti.»
Tocados pelo manto erótico do amor, saímos do snack de mãos dadas.
Lá fora a lua cheia reforçou o desejo. Olhei intensamente para ela.
«Que se passa, Mário?»
«Curioso, não há sinais de presenças.»
«Que queres dizer? Fantasmas...? Não há, não. Nunca vi um fantasma. Nem aqui, nem em lado nenhum.»

Levantou-se e ligou a aparelhagem. De seguida, sem me perguntar se eu tinha alguma preferência, escolheu um disco.
«Queres tomar alguma coisa?»
«Obrigado. Já me bastou o copo de absinto. Só desejo que te sentes ao meu lado e te agarres muito a mim.»
Obedeceu, submissa.
«Vais mostrar-me como foi o amor de Mário e Patrícia?» perguntou com alguma ansiedade.
Estávamos sentados no sofá, muito agarrados. A música era sugestiva. Quente. Perigosamente quente.
Beijei-a longamente e acariciei-lhe ao de leve os seios. Ela consentiu e deixou escapar um suspiro longo. Ouvia uma música sensual de leões rugindo no ambiente quente da savana. Sugestionado ou não, aventurei-me pelos mistérios dos seus arbustos densos.
Segurou-me docemente na mão e fez-me um sinal para a seguir. Deixámos o disco a tocar e fomos, sem pressas, até ao quarto, deixando parte da roupa pelo caminho.
Aparecemos despidos na cama e o desejo subiu. Sentia-me rei. E ela a minha rainha.
Beijos. Mil beijos. Tesão. Muito para dar e para receber. Cada vez mais. Desejo. Desejo. Vontade daqueles minutos sublimes durarem uma eternidade.
Fui derrotado antes de tempo porque deixei-me arrastar pelo vendaval das emoções, apesar de morder o lábio até quase sangrar.
E assim acabou o primeiro ato. Repouso do guerreiro. Alguma sonolência.
Estava deitado, olhando vagamente o teto. Ela, ao meu lado, tinha a cabeça encostada à minha. De vez em quando ia-me dando beijos suaves ao longo do corpo.
Aqueles momentos relaxantes foram importantes retemperar as forças e preparar a reaparição do desejo.

Enquanto me lavava maquinalmente na casa de banho perguntei a mim próprio se o que sentia pela Maria José era paixão ou era amor. Fiz um gesto de deixa para lá. Ao fazer a pergunta nos termos que estava a fazer já sabia a resposta.
Regressei ao quarto. Olhei-a. Estava tapada pelo edredão e virada de barriga para baixo. Só lhe via o alto da cabeça, mas parecia-me que chorava. Senti de imediato um desejo enorme de a acariciar, mas não consegui. A nossa relação não passava de uma nuvem passageira. Quando chegasse o último dia de agosto acabava tudo.
«Maria José...»
Virou-se.
«Então? Não quero ver lágrimas nesses teus olhos belos. Vá, sorri. Sabes que gosto muito do teu sorriso? Claro. Já te disse mais que uma vez.»
«São horas. O filme deve estar a acabar e a minha mãe não tarda.»
«Encontramo-nos amanhã?» perguntei.
«Sim, meu amor...»
Comecei a vestir-me, em silêncio. Já não tinha palavras. Só a recordação de emoções eróticas.
Beijei-a ao de leve nos cabelos e encaminhei-me, sem pressas, para a porta do quarto. Ela deixou-se ficar deitada, muito quieta, a olhar para mim. Voltei atrás e beijei-a nos lábios.
«Foi bom?» perguntou, lânguida.
«Sim.»
Mas acabou, pensei.
Pouco depois fechava a porta da rua. Lá fora estava uma noite tépida. A lua fora encoberta por uma nuvem passageira.
Então lembrei-me da frase de uma pensadora francesa:
Nous n'auront jamais plus notre âme de ce soir...
E quando chegasse o fim de agosto cumpria-se mais uma vez o meu karma?

