sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O número da bola

 


Uma utopia perfeita. Ausência de tiros. De violência. Nunca havia guerra, nem sequer o doutor Mamede entregava as ceroulas na lavadeira sempre que ouvia o troar de um canhão. Isto segundo rezava um depoimento do Slimpas, meu amigo de aventuras dos tempos de infância, lido perante a turma e com a complacência do doutor Maior, o nosso professor de Português do terceiro ano. Uma redação muito gozada por nós, supostamente realista, lida em tom de epopeia, e em que punha a nu em termos jocosos os dotes militares do professor, um ex-combatente que fez vários relatos nas aulas das refregas ocorridas da guerra de 1914/18.
Em boa verdade, o nosso de Francês nunca chegou a conhecer o teor desta redação. E ai do seu autor. Mas a história que se segue não fala do doutor Mamede, bom professor na gramática, mas muito mau na conversação. Já para não comentar a falta de pulso notória que tinha com os alunos.

Tinha saído mais uma das coleções dos cromos da bola e toda a rapaziada da escola comprava, trocava os bonecos da coleção, jogava ao berlinde ou à pedra por vias de aumentar o seu espólio. Não se falava noutra coisa senão nas trocas e baldrocas. Era sempre uma festa quando chegavam novas coleções de jogadores da primeira divisão.
«Queres trocar o Albano pelo Rogério Contreiras?»
«Troco, uma gaita! Bem sabes que vale muito mais que esse frangueiro do guarda-redes do Benfica.»
Admirava esses dois jogadores, mas o Sebastião Lucas da Fonseca, mais conhecido por Matateu, era o meu ídolo e o Belenenses, o meu clube do coração. Quanto ele e a equipa da minha vila jogavam, não sabia para que lado virar-me. O coração dividia-se e não pendia para qualquer dos lados. Era isso.
Pronto! A ideia era decidir ser dos dois. Caso arrumado, mas muito complexo..
O meu pai levava-me ao futebol e eu delirava. O momento da entrada era complicado, pensava eu. É que não pagava bilhete e fazia-me sempre pequenino no momento em que passava entre os porteiros. Os tempos eram difíceis e o meu pai precisava de poupar para não faltar em casa o essencial. Depois, o meu pai era de esquerda, portanto do contra, era prejudicado. Alguns colegas meus, filhos de pais abastados e da situação estavam isentos do pagamento das propinas na escola secundária. O meu pai, não. Pagava-as por inteiro Apesar das dificuldades, de vez em quando, lá vinha um ou outro pacote de castanhas, na época das mesmas. Também um pirolito com os seus picos que tomavam de assalto as narinas, mas que não tiravam o sabor agradável que nunca mais encontrei igual depois que as engrenagens do tempo destruíram o que ficou para trás, mas não o esquecimento.
Foram tempos felizes que recordo com saudade. Depois do jogo, ficávamos em frente à montra dum café, esperando que fossem afixados todos os resultados dos jogos da primeira divisão e do clube da terra. E, para terminar em beleza, descíamos por ruas estreitas até que chegávamos ao Escondidinho, uma taberna típica onde lanchávamos e tínhamos oportunidade de ouvir o fado vadio cantado por inevitáveis fadistas de ocasião. Um deles era pai do já citado conto e quinhentos [1], um colega dos tempos da mestra que escrevia os números da direita para a esquerda e que eu e os meus colegas da mesa achávamos que era um grandessíssimo burro.
Por volta das sete horas chegávamos a casa e a minha mãe começava a preparar o jantar.
Mais uma vez, saudades desses tempos...

