segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O Escarumba

 



Ele não tinha a pele escura, mas a minha tia alcunhou-o de Escarumba, sem nunca lhe chamar diretamente por esse nome. Era moreno a atirar para o encardido, talvez marcado na infância por um excesso de exposição aos raios solares. 
Que encantos encontrou nele a minha prima Maria Odete para o escolher como potencial companheiro para toda a vida?
Não sei. Imagino que viu nele talvez uma espécie de diamante em bruto que afinal foi mal talhado e assim nunca ganhou brilho. Longe disso. A tia Adelaide soube desde sempre, mas, perante um caso consumado como aquele, não teve outro remédio senão optar pela lapidação à sua maneira do apaixonado da filha e teve um relativo êxito no processo. Claro que ele nunca fora um diamante em bruto. Longe disso. Mas, do mal o menos. Fez dele um homem quase às direitas e um ano depois de se conhecerem, os jovens apaixonados casaram-se. O problema era o tom escuro da sua pele. À altura olhava-se muito a isso. Mas até não era o caso. De qualquer forma na sua mente, era. Talvez por isso, para ela foi sempre o Escarumba. Não por desprezo, mas porque tinha o hábito de etiquetar as pessoas com alcunhas, como por exemplo o “Cara de Anjo”, um seu vizinho, homem dono de uma pequena loja de tecidos e botões, contígua à janela da casa de jantar cujo acesso era feito por três degraus de madeira, sempre muito encerados. O parapeito da janela ficava quase ao nível da rua, mas por enquanto não digo mais nada sobre a janela. Aliás, pouco mais direi da mesma porque não é relevante para a história.
Noutras alturas também lhe chamava o "caga e tosse", sobretudo quando o nosso homem usava a divisão da casa para satisfazer as suas necessidades fisiológicas e não só. Nesses momentos era intenso o cheiro a fumo de tabaco, além da tosse resultante do ato que, em si, nada tinha a ver com o uso normal da casa de banho. As permanências eram longas e a culpa recaía no imprescindível jornal desportivo, principalmente das páginas destinadas ao Benfica do seu coração que lia e relia com muito carinho. Nesses momentos a minha tia não se coibia de o criticar pelo excessivo tempo de permanência no “salão do vale solitário” [1].
«Teixeira, larga a casa de banho. São horas de ires para o trabalho…»
E, entre dentes, para a filha:
«Este Escarumba de um raio enche-me toda a casa de fumo, Maria Odete!»
«Ó minha mãe, não implique com o homem. Ele mata-se a trabalhar no forno que é aquela oficina. O futebol é o seu único passatempo.» 
«Achas?»
Queria dizer?
A Maria Odete era então a mulher do Escarumba e minha prima em segundo grau. Dormiam num quarto interior que era um autêntico braseiro no verão. Talvez por causa disso, anos mais tarde o Escarumba ia tendo um problema grave do coração. Ou então teve um fanico em pleno combate após uma bruta feijoada ou assim.
Esse quarto dava para a casa de jantar por uma porta e por outra para o corredor, este coberto por uma passadeira onde predominava o vermelho, que comunicava com a zona da cozinha e da casa de banho e com a casa de jantar. Quanto ao quarto dos meus tios ligava com a dita casa de jantar e tinha uma exígua janela virada para o exterior, quase ao nível do passeio. Portanto, os meus tios e primos habitavam uma cave.
O tio Adão tinha as horas trocadas com o resto da família em certos e indeterminados dias da semana. Era chefe de mesa e levantava-se por volta das cinco da manhã para ir para o café-restaurante situado na avenida da República, já perto do Saldanha. Nunca cheguei a entender porque se levantava tão cedo. Mas a verdade é que era assim. Como compensação, chegava a casa por volta das quatro da tarde e dirigia-se, mais calado que um mudo, logo para o quarto, levando na mão o inseparável companheiro que era o jornal “O Século”[2]. Pouco depois, ouvia-se o folhear constante das páginas do jornal e começava-se a inalar o cheiro intenso do tabaco ardido, bem mais intenso do que o do genro. Se não era “Mata Ratos”, andava para aí. O tio Adão, calvo e altaneiro, não se fazia velho na cama. Por volta das seis da tarde saía de casa e ia ter com os amigos à taberna que ficava perto de casa e que estavam a jogar cartas, bisca ou sueca (não sei), bebendo copos de tinto e petiscando sardinhas fritas ou isso, só regressando a casa perto das oito que era a hora do jantar.