Geralmente as despedidas que envolvem comboios dão em separações definitivas. Não cheguei a saber que tipo de ligação nos uniu nos poucos dias de agosto que passámos juntos, no picadeiro, nos bailes do casino e no snack, para não falar noutros locais. Ou melhor: se ela estava apaixonada pela personagem que criei na novela de Os longos dias azuis, ou se por mim. O certo é que foi um mês com bons momentos, momentos esses que foram aumentando de intensidade à medida que o tempo corria. Cheguei a acreditar que estava perante uma ligação duradoura. Mas enganei-me.
A despedida na estação dos caminhos de ferro foi complicada. Houve umas lágrimas no canto do olho, promessas de cartas trocadas, de visitas frequentes à cidade onde José Régio foi professor, escritor e também colecionador de Cristos.
«Vais escrever-me quando chegares a Portalegre?»
«Prometo, Mário.»
Sinceramente acreditei que me escrevia na volta do correio e enganei-me redondamente. Mas fui esperando. Um dia, dois dias, uma semana.
Resumindo: não escreveu. Afinal esta nossa relação não transformou o amador na coisa amada, nem a coisa amada no amador. Aquilo que julgava ter sido um grande amor sempre em crescendo, foi apenas uma paixão que ardeu enquanto esteve presente o comburente.
E ela?, porque não me escreveu?
Não sei. Nem nunca tive curiosidade de saber. Era fácil. Sabia onde encontrá-la. Mas não o fiz. Tive receio de maus encontros. talvez que me tivesse mentido e houvesse mouro na costa.
Mas foi tudo muito estranho. O modo como apareceu na minha vida, a coincidência de haver um livro no prelo que ela adorou ler. Sei lá. Foi mais uma supernova das que libertam toda a sua energia num instante sideral. Depois, transformam-se num buraco negro. Para sempre invisível.
Quanto à minha permanência na Figueira, foram uns longos dias azuis em que o tempo esteve magnífico, o céu quase sempre azul e pouco ou nada de especial aconteceu. Rondas à cidade em jipes Willis e também a pé, preferencialmente no picadeiro, todo ele fervilhando de movimento de pessoas que gastavam os minutos da noite e as calorias. Mas entre essas pessoas, interessavam-me mais as jovens que sempre gostaram de ver uma farda.
Detestava uma coisa. Ou melhor: duas. A primeira era encontrar no café o segundo comandante e ter que me submeter aos salamaleques das continências quando, por azar, estava fardado. Em relação à segunda, devia ser comum a todos os homens que tinham que parar em frente ao tão detestado pátio das galinhas, uma esplanada cheia de mulheres cuja conversação ressoava como se as estúpidas galinhas tivessem aprendido estranhamente a arte de conversar.
Falando ainda metaforicamente de galináceos, neste caso em especial daquilo que considerei ser um grande galo, não me posso esquecer de um lanche que um dia fizemos no gabinete do comandante da nossa Bateria. Comeu-se muito bem e bebeu-se ainda melhor. Depois, como "sobremesa" alguém fez comentários aos cálculos astronómicos que se faziam em relação ao consumo dos veículos militares. Por exemplo, os jipes desafinados consumiam mais do que quarenta litros aos cem, para não falar nas GMCs todo o terreno, com guincho e tudo o mais. Eu próprio cheguei a fazer relatórios com previsões dos consumos para uma instrução de adaptação a todas as viaturas e pasmei com os números atingidos. Perante a realidade dos cálculos, mostrei nessa tarde os tais números ao capitão e ele, sem olhar para as folhas, disse que não passasse cartão aos números porque no Exército era mesmo assim: tudo muito grandioso e insignificante em comparação com os gastos na guerra do Ultramar, uma guerra sem sentido que trouxe o desgosto a muitos lares.
«Não me venha cá com a merda dos números!» irritou-se o capitão Pascoal, já com um grão pesado na asa. «Tenho outros para contrapor: os muitos mortos e estropiados que a guerra já deixou como herança. E para quê, diga-me? Angola é nossa, uma treta. Um dia vamos entregar tudo de mão beijada! E é sempre a mesma merda. Os milicianos são atirados para o mato e a maior parte dos militares de carreira ficam nas cidades a embebedarem-se em mares de cerveja e a empanturrarem-se com camarões e lagostas, a comerem, sem escrúpulos as mulheres do alheio, sem imaginarem que as suas, à míngua, também são comidas. Esta guerra não tem sentido. É uma guerra de guerrilha e está tudo dito. Só temos uma hipótese: virarmos as costas e deixarmos os pretos à porrada uns com os outros. É uma visão do futuro. A minha visão. E falta ainda acrescentar uma coisa. Tudo por causa do petróleo e da porra dos diamantes.»
«É por isso, amigo capitão Pascoal, que te embebedas com os soldados, simulando controlares as pequenas obras de restauro que se fazem no quartel...» Pensei. «Mas estás-te a esquecer de uma coisa que também considero ser importante. Muitos portugueses que fizeram a sua vida em Angola, bem como os seus filhos já nascidos lá, deixarão em breve os seus bens e voltarão à Pátria com uma mão atrás e outra à frente, enquanto que alguns grandes senhores da guerra e da política, que ditarão amanhã o fim da mesma, feitos ratos que abandonam o navio antes deste se afundar, regressarão intocáveis, com o prestígio reforçado e com os alforges cheios...»
«Disse alguma coisa, nosso aspirante?»
«Nada, meu capitão. Mas, já agora, se me permite, aproveito para realçar a boa camaradagem que existe na Bateria, bem como estes momentos agradáveis e... também a qualidade do vinho.»
Ia para acrescentar "que tão bem conhece" mas achei que era forte de mais para o capitão "guaritas".
«Deixe-se de paneleirices. Só fica ressalvada a qualidade do vinho. Quanto ao que se está a passar no Ultramar, não retiro uma única linha.»
Bebeu de um só trago o conteúdo do copo e afundou o olhar na mesa. E a seguir fez-se um silêncio de quase morte. Senti o capitão Pascoal atolado em areias movediças. Só por isso interrompi o silêncio.
«E se falássemos de coisas mais alegres?»
«Escutem esta...» Disse alguém. Vieram então as anedotas, umas insípidas, outras das frescas, bem abrilhantadas com os palavrões do capitão Pascoal. Impressionante. Cada anedota que se seguia vinha mais enriquecida com o vocabulário inesgotável do incrível capitão Pascoal. Um bruto mas uma boa alma. Até que bateram à porta.
«Quem será o cabrão?» perguntou o capitão, já com a voz velada.
Olhámos uns para os outros.
Quem podia ser?
Num tom de voz quase natural, mas forte, o capitão ordenou:
«Bata com os cornos.»
Rimos de imediato com a graçola do capitão.
«Ó Carmo, abre lá a porta a esse cabrão, meu paneleiro...»
E o Carmo abriu a porta.
Virou-se mediato para nós de imediato, apalermado.
«Viste alguma alma do outro mundo, ó meu paneleiro?»
Pudera!
A visita inesperada assomou à porta e cumprimentou os presentes, que logo se levantaram como uma mola.
Era o segundo comandante.

