quarta-feira, 23 de abril de 2025

A rapariga na varanda

 


Quantos são hoje? Não interessa. Hoje é hoje. O que interessa é que já fui jovem e não estou a falar do presente, embora esteja a falar no presente. Mais concretamente estou a falar para o presente e para o futuro de casos que desenterrei do tempo em que era jovem.
Segundo li em tempos num livro de L. Ron Hubbard [1], todos os acontecimentos passados ao longo da vida dum ser humano ficam registados na memória. Não vai fugir à regra esta história recheada de recordações, naturalmente falíveis neste ou naquele pormenor, mas fico isento de culpa de dolo se tiver falhado neste ou naquele pormenor. Espero mesmo que as minhas qualidades observacionais minorem as faculdades inerentes à mente analítica.
Ditas estas palavras, à guisa de introito, vamos à história. Não é bem autobiográfica. Aí há que contar com a mescla de "reais e fictícios" que eu, Mário, vou introduzir. Um pouco de sal e pimenta tempera a história.
Sempre fui um apaixonado mais ou menos silencioso. Melhor dizendo, discreto. Este sempre também quer dizer precoce. Veja-se que, ainda sem ter atingido os dez anos, tive a primeira paixão silenciosa.
Fixando-me nos meus tenros dez anos, havia uma coletividade que os meus pais frequentavam em noites festivas, abrilhantadas, por bailes, muitas vezes alternados com orquestras portuguesas e espanholas e claro que eu e a minha irmã Olinda não ficávamos em casa. Por vezes havia variedades com artistas que eram prata da casa. Eu tinha boa voz, mas nunca fiz parte desse grupo de jovens corajosos, mais velhos do que eu. Comecei a brilhar, sim, na Escola Secundária, quando, no primeiro ano, a minha voz foi posta à prova ao piano pelo senhor Benjamim que ficou encantado e pôs-me logo como solista do orfeão, que ia do primeiro ao sétimo ano. Mas desse tempo vou apenas falar do que considero essencial.
Voltando à coletividade da vila, conforma referi não participei nas variedades, mas fui um espectador entusiasta desde os primeiros tempos.
E passo a explicar o porquê desta alusão à coletividade, aos seus bailes, orquestras, ao ceguinho que tocava piano divinamente, mas quando se embriagava tínhamos o arroz queimava porque desatava a desafinar e os companheiros da orquestra seguiam pelo mesmo caminho. Uma espécie de reação em cadeia como acontece com a bomba atómica.

Há uns dias, inesperadamente, soltou-se um dos ficheiros mais profundos da memória, algo estranho que me deixou na dúvida. Seria capaz de o descodificar? O seu nome dizia-me alguma coisa. Mas não bastava um nome. Tinha que haver um motivo. E esse motivo, pensando melhor, talvez fosse um ponto de partida para o ligar à história que podia ou não ter interesse.
O Francisco Santiago foi um homem que tive o prazer de conhecer na minha infância. Era amigo do meu pai e estava ligado pela música, e talvez não só, à coletividade artística, sustentada por homens do comércio que florescia a olhos vistos na vila.
Na minha memória conservou-se até hoje a imagem de um homem cinquentão que primava por andar sempre bem vestido e penteado desprendimento que lhe causou alguns amargos de boca cabeça, talvez por um fixador que era usado na altura. É de admitir que não havia vento que o soltasse do lugar. O homem tinha a sua profissão, mas também se dedicava à música, compondo canções populares [2] nas horas livres [3]. Uma dessas canções que criou teve um êxito estrondoso, não passando, no entanto, para fora do âmbito da coletividade. Chamava-se essa canção, ”O Gato do Manel Zé” e ainda, por vezes, dou comigo a trauteá-la no duche. Esta referência tem importância porque ele tinha uma filha que era minha colega e amiga. Uma vez deu-me um conselho sobre um caso sentimental que não segui e do qual me arrependi mais tarde. Tinha que ser? Mais uma vez o determinismo a pôr-se à frente do livre arbítrio, e para mal dos meus pecados.

Um dia, a Rita, filha do brilhante compositor regional, convidou-me para uma festa noturna em sua casa. Era uma rapariga avançada para a época, daí a festa privada ser feita com o consentimento, ou não, do pai. Era também muito inconstante no campo sentimental. Desprendimento que lhe causou alguns amargos de boca
«Faço amanhã à noite uma festa na minha casa. Há baile e há comes e bebes, Mário.»
«Mas eu sou um cepo a dançar.» Desculpei-me.
«Ninguém dá por isso, pá. E olha que vai a Alice.»
«Tens a certeza?»
«Disse-lhe que tu ias…»
Com essa estratégia lá me convenceu, embora não tivesse ficado muito animado. A Alice era uma rapariga que tinha uma grande paixão por mim. Reservava-a para qualquer chamada de última instância, quando as coisas me corriam mal sentimentalmente.

O segundo andar do prédio onde morava com o pai dava para um terreno onde, quando era mais novo, cheguei a jogar à caganita e a treinar com espadas de madeira, preparando um assalto aos do castelo, juntamente com os amigos de então, um dos quais de certeza o Armando Slimpas que infelizmente já não é deste mundo. De certeza que neste momento está a ver-me e a recordar esses belos tempos, enquanto passeia ao longo dos extensos campos verdes do Senhor.
«Olá, amigo Armando.»
Ao tempo da festa noturna da Rita devia ter dezasseis ou dezassete anos. Não me lembro muito bem dessa festa. Principalmente do que aconteceu na sala improvisada para o baile e para os comes e bebes. Dos meus interesses e motivações. Apenas sabia que o meu amor dessa época morava em Estremoz. Distante da vista e bem perto do coração. Assim era nessa altura.

Noite da festa...
No momento estou na varanda que deve ter uns oito metros de extensão e dá para poente. Há um muro acinzentado, muito provavelmente em pedra e tijolo, a limitá-la. Dá-me pela cintura e parece ser seguro. A noite vai um pouco adiantada. Estou a ver a Lua em quarto crescente e também Vénus, um pouco mais abaixo no horizonte. Como sou mau dançarino achei por bem isolar-me até à hora dos comes e bebes. Mas não estou só na varanda. Do meu lado esquerdo diviso um vulto de rapariga que também olha a Lua ou assim. Está mais debruçada do que acho razoável. Por uma razão específica temo por ela.
Sentiu-se observada e olhou para o meu lado. Sorri, entretanto. O seu sorriso é triste. Tem olhos claros. Não os vejo bem, mas sei que são claros porque conheço a rapariga. É a Cristina. Também, como eu, deve sentir-se excluída do restante grupo. É uma jovem estranha. Isola-se muito. Não lhe conheço historial de namoros. Há quem diga que é lésbica. Não sei. Nunca convivi com ela. Mas tem razão para estar triste porque morreu-lhe o pai há pouco mais de cinco anos. Suicidou-se no túnel que está para sul, a duzentos metros da estação do caminho-de-ferro.
Fico a pensar no trágico acidente que lhe levou o pai. Um desgraçado qualquer, mas muito importante de repente porque se transformou, depois de morto, num centro de atenção, apenas por um ou dois dias, pois quase todos os dias aconteciam casos estranhos na vila.
Na missa do sétimo dia quem estaria presente para lhe prestar a última homenagem?

«Não vale a pena esperar, Mário, que encontramo-lo pelo caminho, antes de entrarmos no túnel. Temos tempo de sobra. Os comboios andam sempre atrasados. Até dá para fazer uma mija...»
«E se ele já saiu da última estação?»
O Armando era o mais afoito dos dois. Também não era de admirar que as desgraças caíssem com mais frequência em cima dele.
«Estamos é a perder um tempo precioso. Anda daí. De repente fiquei ansioso.»
Sempre a correr, seguiram pela linha, saltando travessa sim, travessa não. Ao fundo, avistava-se a abertura do túnel que, aos poucos, ia ficando mais próxima. Pararam à entrada. Um receio mútuo envolvia os dois amigos.
«Vamos, Mário!»
«Vai tu à frente. Vejo mal no escuro.»
«É melhor ires tu...»
«Pronto, nem um nem outro. Vamos os dois, e lado a lado.» Sentenciou o Armando.
Resolvido o diferendo entraram no túnel.
«Está escuro como breu. Parece que há água na linha. Sempre te disse que o túnel metia água.»
«Tu é que estás a meter água. Deixa-te de imaginações parvas e segue mas é em frente. Tu e os teus medos da água. Na última encarnação deves ter sido um flibusteiro que se afogou. Olha, talvez o timoneiro holandês. Quem sabe?»
«Tens razão. Quem sabe se não fui esse. Mas olha uma coisa? Gostava mais de ter sido o comandante e de andar à espadeirada com os piratas. Deve ter liquidado muitos.»

Estavam para lá do meio do túnel e já havia mais claridade.
«Olha.»
«Que foi?»
O Armando apontou para o chão.
«É uma coisa a brilhar. Parece um vidro. Não vês?»
«Tens olhos de lince!»
O safado do padre Luís é que tinha olhos de lince. E mais outra coisa: diziam que à noite, depois dos serviços religiosos, ele despia a batina, tirava o colarinho engomado, montava na BMW e metia-se a caminho do Bairro Alto, para as putas. Que Deus lhe perdoasse, mas não se livrava da fama. Os julgamentos na praça pública tinham quase força de lei. Lá isso tinham.
Baixaram-se ao mesmo tempo. Fantástico! Era um vidro de relógio intacto. Como podia ser possível? O embate do corpo do suicida contra o comboio decerto fora violento. Mais que violento. Era quase um milagre terem encontrado aquele vidro sem a mínima mazela. Não. Milagre, não. O desgraçado atentara contra a própria vida e não se podia falar de milagre. Teve bilhete direto para o Inferno.
Foi a vez do Mário fazer a sua descoberta.
«Miolos, Armando! Miolos e restos de sangue. Brre! Bem disseram que havia miolos espalhados na linha.»
«Bruxos! Deixa ver melhor... Que nojo! Estou a ficar indisposto. Acho que vou vomitar.»
«Maricas pé de salsa!»
«Vamos embora!»
«Espera. Só queria encontrar uma mão. Dava vinte e cinco tostões por uma mão do morto. Decepada, claro. Com um pouco de sorte ainda vou encontrar uma, Armando.»
«E a minha avó também. Para que queres tu a mão?»
«Ora, para levar para a escola e meter cagufa às raparigas. De certeza que ficavam todas histéricas. Já imaginaste o espetáculo?»

