sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O número da bola

 


Uma utopia perfeita. Ausência de tiros. De violência. Nunca havia guerra, nem sequer o doutor Mamede entregava as ceroulas na lavadeira sempre que ouvia o troar de um canhão. Isto segundo rezava um depoimento do Slimpas, meu amigo de aventuras dos tempos de infância, lido perante a turma e com a complacência do doutor Maior, o nosso professor de Português do terceiro ano. Uma redação muito gozada por nós, supostamente realista, lida em tom de epopeia, e em que punha a nu em termos jocosos os dotes militares do professor, um ex-combatente que fez vários relatos nas aulas das refregas ocorridas da guerra de 1914/18.
Em boa verdade, o nosso de Francês nunca chegou a conhecer o teor desta redação. E ai do seu autor. Mas a história que se segue não fala do doutor Mamede, bom professor na gramática, mas muito mau na conversação. Já para não comentar a falta de pulso notória que tinha com os alunos.

Tinha saído mais uma das coleções dos cromos da bola e toda a rapaziada da escola comprava, trocava os bonecos da coleção, jogava ao berlinde ou à pedra por vias de aumentar o seu espólio. Não se falava noutra coisa senão nas trocas e baldrocas. Era sempre uma festa quando chegavam novas coleções de jogadores da primeira divisão.
«Queres trocar o Albano pelo Rogério Contreiras?»
«Troco, uma gaita! Bem sabes que vale muito mais que esse frangueiro do guarda-redes do Benfica.»
Admirava esses dois jogadores, mas o Sebastião Lucas da Fonseca, mais conhecido por Matateu, era o meu ídolo e o Belenenses, o meu clube do coração. Quanto ele e a equipa da minha vila jogavam, não sabia para que lado virar-me. O coração dividia-se e não pendia para qualquer dos lados. Era isso.
Pronto! A ideia era decidir ser dos dois. Caso arrumado, mas muito complexo..
O meu pai levava-me ao futebol e eu delirava. O momento da entrada era complicado, pensava eu. É que não pagava bilhete e fazia-me sempre pequenino no momento em que passava entre os porteiros. Os tempos eram difíceis e o meu pai precisava de poupar para não faltar em casa o essencial. Depois, o meu pai era de esquerda, portanto do contra, era prejudicado. Alguns colegas meus, filhos de pais abastados e da situação estavam isentos do pagamento das propinas na escola secundária. O meu pai, não. Pagava-as por inteiro Apesar das dificuldades, de vez em quando, lá vinha um ou outro pacote de castanhas, na época das mesmas. Também um pirolito com os seus picos que tomavam de assalto as narinas, mas que não tiravam o sabor agradável que nunca mais encontrei igual depois que as engrenagens do tempo destruíram o que ficou para trás, mas não o esquecimento.
Foram tempos felizes que recordo com saudade. Depois do jogo, ficávamos em frente à montra dum café, esperando que fossem afixados todos os resultados dos jogos da primeira divisão e do clube da terra. E, para terminar em beleza, descíamos por ruas estreitas até que chegávamos ao Escondidinho, uma taberna típica onde lanchávamos e tínhamos oportunidade de ouvir o fado vadio cantado por inevitáveis fadistas de ocasião. Um deles era pai do já citado conto e quinhentos [1], um colega dos tempos da mestra que escrevia os números da direita para a esquerda e que eu e os meus colegas da mesa achávamos que era um grandessíssimo burro.
Por volta das sete horas chegávamos a casa e a minha mãe começava a preparar o jantar.
Mais uma vez, saudades desses tempos...

Continuando no passado remoto, numa certa manhã, o Vítor apareceu no jardim. Vinha do lado norte e todo ele era sorrisos. Trazia consigo uma caixa cúbica em lata dos bonecos da bola. Há muito que ele rondava a caixa dos rebuçados à venda na cervejaria perto da praça. O dono da cervejaria era um homem muito gordo que eu via muitas vezes sentado numa cadeira à porta.
«Então sempre conseguiste!»
«Sim. Tenho andado a vigiar a caixa e achei que hoje era o dia porque os rebuçados estavam quase a roçar o fundo. Comprei-os todos.»
«Vamos apanhar uma barrigada de rebuçados!»
«E também uma caganeira das grandes. Que se lixe, Mário. Fica o prazer. O resto logo se vê»
«Já reparei que também trazes a bola. Mostra-ma.»
Passou-ma para a mão. Era uma bola de futebol a sério. Lembrei-me que já tivera uma que me foi oferecida por dois amigos do meu pai uma. Era tão boa que rebentei com ela em pouco tempo.
«Parece boa. O Tozé vai ficar invejoso. Ele é quem traz a bola para jogarmos no pátio das Finanças.»
«Pois vai.»
O Tozé deixava de ser imprescindível.
«Olha lá uma coisa, gastaste muito dinheiro?»
«Cerca de vinte escudos.»
Observei os rebuçados e fiz uma estimativa rápida. Não me pareceu. Deviam ser bem mais que duzentos e a um tostão cada...
«Morde aqui, mentiroso. Gastaste mais!»
Limitou-se a sorrir. Fora apanhado em falso. Quanto à origem do dinheiro era com ela. Vinte escudos era muito dinheiro. Quanto mais, quarenta, por exemplo. Era lá com ele e as minhas estimativas que se lixassem.
Fomos para um banco em meia lua, todo de pedra mármore, onde costumávamos jogar futebol com moedas. Faziam-se a lápis as duas balizas. Cada um dos intervenientes usava uma moeda de alpaca de cinco tostões e a bola era uma mera moeda de tostão. Depois, com habilidade e sorte, tentávamos acertar na bola com um golpe do dedo médio e procurando fazer efeitos especiais. Cada um jogava na sua vez. Havia livres ou grandes penalidades quando se acertava no outro jogador e falhava a bola. O objetivo era marcar golo. Só mais uma coisa: os guarda-redes eram moedas de dois tostões.
«Não acho que custou vinte escudos ficares com o número da bola.» Insisti.
«Pronto, foi um pouco mais.»
«Quarenta?» 
Hesitou.
«Olha, custou dinheiro.»
«Rica resposta. Mas está bem. O dinheiro é teu.»
Estivemos durante bastante tempo a desembrulhar os ditos rebuçados que estavam envolvidos, além do papel habitual, pelos bonecos da bola, aproveitando também para os comer. Apanhámos uma pançada que, fatalmente, daria em dor de barriga das grandes. Tal como previu o Vítor.
Até que chegámos ao número da bola tão desejado que estava colado ao fundo da caixa de lata.
«Espera» pedi. «Já sabes qual é?»
«Nem faço ideia.»
«Vá, desembrulha isso depressa.»
Sorriu com ar malicioso, fazendo render o seu peixe. Aquele compasso de espera irritou-me.
«Adivinha.»
«Não sou bruxo.»
Mas gostava muito de ser. Ou melhor, de ser mágico, como o Mandrake, um herói do Mundo de Aventuras.
O número da bola era o Cabrita.
«Vou-me embora quanto antes. Tenho cá a impressão que está à porta uma dor de barriga das grandes.»
«Como aquela que apanhaste há uns tempos. Atiraste a bola para quinta do Rosa e tiveste que a ir buscar. Só voltaste depois de uma barrigada de cerejas verdes.»
«Pois foi.»
«Naquele dia adivinhei o desfecho. Mas sabes uma coisa?»
Não. O Vítor não sabia.
«Quem me dera ser um mágico. Transformar as moedas de tostão em ouro. A propósito, lembrei-me de uma coisa que aconteceu há dias...»
«Mais uma das tuas histórias?»
«Esta é verdadeira.»
«Então conta.» 
Mesmo que fosse inventada, de certeza que ele pedia-me para contar.
«O Sérgio e o Pica-Morcelas estão tramados.»
«Quem é o Pica-Morcelas?»
«Não interessa. É amigo do Sérgio.  Ele tem essa alcunha e pronto.»
Na verdade, o tal Pica-Morcelas era um dos muitos amigos do Sérgio e tinha três ou quatro parafusos a menos. E havia mais uns tantos que estavam em vias de desaparafusar-se. Aquele caso era verdadeiro. Às vezes, inventava as histórias, mas esta era mesmo verdadeira.
«Calcula que os dois descobriram uma arca no sótão da casa do avô. Estava fechada à chave e forçaram-na. E o que descobriram nela?»
«Sei lá. Não sou bruxo.»
«Nada mais nada menos que um estojo cheio de moedas antigas.
«Ena, pá! E que fizeram eles às moedas?»
«Calcula que os gajos foram vendê-las ao aldrabão do ferro-velho. Ele deu cinquenta escudos pelas moedas. Nem mais, nem menos.»
«Só?»
«Para cada um, meu parvo. Mesmo assim elas deviam valer muito mais.»
«E se o avô desse Pica-Chouriços descobrir a marosca?»
«Pica-Morcelas. Assim é que é a sua alcunha.»
«Tanto faz.»
«E fica sabendo que o problema não está no avô.»
«Então?»
«Esse já está a fazer tijolo há alguns anos.»
«Faz tijolo?»
«Morreu, grande parvo. O problema está quando os seus tios descobrirem o roubo. Mas isso será outra história para o futuro. Por enquanto ficamos aqui. Mas não contes a ninguém. O Sérgio pediu-me segredo total. Contei-te porque sou teu amigo.»
«Conta comigo, pá.»
«Prometes?»
Promessas que o vento levava.
«Bom, vou para casa antes que venha uma dor de barriga. Queres ficar com os cromos?»
«Todos?»
«Menos o número da bola, claro!»
Mas para que queria eu os bonecos repetidos?
Muito simples. Costumava relatar jogos de futebol usando, para o efeito, os cromos repetidos. Tinha uma caderneta onde ia colando, nas folhas das equipas, os cromos da coleção. Com os restantes fazia jogos de futebol no chão do quarto, que relatava na presença dos amigos e dos primos. Precisava só de duas balizas que construídas em madeira, com rede e tudo, e uma pequena bola de prata, da que se usava para invólucro dos cigarros ou dos chocolates. Depois, dispunha os jogadores no campo e fazia deslizar a bola pelos mesmos, a meu belo prazer, relatando o que estava a acontecer. O relato era perfeito. Imitava o próprio eco do público a assobiar ou a aplaudir. O golo era a apoteose final e a assistência também vibrava, conforme a sua predileção. Fingia a maior seriedade quanto ao desfecho do encontro, mas claro que controlava os jogos, favorecendo sempre o meu Belenenses.
Invariavelmente, o Sporting e o Benfica empatavam e assim conseguia agradar a gregos e troianos, política que mantinha a assistência presente e emocionada com o evoluir do jogo.
As grandes penalidades eram apontadas sempre com classe. Bola ao lado do jogador e dedo médio encurvado, à espera do apito do árbitro e um dos espectadores presentes no quarto apitava e ficavam todos na expectativa.
Remate! Bola para um lado e Rogério Contreiras para outro.
Remate! Grande defesa de Azevedo. Mas recarga e gooo...lo! Um golo monumental! 

