Já tinha rejeitado uns tantos porque procurava o provável campeão, de maiores dimensões, certamente o mais rápido dos rápidos.
«Que estás a fazer aí de cócoras, ó Marinho parvalhão?»
Virou-se, embora já tivesse reconhecido a voz. Era a Dorinda, uma rapariga de pele tisnada pelo Sol e com alguma porcaria à mistura que acentuava o tom. Pensava ele e não estava longe da verdade. Os cabelos, ainda mais despenteados que o costume, também não ajudavam a rapariga no que dizia respeito ao aspeto. A Dorinda era filha da empregada de limpeza da vizinha de cima, uma mulher que lhe complicava o sistema nervoso pela postura que exibia enquanto subia as escadas do quintal tossia de forma ininterrupta, escarrando com frequência para o quintal. Tais atitudes deixavam a pobre criança muito nauseada. E tinha razão para isso. Além disso, também não gostava dela porque era a principal suspeita do desaparecimento do Tótó, um coelho de estimação da família do Sérgio. Sofreu também com a família do Sérgio o desgosto por terem perdido aquele coelho especial que gozava de plena liberdade, correndo por toda as divisões da casa e pelo quintal, sempre tolerado pelos muitos gatos da dona Francisca que o consideravam também como um dos seus. Mas num dia aziago, o desditoso Tótó desapareceu e as suspeitas recaíram sobre a mãe da Dorinda. Triste sina para um coelho especial como era o Tótó acabar num tacho da Efigénia.
«Porcalhona!» disse para si.
«Não respondes?»
«Olha, estou a apanhar bichos-de-conta para fazer uma corrida na varanda.»
«Mas eles correm mesmo?» perguntou.
«Se queres ver...»
«Não acredito.»
Queria fazer dela parva, pois queria.
«Então não acredites.»
Continuou a arrancar as urtigas pela raiz. Sabia muito bem onde se escondiam os bichos-de-conta.
«Olha, Dorinda. E este vai ser o vencedor.»
«Como sabes?»
«É maior que os outros e não é velho.»
«Velho?»
«Enrolou-se depressa.»
«Bom...»
«Queres assistir à corrida ou não?»
«A tua mãe não gosta de me ver lá em cima contigo.»
«Sério? Ela nunca me disse.»
«Acredita. Não sei que mal lhe fiz.»
A mãe lá tinha as suas razões.
«Espera aí. Vou ver se ela está na cozinha»
A rapariga pôs-lhe uma mão sobre o ombro direito e tentou seduzi-lo.
«Não queres antes ir apanhar borboletas? São tão bonitas! Vi há dias uma de cor celeste...»
O Marinho fez uma careta.
«Celeste... o que é isso?»
«Da cor do céu, cretino!»
«Badalhoca!»
Nome que ouviu numa discussão entre duas mulheres que começaram a puxar os cabelos uma à outra. A princípio até ficou incomodado. Depois, apreciou. Nunca tinha assistido a uma luta entre mulheres. Porque é que se puxavam pelos cabelos?
«Prontos, já não te chamo nomes.»
Promessa feita porque conhecia as respostas prontas do Marinho.
«E apanhaste-a?» perguntou, sobressaltado.
«Não consegui.»
«Olha, Dorinda. E este vai ser o vencedor.»
«Como sabes?»
«É maior que os outros e não é velho.»
«Velho?»
«Enrolou-se depressa.»
«Bom...»
«Queres assistir à corrida ou não?»
«A tua mãe não gosta de me ver lá em cima contigo.»
«Sério? Ela nunca me disse.»
«Acredita. Não sei que mal lhe fiz.»
A mãe lá tinha as suas razões.
«Espera aí. Vou ver se ela está na cozinha»
A rapariga pôs-lhe uma mão sobre o ombro direito e tentou seduzi-lo.
«Não queres antes ir apanhar borboletas? São tão bonitas! Vi há dias uma de cor celeste...»
O Marinho fez uma careta.
«Celeste... o que é isso?»
«Da cor do céu, cretino!»
«Badalhoca!»
Nome que ouviu numa discussão entre duas mulheres que começaram a puxar os cabelos uma à outra. A princípio até ficou incomodado. Depois, apreciou. Nunca tinha assistido a uma luta entre mulheres. Porque é que se puxavam pelos cabelos?
«Prontos, já não te chamo nomes.»
Promessa feita porque conhecia as respostas prontas do Marinho.
«E apanhaste-a?» perguntou, sobressaltado.
«Não consegui.»
«Ainda bem.»
«Ainda bem?»
«Sim. Eu quando as apanho, solto-as logo porque começam a bater as asas e largam muito pó. Se demorar a soltá-las já não conseguem voar e fico com muita pena delas!»