Para lá da tristeza que deixava transparecer, quis saber o que se passava naquela mente estranha. Depois do sorriso que me lançou, voltou à situação inicial de olhar em frente. Hesito. Devo ir ter com ela? Nunca falei com ela. Alguma vez há de ser. Mas não vou convidá-la para dançar, porque sou um grande cepo. Um contraído. Principalmente nas músicas mais aceleradas.
O Vítor Berto e a Ana devem estar a dançar muito agarrados. Para eles não há músicas movimentadas. Só slows. Aquele namoro não me parece ser sincero. O mês passado ele namorava com a Rita. Ambas gostam dele. O namoro é à vez.
Deixo os três em paz. Algo me diz que qualquer coisa não bate certo, pois a Cristina debruçou-se mais no muro e agora olha para baixo. Ainda é uma altura considerável. Que vê? Só o escuro porque o negrume é total. Oh! Vai atirar-se, vai atirar-se! Não hesito. Corro para ela e consigo agarrá-la pelas pernas. Felizmente que é leve. Mesmo assim a situação é complica. Força, Mário, tu consegues!
Lentamente, vou puxando-a para cima. Já a seguro pelas nádegas. O tato revela-me uma coisa que acho imprevisível. A Cristina não tem cuecas! Falta pouco para a salvar. Já está!
«Louca! Que ias fazer?»
Não responde. Já a tenho a salvo. Não solta uma palavra. Agarra-se muito a mim e soluça convulsivamente.
Pouco depois, deixo que se solte. A seguir acaricio-lhe os cabelos. Continua sem falar. Deve estar em estados de choque. Eu também estou, mas a minha situação é diferente.
Finalmente deixa escapar um meio sorriso.
«Pregaste-me cá um destes sustos!»
«Desculpa.»
Volta a encostar-se a mim. Sinto o contacto do peito. Todo eu sou sensações estranhas. Tenho que acalmar a fera.
«Queres desabafar? Juro que não digo nada a ninguém.»
«És uma pessoa de bem.»
Desengana-te, Cristina. Por vezes sou oportunista.
«Como te sentes?»
«Não sei o que se passou na minha cabeça. Obrigada, Mário.»
Pego-lhe na mão.
«Vamos lá para fora falar?»
«E os outros?»
«Estão entretidos. Vai ser fácil. Entramos na sala a dançar...»
«Mas eu não sei dançar...»
«Deixa-te levar. Depois saímos nas calmas.»
«Sim.»
«E aqui vamos. Vês que é fácil?»
«Tu és o máximo, Mário!»
Ela nem sabia o sacrifício que estava a fazer. Felizmente que estavam todos entretidos a dançar o “Baião da Ana”.

«Foi um impulso. Parecia que alguém me empurrava.»
«Sentes arrepios de frio?»
Disse que não. Então, sosseguei-a.
«Ainda bem.»
«Achas que foi o meu pai que me chamou?»
«Não penses nisso.»
Depois daquela tragédia, o louco do pai ainda devia andar perdido, talvez no limbo, não encaminhado.
Estávamos no jardim da vila. O jardim que deu lugar a outro que tanto me encantou enquanto fui criança. Em vez do parque infantil havia agora um mamarracho de um obelisco circundado por um lago desproporcionado. Uma obra prima de um assassino da arte.
«Fui feliz aqui quando era criança, Cristina.»
«Sim? Conta-me…»
«Talvez mais tarde. Descansa um pouco, Cristina.»
«Deves ter histórias bonitas para contar…»
Se tinha!
«Sentes-te melhor?»
«Sim. As minhas histórias foram sempre cinzentas.»
Agora que ela estava mais calma talvez fosse o momento de deixar que falasse.
«Queres desabafar, Cristina?»
«Sim.»
Depois daquele sim, estranhamente deixei de ouvir a sua voz. Os seus lábios moviam-se, mas não conseguia ouvi-la.
«Não te oiço, Cristina! Fala mais alto.»
«Mário...»
E a Cristina continuou a falar sobre algo que não conseguia ouvir. Ela com uma expressão do rosto mais animada. Eu, desesperado por continuar a não conseguir ouvir a sua voz.
Quanto tempo durou aquele blackout?

Estava de novo na varanda. Olhei para a esquerda e vi a Cristina olhando em frente, talvez a observar no céu da noite a Lua, Vénus e muitas estrelas, talvez algumas delas já não existentes.
Cocei a cabeça, algo desorientado. Agora não sabia se aquele momento de suspense voltou para trás ou nunca chegou a acontecer. Se a infeliz Cristina ia outra vez tentar atirar-se lá para baixo, onde era o empedrado de paralelepípedos em calcário. Se nada de grave ia acontecer e se tudo não tinha passado de uma mera partida do subconsciente.
Olhou para mim. Outra vez aquele sorriso de há pouco.

«Finalmente, Mário!»
Era a Alice.
«Ah, és tu.»
«Quem querias que fosse, meu parvo? Onde te meteste este tempo todo?»
«Eu...»
«A tua avó torta?»
Não sabia como responder. Deixei que falasse. Era melhor.
«Há mais de meia hora que não ponho os olhos em ti. Já vim aqui várias vezes e não te vi. Nem sequer na sala de jantar.»
«Fui a casa.»
«Mentes tu. Perguntei à Luísa e à Laura e não te viram. E também a outros.»
Que desculpa podia dar?
Foi então que olhou para o outro lado da varanda e viu a Cristina.
«Não me digas que te escondeste com aquela fufa e afinfaste-lhe!»
Ainda bem que não nos tinha visto a dançar enquanto tentávamos sair das vistas de toda a gente.
«Depois falamos melhor. Vem para dentro que eu peço para porem a tocar o disco do "Arrivederci Roma". Estou caliente
Aquela canção era o meu cartão de visita quando atuava no conjunto "Red Diamonds". Mas mais uma vez o determinismo fez valer a sua força. Esse conjunto musical, que até mudou de nome, teve um tempo fugaz. Terminou logo a seguir a um convite que nos fizeram para atuar na coletividade do Francisco Santiago e do seu "Gato do Manel Zé".
Foi num domingo logo a seguir ao almoço. Tínhamos meia dúzia de canções no repertório para animar o baile e havia necessidade de fazermos render o peixe.
Nem foi preciso haver malabarismos. Faltou a luz logo a seguir à primeira canção e o baile não continuou. Azar do caraças!
«E os comes e bebes?»
«Já foram, não te lembras? Passa da meia-noite. Anda, tolo. Quero sentir-te todo!»
«Vai andando, Alice.»
Disse que sim e afastou-se. Demasiado fácil para ser verdade. Mas foi.
«Não demores.» Disse ainda.
Olhei para o sítio onde estava a Cristina. Telepatia! Também olhou para mim no momento. E desta vez foi ela quem se aproximou.
«Quero agradecer-te...»
Pus uma mão amiga sobre o ombro e encarei-a com o mais sincero dos sorrisos.
«Prometes que não voltas a fazer...?»
Achei estranha a sua resposta.
«O quê?»
«Bem... aquilo que fizeste.» Engasguei-me. 

«Que coisa!» disse para mim.
«Tive quinze a Matemática. Se não fosse a ensaboadela que me deste...»
Então eu dei-lhe explicações de Matemática?
«Mas...»
«Quero dar-te uma prenda.»  
Tudo ficou em suspenso à minha volta. Já não via a Lua no horizonte e logo abaixo Vénus. Nem a Cristina a debruçar-se com perigo no muro. Nem a tentativa que fiz para a salvar. Nem o baile e nós os dois a caminho do exterior. Nem a Alice que andava à minha procura e que veio ter comigo cheia de desejos obscuros.
«Então, Mário, que dizes?»
Fiquei para morrer. A Cristina tinha levantado as saias.
«Mas tu não tens cuecas!»

[1] O livro chama-se “Dianética”

[2] Admito que hoje a tenderem para música “pimba”

[3] Nunca me ocorreu que ele fosse viúvo ou descasado. Provavelmente ligava-o à coletividade alguma relação sentimental s

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O comboio



 