Entretanto, se o tio Adão ia pela tardinha para a taberna jogar as cartas com os amigos, o meu primo passava esse mesmo tempo na tabacaria que dava para a Visconde Valmor. Aí “rachava lenha" com o dono da mesma. O assunto era invariavelmente o glorioso Benfica, o último golo de cabeça do José Águas, e o Salazar e a Pide e também a fanfarronice de “eu faço e aconteço”. Enfim, um inimigo público número um que, por sinal, tinha muito de fanfarronice e pouco mais, do tipo "cães ladram e a caravana passa".
Isto passava-se no verão, tempo em que, durante duas ou três semanas, eu era o quinto elemento da família. Tudo por causa dos exames que tinha que vir fazer a Lisboa, visto que na “minha vila de ontem” só havia as passagens do primeiro, terceiro, quarto e sexto anos. Acresce que a minha estadia na casa da tia Adelaide começou a partir da época do exame de admissão ao liceu. Uma nota. Nessa altura, poucos ou nenhuns criticavam os traumas que os exames provocavam nas criancinhas, nem, por exemplo, extensos trabalhos para casa, vulgo TPC. E muitos outros como eu, estamos cá para dizer que antes pelo contrário esses tempos nas aulas nos fizeram crescer em equilíbrio e atingir os objetivos que nos propusemos. Eu e os muitos outros estamos ainda cá, na luta diária que a nossa época exige e, particularmente no meu caso, só ganhei com os rigores, talvez excessivos, a que fui submetido e que tantos benefícios me trouxeram. As crianças não são nem nunca foram uns coitadinhos “entregues aos bichos”. Precisam de crescer sem protecionismo excessivo, sem violência e com liberdade de poderem manifestar o seu ego. Mas não era por aqui que queria seguir. Se continuasse, quebrava o rumo da história. Como José Régio dizia no seu famoso poema "Cãntico Negro", sei que não vou por aí
As recordações mais recuadas no passado e que considero as mais ricas, remontam ao princípio do verão em que vim a Lisboa fazer o exame de admissão ao liceu e também aos dias antes do exame do segundo ano.
O exame de admissão ao liceu foi fácil. Estava bem preparado e nem precisei de frequentar as aulas (pagas) de preparação para o exame em Lisboa.
Um à parte referente às aulas com o “Machadinho”, o professor da quarta classe. Foi há muito tempo, mas tenho bem presente aquele momento repetido em que chamava meia dúzia de alunos para se perfilarem à frente do resto da turma, ao mesmo tempo em que exibia e manipulava a célebre régua que “aquecia” as mãos de quem não tinha respondido a uma pergunta ou então se tinha portado menos bem. Não tinham respondido às perguntas e as consequências estavam à vista, porque o tempo não parava e não consta que parou desde que se deu o célebre big bang. Nem acelerou. O que aconteceu foi o aumento da velocidade de afastamento das galáxias provocado pela poderosa energia escura. Se é que a energia negra existe.
Voltando aos tempos da quarta classe, o professor, querendo ser o protagonista de uma peça de teatro, virava-se para a turma e punha a régua ao alto. As perguntas e as respostas estavam feitas. Era a hora do balanço, pelo que se fazia um silêncio ruidoso na sala. Até que o professor dizia, com um sorriso sádico gravado no rosto:
«Venha quem não soube…» 
Erro seu. Má fortuna para alguns alunos que já lá estavam, perfilados, à espera dos acontecimentos nos próximos segundos. Não me lembro se ele sorria seraficamente ou não. Com bondade não era, não senhor. Só me lembro da récita-resposta dos alunos nas suas carteiras, ao mesmo tempo que apontavam o indicador acusador para os potenciais "criminosos" que iam ser castigados:
«Regulamento, disciplina militar!»
E a régua trabalhava forte, como lhe competia. Se sentia a dor, não me lembro. De certeza que choraria de vergonha se fosse único a apanhar uma reguada. Assim, o sentimento diluía-se por via da meia dúzia de alunos à espera do castigo. Apesar da violência do stress, era positivo. Não isolava o aluno para o castigo.