«Se conseguisse apanhá-la, essa ficava para a minha coleção. Que pó?»
«Ora... vê-se muito bem nas borboletas brancas.»
«Ah...»
«Olha ali uma! Vou apanhá-la com a boina…»
As duas crianças faziam diferença de quatro anos. Aos seis anos, Marinho era a inocência em pessoa. Muito rabino, mas puro ainda. Mais puro que uma borboleta de asas brancas. Quanto à Dorinda, mais velha e sabedora de certos mistérios da vida, dada a sua condição social, já com as maminhas a despontar, tinha objetivos que não os do amiguinho. Estariam talvez (ou não) na expectativa de apanharem uma borboleta, branca ou colorida. As coloridas tornavam-se mais difíceis de apanhar porque eram mais rápidas a porem-se em fuga.
«Raio! Deixaste-a fugir...»
«Isso é uma asneira. Não se diz, Dorinda!»
«Sei muitas piores que essa, mas não tas conto porque a tua mãe corre logo comigo do quintal.»
«Sim. É melhor ficares calada.»
«Olha... anda para ali... debaixo da varanda. Já me dói a cabeça de apanhar tanto sol. Vamos para a sombra.»
«Ainda agora chegaste e já te dói a cabeça! Não vou. Só depois de apanhar uma borboleta!» teimou o Marinho.
«Deixa-as em paz e faz o que te digo. Tenho uma coisa para te mostrar.»
«Que coisa?»
«Já vais ver. É uma surpresa. Aqui não mostro.»
Que estaria a misteriosa Dorinda a engendrar?
O Marinho entusiasmou-se logo. Gostava de surpresas e de mistérios. Muito. Ainda mais do que dos gatos da dona Francisca.
Pôs a boina, ainda com os três vintens, na cabeça, sinal de desistência em relação ao objetivo borboleta. Ela fez-lhe um sinal com a mão e seguiu-a para debaixo da varanda. As portas que davam acesso às duas caves estavam meio fechadas e ela empurrou-as com força. Então o Marinho concluiu que iam entrar na cave.
«Assim vê-se melhor.» Concluiu ela.
«Também acho» concordou. «Mas o que é que tu tens para me mostrar?»
A criança impacientou-se quando a viu avançar mais para o interior da cave. O mistério adensava-se.
«Não ficamos aqui, à entrada da cave?»
«Anda...»
«Está bem, eu vou. Mas vê-se melhor aqui.»
Ficou muito intrigado quando a Dorinda começou a desabotoar a blusa encardida das bolas vermelhas.
«Estás com calor?» arriscou perguntar.
«Claro que não. Põe a mão aqui... Vá, não tenhas medo que elas não te mordem.»
Obedeceu.
«Que notas?»
«Estão crescidas!»
«Sentes alguma coisa?»
«Estão quentes. Bem me parecia há pouco que tinhas calor.»
«O quê?!...»
«É verdade.»
«Paspalhão!»
Então a Dorinda subiu ligeiramente a saia e baixou as cuecas com um gesto rápido.»
«Proibido» pensou Marinho. «Nem sequer posso contar ao Tarzan...»
O Tarzan era o gato preto e branco que jogava a bola com ele. Punha-o entre as pernas de uma cadeira e transformava-o num guarda-redes. Dos melhores. Ainda melhor que o Barrigana do Futebol Clube do Porto.
«Ficaste mudo?»
Pudera! A menina da Dorinda cheirava a xixi que tresandava.
«Não gostas de ver?»
Aquilo era estranho!
«Sim... mas...»
«Põe aqui a mão.»
Pegou-lhe na mão e encostou-a no sítio.
«Gostaste?»
«Muito» mentiu. «Pois não gostei?»
De facto aquilo não cheirava a rosas.
«Agora quero ver o teu pirolito.»
Mau mau! Caldo entornado. Agravavam-se as complicações.
«Aqui está frio. Vamos lá para fora.»
«Já vamos. Mostra-me isso. Não sais daqui sem me mostrar.»
Começou a desabotoar os botões do calção. Quanto daria para andar lá fora a correr atrás das borboletas!
«Encosta-te...»
Não achava graça nenhuma. Depois aquele cheiro que o atordoava. Tinha que encontrar uma saída.
E encontrou logo. Teve uma ideia brilhante, quiçá salvadora.
«Se formos apanhar borboletas dou-te meio tostão. Depois voltamos.»
Coçou a cabeça, indecisa. Meio tostão sempre era meio tostão.
«Dá cá o meio tostão, medricas da merda!»
Finalmente libertava-se do tormento daquele fedor.
«Toma lá o dinheiro. Ola lá, tens piolhos?»
«Não. Porquê?»
«Estás a coçar muito a cabeça.»
«Claro que não tenho.»