Simbiose...
Tenho ao meu lado um copo meio de vinho que já não rodopia. E como não rodopia as minhas ideias ainda estão nebulosas. Lógico. Então vou beber mais uma pinguinha. O vinho é bom.
Estou sentado no chão. Há um gravador na minha frente. A fita da cassete vai-se desenrolando e enrolando, mantendo a velocidade e registando as palavras ditas que se esquecem no momento.
O que me aconteceu há meses na rua, quando fui obrigado a baixar-me para apanhar uns objetos sem o mínimo interesse deixa-me perplexo. Não entendo. Estou a jogar na penumbra não sei com quem. E, para ver melhor o problema, é altura de molhar outra vez a goela. Vou encher o copo porque estou com muita sede. Não sou alcoólico, nem nunca fui. Mas hoje algo me impele para a bebida.
Bom, vai ficar aqui a garrafa. No chão. Ao lado do copo. Mesmo à mão. Este caso é melindroso e precisa de iluminação. Até acho piada porque parece que eu voltei aos tempos antigos. Começo a sentir-me toldado. Tento concentrar-me. Não sei porquê, mas lembrei-me do Mário, um contador de histórias e da sua própria história. O Mário estava habitualmente no interior do snack da Sacor com um copo meio de água, duas chávenas vazias e tinha a Patrícia na sua frente, com olhar distante, alheada do que se passava à sua volta, inclusivamente dele (1). Mas agora a situação é outra. Sou e não sou o Mário. Não vejo gaivotas na minha frente e não tenho alucinações, apesar de ter bebido alguns copos deste vinho com grau enganador.
Tudo está bem, obrigado. Vou beber mais um copo.
Está a fazer um ano que fui a Fátima. Recordo-me desse dia em que tive uma atração especial pelo túmulo do Francisco e ainda hoje não sei explicar porquê. Mas que houve atração, houve. Fiquei pregado ao solo, a olhar, a pensar no destino implacável que arrebatou duas crianças no espaço de um ano e que deixou uma terceira que ainda hoje está viva.
Senti-me fascinado. Tudo parou à volta de mim e fiquei a olhar, a olhar. Estático. Preso ao chão. Por um momento, longe do mundo materialista que me escravizava. Por um momento sublime, ligado àquele silêncio quase hipnótico que santificava o local.
Coincidência ou não, está a fazer um ano que começaram a acontecer fenómenos insólitos, alguns muito desagradáveis. Foram momentos que ultrapassei com dificuldade. Hoje parece que quase tudo passou.
Que certezas tenho?
Estou sentado no chão, a falar, sem as gaivotas na minha frente, mas ainda inibido. Ainda lúcido, estou a vencer os dois eus. Devo ser um terceiro. Sinto-me extremamente positivo. Continuo a ver as cassetes na minha frente. Está tudo normal. E se alguém, mais tarde, ouvir esta gravação e as outras que fiz, deve pensar que há uma diferença abissal. Hoje estou frio, muito calculista. Não me sinto triste. Estou a beber. Simplesmente a beber. A esconder o desejo de alcançar o que não posso ter. E o que não posso ter? Talvez mais cortinas para descerrar.
É inevitável acontecer. Não consigo evitar, por mais que tente. Sinto que estás a chegar a mim. Sabes? Claro que não podes saber aí desse lado, do azul constelado do céu. Tenho saudades da tua voz. Do teu sorriso triste. Dos teus olhos também tristes. Nunca consegui saber a causa da tua morte. Se sofreste. Se o teu último pensamento foi dirigido para mim. Tudo isto porque Deus não fala comigo. Há muito. Ou nunca falou. Não interessa. Ele é que sabe porquê. Ou então está enganado.
Se, ao menos, soubesse que estavas bem! Se pudesse fazer:
“Tchim tchim!”
(Vibração do copo depois de bater na garrafa...)
Quando te vi pela primeira vez estavas vestida de branco. Uma trança caía pelas tuas costas. Eras muita jovem e eu também. Apaixonei-me logo por ti. Mas o mundo dá muitas voltas.
A inspiração que corre no meu rio de águas turvas deixa que veja o seu fundo de calhaus rolados, testemunhos de uma vida longa, quase eterna comparada com a vida dos humanos. Será que sou quem julgo ser, ou então sigo os passos daquele que já fui?
A porta, para lá qual imagino que estejas, existe. Está encravada num muro de cristal tão puro, tão fino que se torna invisível aos nossos olhos de simples mortais. Esse muro separa dois mundos. O lado de cá, onde as coisas acontecem e estou sempre, e o lado de lá, o tal mundo invisível, tão negro como a matéria negra e com os poderes dessa matéria que controla a expansão do universo, onde tu vives agora, algures.
Parece que estou a ver-te no Passeio de Portalegre. O teu vestido branco. O cabelo castanho em rabo-de-cavalo. O olhar triste. Tudo me parece real. Não me conheceste. Nesse ano não deste por mim. Dois anos mais tarde fizemos, de mãos dadas, a subida à Senhora da Penha.
Estou a sentir as tuas mãos macias. Já foi há tanto tempo e ainda não me esqueci de ti!
Como estavas bonita naquela noite em que fomos ao cinema Crisfal!
Apareceste pintada e fiquei deslumbrado. O cabelo, habitualmente em rabo-de-cavalo estava apanhado atrás naquela noite e fazia-te mais velha. Olhaste para mim, admirada com a minha expressão, mas nada te disse nem tu me perguntaste sobre o que o meu rosto deixava transparecer. Encantamento. Magia. Não sei. Fiquei bloqueado.
Mais um copo. Este vinho está gostoso.
Neste momento estou a ouvir uma música que me apetece cantar. Perfídia. E estou mesmo a cantar, com versos improvisados. Hoje tudo acontece. A palavra "perfídia" quer dizer traição, falsidade. Da minha parte, traição; e da tua parte, falsidade.
O teu segredo está bem escondido.
Esta noite de domingo tem sido uma noite estranha. Talvez esteja a acontecer magia.
Não consigo recordar-me como foi. De repente dei comigo a declamar o Fel de José Duro, o infeliz poeta que falava com a morte. Parecia até já conhecer os versos mórbidos. Não é verdade. Tinham-me oferecido o livro e limitei-me a guardá-lo numa das três estantes que tenho em casa. E sem a mínima justificação fui buscá-lo nesta noite.
Ontem encontrei-me com ele. Fomos um só. Não posso explicar de outra maneira esta simbiose.
Tenho o dobro da idade que ele tinha quando morreu, zangado com a vida que lhe foi madrasta.
Parece que terminei a longa travessia do deserto. A toda a velocidade, tento apanhar aquele comboio que me fugiu no primeiro apeadeiro. Antes, aí vai a minha homenagem ao poeta que só falava da morte. Um soneto seu...



                                         O MEU CREPÚSCULO



                          As palavras cruéis que o meu relógio fala
                          Num gélido estertor, num íntimo cansaço,
                          Lembram-me o gargalhar dum mórbido palhaço
                          Que roubasse a ironia ao ventre duma vala...

                          Encontro um não sei quê na sua voz estranha,
                          Quando, por essa noite, a apunhalar-me o sono,
                          Me diz pausadamente: - «És filho do Abandono,
                          Hás-de sofrer a vida até que a morte venha».

                          Mas gosto de ouvir, e, às vezes, tenho pena
                         Que a sua predição, que tanto me envenena,
                         Perturbe a minha alcova apenas um instante...

                         Porque julgo ver nele uma alma a soluçar
                         - Mercê do mau Destino -, a mágoa extravagante
                         Que sofre do seu mal por não poder chorar!



Neste momento revejo uma fotografia em que estamos sentados no banco da Corredoura dedicado a esse infeliz poeta. Estou a olhar para ti. Pareces pensativa. Talvez já estejas a adivinhar o futuro que te espera.





Tem sido uma noite muito estranha!
Acredito que o poeta está presente e parece que formamos, em certos momentos, um só. Terá talvez apadrinhado o desencontro que tu e eu tivemos na Terra.
Sinto-me demasiado embriagado para a quantidade de vinho que bebi. A pulsação está acelerada. Não sei o que se passa comigo. Quero manter os olhos abertos e eles teimam em fechar-se. Não entendo esta vontade irresistível de fechar os olhos. Parece que estou enfeitiçado. Talvez que exista uma qualquer poção diabólica no vinho.
Vou à asa de banho. Este vinho é diurético. E tem magia.
Vejo-a na minha frente e sei que já não existe!
«Tenho que ir embora...»
«Já?»
Fiz-lhe um gesto para esperar.
«Não demoro.»
O vinho é muito diurético. Demorei uma eternidade a urinar.
«Olha...»
Já não está presente. Nunca esteve.
O vinho tem mesmo uma poção diabólica. Nunca imaginei ser capaz de fazer o que fiz. Traí-a. Mas não foi com a Rosa Maria da rua de S. Bento. Juro. Só aconteceu mais tarde com outras mulheres.
É fatal tentar afastar-me. Não consigo enfrentar a verdade. Fujo do efeito fatal daquele veneno etílico e corro a toda a velocidade para apanhar o comboio que perdi.

Viu-o, do cimo das escadas. Era um comboio igual a outros que tinha visto, mas foi há muitos anos. Estava parado na estação, à espera de passageiros retardatários. Sem saber porquê, ocorreu-lhe a ideia que não devia abandonar aquele ponto de observação. A escadaria era longa, mas as pessoas que iniciavam a descida não tinham pressa porque sabiam que o comboio não partia sem elas. E quem eram elas? Certamente pessoas importantes porque tinham o lugar marcado numa viagem que devia estar prestes a começar. O comboio continuava parado na estação. Ia partir em breve. Era fatal acontecer a partida. Ficou indeciso, como acontecia no tempo das paixões que davam forte e ardiam, depressa, feitas supernovas que gastavam, num ápice, todo o seu combustível. Depois nada restava senão algo nebuloso. Sabia que aqueles pensamentos eram impostos e que resultavam de uma interferência que também trouxe aquele comboio fora da época.