Voltando…
Era já tempo das orais e tinha, nas andanças para o liceu, por habitual companheira a minha tia Adelaide. Tomávamos o elétrico para o Carmo, saíamos na rua da Escola Politécnica, descíamos a rua de S. Marçal e em pouco tempo tínhamos o liceu Passos Manuel à vista. Foi assim que fizemos ao longo do período das provas escritas. Não me recordo se o caso que se segue aconteceu no exame da admissão ou já no segundo ano do liceu. Aconteceu. Está dito. Está dito e é certo. Houve um dia em que as coisas correram mal logo à partida. Como de costume, os elétricos vinham apinhados de gente e foram passando, um após outro, sem termos hipótese de entrar neles. O tempo corria. Eu não podia chegar muito atrasado. Só havia uma solução. Seguirmos no próximo elétrico de qualquer maneira. E assim foi, ou teria que ser. Mas correu menos bem desta vez.
«Pendura-te!» ordenou a minha tia, à aproximação de mais um elétrico que vinha apinhado.
Consegui pendurar-me na pega traseira e a tia Adelaide também fez o mesmo com a sua mão esquerda. Mas a mão resvalou e a senhora caiu no empedrado da rua. Senti-me impotente, sem saber o que fazer. Mas ela, caída no chão, provavelmente com muitas dores, fez-me um sinal vigoroso para prosseguir viagem. E lá fui. Continuávamos a ser dois. Mas agora éramos eu e a solidão. Felizmente não entrei em pânico. Até que chegou altura de sair do elétrico e dirigir-me para a rua de S. Marçal que desci a correr pois já estava atrasado.
Senti-me desesperado. Ia chegar atrasado e não sabia o que me esperava quando entrasse na sala onde eram as provas orais. 
O Mário sofria!
Quando entrei na sala já os exames tinham começado. Tive o bom senso e coragem de dirigir-me à mesa dos exames e explicar a um dos professores o motivo do atraso. Felizmente ele disse-me para não me preocupar. Que seria chamado em breve.
«Tem calma, rapaz, não te preocupes. Queres um copo de água?»
«Obrigado, senhor.»
E tudo correu bem. Depois de ser examinado, dirigi-me para uma das carteiras. Foi então que vi a tia Adelaide à porta da sala e fui logo ter com ela.
«Correu bem o exame, Mário?»
Olhei para os seus joelhos todos esfolados.
«Correu, tia.»
«Isto não é nada. Vem tomar o pequeno almoço. Hoje queres um queque em vez do pão com manteiga?»
«Pode ser um bolo de arroz, tia?»
Ora acontece que a tia Adelaide em momentos especiais sabia temperar a sua austeridade, dando um tom um pouco mais suave à voz autoritária que me impressionava bastante.
Lembro-me também que levou-me ao cinema mais que uma vez. Nunca esquecerei um filme que tinha o grande tenor Mario Lanza como principal protagonista. “Nas redes do Amor”, era o nome do filme.
A certa altura do filme, alguém das personagens disse-lhe:
«Canta-lhe a Tinalina…» 
Já em casa comentámos o "canta-lhe a Tinalina" à mistura com sorrisos.
«Quem é essa Tinalina?» perguntou o Escarumba, intrigado.
«Tens alguma coisa com isso?» 
«Mãe!»
«Maria Odete, ele já sabe que não gosto de curiosos...» 
Não voltei a ver esse filme. Na cena em questão, talvez fosse um modo de agradar a uma jovem por quem se apaixonara. Ou assim.
Nessa noite, depois do jantar, a minha tia, talvez agradada com o meu comportamento após a sua queda desastrosa, ordenou ao Escarumba para me levar à Feira Popular que se situava não muito longe da casa. Achei curiosa a expressão do seu rosto a iluminar-se. 
«Aqui há coisa!» pensei. 
«Com muito gosto, minha sogra.» 
«Temos caso.» Disse ela, também desconfiada.
«Nada disso. Preciso de espairecer. O trabalho apertou.» 
«E verdade, mãe, o Teixeira já se queixou que anda cansado. Aquele maldito ferro escalda-lhe o peito. 
Tempo de austeridade. Bem podia ter ido também a prima Maria Odete e nunca teria acontecido o que aconteceu.
«Estás pronto, Mário?» perguntou o Escarumba.
«É melhor ires primeiro à casa de banho.» Disse a tia Adelaide. 
E fui.