[1] "Os Verdes Anos de Mário Contador de Histórias" - O Conto e Quinhentos

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Dorinda mal cheirosa

 


Sob o Sol impiedoso o Marinho brincava no quintal. Tinha em mente fazer uma corrida de bichos-de-conta e para tal precisava de os encontrar. Para isso estava a usar uma técnica algo cruel que consistia em arrancar, uma a uma, pela raiz, urtigas que, por sinal, lhe irritavam dolorosamente as mãos. As raízes vinham com torrões agarrados e entre os mesmos estavam os insignificantes crustáceos tão desejados.A pista de corridas situava-se na varanda de chão cimentado junto ao pequeno muro que segurava as grades. Inicialmente juntava-os em monte no ponto de partida. Alguns enrolavam-se como uma bola e tinha que os abrir com cuidado dada a sua fragilidade. Assim, a partida não se realizava ao mesmo tempo e acrescia a dificuldade de ultrapassagens dos mais lentos pelos mais rápidos.
Já tinha rejeitado uns tantos porque procurava o provável campeão, de maiores dimensões, certamente o mais rápido dos rápidos.
«Que estás a fazer aí de cócoras, ó Marinho parvalhão?»
Virou-se, embora já tivesse reconhecido a voz. Era a Dorinda, uma rapariga de pele tisnada pelo Sol e com alguma porcaria à mistura que acentuava o tom. Pensava ele e não estava longe da verdade. Os cabelos, ainda mais despenteados que o costume, também não ajudavam a rapariga no que dizia respeito ao aspeto. A Dorinda era filha da empregada de limpeza da vizinha de cima, uma mulher que lhe complicava o sistema nervoso pela postura que exibia enquanto subia as escadas do quintal tossia de forma ininterrupta, escarrando com frequência para o quintal. Tais atitudes deixavam a pobre criança muito nauseada. E tinha razão para isso. Além disso, também não gostava dela porque era a principal suspeita do desaparecimento do Tótó, um coelho de estimação da família do Sérgio. Sofreu também com a família do Sérgio o desgosto por terem perdido aquele coelho especial que gozava de plena liberdade, correndo por toda as divisões da casa e pelo quintal, sempre tolerado pelos muitos gatos da dona Francisca que o consideravam também como um dos seus. Mas num dia aziago, o desditoso Tótó desapareceu e as suspeitas recaíram sobre a mãe da Dorinda. Triste sina para um coelho especial como era o Tótó acabar num tacho da Efigénia.   
«Porcalhona!» disse para si.
«Não respondes?» 
«Olha, estou a apanhar bichos-de-conta para fazer uma corrida na varanda.»
«Mas eles correm mesmo?» perguntou.
«Se queres ver...»
«Não acredito.»
Queria fazer dela parva, pois queria.
«Então não acredites.»
Continuou a arrancar as urtigas pela raiz. Sabia muito bem onde se escondiam os bichos-de-conta.
«Olha, Dorinda. E este vai ser o vencedor.»
«Como sabes?»
«É maior que os outros e não é velho.»
«Velho?»
«Enrolou-se depressa.»
«Bom...»
«Queres assistir à corrida ou não?»
«A tua mãe não gosta de me ver lá em cima contigo.»
«Sério? Ela nunca me disse.»
«Acredita. Não sei que mal lhe fiz.»
A mãe lá tinha as suas razões.
«Espera aí. Vou ver se ela está na cozinha»
A rapariga pôs-lhe uma mão sobre o ombro direito e tentou seduzi-lo.
«Não queres antes ir apanhar borboletas? São tão bonitas! Vi há dias uma de cor celeste...»
O Marinho fez uma careta.
«Celeste... o que é isso?»
«Da cor do céu, cretino!»
«Badalhoca!»
Nome que ouviu numa discussão entre duas mulheres que começaram a puxar os cabelos uma à outra. A princípio até ficou incomodado. Depois, apreciou. Nunca tinha assistido a uma luta entre mulheres. Porque é que se puxavam pelos cabelos?
«Prontos, já não te chamo nomes.»
Promessa feita porque conhecia as respostas prontas do Marinho.
«E apanhaste-a?» perguntou, sobressaltado.
«Não consegui.» 
«Ainda bem.» 
«Ainda bem?»
«Sim. Eu quando as apanho, solto-as logo porque começam a bater as asas e largam muito pó. Se demorar a soltá-las já não conseguem voar e fico com muita pena delas!»
«Se conseguisse apanhá-la, essa ficava para a minha coleção. Que pó?»
«Ora... vê-se muito bem nas borboletas brancas.»
«Ah...»
«Olha ali uma! Vou apanhá-la com a boina…»
As duas crianças faziam diferença de quatro anos. Aos seis anos, Marinho era a inocência em pessoa. Muito rabino, mas puro ainda. Mais puro que uma borboleta de asas brancas. Quanto à Dorinda, mais velha e sabedora de certos mistérios da vida, dada a sua condição social, já com as maminhas a despontar, tinha objetivos que não os do amiguinho. Estariam talvez (ou não) na expectativa de apanharem uma borboleta, branca ou colorida. As coloridas tornavam-se mais difíceis de apanhar porque eram mais rápidas a porem-se em fuga.
«Raio! Deixaste-a fugir...»
«Isso é uma asneira. Não se diz, Dorinda!»
«Sei muitas piores que essa, mas não tas conto porque a tua mãe corre logo comigo do quintal.»
«Sim. É melhor ficares calada.»
«Olha... anda para ali... debaixo da varanda. Já me dói a cabeça de apanhar tanto sol. Vamos para a sombra.»
«Ainda agora chegaste e já te dói a cabeça! Não vou. Só depois de apanhar uma borboleta!» teimou o Marinho.
«Deixa-as em paz e faz o que te digo. Tenho uma coisa para te mostrar.»
«Que coisa?»
«Já vais ver. É uma surpresa. Aqui não mostro.»
Que estaria a misteriosa Dorinda a engendrar?
O Marinho entusiasmou-se logo. Gostava de surpresas e de mistérios. Muito. Ainda mais do que dos gatos da dona Francisca.
Pôs a boina, ainda com os três vintens, na cabeça, sinal de desistência em relação ao objetivo borboleta. Ela fez-lhe um sinal com a mão e seguiu-a para debaixo da varanda. As portas que davam acesso às duas caves estavam meio fechadas e ela empurrou-as com força. Então o Marinho concluiu que iam entrar na cave.
«Assim vê-se melhor.» Concluiu ela.
«Também acho» concordou. «Mas o que é que tu tens para me mostrar?»
A criança impacientou-se quando a viu avançar mais para o interior da cave. O mistério adensava-se.
«Não ficamos aqui, à entrada da cave?»
«Anda...»
«Está bem, eu vou. Mas vê-se melhor aqui.»
Ficou muito intrigado quando a Dorinda começou a desabotoar a blusa encardida das bolas vermelhas.
«Estás com calor?» arriscou perguntar.
«Claro que não. Põe a mão aqui... Vá, não tenhas medo que elas não te mordem.»
Obedeceu.
«Que notas?»
«Estão crescidas!»
«Sentes alguma coisa?»
«Estão quentes. Bem me parecia há pouco que tinhas calor.»
«O quê?!...»
«É verdade.»
«Paspalhão!»
Então a Dorinda subiu ligeiramente a saia e baixou as cuecas com um gesto rápido.»
«Proibido» pensou Marinho. «Nem sequer posso contar ao Tarzan...»
O Tarzan era o gato preto e branco que jogava a bola com ele. Punha-o entre as pernas de uma cadeira e transformava-o num guarda-redes. Dos melhores. Ainda melhor que o Barrigana do Futebol Clube do Porto.
«Ficaste mudo?»
Pudera! A menina da Dorinda cheirava a xixi que tresandava.
«Não gostas de ver?»
Aquilo era estranho!
«Sim... mas...»
«Põe aqui a mão.»
Pegou-lhe na mão e encostou-a no sítio.
«Gostaste?»
«Muito» mentiu. «Pois não gostei?»
De facto aquilo não cheirava a rosas.
«Agora quero ver o teu pirolito.»
Mau mau! Caldo entornado. Agravavam-se as complicações.
«Aqui está frio. Vamos lá para fora.»
«Já vamos. Mostra-me isso. Não sais daqui sem me mostrar.»
Começou a desabotoar os botões do calção. Quanto daria para andar lá fora a correr atrás das borboletas!
«Encosta-te...»
Não achava graça nenhuma. Depois aquele cheiro que o atordoava. Tinha que encontrar uma saída.
E encontrou logo. Teve uma ideia brilhante, quiçá salvadora.
«Se formos apanhar borboletas dou-te meio tostão. Depois voltamos.»
Coçou a cabeça, indecisa. Meio tostão sempre era meio tostão.
«Dá cá o meio tostão, medricas da merda!»
Finalmente libertava-se do tormento daquele fedor.
«Toma lá o dinheiro. Ola lá, tens piolhos?»
«Não. Porquê?»
«Estás a coçar muito a cabeça.»
«Claro que não tenho.»
Bendito astro-rei que o aquecia e que o tinha livrado de problemas. Lá ficaram entretidos a apanhar borboletas e a libertá-las de imediato por proposta sua. Se fossem moscas ou caracóis não tinha a mínima compaixão. Agora as graciosas e fascinantes borboletas que voavam em volta das suas cabeças não eram intocáveis, mas exerciam sobre ele uma fascinação irresistível.
«Que linda!» exclamou o Marinho, abrindo as asas do inseto. «São pretas com listas amarelas…»
«Dá-me cá a borboleta!»
Adivinhou o instinto agressivo da desgrenhada Dorinda e libertou de imediato o inseto indefeso.
«Meu burro! Eu queria a merda dessa borboleta!»
O céu das borboletas. Muito azul. O ar quente junto à terra das urtigas e de outras plantas silvestres a florirem. O mundo verdadeiro do Marinho, a criança ingénua que gostava muito de gatos e atirava-os pela varanda abaixo, acreditando que eles voavam. A sessão “mística” no fundo da cave e a perplexidade da criança que não queria mostrar o pirolito a uma amiguinha mais crescida que tinha outras intenções, mas ainda com essas as mesmas intenções a roçarem os limites da ingenuidade. Por sua vez, o Marinho também estava nos limites da pureza.
«Já estou farta das borboletas. Ainda se ficasse com elas...»
«Para as matares?»
A rapariga pegou no seu braço.
«Vamos outra vez para a cave.»
«Isso é que não vou!»
«Disseste que voltávamos lá.»
«Pois disse, mas já não me apetecesse ir.»
Ela pensou duas vezes. Reverso da medalha.
«Dou-te um tostão...»
A pureza da criança que gostava de gatos ficou em luta feroz com a ganância. Uma luta que prometia ser breve e com um fim que não era o mais certo. Se todas as pessoas tinham um preço, o Marinho também não fugia à regra.
«Passa para cá esse tostão...»
Seguiram-se as mesmas cenas. Os mesmos cheiros. Até que o bom do Marinho não suportou mais o cheiro e empurrou-a.
«Brutamontes!»
«É que cheiras muito a xixi e já não aguento mais...»
«Vejam lá o menino bem!» 
Logo a seguir...
«Que estão os dois aí a fazer nesse estado?»
Momento salvador. Apareceu a mãe do Marinho e acabou logo a festa que mal tinha começado.
Como era belo! Lá fora as borboletas continuavam a voar livremente no azul.