Desceu as escadas para ver, mais de perto, o comboio que tanto o intrigava. As carruagens, feitas de madeira, estavam escurecidas. As janelas de guilhotina deviam ser difíceis de abrir e também de fechar. Há muito tempo que tinham deixado de se usar porque eram pouco práticas e até perigosas no manuseamento.
Reparou que a locomotiva funcionava a vapor, a partir do carvão que o fogueiro ia deitando na fornalha. Via-se o fumo erguer-se no ar, em rolos sucessivos e ritmados. Pouco faltava para ser dado o sinal da partida. Ou então o comboio ia partir sem sinal do homem da estação.
«Também está à espera?»
«Desculpe, não percebi.»
Não sabia se as frases eram interferências.
Havia lugar para todos os passageiros. Talvez fosse um dia especial. Um dia diferente. Daqueles dias que acontecem poucas vezes. Era lógico? Era lógico ser um dia diferente e também ter lugar sentado?
Olhou em volta. Na verdade, não havia uma pessoa de pé. E lá fora não ficara ninguém. Se ficasse, veria o comboio deslocar-se da esquerda para a direita. Segundo os iluminados, era o rumo tomado para o futuro. Neste caso estava a ver a locomotiva do seu lado esquerdo. Assim, à partida, o comboio deslocava-se da direita para a esquerda, para o passado. Era intrigante sentir o comboio rumo ao seu tempo.
E qual era o seu verdadeiro tempo? Boa pergunta. Dava para especular.
A primeira coisa que viu foi um estreito corredor a meio. Deu alguns passos e foi olhando para a esquerda e para a direita. Viu também pequenas cabinas com bancos corridos, em oposição. Achou que era uma boa oportunidade para as pessoas ficarem frente a frente e assim poderem travar conhecimento.
Sempre não houve sinal de partida. Entregue às suas cogitações, sentiu um esticão forte do arranque do comboio. A gare foi ficando para trás e ele foi seguindo em frente, ao mesmo tempo que espreitava para o interior das cabinas. Viu em todas dois bancos corridos, em madeira. Cada um deles era ocupado por três pessoas. Não se preocupou. Ainda havia muito corredor para percorrer e tinha a certeza de existir um lugar para si. Quem organizou a viagem certamente que contou com ele. Doutra fora não teria avistado o comboio do alto das escadas, parecendo convidá-lo para descer.
Tinha razão. Lá estava o seu lugar, junto a uma das tais janelas de guilhotina. Tal como gostava. Tudo feito sem ter sido descurado o mínimo pormenor. Devia agradecer. Não sabia a quem. Ficava para depois. Quando as ideias ficassem menos nubladas.
Instalou-se. Num primeiro golpe de vista concluiu que não conhecia ninguém que estava sentado na sua frente nem aos lados. Olhou para lá dos vidros. Só viu o negro para lá deles. Não viu uma única luz no exterior. Não havia estações. Não havia ruídos. Era isso. E as pessoas não falavam. Talvez por se desconhecerem. Ou porque não queriam. Ou por outra razão. Por alguma razão seria, porra! E não era tudo. De facto não ouvia o mínimo ruído resultante da fricção das rodas nos carris, nem vindo das vozes daqueles viajantes que, à primeira vista, pareciam autómatos.
Aquela descoberta perturbou-o um pouco. Nunca devia ter cedido à curiosidade que o levou a entrar no comboio que não era do seu tempo. Era urgente procurar uma explicação.
Coçou a cabeça, indeciso. Devia estar a sonhar. Não se lembrava como fora ter ao cimo das escadas. O antes não tinha existido para ele.
Fez uma descoberta das arábias. Aquela estação tinha mais a ver com o metropolitano, pois desceu por escadas, embora não fossem escadas rolantes.
Consultou o relógio. Apenas viu um fundo cinzento.
«Mau sinal!» admitiu, admirado.
Resolveu fazer uma experiência com o jovem do rosto macilento que estava na sua frente. Dava-lhe aí uns vinte e três, vinte e quatro anos. Não mais que isso.
Primeiro, fez-lhe um ligeiro aceno. Na segunda tentativa, sorriu. Era um bom começo. Ele tinha fixado o olhar em si.
«Diz-me as horas, por favor?»
«São onze e dez.» Respondeu, muito sério.
Caso curioso. O homem novo tinha um relógio de bolso preso por uma corrente prateada. Chamavam-lhe cebola noutros tempos. Agora não se usava.
Porque é que chamavam cebola? Bom, não interessava. Pensando na pergunta que fez ao homem do rosto macilento, achou por bem justificar-se.
«Muito obrigado. Acontece que o meu relógio não tem pilha e por isso fiz a pergunta. Ou melhor: a pilha gastou-se.»
«Pilha?»
Mostrou-lhe o relógio de pulso. Um Swatch que não era de coleção. Trouxe-lhe um amigo da América. Que Swatch? A resposta foi só um gesto de estender o braço.
«Lá me esqueci do relógio outra vez!»
O jovem passou as mãos pelo rosto, cofiou o bigode e depois olhou para o chão da carruagem. Instintivamente acompanhou o seu olhar e reparou nos sapatos que tinha calçados. Fora de moda. Já agora o fato. O casaco era cinzento-escuro, de bandas estreitas. As calças tinham dobras. Quanto ao boné estava puxado para a testa e era também cinzento, a condizer com a cor das calças.
Reparou então que a mulher à sua direita olhava fixamente na sua direção. Parecia trespassá-lo com o olhar. Devia ser um daqueles tipos de mulher fatal. Nada feia. Vestia calças vermelhas e t-shirt preta. O decote era generoso, dos tais que mostravam quase tudo. E o resto de tudo imaginava-se.
Meteu também conversa com ela.
«Pode dizer-me para onde vai este comboio?»
Continuou a olhar fixamente para ele, mas acabou por falar.
«Desculpe... o senhor disse a palavra "comboio"?»
«Pois foi, minha senhora.»
«Mas qual comboio?»
Queria baralhá-lo?
A mulher tinha sorrido em tom irónico.
«Claro que estou a referir-me a este comboio vetusto!»
«Está a brincar comigo. Que comboio é esse de que está a falar? Que eu saiba, aqui não passam comboios...»
Também lhe pareceu que não, pois reparou que estava a caminhar empedrada com paralelepípedos graníticos.

Consultou o relógio. Eram dez horas da manhã e estava e entrar num café. Estranhou. Estava quase vazio. Apenas viu, numa mesa a meio, e mesmo no alinhamento do balcão, que se estendia em profundidade, na perpendicular à linha das montras, uma mulher.
«Coisa estranha!»
A mulher vestia de vermelho (2), usava um chapéu branco de abas largas e escondia os olhos com óculos escuros, espelhados.
«A mulher de vermelho!»
Tinha más recordações dessa mulher.
Curioso. Parecia olhar para ele. Não. Talvez que fosse só impressão sua. Aqueles óculos espelhados, de lentes quase circulares, davam para admitir todas as hipóteses e mais algumas.
Ficou especado a olhar para ela, mesmo antes de chegar ao balcão. A mulher deixava transparecer um ar distinto. Demasiado distinto para aquele vulgar café de praia. Além do mais, já tinha começado a época balnear e ninguém vestia de uma forma tão elegante naquele sítio, por ser despropositado. Era estranho.
Hesitou entre ficar virado de costas para a mulher ou então enfrentá-la. Estava deveras intrigado. Talvez por isso ficou virado para ela. Enquanto esperava pelo café foi enfrentando, com dificuldade, o seu olhar, tentando, em resposta, fitá-la também, mas com um certo ar de provocação. Apreciou a sua figura e concluiu que, apesar da idade, ainda era atraente. Devia ter entre cinquenta e cinquenta e cinco anos. O cabelo era preto, pintado. O chapéu de abas largas não o tapava de todo. Nada havia sobre a sua mesa. Nem uma chávena de café. E ela continuava a observá-lo.
Ah!, ainda bem. A mulher tirou o chapéu e pousou-o na cadeira à sua esquerda. Assim, ele confirmou que o seu cabelo era preto e estava bem penteado, embora dum modo clássico, E outra coisa, ainda. Tal imagem lembrava uma mulher dos anos trinta.
Olhou de novo e procurou ser insistente. Nada como da outra vez. A mulher continuava imóvel, olhando ainda fixamente para ele. Se ao menos tirasse aqueles óculos espelhados para lhe ver a cor dos olhos! Se conseguisse falar com ela...
Encolheu os ombros e dirigiu-se para a mesa onde estava a mulher.
Enganou-se ou a força instalou-se nele?
«Desculpe...»
«Sim?»
«Donde me conhece?»
A mulher sorriu, irónica.
«Que o leva a fazer semelhante pergunta?»
«O seu olhar insistente. Mesmo com esses olhos escondidos através dos óculos espelhados tenho a certeza que esteve sempre a observar-me desde que entrei neste café.»
«Tem razão. Estava a observá-lo. Mas não fique de pé. Sente-se, por favor.»
«Obrigado. Aceito o seu convite. Toma alguma coisa? Um café... um chá?»
«Obrigada. Tomei mesmo agora.» 
«Como assim?» perguntou, ao mesmo tempo que observava o tampo da mesa.
Não viu a chávena. Mais uma dúvida a juntar às muitas dúvidas.
Esboçou um sorriso de circunstância e rebuscou um assunto qualquer que não lhe ocorreu. Foi ela quem começou:
«Já amou alguma vez à primeira vista?»
Estranha pergunta. Mas... bingo!
«Sim. Foi há muito tempo.»
Há muito, muito tempo.
«E que aconteceu depois?»
Ia para responder. Sem mais nem menos a mulher começou a rir-se de uma forma algo descontrolada.
«Está a rir, porquê?»
Não obteve resposta. Aliás, já conhecia aquele riso que soava a raiva. Talvez fosse despeito. Um riso sarcástico, de quem não acreditava em nada que viesse dele ou doutro qualquer. Um riso escarninho, mas discreto. Quase sussurrante.
«Não há amor como o primeiro! Que grande farsa!»
Porque eram agora tão tristes os seus olhos?