«Pega lá uns rebuçados para te entreteres, rapaz.» Ofereceu a prima Maria Odete.
E lá seguimos os dois. Fiquei extasiado com os carrosséis e os carrinhos de choque. Mas o meu primo passou ao largo. Tinha outros objetivos. O pavilhão dos chocolates Regina. Não. Não ia fazer um furinho num dos vários e tentadores círculos dos dispositivos dispostos no balcão que davam direito a chocolates depois de prévio pagamento. Eu não tinha dinheiro e o meu primo por afinidade não mostrou vontade de gastar dinheiro comigo.
«Mário, vai ver o carrossel e os carrinhos ou dar uma volta pela feira. Mas não te afastes muito. Eu fico por aqui. Já sabes onde estou.»
E lá fui. Magicava no motivo de tanta generosidade do Escarumba ao deixar-me à solta sem mais nem menos. Ali havia coisa, mas não sabia que coisa era. Má para ele de certeza que não era.
Como gostava de andar no carrossel na feira de junho da minha vila! Principalmente na girafa. E das cenas dos robertos. E das exibições dos protagonistas do poço da morte nas motos com as rodas a trabalhar perigosamente sobre os rolos em movimento. Um espetáculo para encaminhar clientes para os espetáculos que estavam quase a iniciar-se. Enfim, as barracas do tiro ao alvo e também dos comes e bebes. E o fim da feira com tudo desmontado. Momentos ideais para procurar berlindes e caricas.
Saudades desses tempos…
Até que me cansei de ver o carrossel a rodar e os carrinhos de choque. A grande roda estava longe e os meus tenros anos não me davam coragem para afastar-me muito. Quanto ao poço da morte devia estar longe. Assim, voltei ao pavilhão dos chocolates Regina. Sempre queria ver se ele estava a empanturrar-se com os chocolates e nem sequer me dava uma nica de um. 
Malvado Escarumba!
«Onde está ele?» pensei.
Descobri-o rapidamente. Conversava animadamente com uma das empregadas. Então era isso. De onde a conhecia?, perguntei aos meus botões, aliás sem esperança de ter uma resposta concreta.
«Ah… estás aí. Vai dar mais uma volta, mas não demores.»
Nem “toma lá cinco tostões e vai dar uma volta no carrossel”…
Fingi obedecer e deixei-me ficar à porta. Aquilo parecia-me conversa a mais. E depois ele estava a pegar-lhe no braço. Ia fazer-lhe mal? Qual coisa. Estava a fazer-lhe festinhas.
Ai se a minha prima sonhasse!

O esperto do Teixeira era alfaiate e tinha a oficina no último piso. Duas costureiras trabalhavam para ele.
«Mário, vai ter com o teu primo.» Sugeriu a tia Adelaide.
Aliás, já não era a primeira vez que lá ia. Entretinha-me enfiar as linhas nos buracos das agulhas e assim adiantava trabalho às costureiras. E, quando me cansava, subia dois degraus de madeira até uma janela pequena donde podia ver a rua em baixo.
Nessa manhã só estava uma costureira.
«Mário, podes subir à janela e ver o que se passa na rua. Mas tem cuidado. Não te debruces muito.»
Obedeci. E ali fiquei entretido a ver as pessoas e os carros que me pareciam muito pequenos. Senti um arrepio e um temor de morte quando imaginei que podia cair dali para a rua. De certeza que ficava feito num pudim. Portanto, todo o cuidado era pouco. Preferi apreciar a paisagem que os meus olhos atingiam na distância. 
Foi então que ouvi:
«Não faça isso, senhor Teixeira. Está ali a criança…»
Intrigado, voltei-me para trás. O que vi deixou-me perplexo. O Escarumba estava a meter-lhe uma mão por debaixo da saia e ela não reagia. Antes já o tinha visto a fazer-lhe cócegas nos braços e no resto do corpo e ela ria muito.
«É uma brincadeira, Mário.» Disse na altura.
«Então está bem.» Fingi concordar.
Mas agora era diferente. Ai se a prima Maria Odete soubesse!
Aquilo já não era uma brincadeira. Era mais que isso. Pior que um filme para adultos.
Ao ver-me a olhar com uma certa curiosidade, retirou a mão debaixo da saia dela. A Beatriz (assim se chamava a costureira) continuou a costurar e ele agarrou-se ao ferro com afinco e pôs-se a passar umas entretelas. Achei que era ferro a mais e entretelas a menos. Além disso, pareceu-me demasiado nervoso.