Bendito astro-rei que o aquecia e que o tinha livrado de problemas. Lá ficaram entretidos a apanhar borboletas e a libertá-las de imediato por proposta sua. Se fossem moscas ou caracóis não tinha a mínima compaixão. Agora as graciosas e fascinantes borboletas que voavam em volta das suas cabeças não eram intocáveis, mas exerciam sobre ele uma fascinação irresistível.
«Que linda!» exclamou o Marinho, abrindo as asas do inseto. «São pretas com listas amarelas…»
«Dá-me cá a borboleta!»
Adivinhou o instinto agressivo da desgrenhada Dorinda e libertou de imediato o inseto indefeso.
«Meu burro! Eu queria a merda dessa borboleta!»
O céu das borboletas. Muito azul. O ar quente junto à terra das urtigas e de outras plantas silvestres a florirem. O mundo verdadeiro do Marinho, a criança ingénua que gostava muito de gatos e atirava-os pela varanda abaixo, acreditando que eles voavam. A sessão “mística” no fundo da cave e a perplexidade da criança que não queria mostrar o pirolito a uma amiguinha mais crescida que tinha outras intenções, mas ainda com essas as mesmas intenções a roçarem os limites da ingenuidade. Por sua vez, o Marinho também estava nos limites da pureza.
«Já estou farta das borboletas. Ainda se ficasse com elas...»
«Para as matares?»
A rapariga pegou no seu braço.
«Vamos outra vez para a cave.»
«Isso é que não vou!»
«Disseste que voltávamos lá.»
«Pois disse, mas já não me apetecesse ir.»
Ela pensou duas vezes. Reverso da medalha.
«Dou-te um tostão...»
A pureza da criança que gostava de gatos ficou em luta feroz com a ganância. Uma luta que prometia ser breve e com um fim que não era o mais certo. Se todas as pessoas tinham um preço, o Marinho também não fugia à regra.
«Passa para cá esse tostão...»
Seguiram-se as mesmas cenas. Os mesmos cheiros. Até que o bom do Marinho não suportou mais o cheiro e empurrou-a.
«Brutamontes!»
«É que cheiras muito a xixi e já não aguento mais...»
«Vejam lá o menino bem!»
«Sim. Eu quando as apanho, solto-as logo porque começam a bater as asas e largam muito pó. Se demorar a soltá-las já não conseguem voar e fico com muita pena delas!»
«Se conseguisse apanhá-la, essa ficava para a minha coleção. Que pó?»
«Ora... vê-se muito bem nas borboletas brancas.»
«Ah...»
«Olha ali uma! Vou apanhá-la com a boina…»
As duas crianças faziam diferença de quatro anos. Aos seis anos, Marinho era a inocência em pessoa. Muito rabino, mas puro ainda. Mais puro que uma borboleta de asas brancas. Quanto à Dorinda, mais velha e sabedora de certos mistérios da vida, dada a sua condição social, já com as maminhas a despontar, tinha objetivos que não os do amiguinho. Estariam talvez (ou não) na expectativa de apanharem uma borboleta, branca ou colorida. As coloridas tornavam-se mais difíceis de apanhar porque eram mais rápidas a porem-se em fuga.
«Raio! Deixaste-a fugir...»
«Isso é uma asneira. Não se diz, Dorinda!»
«Sei muitas piores que essa, mas não tas conto porque a tua mãe corre logo comigo do quintal.»
«Sim. É melhor ficares calada.»
«Olha... anda para ali... debaixo da varanda. Já me dói a cabeça de apanhar tanto sol. Vamos para a sombra.»
«Ainda agora chegaste e já te dói a cabeça! Não vou. Só depois de apanhar uma borboleta!» teimou o Marinho.
«Deixa-as em paz e faz o que te digo. Tenho uma coisa para te mostrar.»
«Que coisa?»
«Já vais ver. É uma surpresa. Aqui não mostro.»
Que estaria a misteriosa Dorinda a engendrar?
O Marinho entusiasmou-se logo. Gostava de surpresas e de mistérios. Muito. Ainda mais do que dos gatos da dona Francisca.
Pôs a boina, ainda com os três vintens, na cabeça, sinal de desistência em relação ao objetivo borboleta. Ela fez-lhe um sinal com a mão e seguiu-a para debaixo da varanda. As portas que davam acesso às duas caves estavam meio fechadas e ela empurrou-as com força. Então o Marinho concluiu que iam entrar na cave.
«Assim vê-se melhor.» Concluiu ela.
«Também acho» concordou. «Mas o que é que tu tens para me mostrar?»
A criança impacientou-se quando a viu avançar mais para o interior da cave. O mistério adensava-se.
«Não ficamos aqui, à entrada da cave?»
«Anda...»