Estava outra vez sentado em frente ao homem do rosto macilento.
«O senhor levantou-se há pouco porque pensou que o meu relógio não estava certo?»
«Não é isso, meu bom amigo. As pessoas vão muito caladas. Achei estranho e resolvi fazer uma experiência.»
«Que experiência?»
«Vê aquela mulher de t-shirt preta?»
«O que é isso de "ti chârte"? E onde está a mulher?»
Olhou na direção onde tinha visto a mulher e encolheu os ombros, resignado.
«Desculpe. Devo ter adormecido e sonhei.»
«Não. O senhor ausentou-se.»
Procurou uma desculpa razoável.
«O comboio esteve parado numa estação e eu saí. Não me pergunte mais nada. Há muitas coisas que se contam e há outras que não vale a pena contar. Ninguém acredita nelas.»
«Este comboio nunca parou. Garanto-lhe.»
«Compreendo. A viagem mal começou ainda.»
«Como assim? Só se foi a sua. A minha nem sequer sei há quanto tempo dura.»
Não replicou.
«Mas então de onde vem o meu amigo?» perguntou o homem do rosto macilento.
Uma boa pergunta. Ele também gostava de saber.
«Só me lembro de ter entrado na última estação.»
O outro tossiu e levou uma mão à boca, tentando suster um vómito. A tosse era seca.
«Não pode ser!»
«O que é que não pode ser?»
«Este comboio nunca parou. E só vai parar no fim da viagem.»
Afirmou que a convicção dele era absurda.
«Está a querer desmentir-me?»
Fez um esgar de impaciência e levantou-se quase de imediato. Depois, foi pedindo licença aos outros passageiros para passar. Não conseguiu evitar o joelho de um deles. Voltou para trás.
«Desculpe, senhor. Quer vir até ao corredor desentorpecer as pernas?»
«Agradeço a sugestão, mas fico por aqui.»
Já no corredor, olhou para o exterior. Estava muito escuro, conforme calculava. Não valia a pena ficar no corredor.
«É sempre noite lá fora.»
Não comentou. O comboio continuava a avançar no desconhecido.
«Voltando à nossa conversa, o senhor não acredita que eu entrei na última estação?»
«Não.»
«E porquê?»
Voltou a levar a mão à boca. Dessa vez não tossiu.
«Mantenho a minha. Este comboio nunca parou. E viajo nele há tanto tempo que nem sequer me lembro do momento em que entrei.»
«Então sempre teve que entrar no comboio. Um de nós está a mentir e não sou eu.»
«Eu também não.»
«Recapitulando, ainda há pouco desci as escadas que dão acesso à gare e vi parado, na linha encostada à gare, este comboio vetusto, enegrecido pela fuligem, que parece remontar ao tempo da Maria Cachucha.»
«Quem é essa Cachucha?»
«É uma força de expressão. Não fui o único a descer as escadas. Umas boas dezenas de pessoas também desceram e entraram no comboio. Vinham sem pressa. Só uns cinco minutos depois do comboio apitar estridentemente é que deixou a estação. E sabe mais uma coisa?»
«Não.»
«Os lugares estavam marcados.»
O outro suspirou profundamente.
«Não vou rebater mais a sua versão, mas mantenho a minha.»
«Não terá, entretanto, adormecido?»
Não respondeu.
«Talvez. Olhe lá uma coisa, não lhe parece que o comboio está a abrandar?»
Concordou. Diminuíra a velocidade. Seria que parava?
O comboio acabava de entrar numa estação profusamente iluminada. Olhou através do vidro de uma das janelas e ficou desolado. A gare estava vazia. Sinal de que não havia mais ninguém para entrar. Um último esticão e parou.
«Onde estamos?»
«Boa pergunta. Talvez seja o fim da linha.»
Abriram-se as portas e as pessoas começaram a sair. Calmas, sem atropelos.
Olharam um para o outro.
«E agora?» perguntou o homem do rosto macilento.
«Vamos sair também e ver para onde se dirigem todos estes mortos-vivos.»
«Mortos-vivos? É capaz de ter razão.»
Ao fundo havia três túneis, todos com muita luz. E as pessoas encaminharam-se para eles. Sem hesitações, cada uma entrou no seu túnel.
«Vai pelo túnel que tem a luz mais intensa.»
«Ouviu o mesmo que eu, meu bom amigo?»
«Sim» disse o homem do rosto macilento. «E qual é o túnel?»
«Repare bem. É o do meio.»
«Como sabe?»
«Li num livro.» Mentiu.
Afinal para ele tratava-se de um déjà vu.
«E o que fazemos? Que saiba, não fomos programados como os outros. Isso dá-nos a esperança de estarmos ainda vivos.»
«Começo a desconfiar que não. Ou, na melhor das hipóteses, um de nós está a sonhar e o outro é imaginário.»
«Então?»
«Vamos entrar no túnel do meio.» Decidiu.
Semicerrou os olhos e estacou logo à entrada. Tinha avistado uns vultos.
«Provavelmente eles estão à nossa espera.» Disse o homem do rosto macilento. «Cada um seguirá o seu caminho. Chegou o momento de nos despedirmos.»
«Quem são eles?»
«Amigos. Ou entes queridos que perdemos.»
Agarrou-o por um braço.
«Afinal sempre morremos. Oxalá tenhamos uma vida melhor que a outra que deixámos.»
«Aí vamos nós!»
«Não ouviu uma voz?» perguntou o outro.
«Não.»
Que se passava?
«A voz disse que o senhor deve voltar para trás.»
«E o meu amigo?»
«Eu sigo. Lembre-se que a minha viagem vem de muito longe. Devo andar perdido por aí há muito tempo. A voz diz...»
«Sim?»
«Para eu não ter medo.»
Sentia-se revoltado. O seu destino acabava ali, à entrada do túnel. Tanta coisa que deixou por fazer!
«Não faz sentido. Quero ir ao encontro dos corpos de luz que estão à nossa espera! Saber o que existe para lá do túnel. Se ela está...»
«Quem é ela?»
«A escolhida.»
«Mas a sua missão ainda não acabou. Deve voltar para trás!»
«Que missão?»
Demorou a responder.
«Não foram obra do acaso os fenómenos que lhe aconteceram. Só que não os entendeu. O senhor é uma espécie de canal de ligação entre dois mundos e ainda não chegou o momento de ser cortada essa ligação.»
«Mas...»
Era verdade. Lembrava-se. Houve um tempo em que os fenómenos se sucediam de uma forma alucinante. A princípio, vacilou. Não sabia muito o que estava acontecendo. Com o passar do tempo, adaptou-se. Fez bem em registar tudo no papel e nas cassetes, salvaguardando-se assim de distorções próprias provocadas pela memória.
«Talvez um dia relate os estranhos casos que me aconteceram e os outros que me contaram.»
«É essa a sua missão. Ficará preso ao seu corpo grosseiro enquanto não a cumprir.»
«E o meu bom amigo, quem é?»
«Sou alguém frustrado que travou um diálogo absurdo com a morte. O destino não me deu a mínima oportunidade porque a tísica destruiu-me o corpo e também a alma.»
«Quero acompanhá-lo!»
«Não vale a pena porque não tem ninguém à sua espera. Nem a tal ela. Ainda não chegou o seu dia.»
«Como sabe?»
«Eles disseram-me.»
«Quem são eles?»
«Os acompanhantes.»
Trocava anos de vida para saber o que se passava do outro lado. Como era esse mundo. Se ela esperava por ele.
«Que fez de mal na sua vida para ser tão castigado?» perguntou ao homem do rosto macilento.
«Não queria morrer. Vivi uma eternidade num quarto de século. Sofri e fui um revoltado por nunca ter sido feliz. Adeus. Um dia voltaremos a encontrar-nos, mas primeiro tem que cumprir a sua missão.»
«Nem sequer me disse o seu nome!»

Era o único passageiro do comboio. Poeta de ocasião e contador do inexplicável, voltava do passado, das carruagens cobertas de fuligem e com janelas de guilhotina, onde encontrou um infeliz poeta de rosto macilento, há muito em viagem, com quem conversou.
Avançou até ao fundo e sentou-se num dos bancos que nada tinha a ver com os outros da viagem de ida. Já ouvia o trabalhar dos motores, bem como o ruído do fechar automático das portas.
Voltava ao seu mundo.
Sentiu o esticão do arranque. Sim. Era real. Regressava de longe. Não sabia de onde. Mas sabia para onde era a viagem…

Simbiose (conclusão)
Tive um ligeiro sobressalto. Estava deitado no chão, a olhar para o teto. Que fazia ali?
Soergui-me com a ajuda do antebraço esquerdo e também da mão. Já sentado no chão, vi o copo e a garrafa, ambos vazios. Havia também o pequeno gravador e também um livro de poemas.
Menos de um litro de vinho não justificava a entrada num vetusto comboio cujo destino eram as terras do tempo perdido, tendo por companhia quase uma centena de mortos-vivos e de um poeta que encarou a morte como quem comia, deliciado, um doce conventual. Depois, havia a sugestão de imortalidade, vinda do fundo dos fundos, alimentada por muitas histórias que ainda tinha para contar.
«Fel... Que faz aqui este livro?»
Comecei a folhear o livro.
«Como ele sofreu!»
Peguei no copo vazio e na garrafa também vazia e dirigi-me para a cozinha. Havia no ar uma sugestão de imortalidade, vinda do fundo dos fundos, alimentada pelas muitas histórias que já tinha contado e das outras que ainda tinha para contar.
Quanto à história das histórias, esta aconteceu em setembro. Ela tinha olhos tristes e partiu cedo, numa viagem sem regresso. Nunca mais a vi, mas dizem que volta todos os anos. Traz uma mão cheia de nada e a outra, vazia de sonhos. E acontece sempre quando as folhas das árvores amarelecem, soltam-se, flutuam por momentos, e logo a seguir caem no chão e esquecem-se de viver.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

O vale era verde

 


A ambiguidade foi sempre a sua companheira preferida. De facto, nunca deixou de o acompanhar, principalmente nos dias dos pressentimentos mais intensos. Instala-se sem cerimónia, arrasta para longe o livre-arbítrio de não acontecer porque tinha que acontecer e deixa no ar um leve odor a fatalismo quando os cinco sentidos reais adormecem. Varrem-se as ideias e as imagens. A vontade perde a força e a sensação de ser quem não é passa a primeiro plano. Tudo de seu desaparece para dar lugar a um suposto testa de ferro. Antes que aconteça vêm os sintomas. Primeiro é a angústia que se instala. As pressões no peito. O pressentimento das fatalidades que vão chegar. A sensação de insegurança. Depois, toda esta panóplia de estados de sítio convence-o que são, pura e simplesmente, manobras de diversão. Porquê? Não sabe. A provar essa nova verdade, os cinco sentidos reais continuam a acompanhar o corpo material, enquanto que o outro corpo é conduzido numa viagem de novas aprendizagens que vão ser adquiridas de uma forma por vezes caótica, quando deviam ser graduais e seguras. Existe alguém, ou coisa, dentro dele cuja curiosidade de saber é inimaginável e que o arrasta cada vez mais para longe, tão longe, sob pena de um dia não conseguir encontrar o caminho de regresso. Ao mesmo tempo sente saudades do tempo em que os fenómenos aconteciam naturalmente e mostrava-se mais seguro porque estava no seu meio natural.
Essa coisa multiplica-se ao gerar acontecimentos estranhos e perturbadores em que ele, impotente, limita-se a ser um canal de comunicação, o que lhe provoca um desgaste psíquico prejudicial ao equilíbrio físico e mental. O último surgiu recentemente sob a forma de rotura e foi a responsável pela reviravolta que deu na vida. Foi ao mesmo tempo uma lufada de ar puro e outra que o embriagou de entusiasmo, não deixando, no entanto, que separasse as águas. Afinal não era bem o que queria, mas nada feito. Perdeu várias escolhas e teve que aceitar aquela.