«Queres que enfie mais agulhas, Beatriz?»
«Não é preciso, menino Mário…»
Tinha dez anos e sabia muito bem o que aconteceu antes.
«Teixeira!»
A voz da tia Adelaide chegou até nós vinda do último patamar.
O meu primo abriu a porta da oficina e espreitou lá para baixo.
«É uma hora. O almoço está na mesa.»
Entretanto a costureira despediu-se.
«Até amanhã, senhor Teixeira. Adeus, menino Mário.» 
«Espera aí, Beatriz, preciso que me compres linhas para amanhã.» 
Fiquei especado na sala a olhar para ele. Cheirava-me a marosca. 
«Vai andando para baixo, Mário.»
Saí da sala e fiquei no patamar à espera do Escarumba. 
«Então?» 
Lá comecei a descer as escadas. Entretanto ele tinha encostado a porta. 
Quando cheguei à porta da cave fiquei á espera dele.Até que ouvi as  suas passadas pesadas. 
«Ah, estás aí. Fizeste bem. Toma lá dez tostões.» 
«Obrigado.» 
«Grande velhaco.»Pensei.
«Olha, Mário, não contes nada do que viste. Isto foi só uma vez. Passou-me uma coisa pela cabeça, percebes?»
Disse que sim e pensei que não.
«As pessoas e os carros lá em baixo parecem muitos pequenos.»
«Isso podes contar à prima. Quanto ao resto…»
«A Beatriz tem muitas cócegas debaixo dos braços!»
«Pois tem, Mário!»
«E também onde o primo tinha a mão.»
«Pior ainda. Mas não contes nada à tua prima. Muito menos à minha sogra.» 
«Sogra?» 
«À tua tia Adelaide.»
Cantigas, olaré, Escarumba.
«Está bem, primo Escarumba.»
«O quê?»
«Queria dizer primo Teixeira.»
«Ah. É bom que não te enganes.»
Cresce, cresce, malmequer… até seres um girassol!
Por baixo da saia a Beatriz ainda tinha mais cócegas. E a expressão do rosto era diferente. 
Porquê?
O meu pai levava-me muitas vezes ao cinema. Eu e a demais rapaziada ficámos ajoelhados à frente da primeira fila das cadeiras da plateia a ver os filmes, pois assim os nossos pais não pagavam os bilhetes para nós.
Isto para dizer que os filmes eram uma outra escola onde as crianças aprendiam coisas de adultos.

«Então, Mário, aborreceste-te lá cima?»
«Não, tia.»
«Vêm tão calados! Aconteceu alguma coisa?»
Olhei para o Escarumba.
«Não, tia.»
«Claro que sim.» Pensei. «O Escarumba e a Beatriz divertiram-se a valer.»
«O que é o almoço?» perguntou o meu primo..
Disfarçava nitidamente.
«Línguas de perguntador.»
«Lá está vossemecê a implicar comigo!»
«Mário, já lavaste as mãos?»
«Vou lavar, tia.»
Nem línguas de perguntador nem bifes de cebolada, que era o meu prognóstico. Arroz de pimentos com carapaus de gato, que a tia Adelaide tinha comprado na praça ao ar livre da Marquês de Tomar. A acompanhar, uma salada de tomate, nem muito verde nem excessivamente maduro. O tio Adão só comia tomate muito maduro, pelo que havia uma tigela só para ele.
Enquanto comia ao despique com o primo Teixeira, pensava no que ia fazer a seguir ao almoço. Talvez fosse para a janela fazer um horário da passagem dos autocarros que passavam, do outro lado da avenida, para a Picheleira. Mas não era boa ideia, pois já estava farto de fazer horários. Ao menos, o meu primo Justino, que tinha muita habilidade para o desenho, entretinha-se a desenhar os autocarros com grande pinta e nunca se cansava de repetir os desenhos.
«Queres ir ao jardim zoológico com a tia?»
Era uma boa ideia. Impossível haver melhor ideia.
«Mas depois do almoço ainda vais ao carvoeiro comprar um litro de vinho tinto para o teu tio, está bem? E preciso também de uma couve portuguesa. Não te esqueças de passar pelo lugar. Depois vais à leitaria do senhor Sousa comprar manteiga. Toma lá vinte escudos. Não os percas.»