terça-feira, 14 de janeiro de 2025

Não me leves ainda!

  




Estávamos em 1989. Aconteceu numa das muitas manhãs em que apanhei o autocarro, perto da agência onde costumava entregar a maior parte dos boletins das sociedades de totoloto. Pouco passava das oito horas e o trânsito adensava-se, como de costume. O destino era o edifício do Ministério da Educação. Subi sem dificuldade e mostrei o passe ao condutor. O autocarro ia meio cheio. Fui andando pelo corredor e detive-me perto da porta de saída. Não havia um único lugar sentado. Segurei-me com as duas mãos aos varões metálicos.
Logo a seguir comecei a sentir-me indisposto, talvez porque os varões estavam demasiado frios. Pensei que a indisposição passasse depressa. Mas não. Sentia-me cada vez pior. Gelado. Completamente gelado. Era inexplicável o que estava a acontecer. Consegui aguentar mais uns minutos. O autocarro chegara entretanto a Entrecampos. Eram só mais duas paragens ou três. Não. Não conseguia.
Saí de imediato e decidi fazer o resto do percurso a pé. Pouco passava das oito e meia. Tinha tempo de ser ainda o primeiro a chegar ao gabinete, como era hábito. Fazia-me bem apanhar o ar fresco da manhã. Quando chegasse ao Ministério talvez a indisposição tivesse passado. Logo se via.
Achei estranho. Não era aquele o caminho que costumava fazer. Desviava-me para poente e assim não ia encontrar o cruzamento que encurtava a distância. Apesar de reconhecer o meu erro de cálculo nada fiz para alterar o rumo da caminhada. Afinal o desvio não era tão grande como isso, admiti.
Cheguei à avenida de Berna e preparei-me para atravessar para o outro passeio. Já do outro lado do passeio, parei, indeciso. Estava confuso. Afinal o que se passava? Parecia que uma força poderosa arrastava-me em direção à igreja de Fátima. Era isso. Em breve estava junto ao portão de entrada. Subi os degraus. Abri uma das portas laterais e entrei na igreja. Ouvi logo uma voz arrastada de um ancião que parecia vir de muito longe. Era o padre de voz monocórdica que celebrava a missa. O mesmo que um dia, a meu pedido, celebrou uma missa em intenção de uma pessoa falecida. A esse respeito não sabia se tinha feito bem ou mal. Os mortos deviam ser deixados em paz.
Sentei-me num dos últimos bancos. O olhar fixou-se numa zona à direita do altar. A imagem da Senhora de Fátima, esculpida no mármore, fascinava-me. Tentei desviar o olhar e concentrar-me na preleção do pároco. Senti que a voz vinha ainda de mais longe e não conseguia ouvir o que dizia. Aliás, nem interessava. O primeiro plano estava ali. No rosto da imagem. Triste. Muito triste. Porquê muito triste? Queria entender. Tinha os olhos humedecidos. Sentia pena. Muita pena. Pouco depois, já não eram só os olhos humedecidos. As lágrimas corriam-me pelo rosto. Soluçava. Soluçava sem saber porquê e porque motivo tinha ido parar àquela igreja quando devia ter rumado para o Ministério.
«Não me leves ainda!»
Era a minha voz, mas não era eu. Tinha a certeza!
Que se estava a passar?
Não! Não estava doente. Não tinha uma doença fatal. Aquele "não me leves ainda" não tinha a ver comigo. Mesmo assim não conseguia suster as lágrimas.
Deixei que continuassem a correr. O fenómeno durou mais alguns minutos e decorreu sempre de olhos na imagem que parecia ser a razão de tudo o que estava a acontecer.
Quem pediu com a minha voz com tanto fervor e ansiedade para "não ser levado ainda"?
Aos poucos fui-me acalmando. Tirei o lenço do bolso e limpei o rosto. Parecia que a minha estranha missão tinha acabado. Levantei-me. Fiz o sinal da cruz e voltei-me, encaminhando-me para a saída. A voz monocórdica do padre continuava a fazer-se ouvir. Agora vinha de mais longe. Muito longe. Até que deixei de o ouvir.
Ainda não me sentia seguro quando entrei no edifício do Ministério e tomei a direção dos elevadores.
Fui o único a sair no sexto andar. Quase choquei com a chefe de Gabinete que vi, especada, na minha frente. Não me admirei com a sua presença. Não foi a única vez que encontrei a doutora Ivette no hall dos elevadores do sexto andar, por vezes até mais cedo. Tinha o hábito de controlar a entrada de quem fazia parte do Projeto. Tudo porque algumas colegas costumavam chegar tarde. Mas nunca a vi tão pensativa e ausente como neste dia em que também eu estivera ausente de mim mesmo. Pensativa, de mão no queixo. Talvez porque estava em guerra aberta com a Isabel Catita, a nossa diretora, colocada naquele cargo pelas chefias políticas.
Cumprimentei a Chefe de Gabinete. Mal me falou. Estranhei. Encolhi os ombros e encaminhei-me para o gabinete.
Que terá pensado da expressão que viu no meu rosto?
Também ficará por descobrir quem foi que pediu nessa manhã, na igreja de Fátima, para "não ser levado ainda" e por quem chorei no momento convulsivamente.
O que quer que tenha sido, penso que aquilo apossou-se de mim mal entrei no autocarro e só voltei a ser eu quando abri a porta da sala onde trabalhava com as minhas colegas. Mais uma vez fui o primeiro a chegar. Nunca mais me esqueci dessa manhã. Foi muito estranho o frio que senti no autocarro. Depois, foi o rumo que tomei. E o choro convulsivo. Não. Não me esqueci. E sempre que evoco esse dia vem-me à memória a Manuela.
Era ela? Mas quem era ela?