O seu novo "ator" é uma personagem atraente, calma, estável sob o aspeto psicológico. Parece controlar tudo à sua volta, mostrando as características gerais dos homens do signo Escorpião e fala muito com ele. Gere a própria memória, expande-a até aos limites necessários, apaga dados importantes quando dá conta que estão vulneráveis e insere outros falsos.
Que fazer?..., propor a fusão dos dois interlocutores, ou destruir simplesmente aquele processo de caminhada em ascensão crescente para um poder que assusta os outros e assusta-o ainda mais que a eles, embora faça finca pé em esconder o que o atormenta e amedronta?
É um erro fatal perder a lufada de ar puro que tanta força lhe dá. Tem que ser prudente. Por enquanto vai fingir que o outro eu não existe e tudo aquilo que acontece fora dos contextos reais afinal não passa de mera alucinação. E assim é inevitável falar outra vez da dama de negro e do jogo em que os dois estão envolvidos. O tabuleiro de quadrados pretos e brancos está preparado com as peças nos seus lugares e situadas frente a frente. Só espera por ela e não vai demorar muito tempo. Certo. Chegou. Aí a temos. Pressente que vai avançar com um peão, lenta e inexoravelmente no tabuleiro de xadrez, onde as peças estão imóveis e à mercê dos jogadores de um só rei. 
Ela traz em si o habitual olhar belo e sinistro de todas as mulheres fatais no sentido fatal da fatalidade. Um olhar que deixa ver o seu desejo insaciável. Quer sempre mais e mais que mais! E ele é forçado a dar-lhe tudo. Tudo? Menos que tudo. A alma. Não a vende por nada deste mundo. Se perder a alma será o fim da sua existência como ser humano. E depois não sabe o que se segue para além da alma. 
Por vezes, a dama de preto mascara-se e isso não é bom. Encontrou-a pela primeira vez sentada à mesa de um café. Vestia de vermelho, tinha um chapéu branco, largo e olhava-o por detrás de uns óculos modernos, espelhados. Sentiu que ela não era real por causa da intensidade do olhar e da própria forma de vestir. No silêncio absoluto de um café vazio, observava-o fixamente. Apenas observava-o. 
Quem era essa mulher e donde veio?
O poder do olhar começava a tomar conta de quase todos os comandos do seu cérebro, a ponto de impedir que fosse dono da vontade [1]. De nada valia lutar. Reagir. Num instante ela dona e senhora da sua vontade. estava à sua mercê. Mas, em princípio, parecia que ela queria apenas manifestar o seu poder naquele café quase deserto, onde só ele e os donos estavam presentes que desconheceram desde princípio  a presença daquela mulher, como mais tarde confirmaram.

A dama de negro abandonou o tabuleiro prematuramente. Admira-se. O jogo nem sequer teve início. Quer entender porquê, mas há toda uma blindagem entre os dois. De qualquer forma, hoje venceu a batalha de um só rei, mesmo sem esta ter começado. Mas não venceu a guerra. Tem que estar alerta porque ela mostrou outros trunfos ainda não visíveis. Não tem dúvidas. Há destroços dentro de si que não consegue camuflar. Não sabe como foram aí parar. São destroços que não podem ser removidos e devem ter trazido consigo algumas destruições para o médio prazo.
Entretanto ela voltou e diz que traz consigo uma proposta que considera irrecusável. Em troca, quere-o só para si. Mas para atingir esse objetivo, precisa de ter a sua alma, insiste. A proposta é tentadora. Fá-lo pensar. É uma oportunidade única. Será que vai aceitar a imortalidade a troco da sua alma? E para que quer ela a alma de um vulgaris de Lineu como ele é? Que mais está por detrás deste negócio irrecusável que levanta suepeitas? Atingir o patamar da eternidade é uma tentação, mas o preço da alma, por mais alta que seja a proposta de troca, não se pode alienar. E depois... vai descobrir o que estará para lá da porta?
Ela ri, irónica. Um trovejar vindo do monstro que é.
«Então queres ir ao outro lado da porta e depois voltar, só porque és eterno?»
Acena que sim com a cabeça. Talvez aceite a proposta. Mas a dama de negro diz que nunca ninguém conseguiu ir a esse sítio e voltar. O bilhete da viagem é só de ida. Os que partem nunca regressam. 
«Porquê? deves ter um motivo muito forte.» 
«Há muitos mistérios que tenho de decifrar.»
«Que mistérios são esses?»
Não responde. 
«Nada feito. Ou melhor. Se me entregares a alma... O que é fácil, porque tudo tem um preço»
«A alma não a dou a ninguém!»
«Brincas comigo. É mau. Nem imaginas como é mau brincar comigo. Mas, adiante. Então, nada feito quanto ao outro lado da porta.»
E afastou-se.
Ah!, felizmente que ainda é mortal. Aquilo foi mais uma sugestão diabólica que partiu da megera do que um encontro real. Esteve por pouco. Mas não ficou descansado porque ela vai voltar. Tem a certeza. Vai voltar vestida de vermelho ou doutra cor. Com promessas tentadoras reforçadas pelas inevitáveis feromonas cujos odores deixam no ar rastos de desejos. Usando esses meios torna-se ainda mais perigosa. Mas ele não cede. Qualquer seja o formato que use, o seu preço continuará acima daquele que ela propõe. Até um dia? Talvez. Mas só quando as peças do seu tabuleiro estiverem todas por terra e o jogo terminar. E ele entrou no jogo para defender a alma.
Que fez de importante na vida, para o bem e para o mal, para ser tão solicitado por aquela horrorosa, e ao mesmo tempo, atraente, que é dama que veste de negro?
De repente há uma mudança. Tão brusca que não deu pela transição. Se calhar até não houve transição. A dama de negro ou quem quer que tenha sido, foi discreta e eficaz. Fulminante. Parece que lhe deram com um spray e adormeceu de imediato. De qualquer forma, viu do outro lado do tabuleiro outra jogadora que não era a dama de negro. Ou então não conseguiu identificar o seu novo disfarce.
O jogo continuou equilibrado, com trocas de peças quase similares. Peão por peão. Cavalo por bispo. Mais ou menos isso. Tudo levava a crer que o jogo caminhava para um empate. Era só uma questão de tempo a preencher uma mão cheia de jogadas. Mas o empate não aconteceu porque ela cometeu um erro grosseiro, ou fez de propósito uma jogada de erro. Foi assim que ele conseguiu ganhar. A dama de negro nunca tinha jogado tão mal. Mal de verdade. Aquilo era uma viragem brusca e parecia que ela já não tinha o poder consigo.
«Quem és tu agora?» arriscou perguntar.
«Adivinha.»
«Um anjo que caiu na Terra? Não acredito.»
Não respondeu. Limitou-se a sorrir. Era tão diferente da camaliónica dama de negro! Mesmo assim, apostou no seguro.
«Sabes que não vendi a alma?»
«Ah sim?»
Pergunta a seguir a outra ambígua. Devia ter em conta. Até porque sentiu na adversária um breve pestanejar. Bom sinal para si.
«Não me digas que...»
«Que o quê? Oh, não. Isso que estás a pensar nada tem a ver.»
«Já agora, estou a pensar em quê?»
«Bom, vejamos o que se passa contigo. Não notas a diferença?»
«Sim. Sinto-me leve. Leve como nunca me senti.»
Admirou-se. Era verdade.
«Também acho que sim. Que estás mais leve. Isso não te diz nada?»
Estranha concordância.
«E estou leve, porquê?»
«É fácil saber porquê. Mas antes, como te chamas?» 
«Pedro.» 
«E eu sou a Marcela.»
Que se passava? Ainda andava por ali ou aconteceu qualquer coisa que o ultrapassou? E havia mais. O tabuleiro do jogo tinha desaparecido. Bem como as peças. 
«Ganhei, não ganhei?»
«Ganhaste, sim, Pedro.» 
«E agora?» 
«Agora vem comigo ver os outros.»
Estranha sequência. Os outros. Quais outros? Não entendia o motivo daquele erro grosseiro de principiante que a dama de negro cometeu. Mas, ao mesmo tempo, a mulher que tinha agora na sua frente não parecia ser mais uma das facetas da dama de negro. Quem era, afinal?
«Os outros?» repetiu.
Não respondeu à pergunta.
«É fácil acompanhar-me. Não disseste que te sentias leve?»
«Deixa-te de graças. Apesar de me sentir leve, não sei voar. Afinal para que serve estar mais leve. Para onde me queres levar?»
«Lembras-te daquela conversa sobre a alma?»
«Sim, perfeitamente. Recordo-me que não troquei a alma por nada deste mundo. Muito menos a vendi.»
«Achas? Já alguma vez ganhaste um jogo que nunca chegou a começar?»
«A que propósito vem isso? Tenho a certeza que houve o jogo. Ela cometeu um erro grosseiro e eu aproveitei. Não podia perder a oportunidade. Tu fazias o mesmo.»
«Há muitas formas de perder a alma, sabias?»
«Perder?»
«Sim.» 
«Pensando que tinha ganho?» 
Sentiu-se impotente. Se a dama de negro levou a sua avante, não entendia como conseguiu. Apenas admitiu uma hipótese.
«Tem calma. Não é o que pensas.»
«És amiga dela?»
«Olha, deixemos isso para depois porque muita coisa importante vai acontecer. Antes disso, tens direito a um desejo. Formula. Mas só depois de acontecer algo.»
«Algo?»
«Não te armes em desconfiado.»
Achou estranho e bizarro. Era melhor aguardar. Ao mesmo tempo pensou que nem tudo estava perdido. Talvez que o desejo permitisse que ele pudesse regressar ao seu lado de sempre. Sim. Porque naquele momento devia estar do outro lado. E vivo, talvez. Enquanto estivesse "vivo, talvez" era possível acontecer tudo. E ele estava vivo. Tinha-se beliscado e sentira a dor. 
«E então?» 
«Então o quê?» 
«Sentiste a dor?» 
«Sim.» 
Estava vivo. 
«Vem comigo que não te arrependes.»
«Aonde vamos?»
«Já vais ver.»