«Está bem, eu vou. Mas vê-se melhor aqui.»
Ficou muito intrigado quando a Dorinda começou a desabotoar a blusa encardida das bolas vermelhas.
«Estás com calor?» arriscou perguntar.
«Claro que não. Põe a mão aqui... Vá, não tenhas medo que elas não te mordem.»
Obedeceu.
«Que notas?»
«Estão crescidas!»
«Sentes alguma coisa?»
«Estão quentes. Bem me parecia há pouco que tinhas calor.»
«O quê?!...»
«É verdade.»
«Paspalhão!»
Então a Dorinda subiu ligeiramente a saia e baixou as cuecas com um gesto rápido.»
«Proibido» pensou Marinho. «Nem sequer posso contar ao Tarzan...»
O Tarzan era o gato preto e branco que jogava a bola com ele. Punha-o entre as pernas de uma cadeira e transformava-o num guarda-redes. Dos melhores. Ainda melhor que o Barrigana do Futebol Clube do Porto.
«Ficaste mudo?»
Pudera! A menina da Dorinda cheirava a xixi que tresandava.
«Não gostas de ver?»
Aquilo era estranho!
«Sim... mas...»
«Põe aqui a mão.»
Pegou-lhe na mão e encostou-a no sítio.
«Gostaste?»
«Muito» mentiu. «Pois não gostei?»
De facto aquilo não cheirava a rosas.
«Agora quero ver o teu pirolito.»
Mau mau! Caldo entornado. Agravavam-se as complicações.
«Aqui está frio. Vamos lá para fora.»
«Já vamos. Mostra-me isso. Não sais daqui sem me mostrar.»
Começou a desabotoar os botões do calção. Quanto daria para andar lá fora a correr atrás das borboletas!
«Encosta-te...»
Não achava graça nenhuma. Depois aquele cheiro que o atordoava. Tinha que encontrar uma saída.
E encontrou logo. Teve uma ideia brilhante, quiçá salvadora.
«Se formos apanhar borboletas dou-te meio tostão. Depois voltamos.»
Coçou a cabeça, indecisa. Meio tostão sempre era meio tostão.
«Dá cá o meio tostão, medricas da merda!»
Finalmente libertava-se do tormento daquele fedor.
«Toma lá o dinheiro. Ola lá, tens piolhos?»
«Não. Porquê?»
«Estás a coçar muito a cabeça.»
«Claro que não tenho.»
Bendito astro-rei que o aquecia e que o tinha livrado de problemas. Lá ficaram entretidos a apanhar borboletas e a libertá-las de imediato por proposta sua. Se fossem moscas ou caracóis não tinha a mínima compaixão. Agora as graciosas e fascinantes borboletas que voavam em volta das suas cabeças não eram intocáveis, mas exerciam sobre ele uma fascinação irresistível.
«Que linda!» exclamou o Marinho, abrindo as asas do inseto. «São pretas com listas amarelas…»
«Dá-me cá a borboleta!»
Adivinhou o instinto agressivo da desgrenhada Dorinda e libertou de imediato o inseto indefeso.
«Meu burro! Eu queria a merda dessa borboleta!»
O céu das borboletas. Muito azul. O ar quente junto à terra das urtigas e de outras plantas silvestres a florirem. O mundo verdadeiro do Marinho, a criança ingénua que gostava muito de gatos e atirava-os pela varanda abaixo, acreditando que eles voavam. A sessão “mística” no fundo da cave e a perplexidade da criança que não queria mostrar o pirolito a uma amiguinha mais crescida que tinha outras intenções, mas ainda com essas as mesmas intenções a roçarem os limites da ingenuidade. Por sua vez, o Marinho também estava nos limites da pureza.
«Já estou farta das borboletas. Ainda se ficasse com elas...»
«Para as matares?»
A rapariga pegou no seu braço.
«Vamos outra vez para a cave.»
«Isso é que não vou!»
«Disseste que voltávamos lá.»
«Pois disse, mas já não me apetecesse ir.»
Ela pensou duas vezes. Reverso da medalha.
«Dou-te um tostão...»
A pureza da criança que gostava de gatos ficou em luta feroz com a ganância. Uma luta que prometia ser breve e com um fim que não era o mais certo. Se todas as pessoas tinham um preço, o Marinho também não fugia à regra.
«Passa para cá esse tostão...»
Seguiram-se as mesmas cenas. Os mesmos cheiros. Até que o bom do Marinho não suportou mais o cheiro e empurrou-a.
«Brutamontes!»
«É que cheiras muito a xixi e já não aguento mais...»
«Vejam lá o menino bem!»
Logo a seguir...
«Que estão os dois aí a fazer nesse estado?»
«Que estão os dois aí a fazer nesse estado?»


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