Já na minha sala de trabalho constatei que tinha sido mais uma vez o primeiro a chegar. Consultei o relógio. Pouco passava das nove e meia. Não fora o insólito acontecimento ocorrido antes nem sequer tinha encontrado a chefe de gabinete na zona dos elevadores a verificar quem eram os retardatários das duas salas do Projeto. Sorri ao lembrar-me da guerra velada entre a minha chefe e a doutora Ivette. Logo a seguir senti-me incomodado. Gostava muito do meu trabalho, mas tinham surgido nuvens negras nos últimos dias. A chefe de gabinete chamou-me e começou a fazer perguntas sobre a Isabel Catita que não me agradaram. De um momento para o outro vi-me envolvido num enredo a que não pude fugir. A doutora Ivette sabia também da incompetência da minha chefe, dando-me a entender que até sabia que ela adormecia nas nossas reuniões.
«Diga-me o que se passa lá...»
«Mas, doutora...»
«Não tenha escrúpulos. Eu estou acima dela.»
«Se é assim.»
Quem me mandou pedir o destacamento?
Agora estava metido num ninho de víboras e não tinha fuga possível. A guerra era mais complicada e vinha de um nível superior. Ou saía o secretário de Estado ou saía o ministro.
«Olá, Mário. Como sempre, madrugador.»
«Bom dia Eduarda.»
Esta minha colega era grande amiga da Isabel Catita e disfarçava a sua alegria e desprendimento com uma vertente da qual sé eu desconfiava. Pouco ou nada fazia em termos de trabalho. Falava pelos cotovelos e arrastava as outras para a sua teia. Tinha quase a certeza que aquela socialista convicta era um "submarino" disfarçado na nossa sala.
«Sempre vamos ajudar-te na tua tarefa de informatização?»
«Pelo menos a Isabel disse para largarem tudo.»
Que sabiam as minhas colegas de informática? Nada. E, aliás, só havia um computador para tratar os dados que vinham dos distritos.
«Bom dia, doutor. Dormiu bem?»
Lembrei-me da ocorrência na igreja de Fátima.
«Por acaso dormi, Marta. Mas o dia...»
Fez-me um gesto para ir ter com ela. Aquela boazona que era secretária do Projeto punha a cabeça dos homens em água quando passava por eles bamboleando-se e mexendo muito bem tudo o que era de mexer. Ela própria tinha-me contado uma cena..
«Já vou ter consigo, Marta.»
«Sim, doutor.»
E foi para a sua secretária.
«Cuidado, Mário. É uma mulher casada.»
«Que estás a insinuar, Eduarda?» perguntei, sorrindo.
«Bom.»
Aquele bom tinha muito que se dissesse. Encolhi os ombros. A Eduarda simpatizava comigo e sabia que eu era uma pessoa cumpridora. Mas se descobrisse a situação em que a doutora Ivette me pôs, aí ficava tudo mais complicado.

«Então, Marta, tem alguma coisa para dizer-me?»
Despreocupada, cruzou as pernas e permitiu que visse a cor das cuecas. Azuis. Como era a cor do seu vestido com a bainha acima do joelho.
«Sempre é hoje que vamos almoçar?»
Não me lembrei ter combinado almoçar com ela. Mas tudo bem. 
«Onde vamos?»
«Ao Clemente. Mas as suas colegas não vão gostar. Que acha, doutor?»
«Gosto de desafios.»
«Que acha do meu vestido?»
«Fica-lhe bem. Molda-lhe as formas.»
«Doutor!»
«É um elogio.»

Quase à hora do almoço, apareceu uma sua amiga e os três estivemos a falar um pouco. Com uma certa cumplicidade telepática, não lhe dissemos que íamos almoçar juntos.
Saiu ao fim de alguns minutos.
Dei comigo a pensar. Bem no fundo, ela fascinou-me. Não tinha a beleza e o erotismo explosivo da Marta, mas havia nela algo de misterioso que queria desvendar.
Não me admirei quando propus à Marta:
«E se convidássemos a Madalena para almoçar connosco?»
«Telefone o doutor...»
Pareceu-me que não gostou. A minha companheira de momento estava verdadeiramente contrariada.
«Então telefono. Ela está no décimo andar?»
«Penso que sim.»
E afastou-se discretamente. Logo a seguir ouvi a voz da Madalena. Uma voz doce.
«Sim?»
«Queria dizer-lhe uma coisa...»
«Ah... É para irmos almoçar?»
Fiquei vidrado. Adivinhou. Sem mais nem menos.
Foi assim que surgiu o tempo sem tempo. De repente. Sem avisar. Mal a conhecia e entrava com uma força inusitada na minha vida!
Contrariada, a Marta teve que suportar a presença da amiga. Não se podia queixar porque foi ela quem me apresentou a Madalena.
O restaurante enchia-se de clientes normalmente por volta da uma hora. Estávamos de pé, à espera de mesa. Nesse momento eu falava de qualquer coisa parecida com “amor à primeira vista”, “não há amor como o primeiro”, ou coisa parecida, e elas ouviam, sem comentar. O tema era banal e até duvidava que me ouvissem em virtude de haver muito barulho na sala. Optei por calar-me.
Vagou uma mesa. Era pequena e tive uma hesitação ligeira. Mas elas avançaram e eu segui-as.
Sentámo-nos. A Marta à minha esquerda e a amiga em frente, virada para a porta de saída. Digamos que estava a norte, ela a sul e a Marta a nascente. As dimensões reduzidas da mesa deixavam antever um jogo de pernas passado às ocultas da Madalena. Tinha que aproveitar a oportunidade.
Enquanto conversávamos, senti o contacto do seu joelho direito no meu joelho esquerdo. Olhei para ela, muito sério e dei a resposta adequada.
«Doutor, tenha maneiras!» pareceu dizer, ao mesmo tempo que me lançou um sorriso provocante que me perturbou.
«Já escolheu, Marta?»
«Estou indecisa.» Disse, a sorrir.
Começámos a ver a lista juntos e meti o joelho entre as coxas dela.
Ela segurava na lista e eu descia o braço esquerdo até a mão desaparecer debaixo da toalha, continuando sempre a avançar, a tentar descobrir o tesouro escondido. O caminho estava aberto. Não havia perigo iminente. A Madalena estava a leste. Assim parecia.
Galo! Foi então que começou a rir-se duma forma descontrolada. Olhei para a Marta, sem retirar a mão e a perna. Encolheu os ombros. Parecia desconhecer também o motivo. Ao mesmo tempo a expressão do seu olhar parecia dizer para não desistir.
O seu riso soava, estranhamente, a raiva. Talvez fosse de despeito. Riso sarcástico, de quem não acreditava em algo. Riso incontrolado, mas discreto.
«Não há amor como o primeiro!»
Então era isso. Referia-se ao meu comentário. Contudo, era outra a interpretação. Parecia vir de longe. E, se vinha de longe, parecia um absurdo. Repito. Um absurdo!
Retirei a mão do local do crime, solicitado pelo novo incidente.
Uma coisa era certa. A Madalena perdeu o controlo e extravasou toda uma raiva que ela própria parecia não sentir. De vez em quando parava de rir e pedia desculpa. Depois continuava a rir. Não sorria. Ria.
Continuava a rir, mas de quê?
Ficou muito séria e disse, acenando com a cabeça, que compreendia, finalmente, qual era o seu papel.
E qual era? Leu o meu pensamento sobre o "não há amor como o primeiro".
Adeus coxas saborosas da Marta. Debaixo da mesa tudo voltava à normalidade. Por cima da mesa o mistério adensava-se. Depois do momento do riso aconteceu um fenómeno nos seus olhos. Senti modificar-se a expressão do olhar. Foi uma mudança brusca. Radical. Já não eram os seus olhos. Tinha a certeza. Eram outros olhos que não os dela. E eu conhecia-os tão bem!
«Estranho...» Pensei, admirado.
Via uns olhos meigos e tristes que conhecia de há muito. E também há muito que eles andavam perdidos no constelado do céu. Deus não quis que as nossas vidas se juntassem. Foi injusto.
Olhámo-nos longamente e travámos um diálogo incrível, diálogo que não consigo descrever e que deve ter baralhado a pobre da Marta.
Foram só uns segundos. Estivemos tão perto um do outro!
Entretanto os seus olhos voltaram ao normal, mas a conversa prolongou-se, sempre dinâmica, apaixonada, e com a Marta à margem, bem à margem de nós. Como já disse, não me lembro do diálogo que tivemos. Mas sabia de quem eram os olhos meigos e tristes que olharam, enlevados, para os meus. Não tinha dúvidas.
Como era possível...?
Assim ficámos, longamente, numa conversa apaixonada e a dois, esquecidos da nossa companheira. Perfeitamente em sintonia. Sei que estava ali materialmente, mas acho que “fomos transportados para um outro espaço e um outro tempo”. Até que voltámos, sempre sorridentes.
«Qual é o meu papel?» perguntou a Marta a certa altura.
«Serves de corrente!» respondemos ao mesmo tempo, continuando a sorrir. 
Aliás, a nossa conversa foi feita entre sorrisos e de olhos nos olhos. Sempre de olhos nos olhos. Como se o diálogo viesse, em grande parte, deles.
"Serves de corrente". Como foi possível dizermos aquela frase ao mesmo tempo?
Parece que a Marta não gostou da resposta que demos. Em boa verdade não gostou de muita coisa e a partir desse dia tudo passou a ser diferente entre nós. A mulher que vestia de azul tinha passado para plano secundário.
Foi a Madalena quem me afastou da amiga, ou foi a "outra"?
Quando lhe perguntei sobre o que se tinha passado, afirmou, com convicção:
«Já sei qual é o meu papel!»
«Qual é o seu papel, Madalena?»
Sorriu, não deixando de me olhar frontalmente.
«Não posso dizer.»
«E porque aconteceu?»
«Aconteceu, o quê?»
Arrisquei:
«A Madalena criticou uma frase minha quando estávamos à espera de mesa. "Não há amor como o primeiro...". Recorda-se?»
«Não.»
Sabia qual era o seu papel, mas não se recordava! Mais uma vez, o absurdo…
Quanto à Marta, não revelou a conversa que tivemos e da qual tinha sido testemunha privilegiada. Nem mais tarde, quando falei a sós com ela sobre esse dia do almoço que tanto me marcara. Insisti muito para que me contasse o que tinha ouvido. Escusou-se sempre, dizendo que não se lembrava.
É importante registar ainda a ocorrência de outro fenómeno. Todo o diálogo aconteceu sob um capacete. Não sei explicar melhor. Sentia a cabeça muito pesada, embora estivesse bem.
Já se passaram muitos. A Madalena não foi mais que um meteoro que ardeu totalmente a atravessar a atmosfera. Mas não posso evitar fazer uma afirmação. Ela era médium!
E quem estava na sombra, por detrás do fenómeno ocorrido na igreja de Fátima e também da ocorrência no restaurante?
Hoje tenho a certeza que era ela!