O vale era verde. Não era um caraterístico vale como aqueles que tinham encaixado um rio, em "v" ou em "u", conforme a origem da sua formação. Era um vale todo ele verde e não muito profundo e de uma extensão quase a perder de vista. Entre o verde abundante viam-se, aqui e ali, algumas árvores de portes diversos. Todo o resto, salvo uma zona à frente do sítio onde ele estava no momento, destacava-se, pela abundância, o rubro das papoilas. Para amenizar ainda mais o ambiente que o envolvia não soprava uma brisa, sequer suave, até porque suaves eram já as brisas. Quanto à temperatura do ar, esta era amena, propícia a longas caminhadas. Longas caminhadas que não lhe interessava fazer. Sobretudo queria saber o porquê de estar naquele local que lhe inspirava tranquilidade. Demasiada tranquilidade. E tudo aconteceu a seguir a um convite que a Marcela lhe fez.
Sobre ele viu também um céu muito azul, talvez de um matiz mais claro do que o costume. E o mais estranho de tudo é que não avistava o sol. Daí talvez o azul suave do céu.
Foi então que a sua mente despertou para uma outra realidade. Aliás, já notara antes de chegar ao vale. Era precisamente a leveza dos seus movimentos, como se a influência da pressão atmosférica quase não se fizesse sentir. O todo que era ele resumia-se agora só à alma?
Então... tinha chegado ao outro lado?
Boa pergunta para nenhuma resposta. Mas antes que se angustiasse com aquele mistério que o envolvia, acabou por ter uma resposta inesperada. De repente, o vale mostrou uma coisa. Homens e mulheres que passeavam em pequenos grupos entre as plantas herbáceas e as árvores. Elas vestiam túnicas brancas e eles túnicas azuis, estas últimas de cor mais intensa que o azul celeste do seu céu sem sol.
Começou a sentir-se inquieto. Tudo o que os olhos estavam a alcançar nada tinha a ver com ele. Assim parecia. E aquilo não fazia sentido. Ou fazia?
Foi então que reparou estar vestido como os outros homens que observou à distância.
«Sentes-te confuso, não sentes?»
«Achas que sim?»
«Então não estás confuso.»
«Não sei explicar o que sinto. Faltam-me as palavras.»
Virou-se para ela. Só então reparou na suavidade e beleza do seu rosto. Os contornos do resto do corpo também complementavam o que vira no rosto da mulher a quem perguntou se era um anjo. Mas faltavam-lhe as asas. Era assim que os anjos apareciam nos quadros pintados pelos pintores célebres e por todos os outros, talvez com valor, que não passaram do anonimato.
«Onde estou? Quem é toda esta gente vestida com trajes esquisitos e porque estou também vestido como eles?»
«De momento não te posso dizer.» 
«E tu, diz-me, afinal quem és?»
«Já disse. Sou a Marcela. Não era o que querias?»
«Não percebo, Marcela.»
«Olha, chegaste finalmente ao outro lado da porta. Como lhe chamas. Sempre desejaste saber o que se passava por cá. E aqui tens a resposta. Observa e absorve tudo o que vês.»
«É... é só esta simplicidade? Um campo verde com árvores e pessoas a passearem pelo verde. Parece que formam grupos. Homens e mulheres. Ignoram-se como se fossem cegos.» 
A expressão do rosto da Marcela não mostrou qualquer sinal de pista. 
«Vamos aproximar-nos?»
«Sim.»
Ela caminhou na direção do grupo mais próximo e ele seguiu-a.
«E tu?»
«Lembras-te do conflito que estavas a ter com a dama de negro e que, segundo admites, queria roubar-te a alma?»
«Se me lembro, Marcela! A bruxa desistiu.»
Não deu por qualquer reação às suas palavras.
«Mas diz-me de uma vez por todas. És um anjo?»
«Mais ou menos, para ti. Faltam apenas as asas para teres o quadro certo.»
«Não brinques. Em que ficamos?»
Já estavam junto ao grupo. Três mulheres e dois homens. Na altura ele viu-os sentados no chão coberto de relva. Parecia que se preparavam para a merenda. Só faltava a dita cuja.
«Não falam uns com os outros.» Confirmou.
«Sim, tens razão. Mas repara nos rostos. Resplandecem de felicidade.»
Comprovou que aquela felicidade que os rostos denunciavam era estranhamente monótona. Comportavam-se como autómatos. 
«Não quero ser como eles!» 
«Ninguém te obriga, Pedro.» 
Seria?
Nunca imaginou a felicidade vista sob esse prisma. A não ser que eles falassem telepaticamente. Mas nem sequer davam as mãos, trocavam olhares inflamados, ou abraçavam-se.
«Que esperavas então?» 
Leu-lhe o pensamento.
«Mais. Não sei. Certamente tudo menos isto. Parecem fantasmas sem correntes. Mas algo os prende. Posso ir falar com eles?»
«É escusado. Eles não te veem.»
«Será que estão num mundo paralelo?»
«É uma hipótese. Pelo menos para ti.» 
«Em que ficamos?» 
«Parecido com isso.»
«Talvez no céu.»
«O céu não existe.»
«Nem os jardins do Senhor?»
«Também não.»
Voltou aos fantasmas sem correntes.
«E a ti, eles veem-te?»
Ignorou a pergunta.
«Vem comigo. Vou mostrar-te outra coisa.»
«Mas responde-me. Por favor, responde-me!»
«Queres a resposta? Não. Eles também não me veem.»
«Então são cegos.»
«Para nós que estamos noutra dimensão.»
Sentiu que a Marcela mentia. Com que intenção, não sabia.
«Estás a confundir-me.»
«Pois estou.»
«De propósito?»
De repente houve magia! Num momento, o vale que era verde transformou-se numa sala exígua de paredes brancas, sem janelas, apenas ornamentada com um sofá branco com capacidade para três pessoas, uma mesa clara de tampo quadrado, uma coluna em mármore branco e uma cadeira também branca num dos cantos da sala. Tudo iluminado por uma luz muito branca que ele não descobriu donde vinha.
Estremeceu. As dúvidas eram cada vez maiores. A sua mente devia estar completamente invadida e quase dominada. Aquela nova transição não tinha explicação lógica. Era muito comum nos filmes e davam-lhe um nome. Bom, não interessava.
«Como aconteceu esta magia, Marcela?»
Ela não respondeu porque acabava de entrar uma mulher na sala pela porta oposta ao sítio onde eles estavam. Pressentiu que alguma coisa perturbadora ia acontecer.
«Não te aproximes. Só podes vê-la.»
«Mas é a Matilde!»
A última ligação que perdeu só por culpa sua. Traiu-a e ela não suportou essa situação. Morreu com overdose de barbitúricos. Uma morte trágica que o perturbou. Sentiu-se culpado. Mas que fazer? Eram já águas passadas. Não voltavam atrás. E agora ela tinha entrado naquela sala.
Trocaram um olhar intenso e leu muita tristeza nos seus olhos. Depois, voltou-se para a bela Marcela que parecia um anjo sem asas.
«Como apareceu ela aqui?»
«Era a tua namorada?»
«Estávamos casados...»
«Eram felizes?»
«Sim. Até que tudo mudou de um momento para o outro.»
«Porquê?»
«Soube que eu tinha outra relação. Mas foi um acaso. Uma daquelas paixões que perdem a chama rapidamente. Sabes como é?»
«Não. Nunca aconteceu comigo. Explica-me melhor.» 
Com explicar? Ela não ia compreender. Tão certo como ele chamar-se Pedro.
«Então, és um anjo! Estas coisas frívolas não te interessam.»
«A tua mulher cometeu um pecado muito grave. Não teve força para suportar a situação que lhe criaste.»
«A culpa foi toda minha. Eu é que devia estar aqui...»
«E não estás?» 
«Só agora.» 
«Mais vale tarde do que nunca.»
«Tens razão. Mas não sei como vim aqui parar.»
«Olha, para lá desta sala de purificação que são destinadas à purificação estão os alojamentos das rebeldes. Todas as que infringiram gravemente a lei.»
«Só mulheres?»
«Sim.»
«Coisa estranha! Então e os homens?»
«O teu caso diz respeito a mulheres.»
«Ah sim, compreendo.»
«Mas essa lei de que falaste, quem a fez? Cada pessoa é dona de si.»
Demorou muito tempo a fixar os olhos suplicantes daquela que fora sua mulher. Tinha que fazer qualquer coisa por ela. Por exemplo, podia desobedecer ao anjo sem asas.
«Não podes fazer nada. Ela quebrou todas as regras. Quis saltar para o outro lado
«Tentou fugir? Assim, sem mais nem menos?»
«Sim. Foi detida no vale. Aliás, o vale não tinha escapatória possível.»
«Justificou porque queria fugir?»
«Não. Provavelmente queria voltar para ti e bem sabes que é impossível.»
«Nada é impossível.»
«Prova.»
«Talvez possa provar.»
«Se o dizes...»
«Tudo bem. Ou tudo mal. E a maldita dama de negro, que suponho andar por aqui, pode quebrar as regras sem sofrer qualquer sanção?»
«É diferente. Não posso explicar. Não, não anda por aqui. As instruções da outra fação são diferentes das nossas. Querem atrair as pessoas para a sua esfera, quaisquer que sejam as tendências. Não olham a meios, percebes? Aliás, como nós. Se é que posso admitir assim.»
«E que fação é essa?»
«Digamos que o lado contrário aos nossos princípios.»
«Agora percebo. Pelos vistos fui disputado pelas duas partes.»
«Exato. Mas o teu caso é diferente. Vieste ter comigo por conta do teu desejo, mas estás ainda com possibilidade de voltar ao lado de lá
«De momento não quero voltar.»
«Desengana-te. A voltares, voltas sozinho.»
«És tu quem me prende...?»
«Não. Alguém acima de mim.»
Tentou compreender. O cerne da questão estava no interesse da dama de negro em seduzi-lo e até dizer-lhe que queria levá-lo consigo. E ele veio mesmo.
«Pelos vistos estou aqui à experiência.»
«Como assim?»
«Tu mesma disseste que me davas uma oportunidade. Que formulasse um desejo. O que está para lá da sala deve mostrar uma dessas oportunidades. Os passeios estranhos por aquele vale. Agradeço, mas digo que não. Não é viver. Eles estão numa espécie de estado de coma, Marcela. Depois, aqui não posso falar com a Matilde e tínha tanta coisa para dizer-lhe! Quiçá para recordar os tempos em que éramos felizes. Quiçá para tanta coisa! Quando chegar a minha hora não me tragam para aqui, nem para o vale verde.» 
«Porquê?»
«Que mundo é este que manieta as mentes das pessoas?»
«Referiste "quando chegar tua hora"?»
«Não me digas que já chegou!»
«Talvez.»
«E elas?, aquelas pessoas do vale?»
«Estão mortas. Que podem desejar mais senão aquele estado de felicidade?» 
«Rica felicidade. Não falam. Não sorriem. Nem sequer se beliscam.Que fizeram de mal para terem aquela felicidade?»
«Nada. Ou melhor, morreram.»
«E as outras?»
«Nem quero pensar nas outras.»
Queria que acreditasse naquela treta. Que afinal não havia outra vida do lado de cá, se não aquela.»
«Estou desiludido, Marcela.»
«Olha, Pedro, já nada te liga a esta mulher. Apenas ficaram as recordações.»
«Como sabes? E as outras opções? Será que uma delas diz respeito aos Jardins do Senhor? E onde estão esses jardins que, de certeza, nada se parecem com os campos verdes do vale onde estivemos?»
«Só posso dizer-te que esses jardins não estão neste vale.»
O vale era uma situação de passagem. Ninguém sabia. Ele sabia?
«Mas devias saber.»
«Será?»
Aquele anjo sem asas estava a desanimá-lo. Começava a não acreditar na Marcela.
«Estás a esconder qualquer coisa.»
«Desculpa. Não te posso dizer mais nada.»
«Porquê?»
Ela tinha olhado para a porta por onde entrara a mulher que o olhara com uma expressão de grande tristeza. Parecia estar à espera de mais alguém. Bingo! E estava mesmo. A dama de negro era agora a nova personagem em cena e ia tomar a palavra.
«Vamos acabar o jogo, Pedro?»
«Não! Não jogues!»
O grito tinha partido da companheira de outros tempos. 
«Matilde!»
Levado por um impulso correu para junto dela e abraçou-a.
«Não me levam a alma! Não a negociei. Juro.» 
Virou-se para a dama de negro. 
«Vou regressar. E a Matilde vai comigo!»
«Não me faças rir, cretino. É o jogo que vai decidir quem vai e quem fica.» 
Agitou-se. O que mais queria era deitar as mãos ao pescoço delicado da "esbelta" megera. Preferiu virar-se para a Marcela.
«E tu, qual é o teu papel nisto?»
Como resposta só viu a expressão ambígua do seu rosto.
«Limita-se a obedecer-me. Foi recuperada da casa das rebeldes.» Disse a dama de negro. «Vamos lá então ao nosso jogo.»
A horrorosa e esbelta dama de negro riu de escárnio e ordenou à subalterna para trazer o tabuleiro com as peças pretas e brancas.
«Falta uma cadeira para o nosso amigo, Marcela. Não te esqueças de a trazer.»
«Amigo?»
«Como queiras, estúpido. Até podias ser meu amigo.»
«Nunca!»
«Tens a certeza?»
«Bruxa!»
«É certo. Sou aquilo que me queres chamar. Mas com poder absoluto, cretino.»
Pouco depois, os dois adversários, já frente a frente, começaram a colocar as peças sobre os quadrados. Ele fazia-o com mais lentidão, parecendo ganhar tempo. Precisava de descobrir uma forma de escapar às garras da dama de negro que queria a sua alma. Ideias, precisava de boas ideias. Entretanto, o jogo já tinha começado. As primeiras jogadas nada trouxeram de desequilíbrio para um ou para o outro lado. Talvez fossem jogadores dignos um do outro.
«Os cavalos estão trocados com os bispos.» Disse a dama de negro.
«Está tudo no sítio. E o jogo já começou. Cheque à rainha.» Replicou o adversário. 
«Não é preciso dizeres.» 
«Eu sei, mas apeteceu-me dizer só para te irritar. Vem verificar, Marcela, se ele está a fazer batota.»
No momento em que esta se debruçou sobre o tabuleiro, o homem aproveitou para fazer mais uma jogada. Curiosamente não avançou duas casas com a torre. Seria uma má jogada. Empurrou, sim, a Marcela contra a serviçal de Belzebu e as duas estatelaram-se no chão.
«Matilde, temos que fugir deste maldito inferno!»
Se aquilo não era o inferno, devia estar perto.
«Eles vão fugir!» exclamou a dama de negro. «Corre atrás deles, Marcela.»
«Mas...»
«Obedece! Senão já sabes como é. Voltas para lá.»