«Com tanta coisa o rapaz ainda se esquece de alguma.» Criticou a prima Maria Odete.
«Ele tem boa memória. Queres ir também connosco ao zoo, Maria Odete?»
«Mãe, tenho o vestido da madame Graça Fonseca para acabar.»
Esqueci-me de dizer que a minha prima era modista, mas não tinha costureiras. Uma requintada modista que trabalhava para senhoras da alta sociedade.
«Está bem, minha filha, mas ao menos come mais alguma coisa de jeito. És uma niquenta que até mete raiva!»
«Ó mãe, não tenho apetite.»
«Queres ir para Hollywood?»
«Lá está vossemecê outra vez! Deixe a minha princesa em paz!»
«Farsante! Se eu desenrolasse o rosário…» 
Então a tia Adelaide já sabia das virtudes do Escarumba.
E para si deve ter dito:
«Escarumba dum “caga e tosse”…» Ri-me do pensamento engraçado. 
«Que aconteceu, Mário?» 
«Nada, tia.»
«Bom.»
E continuei a rir a bom rir. Agora para dentro, está-se a ver.
Não gostava lá muito, mas tinha que ser. Ir à carvoaria e ao lugar. E também à leitaria do senhor Sousa que tinha sotaque beirão. 
Um certo dia estava de mau humor e até chamei bruxa entre dentes à minha tia. O que vale é que falei muito baixo e ela não ouviu. Pobre da minha tia austera. Agora reconheço que, embora ríspida, tinha bom fundo. Nessa época achava que ela era o quero posso mando e não me agradava lá muito o modo como me criticava, como, por exemplo:
«Primeiro entram em casa os mais velhos e depois tu, entendes?»
Mas eu tinha só dez anos!
Portanto, aprendi algumas boas regras de etiqueta com a minha tia.
Perdoa-me, tia, pelos pensamentos negros que tive a teu respeito na altura. Era criança, compreendes? O que os meus pensamentos traziam cá para fora o coração não queria ver. Foi uma má avaliação a que fiz.
De facto a minha tia austera era o comandante em chefe daquela zona estrita. Só o tio Adão é que fazia o que lhe dava na real gana, mas apenas quando chegava a casa bêbado como um cacho, depois de ter servido um casamento. Só lhe dava para rir e falar sozinho. Todos já sabiam o que a casa gastava e deixavam-no falar à vontade. Por outro lado, trazia muita coisa que tinha sobrado da boda. Por sua alta recreação, ou simplesmente por oferta dos ex-nubentes. Era uma espécie de compensação para o estado em que vinha. O tio Adão não era pessoa para se abrir, nem levado ao extremo. Considerava-o um homem pouco sociável, mas nada quezilento. E também muito agarrado ao dinheiro. Isto porque, uma vez na vida, convidou-me para ir à Baixa. Para grande espanto meu fomos a pé. Era novo mas mesmo assim cansei-me. Pensava se repetíamos a dose no regresso. E os bilhetes só custavam cinco tostões!
Chegados ao Rossio, atravessámos os Telefones e seguimos pelo passeio até ao Nicola. Aí entrou no café e encontrou-se com uns amigos que deviam ser também empregados de mesa. Deduzi pelo tema da conversa. Procurei entreter-me observando as pessoas em volta. Nada interessante. Era tudo gente velha.
Nem um bolo de arroz comi. Contentei-me com um garoto claro.
«Muito claro para a criança, Onofre.» Tinha dito o meu tio ao empregado.
Não estivemos mais que meia hora no café e regressámos. Felizmente que a ideia de irmos a pé não se repetiu. Agradou-me muito a viagem num daqueles elétricos todos abertos. O calor apertava, mas havia ainda um pouco de aragem.
Foi um dos raros contactos diretos que tive com o meu tio Adão, a tal pessoa que falava menos que os mudos.
«Ah ah… Tenho outro casamento amanhã.»
«Estás bonito, Adão. Vai deitar-te quanto antes.» Ordenou a minha tia, evitando exasperar-se talvez devido à presença de um estranho na família.
E foi. Aos tombos, mas foi.
Eu não tinha quarto. Só restava naquela cave, que devia ser muito húmida no inverno, um recanto junto à casa de banho que dava à justa para um divã. Havia também uma pequena estante encostada à parede.