Que teria acontecido se a Maria José me escrevesse de Portalegre, cumprindo assim a promessa feita?
Hoje, passados muitos anos, continuo ainda na dúvida. O que aconteceu foi uma paixão fulminante, ardente, daquelas que só temos uma vez na vida. Paixão, entenda-se. Só paixão.
Não sei o que se passou com ela na altura. O que o coração transmitiu à cabeça, ou ao contrário. Se quis aproveitar ao máximo o tradicional fumo de verão, se se apaixonou mesmo de verdade e regressou a Portalegre com a convicção que a chama não se tinha apagado, se tinha na cidade de Régio uma ligação mais forte e com garantias de ser duradoira, se entrou em contacto com o meu tio Carolino e se este aconselhou-a a pensar bem no passo que ia dar, se tantas coisas que não posso imaginar. Só sei que o tempo passou, ela não escreveu e eu achei por bem não reagir, remetendo-me ao silêncio. Até porque poucos meses depois fui colocado em Lisboa e voltei a sentir todo o mistério e atração que a cidade proporcionava, abrindo-me novos caminhos para se extinguir de vez a paixão pela Maria José. Uma paixão perigosa porque quase me levou consigo e ainda não tinha chegado o tempo de perder a liberdade guardada tão ciosamente. E teria sido trágico acaso uníssemos as nossas vidas.
Muitos foram os beijos que demos. Longos. Apaixonados. E tantos foram perdidos!


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