Depois daquele dia a Madalena passou a desempenhar um papel importante na minha vida diária e a Marta apagou-se. Nasceu uma paixão que, nuns dias, ardeu em chama viva e noutros não foi mais que brasas em fase de agonia. Nunca a entendi. Afinal o seu papel não chegou a ser declamado na ribalta. 

Aconteceu no tempo do rapaz da camisola azul e da rapariga do vestido branco. Lembro-me como se fosse ontem, mas não sei quem me enviou ao teu encontro. Se foi o acaso. Se por acaso foi o deus menor. Quem ler estas últimas palavras certamente ficará chocado, mas são verdadeiras. Parecem não fazer sentido, mas eu cá sei as linhas com que me coso.
Mal te conhecia quando nos encontrámos neste jardim onde estou hoje a recordar. Foi muito estranho o que aconteceu. Tudo parou para ouvir o silêncio das nossas vozes e o diálogo ensurdecedor dos pensamentos entrelaçados. O agitar suave das folhas das árvores, embaladas pela brisa morna daquela tarde. O chilrear dos pardais. Os ruídos dos motores dos carros, tão em dissonância com o resto. Tudo chega aos meus ouvidos com uma intensidade e clareza tal que não sei explicar. Parece que está a acontecer de novo. Custa a acreditar, mas até sinto o odor intenso a café, oriundo dos lados da fábrica de torrefação, que existia na altura e que foi desativada. Na altura considerava o odor enjoativo, mas agora chegava a mim como um perfume daqueles que embriagam. Chega às minhas narinas pela força das feromonas que tudo reforçam. Foi neste ambiente de silêncio e alto astral que o nosso amor aconteceu. Natural­mente, como naturalmente acontecem todas as coisas simples e belas.
Lembras-te?, o encontro estava combinado nas cartas que trocámos. Tudo muito certo. Sem uma falha. Tu saías depois do almoço para te encontrares comigo e eu estava nas imediações da casa dos teus familiares. Foi assim que combinámos e assim aconteceu. Esperei um pouco. Meia hora? Talvez sim, talvez não. Mas para quem tinha esperado, pacientemente, mais que um ano, nada significava meia hora.
Vinhas com a tua prima e o namorado. Obstáculo, pensei. Obstáculo que podia ultrapassar sem qualquer problema. Com tempo. Bastavam alguns minutos e não um momento, porque estava invisível, encostado à parede, a ver-te passar. Assim, não me viste quando passaste por mim. De certa maneira até foi bom. Pude olhar-te longamente. Fixar o teu rosto. A expressão triste do olhar. Eras muito bonita. Graciosa no andar. E o teu rosto e pernas bronzeados por um mês de praia intensa, davam-te um outro encanto e frescura. Fiz um exame completo e pus-me a pensar:
Grande obstáculo!
Pretendentes não deviam faltar-te. Ias mandar-me passear. Ou talvez não. Eu também tinha atributos. Se perderas tempo a ler as minhas cartas enviadas e se tinhas sempre respondido a elas, por alguma razão fora. Parecia estar a viver os primeiros tempos em que te conheci, quando te seguia a uma distância prudente, como mandava na altura a força da minha timidez.
E que podia fazer?
Mais nada senão continuar a seguir-te, descendo por ruas muito estreitas e empedradas em paralelepípedos de granito já um tanto gastos. O Rossio, local importante porque foi aí que te vi pela primeira vez, não estava nos nossos planos. Um desvio para a direita e uma pequena subida. À esquerda, a velha fábrica de lanifícios. À direita, o jardim da Corredoura. Era o fim da caminhada.
Sentaram-se num banco. Fiquei, a cerca de vinte metros de distância, indeciso, a ganhar coragem para avançar. Felizmente olhaste para o meu lado e viste-me logo. Então levantaste-te e sorriste. E eu sorri também, ainda um pouco embaraçado. Certamente ia trocar os pés pelas mãos, tal o nervosismo que se apossara de mim.
O tempo parou. Ficámos especados, a olhar um para o outro.
«Está a avaliar-me.» Pensei.
Impunha-se então fazer alguma coisa. Por exemplo, avançar, dar-te as boas tardes e ficar gago a cem por cento. Felizmente que vieste ao meu encontro. Senti medo de falhar, mas, ao mesmo tempo, fui invadido por uma enorme alegria interior. Foi essa alegria que me fez ir também ao teu encontro, até que ficámos frente a frente. Sorrimos de novo um para o outro e eu fiquei a sonhar. Tu, não sei. Acredito que sim, porque houve uma paragem no tempo antes de um de nós quebrar o encanto do silêncio. Era a primeira vez que estávamos juntos.
Apertámos as mãos, trocando algumas palavras de circunstância. Pois era. Faltava começar.
Mas como se começava?
Alvitrei que nos sentássemos num banco do jardim. E assim foi. Eu fiquei à tua direita e claro que tu à minha esquerda. O nosso banco do jardim. A alegria de falarmos a sós. A tua voz de alentejana que parecia cantar em cada palavra que dizias. O silêncio cúmplice de estarmos juntos num mundo feito à nossa medida, só para os dois. A magia do odor a café que excitava as feromonas em que nos entrelaçávamos.
Tinhas a pele a cair nas pernas. Disseste-me que estiveste na praia em julho. Uma justificação lógica.
Foram talvez as primeiras palavras que trocámos e num dos teus primeiros gestos tiraste das pernas morenas um ou outro resto de pele morta.
Que interessava a pele morta se estava a nascer nesse momento o nosso sonho azul?
As primeiras palavras trocadas de certeza que foram banais, mas aconteceu outro diálogo que ultrapassou as expectativas: o diálogo dos olhares trocados que não esqueci nem nunca esquecerei.
Depois, como foi?
Muito simples: eu entrei no teu mundo e tu também entraste no meu. Jurámos que esse mundo seria dos dois para sempre e de mais ninguém.
Uma ilusão aquele amanhã que foi ontem?


Morreu muito nova. Os seus restos mortais estiveram em câmara ardente numa das capelas da igreja de Fátima.
Por coincidência (ou não) tive conhecimento do seu falecimento ao ler um jornal da tarde que tinha entretanto comprado. Não encontrei forças para lhe dizer o último adeus.
A Manuela tinha trinta e três anos...


Inspirado em "O leão e o caranguejo"
Inspirado em "Manuela"


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O Escarumba

 