Continuando no passado remoto, numa certa manhã, o Vítor apareceu no jardim. Vinha do lado norte e todo ele era sorrisos. Trazia consigo uma caixa cúbica em lata dos bonecos da bola. Há muito que ele rondava a caixa dos rebuçados à venda na cervejaria perto da praça. O dono da cervejaria era um homem muito gordo que eu via muitas vezes sentado numa cadeira à porta.
«Então sempre conseguiste!»
«Sim. Tenho andado a vigiar a caixa e achei que hoje era o dia porque os rebuçados estavam quase a roçar o fundo. Comprei-os todos.»
«Vamos apanhar uma barrigada de rebuçados!»
«E também uma caganeira das grandes. Que se lixe, Mário. Fica o prazer. O resto logo se vê»
«Já reparei que também trazes a bola. Mostra-ma.»
Passou-ma para a mão. Era uma bola de futebol a sério. Lembrei-me que já tivera uma que me foi oferecida por dois amigos do meu pai uma. Era tão boa que rebentei com ela em pouco tempo.
«Parece boa. O Tozé vai ficar invejoso. Ele é quem traz a bola para jogarmos no pátio das Finanças.»
«Pois vai.»
O Tozé deixava de ser imprescindível.
«Olha lá uma coisa, gastaste muito dinheiro?»
«Cerca de vinte escudos.»
Observei os rebuçados e fiz uma estimativa rápida. Não me pareceu. Deviam ser bem mais que duzentos e a um tostão cada...
«Morde aqui, mentiroso. Gastaste mais!»
Limitou-se a sorrir. Fora apanhado em falso. Quanto à origem do dinheiro era com ela. Vinte escudos era muito dinheiro. Quanto mais, quarenta, por exemplo. Era lá com ele e as minhas estimativas que se lixassem.
Fomos para um banco em meia lua, todo de pedra mármore, onde costumávamos jogar futebol com moedas. Faziam-se a lápis as duas balizas. Cada um dos intervenientes usava uma moeda de alpaca de cinco tostões e a bola era uma mera moeda de tostão. Depois, com habilidade e sorte, tentávamos acertar na bola com um golpe do dedo médio e procurando fazer efeitos especiais. Cada um jogava na sua vez. Havia livres ou grandes penalidades quando se acertava no outro jogador e falhava a bola. O objetivo era marcar golo. Só mais uma coisa: os guarda-redes eram moedas de dois tostões.
«Não acho que custou vinte escudos ficares com o número da bola.» Insisti.
«Pronto, foi um pouco mais.»
«Quarenta?» 
Hesitou.
«Olha, custou dinheiro.»
«Rica resposta. Mas está bem. O dinheiro é teu.»
Estivemos durante bastante tempo a desembrulhar os ditos rebuçados que estavam envolvidos, além do papel habitual, pelos bonecos da bola, aproveitando também para os comer. Apanhámos uma pançada que, fatalmente, daria em dor de barriga das grandes. Tal como previu o Vítor.
Até que chegámos ao número da bola tão desejado que estava colado ao fundo da caixa de lata.
«Espera» pedi. «Já sabes qual é?»
«Nem faço ideia.»
«Vá, desembrulha isso depressa.»
Sorriu com ar malicioso, fazendo render o seu peixe. Aquele compasso de espera irritou-me.
«Adivinha.»
«Não sou bruxo.»
Mas gostava muito de ser. Ou melhor, de ser mágico, como o Mandrake, um herói do Mundo de Aventuras.
O número da bola era o Cabrita.
«Vou-me embora quanto antes. Tenho cá a impressão que está à porta uma dor de barriga das grandes.»
«Como aquela que apanhaste há uns tempos. Atiraste a bola para quinta do Rosa e tiveste que a ir buscar. Só voltaste depois de uma barrigada de cerejas verdes.»
«Pois foi.»
«Naquele dia adivinhei o desfecho. Mas sabes uma coisa?»
Não. O Vítor não sabia.
«Quem me dera ser um mágico. Transformar as moedas de tostão em ouro. A propósito, lembrei-me de uma coisa que aconteceu há dias...»
«Mais uma das tuas histórias?»
«Esta é verdadeira.»
«Então conta.» 
Mesmo que fosse inventada, de certeza que ele pedia-me para contar.
«O Sérgio e o Pica-Morcelas estão tramados.»
«Quem é o Pica-Morcelas?»
«Não interessa. É amigo do Sérgio.  Ele tem essa alcunha e pronto.»
Na verdade, o tal Pica-Morcelas era um dos muitos amigos do Sérgio e tinha três ou quatro parafusos a menos. E havia mais uns tantos que estavam em vias de desaparafusar-se. Aquele caso era verdadeiro. Às vezes, inventava as histórias, mas esta era mesmo verdadeira.
«Calcula que os dois descobriram uma arca no sótão da casa do avô. Estava fechada à chave e forçaram-na. E o que descobriram nela?»
«Sei lá. Não sou bruxo.»
«Nada mais nada menos que um estojo cheio de moedas antigas.
«Ena, pá! E que fizeram eles às moedas?»
«Calcula que os gajos foram vendê-las ao aldrabão do ferro-velho. Ele deu cinquenta escudos pelas moedas. Nem mais, nem menos.»
«Só?»
«Para cada um, meu parvo. Mesmo assim elas deviam valer muito mais.»
«E se o avô desse Pica-Chouriços descobrir a marosca?»
«Pica-Morcelas. Assim é que é a sua alcunha.»
«Tanto faz.»
«E fica sabendo que o problema não está no avô.»
«Então?»
«Esse já está a fazer tijolo há alguns anos.»
«Faz tijolo?»
«Morreu, grande parvo. O problema está quando os seus tios descobrirem o roubo. Mas isso será outra história para o futuro. Por enquanto ficamos aqui. Mas não contes a ninguém. O Sérgio pediu-me segredo total. Contei-te porque sou teu amigo.»
«Conta comigo, pá.»
«Prometes?»
Promessas que o vento levava.
«Bom, vou para casa antes que venha uma dor de barriga. Queres ficar com os cromos?»
«Todos?»
«Menos o número da bola, claro!»
Mas para que queria eu os bonecos repetidos?
Muito simples. Costumava relatar jogos de futebol usando, para o efeito, os cromos repetidos. Tinha uma caderneta onde ia colando, nas folhas das equipas, os cromos da coleção. Com os restantes fazia jogos de futebol no chão do quarto, que relatava na presença dos amigos e dos primos. Precisava só de duas balizas que construídas em madeira, com rede e tudo, e uma pequena bola de prata, da que se usava para invólucro dos cigarros ou dos chocolates. Depois, dispunha os jogadores no campo e fazia deslizar a bola pelos mesmos, a meu belo prazer, relatando o que estava a acontecer. O relato era perfeito. Imitava o próprio eco do público a assobiar ou a aplaudir. O golo era a apoteose final e a assistência também vibrava, conforme a sua predileção. Fingia a maior seriedade quanto ao desfecho do encontro, mas claro que controlava os jogos, favorecendo sempre o meu Belenenses.
Invariavelmente, o Sporting e o Benfica empatavam e assim conseguia agradar a gregos e troianos, política que mantinha a assistência presente e emocionada com o evoluir do jogo.
As grandes penalidades eram apontadas sempre com classe. Bola ao lado do jogador e dedo médio encurvado, à espera do apito do árbitro e um dos espectadores presentes no quarto apitava e ficavam todos na expectativa.
Remate! Bola para um lado e Rogério Contreiras para outro.
Remate! Grande defesa de Azevedo. Mas recarga e gooo...lo! Um golo monumental! 

[1] "Os Verdes Anos de Mário Contador de Histórias" - O Conto e Quinhentos

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