Cinco da manhã e eis que acordo com uma imprecação que me pareceu ser de um fantasma, já que uma luz fraca, tremelicante, vinha lá dos lados do corredor. Assustei-me deveras, mas permaneci calado, expectante. Alguma coisa ia acontecer. Sentia medo, mas não queria perder pitada.
«Porra!» ouvi. «Quem deixou aqui uma frigideira no meio do corredor?»
Afinal o fantasma era o tio Adão. Vi-o pelo canto do olho, todo vestido de branco, com uma espécie blusa de mangas compridas e para baixo vestia umas ceroulas. A completar a cena, um carapuço com borla cobria-lhe a cabeça e parte da testa. Iluminava-se com uma vela (daí o tremelicar da luz) para não perturbar o sono dos que dormiam, mas não conseguiu evitar o encontro imediato do terceiro grau com uma frigideira que continha remédio para as baratas. Uma papa que matava que se fartava. Era um espetáculo nojento ver, de manhã, no campo de batalha, dezenas de baratas viradas de patas para o ar. Apesar do morticínio, outras não deixavam de aparecer a meio da noite seguinte para se deliciarem com a maravilhosa papa que tanto as atraía. E assim sucessivamente. Uma batalha que não tinha fim.
Acabei por adormecer. Ao lado, à minha esquerda, como já disse, havia uma estante com poucos livros que leria nos anos seguintes, talvez porque não tinha outros para ler, ou porque sim. “John, Chauffer Russo”, de Max du Veuzit (Coleção Azul) e “As Lições do Menino Tonecas” do José de Oliveira Cosme que li e reli nos verões dos exames do segundo e quinto anos. Claro que quando cheguei ao sétimo, ocupei os meus tempos livres de outra forma durante os quase quinze dias que passei na casa da minha tia. Alguma autonomia que tinha já no quinto ano tornou-se em quase total autonomia no sétimo. Depois, entrei na Faculdade de Ciências e fui para uma pensão na rua de São Bento. Visitei esporadicamente a minha tia Adelaide, senhora austera que mandava na casa onde habitavam o marido, a filha e o manhoso do “caga e tosse”, mais alcunhado impropriamente por Escarumba, o tal alfaiate que tinha a oficina no último piso do prédio e que gostava, pelo menos, de fazer cócegas às costureiras, além de namoriscar com as empregadas dos chocolates Regina que faziam tudo para os visitantes fazerem um furinho nos dispositivos verticais que até podiam deixar soltar-se uma bola dourada que dava direito a um chocolate de dimensões superiores. O chamado jackpot dos chocolates.
O Escarumba só namoriscava a jovem dos chocolates Regina na Feira Popular, ou havia mais mar e tardar em voltar?

Tudo mudou. A Feira Popular já não existe ali nem em parte alguma. Os meus tios e primos partiram para um lugar incerto. O Mario Lanza há muito que não canta a “Tinalina” para a sua apaixonada do filme. A profissão de costureira extinguiu-se ou está está em vias de extinção. Quanto aos carapaus de gato que se vendiam ao quarteirão e ao cento por tuta e meia, hoje, embora seja proibida a venda, custam os olhos da cara, mas são deliciosos, acompanhados ou não por um arroz de pimentos.
Eu próprio também estou em modo de mudança e continuo a dar razão ao meu saudoso professor de Filosofia e à Anna de Noailles [3]. Agora conto histórias cada vez mais viradas para o passado, a caminho das origens. E vou continuar… até que deixe de ser eu!
Escarumba, meu primo emprestado, diz-me se desse lado da porta ainda passas a ferro entretelas e namoras costureiras. Se sim, por favor não dês qualquer sinal. 


[1] “Neste vale solitário, onde a vaidade se apaga… todo o fraco faz força e todo o valente se caga”

[2] A propósito do jornal “O Século” lembro-me de uma lamentável ocorrência no preciso momento em que fazia exame de Desenho do 2º ano no Passos Manual. A certa altura deflagrou um incêndio pavoroso no edifício do jornal e assisti em direto ao mesmo. A tragédia também caiu sobre mim. Valeu-me um oito e meio…

[3] Nous avons tous les jours l'habitude de voir
Cette route si simple et si souvent suivie,
Et pourtant quelque chose est changé dans la vie,
Nous n'aurons plus jamais notre âme de ce soir...


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