Ele não tinha a pele escura, mas a minha tia alcunhou-o de Escarumba, sem nunca lhe chamar diretamente por esse nome. Era moreno a atirar para o encardido, talvez marcado na infância por um excesso de exposição aos raios solares. 
Que encantos encontrou nele a minha prima Maria Odete para o escolher como potencial companheiro para toda a vida?
Não sei. Imagino que viu nele talvez uma espécie de diamante em bruto que afinal foi mal talhado e assim nunca ganhou brilho. Longe disso. A tia Adelaide soube desde sempre, mas, perante um caso consumado como aquele, não teve outro remédio senão optar pela lapidação à sua maneira do apaixonado da filha e teve um relativo êxito no processo. Claro que ele nunca fora um diamante em bruto. Longe disso. Mas, do mal o menos. Fez dele um homem quase às direitas e um ano depois de se conhecerem, os jovens apaixonados casaram-se. O problema era o tom escuro da sua pele. À altura olhava-se muito a isso. Mas até não era o caso. De qualquer forma na sua mente, era. Talvez por isso, para ela foi sempre o Escarumba. Não por desprezo, mas porque tinha o hábito de etiquetar as pessoas com alcunhas, como por exemplo o “Cara de Anjo”, um seu vizinho, homem dono de uma pequena loja de tecidos e botões, contígua à janela da casa de jantar cujo acesso era feito por três degraus de madeira, sempre muito encerados. O parapeito da janela ficava quase ao nível da rua, mas por enquanto não digo mais nada sobre a janela. Aliás, pouco mais direi da mesma porque não é relevante para a história.
Noutras alturas também lhe chamava o "caga e tosse", sobretudo quando o nosso homem usava a divisão da casa para satisfazer as suas necessidades fisiológicas e não só. Nesses momentos era intenso o cheiro a fumo de tabaco, além da tosse resultante do ato que, em si, nada tinha a ver com o uso normal da casa de banho. As permanências eram longas e a culpa recaía no imprescindível jornal desportivo, principalmente das páginas destinadas ao Benfica do seu coração que lia e relia com muito carinho. Nesses momentos a minha tia não se coibia de o criticar pelo excessivo tempo de permanência no “salão do vale solitário” [1].
«Teixeira, larga a casa de banho. São horas de ires para o trabalho…»
E, entre dentes, para a filha:
«Este Escarumba de um raio enche-me toda a casa de fumo, Maria Odete!»
«Ó minha mãe, não implique com o homem. Ele mata-se a trabalhar no forno que é aquela oficina. O futebol é o seu único passatempo.» 
«Achas?»
Queria dizer?
A Maria Odete era então a mulher do Escarumba e minha prima em segundo grau. Dormiam num quarto interior que era um autêntico braseiro no verão. Talvez por causa disso, anos mais tarde o Escarumba ia tendo um problema grave do coração. Ou então teve um fanico em pleno combate após uma bruta feijoada ou assim.
Esse quarto dava para a casa de jantar por uma porta e por outra para o corredor, este coberto por uma passadeira onde predominava o vermelho, que comunicava com a zona da cozinha e da casa de banho e com a casa de jantar. Quanto ao quarto dos meus tios ligava com a dita casa de jantar e tinha uma exígua janela virada para o exterior, quase ao nível do passeio. Portanto, os meus tios e primos habitavam uma cave.
O tio Adão tinha as horas trocadas com o resto da família em certos e indeterminados dias da semana. Era chefe de mesa e levantava-se por volta das cinco da manhã para ir para o café-restaurante situado na avenida da República, já perto do Saldanha. Nunca cheguei a entender porque se levantava tão cedo. Mas a verdade é que era assim. Como compensação, chegava a casa por volta das quatro da tarde e dirigia-se, mais calado que um mudo, logo para o quarto, levando na mão o inseparável companheiro que era o jornal “O Século”[2]. Pouco depois, ouvia-se o folhear constante das páginas do jornal e começava-se a inalar o cheiro intenso do tabaco ardido, bem mais intenso do que o do genro. Se não era “Mata Ratos”, andava para aí. O tio Adão, calvo e altaneiro, não se fazia velho na cama. Por volta das seis da tarde saía de casa e ia ter com os amigos à taberna que ficava perto de casa e que estavam a jogar cartas, bisca ou sueca (não sei), bebendo copos de tinto e petiscando sardinhas fritas ou isso, só regressando a casa perto das oito que era a hora do jantar.
Entretanto, se o tio Adão ia pela tardinha para a taberna jogar as cartas com os amigos, o meu primo passava esse mesmo tempo na tabacaria que dava para a Visconde Valmor. Aí “rachava lenha" com o dono da mesma. O assunto era invariavelmente o glorioso Benfica, o último golo de cabeça do José Águas, e o Salazar e a Pide e também a fanfarronice de “eu faço e aconteço”. Enfim, um inimigo público número um que, por sinal, tinha muito de fanfarronice e pouco mais, do tipo "cães ladram e a caravana passa".
Isto passava-se no verão, tempo em que, durante duas ou três semanas, eu era o quinto elemento da família. Tudo por causa dos exames que tinha que vir fazer a Lisboa, visto que na “minha vila de ontem” só havia as passagens do primeiro, terceiro, quarto e sexto anos. Acresce que a minha estadia na casa da tia Adelaide começou a partir da época do exame de admissão ao liceu. Uma nota. Nessa altura, poucos ou nenhuns criticavam os traumas que os exames provocavam nas criancinhas, nem, por exemplo, extensos trabalhos para casa, vulgo TPC. E muitos outros como eu, estamos cá para dizer que antes pelo contrário esses tempos nas aulas nos fizeram crescer em equilíbrio e atingir os objetivos que nos propusemos. Eu e os muitos outros estamos ainda cá, na luta diária que a nossa época exige e, particularmente no meu caso, só ganhei com os rigores, talvez excessivos, a que fui submetido e que tantos benefícios me trouxeram. As crianças não são nem nunca foram uns coitadinhos “entregues aos bichos”. Precisam de crescer sem protecionismo excessivo, sem violência e com liberdade de poderem manifestar o seu ego. Mas não era por aqui que queria seguir. Se continuasse, quebrava o rumo da história. Como José Régio dizia no seu famoso poema "Cãntico Negro", sei que não vou por aí
As recordações mais recuadas no passado e que considero as mais ricas, remontam ao princípio do verão em que vim a Lisboa fazer o exame de admissão ao liceu e também aos dias antes do exame do segundo ano.
O exame de admissão ao liceu foi fácil. Estava bem preparado e nem precisei de frequentar as aulas (pagas) de preparação para o exame em Lisboa.
Um à parte referente às aulas com o “Machadinho”, o professor da quarta classe. Foi há muito tempo, mas tenho bem presente aquele momento repetido em que chamava meia dúzia de alunos para se perfilarem à frente do resto da turma, ao mesmo tempo em que exibia e manipulava a célebre régua que “aquecia” as mãos de quem não tinha respondido a uma pergunta ou então se tinha portado menos bem. Não tinham respondido às perguntas e as consequências estavam à vista, porque o tempo não parava e não consta que parou desde que se deu o célebre big bang. Nem acelerou. O que aconteceu foi o aumento da velocidade de afastamento das galáxias provocado pela poderosa energia escura. Se é que a energia negra existe.
Voltando aos tempos da quarta classe, o professor, querendo ser o protagonista de uma peça de teatro, virava-se para a turma e punha a régua ao alto. As perguntas e as respostas estavam feitas. Era a hora do balanço, pelo que se fazia um silêncio ruidoso na sala. Até que o professor dizia, com um sorriso sádico gravado no rosto:
«Venha quem não soube…» 
Erro seu. Má fortuna para alguns alunos que já lá estavam, perfilados, à espera dos acontecimentos nos próximos segundos. Não me lembro se ele sorria seraficamente ou não. Com bondade não era, não senhor. Só me lembro da récita-resposta dos alunos nas suas carteiras, ao mesmo tempo que apontavam o indicador acusador para os potenciais "criminosos" que iam ser castigados:
«Regulamento, disciplina militar!»
E a régua trabalhava forte, como lhe competia. Se sentia a dor, não me lembro. De certeza que choraria de vergonha se fosse único a apanhar uma reguada. Assim, o sentimento diluía-se por via da meia dúzia de alunos à espera do castigo. Apesar da violência do stress, era positivo. Não isolava o aluno para o castigo.
Voltando…
Era já tempo das orais e tinha, nas andanças para o liceu, por habitual companheira a minha tia Adelaide. Tomávamos o elétrico para o Carmo, saíamos na rua da Escola Politécnica, descíamos a rua de S. Marçal e em pouco tempo tínhamos o liceu Passos Manuel à vista. Foi assim que fizemos ao longo do período das provas escritas. Não me recordo se o caso que se segue aconteceu no exame da admissão ou já no segundo ano do liceu. Aconteceu. Está dito. Está dito e é certo. Houve um dia em que as coisas correram mal logo à partida. Como de costume, os elétricos vinham apinhados de gente e foram passando, um após outro, sem termos hipótese de entrar neles. O tempo corria. Eu não podia chegar muito atrasado. Só havia uma solução. Seguirmos no próximo elétrico de qualquer maneira. E assim foi, ou teria que ser. Mas correu menos bem desta vez.
«Pendura-te!» ordenou a minha tia, à aproximação de mais um elétrico que vinha apinhado.
Consegui pendurar-me na pega traseira e a tia Adelaide também fez o mesmo com a sua mão esquerda. Mas a mão resvalou e a senhora caiu no empedrado da rua. Senti-me impotente, sem saber o que fazer. Mas ela, caída no chão, provavelmente com muitas dores, fez-me um sinal vigoroso para prosseguir viagem. E lá fui. Continuávamos a ser dois. Mas agora éramos eu e a solidão. Felizmente não entrei em pânico. Até que chegou altura de sair do elétrico e dirigir-me para a rua de S. Marçal que desci a correr pois já estava atrasado.
Senti-me desesperado. Ia chegar atrasado e não sabia o que me esperava quando entrasse na sala onde eram as provas orais. 
O Mário sofria!
Quando entrei na sala já os exames tinham começado. Tive o bom senso e coragem de dirigir-me à mesa dos exames e explicar a um dos professores o motivo do atraso. Felizmente ele disse-me para não me preocupar. Que seria chamado em breve.
«Tem calma, rapaz, não te preocupes. Queres um copo de água?»
«Obrigado, senhor.»
E tudo correu bem. Depois de ser examinado, dirigi-me para uma das carteiras. Foi então que vi a tia Adelaide à porta da sala e fui logo ter com ela.
«Correu bem o exame, Mário?»
Olhei para os seus joelhos todos esfolados.
«Correu, tia.»
«Isto não é nada. Vem tomar o pequeno almoço. Hoje queres um queque em vez do pão com manteiga?»
«Pode ser um bolo de arroz, tia?»
Ora acontece que a tia Adelaide em momentos especiais sabia temperar a sua austeridade, dando um tom um pouco mais suave à voz autoritária que me impressionava bastante.
Lembro-me também que levou-me ao cinema mais que uma vez. Nunca esquecerei um filme que tinha o grande tenor Mario Lanza como principal protagonista. “Nas redes do Amor”, era o nome do filme.
A certa altura do filme, alguém das personagens disse-lhe:
«Canta-lhe a Tinalina…» 
Já em casa comentámos o "canta-lhe a Tinalina" à mistura com sorrisos.
«Quem é essa Tinalina?» perguntou o Escarumba, intrigado.
«Tens alguma coisa com isso?» 
«Mãe!»
«Maria Odete, ele já sabe que não gosto de curiosos...» 
Não voltei a ver esse filme. Na cena em questão, talvez fosse um modo de agradar a uma jovem por quem se apaixonara. Ou assim.
Nessa noite, depois do jantar, a minha tia, talvez agradada com o meu comportamento após a sua queda desastrosa, ordenou ao Escarumba para me levar à Feira Popular que se situava não muito longe da casa. Achei curiosa a expressão do seu rosto a iluminar-se. 
«Aqui há coisa!» pensei. 
«Com muito gosto, minha sogra.» 
«Temos caso.» Disse ela, também desconfiada.
«Nada disso. Preciso de espairecer. O trabalho apertou.» 
«E verdade, mãe, o Teixeira já se queixou que anda cansado. Aquele maldito ferro escalda-lhe o peito. 
Tempo de austeridade. Bem podia ter ido também a prima Maria Odete e nunca teria acontecido o que aconteceu.
«Estás pronto, Mário?» perguntou o Escarumba.
«É melhor ires primeiro à casa de banho.» Disse a tia Adelaide. 
E fui.
«Pega lá uns rebuçados para te entreteres, rapaz.» Ofereceu a prima Maria Odete.
E lá seguimos os dois. Fiquei extasiado com os carrosséis e os carrinhos de choque. Mas o meu primo passou ao largo. Tinha outros objetivos. O pavilhão dos chocolates Regina. Não. Não ia fazer um furinho num dos vários e tentadores círculos dos dispositivos dispostos no balcão que davam direito a chocolates depois de prévio pagamento. Eu não tinha dinheiro e o meu primo por afinidade não mostrou vontade de gastar dinheiro comigo.
«Mário, vai ver o carrossel e os carrinhos ou dar uma volta pela feira. Mas não te afastes muito. Eu fico por aqui. Já sabes onde estou.»
E lá fui. Magicava no motivo de tanta generosidade do Escarumba ao deixar-me à solta sem mais nem menos. Ali havia coisa, mas não sabia que coisa era. Má para ele de certeza que não era.
Como gostava de andar no carrossel na feira de junho da minha vila! Principalmente na girafa. E das cenas dos robertos. E das exibições dos protagonistas do poço da morte nas motos com as rodas a trabalhar perigosamente sobre os rolos em movimento. Um espetáculo para encaminhar clientes para os espetáculos que estavam quase a iniciar-se. Enfim, as barracas do tiro ao alvo e também dos comes e bebes. E o fim da feira com tudo desmontado. Momentos ideais para procurar berlindes e caricas.
Saudades desses tempos…
Até que me cansei de ver o carrossel a rodar e os carrinhos de choque. A grande roda estava longe e os meus tenros anos não me davam coragem para afastar-me muito. Quanto ao poço da morte devia estar longe. Assim, voltei ao pavilhão dos chocolates Regina. Sempre queria ver se ele estava a empanturrar-se com os chocolates e nem sequer me dava uma nica de um. 
Malvado Escarumba!
«Onde está ele?» pensei.
Descobri-o rapidamente. Conversava animadamente com uma das empregadas. Então era isso. De onde a conhecia?, perguntei aos meus botões, aliás sem esperança de ter uma resposta concreta.
«Ah… estás aí. Vai dar mais uma volta, mas não demores.»
Nem “toma lá cinco tostões e vai dar uma volta no carrossel”…
Fingi obedecer e deixei-me ficar à porta. Aquilo parecia-me conversa a mais. E depois ele estava a pegar-lhe no braço. Ia fazer-lhe mal? Qual coisa. Estava a fazer-lhe festinhas.
Ai se a minha prima sonhasse!

O esperto do Teixeira era alfaiate e tinha a oficina no último piso. Duas costureiras trabalhavam para ele.
«Mário, vai ter com o teu primo.» Sugeriu a tia Adelaide.
Aliás, já não era a primeira vez que lá ia. Entretinha-me enfiar as linhas nos buracos das agulhas e assim adiantava trabalho às costureiras. E, quando me cansava, subia dois degraus de madeira até uma janela pequena donde podia ver a rua em baixo.
Nessa manhã só estava uma costureira.
«Mário, podes subir à janela e ver o que se passa na rua. Mas tem cuidado. Não te debruces muito.»
Obedeci. E ali fiquei entretido a ver as pessoas e os carros que me pareciam muito pequenos. Senti um arrepio e um temor de morte quando imaginei que podia cair dali para a rua. De certeza que ficava feito num pudim. Portanto, todo o cuidado era pouco. Preferi apreciar a paisagem que os meus olhos atingiam na distância. 
Foi então que ouvi:
«Não faça isso, senhor Teixeira. Está ali a criança…»
Intrigado, voltei-me para trás. O que vi deixou-me perplexo. O Escarumba estava a meter-lhe uma mão por debaixo da saia e ela não reagia. Antes já o tinha visto a fazer-lhe cócegas nos braços e no resto do corpo e ela ria muito.
«É uma brincadeira, Mário.» Disse na altura.
«Então está bem.» Fingi concordar.
Mas agora era diferente. Ai se a prima Maria Odete soubesse!
Aquilo já não era uma brincadeira. Era mais que isso. Pior que um filme para adultos.
Ao ver-me a olhar com uma certa curiosidade, retirou a mão debaixo da saia dela. A Beatriz (assim se chamava a costureira) continuou a costurar e ele agarrou-se ao ferro com afinco e pôs-se a passar umas entretelas. Achei que era ferro a mais e entretelas a menos. Além disso, pareceu-me demasiado nervoso.
«Queres que enfie mais agulhas, Beatriz?»
«Não é preciso, menino Mário…»
Tinha dez anos e sabia muito bem o que aconteceu antes.
«Teixeira!»
A voz da tia Adelaide chegou até nós vinda do último patamar.
O meu primo abriu a porta da oficina e espreitou lá para baixo.
«É uma hora. O almoço está na mesa.»
Entretanto a costureira despediu-se.
«Até amanhã, senhor Teixeira. Adeus, menino Mário.» 
«Espera aí, Beatriz, preciso que me compres linhas para amanhã.» 
Fiquei especado na sala a olhar para ele. Cheirava-me a marosca. 
«Vai andando para baixo, Mário.»
Saí da sala e fiquei no patamar à espera do Escarumba. 
«Então?» 
Lá comecei a descer as escadas. Entretanto ele tinha encostado a porta. 
Quando cheguei à porta da cave fiquei á espera dele.Até que ouvi as  suas passadas pesadas. 
«Ah, estás aí. Fizeste bem. Toma lá dez tostões.» 
«Obrigado.» 
«Grande velhaco.»Pensei.
«Olha, Mário, não contes nada do que viste. Isto foi só uma vez. Passou-me uma coisa pela cabeça, percebes?»
Disse que sim e pensei que não.
«As pessoas e os carros lá em baixo parecem muitos pequenos.»
«Isso podes contar à prima. Quanto ao resto…»
«A Beatriz tem muitas cócegas debaixo dos braços!»
«Pois tem, Mário!»
«E também onde o primo tinha a mão.»
«Pior ainda. Mas não contes nada à tua prima. Muito menos à minha sogra.» 
«Sogra?» 
«À tua tia Adelaide.»
Cantigas, olaré, Escarumba.
«Está bem, primo Escarumba.»
«O quê?»
«Queria dizer primo Teixeira.»
«Ah. É bom que não te enganes.»
Cresce, cresce, malmequer… até seres um girassol!
Por baixo da saia a Beatriz ainda tinha mais cócegas. E a expressão do rosto era diferente. 
Porquê?
O meu pai levava-me muitas vezes ao cinema. Eu e a demais rapaziada ficámos ajoelhados à frente da primeira fila das cadeiras da plateia a ver os filmes, pois assim os nossos pais não pagavam os bilhetes para nós.
Isto para dizer que os filmes eram uma outra escola onde as crianças aprendiam coisas de adultos.

«Então, Mário, aborreceste-te lá cima?»
«Não, tia.»
«Vêm tão calados! Aconteceu alguma coisa?»
Olhei para o Escarumba.
«Não, tia.»
«Claro que sim.» Pensei. «O Escarumba e a Beatriz divertiram-se a valer.»
«O que é o almoço?» perguntou o meu primo..
Disfarçava nitidamente.
«Línguas de perguntador.»
«Lá está vossemecê a implicar comigo!»
«Mário, já lavaste as mãos?»
«Vou lavar, tia.»
Nem línguas de perguntador nem bifes de cebolada, que era o meu prognóstico. Arroz de pimentos com carapaus de gato, que a tia Adelaide tinha comprado na praça ao ar livre da Marquês de Tomar. A acompanhar, uma salada de tomate, nem muito verde nem excessivamente maduro. O tio Adão só comia tomate muito maduro, pelo que havia uma tigela só para ele.
Enquanto comia ao despique com o primo Teixeira, pensava no que ia fazer a seguir ao almoço. Talvez fosse para a janela fazer um horário da passagem dos autocarros que passavam, do outro lado da avenida, para a Picheleira. Mas não era boa ideia, pois já estava farto de fazer horários. Ao menos, o meu primo Justino, que tinha muita habilidade para o desenho, entretinha-se a desenhar os autocarros com grande pinta e nunca se cansava de repetir os desenhos.
«Queres ir ao jardim zoológico com a tia?»
Era uma boa ideia. Impossível haver melhor ideia.
«Mas depois do almoço ainda vais ao carvoeiro comprar um litro de vinho tinto para o teu tio, está bem? E preciso também de uma couve portuguesa. Não te esqueças de passar pelo lugar. Depois vais à leitaria do senhor Sousa comprar manteiga. Toma lá vinte escudos. Não os percas.»
«Com tanta coisa o rapaz ainda se esquece de alguma.» Criticou a prima Maria Odete.
«Ele tem boa memória. Queres ir também connosco ao zoo, Maria Odete?»
«Mãe, tenho o vestido da madame Graça Fonseca para acabar.»
Esqueci-me de dizer que a minha prima era modista, mas não tinha costureiras. Uma requintada modista que trabalhava para senhoras da alta sociedade.
«Está bem, minha filha, mas ao menos come mais alguma coisa de jeito. És uma niquenta que até mete raiva!»
«Ó mãe, não tenho apetite.»
«Queres ir para Hollywood?»
«Lá está vossemecê outra vez! Deixe a minha princesa em paz!»
«Farsante! Se eu desenrolasse o rosário…» 
Então a tia Adelaide já sabia das virtudes do Escarumba.
E para si deve ter dito:
«Escarumba dum “caga e tosse”…» Ri-me do pensamento engraçado. 
«Que aconteceu, Mário?» 
«Nada, tia.»
«Bom.»
E continuei a rir a bom rir. Agora para dentro, está-se a ver.
Não gostava lá muito, mas tinha que ser. Ir à carvoaria e ao lugar. E também à leitaria do senhor Sousa que tinha sotaque beirão. 
Um certo dia estava de mau humor e até chamei bruxa entre dentes à minha tia. O que vale é que falei muito baixo e ela não ouviu. Pobre da minha tia austera. Agora reconheço que, embora ríspida, tinha bom fundo. Nessa época achava que ela era o quero posso mando e não me agradava lá muito o modo como me criticava, como, por exemplo:
«Primeiro entram em casa os mais velhos e depois tu, entendes?»
Mas eu tinha só dez anos!
Portanto, aprendi algumas boas regras de etiqueta com a minha tia.
Perdoa-me, tia, pelos pensamentos negros que tive a teu respeito na altura. Era criança, compreendes? O que os meus pensamentos traziam cá para fora o coração não queria ver. Foi uma má avaliação a que fiz.
De facto a minha tia austera era o comandante em chefe daquela zona estrita. Só o tio Adão é que fazia o que lhe dava na real gana, mas apenas quando chegava a casa bêbado como um cacho, depois de ter servido um casamento. Só lhe dava para rir e falar sozinho. Todos já sabiam o que a casa gastava e deixavam-no falar à vontade. Por outro lado, trazia muita coisa que tinha sobrado da boda. Por sua alta recreação, ou simplesmente por oferta dos ex-nubentes. Era uma espécie de compensação para o estado em que vinha. O tio Adão não era pessoa para se abrir, nem levado ao extremo. Considerava-o um homem pouco sociável, mas nada quezilento. E também muito agarrado ao dinheiro. Isto porque, uma vez na vida, convidou-me para ir à Baixa. Para grande espanto meu fomos a pé. Era novo mas mesmo assim cansei-me. Pensava se repetíamos a dose no regresso. E os bilhetes só custavam cinco tostões!
Chegados ao Rossio, atravessámos os Telefones e seguimos pelo passeio até ao Nicola. Aí entrou no café e encontrou-se com uns amigos que deviam ser também empregados de mesa. Deduzi pelo tema da conversa. Procurei entreter-me observando as pessoas em volta. Nada interessante. Era tudo gente velha.
Nem um bolo de arroz comi. Contentei-me com um garoto claro.
«Muito claro para a criança, Onofre.» Tinha dito o meu tio ao empregado.
Não estivemos mais que meia hora no café e regressámos. Felizmente que a ideia de irmos a pé não se repetiu. Agradou-me muito a viagem num daqueles elétricos todos abertos. O calor apertava, mas havia ainda um pouco de aragem.
Foi um dos raros contactos diretos que tive com o meu tio Adão, a tal pessoa que falava menos que os mudos.
«Ah ah… Tenho outro casamento amanhã.»
«Estás bonito, Adão. Vai deitar-te quanto antes.» Ordenou a minha tia, evitando exasperar-se talvez devido à presença de um estranho na família.
E foi. Aos tombos, mas foi.
Eu não tinha quarto. Só restava naquela cave, que devia ser muito húmida no inverno, um recanto junto à casa de banho que dava à justa para um divã. Havia também uma pequena estante encostada à parede.
Cinco da manhã e eis que acordo com uma imprecação que me pareceu ser de um fantasma, já que uma luz fraca, tremelicante, vinha lá dos lados do corredor. Assustei-me deveras, mas permaneci calado, expectante. Alguma coisa ia acontecer. Sentia medo, mas não queria perder pitada.
«Porra!» ouvi. «Quem deixou aqui uma frigideira no meio do corredor?»
Afinal o fantasma era o tio Adão. Vi-o pelo canto do olho, todo vestido de branco, com uma espécie blusa de mangas compridas e para baixo vestia umas ceroulas. A completar a cena, um carapuço com borla cobria-lhe a cabeça e parte da testa. Iluminava-se com uma vela (daí o tremelicar da luz) para não perturbar o sono dos que dormiam, mas não conseguiu evitar o encontro imediato do terceiro grau com uma frigideira que continha remédio para as baratas. Uma papa que matava que se fartava. Era um espetáculo nojento ver, de manhã, no campo de batalha, dezenas de baratas viradas de patas para o ar. Apesar do morticínio, outras não deixavam de aparecer a meio da noite seguinte para se deliciarem com a maravilhosa papa que tanto as atraía. E assim sucessivamente. Uma batalha que não tinha fim.
Acabei por adormecer. Ao lado, à minha esquerda, como já disse, havia uma estante com poucos livros que leria nos anos seguintes, talvez porque não tinha outros para ler, ou porque sim. “John, Chauffer Russo”, de Max du Veuzit (Coleção Azul) e “As Lições do Menino Tonecas” do José de Oliveira Cosme que li e reli nos verões dos exames do segundo e quinto anos. Claro que quando cheguei ao sétimo, ocupei os meus tempos livres de outra forma durante os quase quinze dias que passei na casa da minha tia. Alguma autonomia que tinha já no quinto ano tornou-se em quase total autonomia no sétimo. Depois, entrei na Faculdade de Ciências e fui para uma pensão na rua de São Bento. Visitei esporadicamente a minha tia Adelaide, senhora austera que mandava na casa onde habitavam o marido, a filha e o manhoso do “caga e tosse”, mais alcunhado impropriamente por Escarumba, o tal alfaiate que tinha a oficina no último piso do prédio e que gostava, pelo menos, de fazer cócegas às costureiras, além de namoriscar com as empregadas dos chocolates Regina que faziam tudo para os visitantes fazerem um furinho nos dispositivos verticais que até podiam deixar soltar-se uma bola dourada que dava direito a um chocolate de dimensões superiores. O chamado jackpot dos chocolates.
O Escarumba só namoriscava a jovem dos chocolates Regina na Feira Popular, ou havia mais mar e tardar em voltar?

Tudo mudou. A Feira Popular já não existe ali nem em parte alguma. Os meus tios e primos partiram para um lugar incerto. O Mario Lanza há muito que não canta a “Tinalina” para a sua apaixonada do filme. A profissão de costureira extinguiu-se ou está está em vias de extinção. Quanto aos carapaus de gato que se vendiam ao quarteirão e ao cento por tuta e meia, hoje, embora seja proibida a venda, custam os olhos da cara, mas são deliciosos, acompanhados ou não por um arroz de pimentos.
Eu próprio também estou em modo de mudança e continuo a dar razão ao meu saudoso professor de Filosofia e à Anna de Noailles [3]. Agora conto histórias cada vez mais viradas para o passado, a caminho das origens. E vou continuar… até que deixe de ser eu!
Escarumba, meu primo emprestado, diz-me se desse lado da porta ainda passas a ferro entretelas e namoras costureiras. Se sim, por favor não dês qualquer sinal. 


[1] “Neste vale solitário, onde a vaidade se apaga… todo o fraco faz força e todo o valente se caga”

[2] A propósito do jornal “O Século” lembro-me de uma lamentável ocorrência no preciso momento em que fazia exame de Desenho do 2º ano no Passos Manual. A certa altura deflagrou um incêndio pavoroso no edifício do jornal e assisti em direto ao mesmo. A tragédia também caiu sobre mim. Valeu-me um oito e meio…

[3] Nous avons tous les jours l'habitude de voir
Cette route si simple et si souvent suivie,
Et pourtant quelque chose est changé dans la vie,
Nous n'aurons plus jamais notre âme de ce soir...