Sentia-se mais leve que uma pena e ela não lhe ficava atrás. Mas ao longe, a Marcela parecia encurtar a distância a cada momento.
«Ela vai apanhar-nos.»
«Se assim for, enfrento-a. Nada receies.»
Um pensamento estranhou apossou-se dele. Algo lhe dizia que nada ia acontecer de mal se a Marcela os alcançasse.
«Deixa-me aqui. Tu corres mais depressa. Salva-te, meu amor!»
«Nunca, Matilde! Não volto a cometer o mesmo erro.»
Entretanto, como que por encanto, abriu-se um círculo luminoso na sua frente. A luz era tão intensa que lhes feria a vista. Podia notar-se que rodava.
«Um portal
Era a salvação deles.
«O que é isso?»
«Uma porta para outro mundo.»
«E o que está para lá? Tenho medo...»
«Não tenhas, Matilde. Dá-me a mão. O que nos espera do outro lado não pode ser pior do que aquilo que podia acontecer naquela sala porque era mais que certo que eu ia perder o jogo. Até o vale verde com todos aqueles mortos-vivos a errarem pelos campos é uma melhor opção.»
«Deixem-me ir também!»
Era a Marcela que entretanto tinha chegado junto dos fugitivos. Olhou frontalmente para ela. Foi um momento. Logo a seguir acenou com a cabeça e fez-lhe um sinal para os seguir.
«Tenho medo, amor!»
«Não podemos perder tempo.»
«E se...?»
«Vem, Matilde! Depressa!»
E mergulhou no círculo que tinha uma luz intensa.

«Finalmente acordaste!»
Demorou a ficar consciente.
«Ah... és tu.»
Olhou em volta.
«A Matilde?»
«Quando recuperei os sentidos não a vi. Mergulhei logo a seguir a ti. Ela estava indecisa...»
«Estava escrito.» Conformou-se.
«Nada está escrito. Nós é que "escrevemos" o que queremos fazer e o que não queremos.»
«Portanto, não acreditas também no livre arbítrio.»
«O que é isso?»
«No livre arbítrio tudo acontece por acaso.»
«Em certas coisas, talvez.»
«Esta conversa dava muito pano para mangas. O mais importante de momento é saber o que vamos fazer agora. Pelos vistos voltámos ao vale.»
«Também creio que sim.»
A situação era complicada. De um momento para o outro a dama de negro podia descobri-los.
«Mas este vale não é o mesmo!»
«Como assim, Marcela?»
«Repara, o vale não é verde. E a vegetação é rasteira e está seca.»
«Tens razão. E também há outra coisa. Repara no horizonte.»
«O Sol! E o céu tem nuvens...»
Desta vez tinham que admitir que a mão do livre arbítrio, após o mergulho no portal, levara-os para um mundo desconhecido.
«Repara, Marcela, se seguirmos na direção do sol, que parece estar a pôr-se no horizonte, vamos encontrar uma planície. Achas bem...?»
«Se adivinhei o teu pensamento, queres deixar o vale e seguir pela planície.»
«Mas tu não lês os meus pensamentos?»
«Claro que não. Isso só aconteceu antes. Naquele vale todo coberto de verde.»
«Conta-me por que motivo servias aquela bruxa da dama de negro?»
«É uma longa história. Como tu, também um dia fui parar àquele vale. Ao contrário do que te aconteceu, fui ao encontro de um grupo que estava em fuga, depois de ter sido subjugado pela megera. Mas foi sol de pouca dura. Fomos apanhados dias depois. Nunca mais soube deles.»
O resto já sabia. Ficou sujeita aos caprichos da dama de negro até que ele apareceu e depois aconteceu o que aconteceu.
«Afinal quem era ela?» perguntou.
«Um ente ao serviço de Satã.»
«Agora estamos livres. Vamos então para ocidente.»
«Para ocidente?»
«É onde se põe o sol.»
«Mas tu sabes onde raio fomos parar, Pedro?»
«Só sei uma coisa. Estamos algures num outro universo.»
«E agora o que será de nós?»
«Olha, vamos por aí. Ou não queres a minha companhia?»
«Vou pensar nisso» disse, sorrindo. «Mas vendo bem, não tenho outra hipótese. E tive muita sorte em encontrar-te.»
«Ainda és mais bela quando sorris.»
Pararam e ficaram frente a frente.
«Que foi, Pedro?» perguntou ela.
«E se tudo isto não passar de um sonho?»
«Quem sabe? Olha, dá-me um beijo.»
E ele deu-lhe um beijo. Um beijo longo.
«E agora?»
«Agora, abraça-me. Se me beijaste num sonho da forma como me beijaste, acredito que a Branca de Neve era prima dos sete anões!»
«Também sabes essa da Branca de Neve?»
Ela voltou a sorrir e ele abraçou-a.
«E então?»
«Então temos que encontrar um abrigo para passarmos a noite.»
E encontraram um abrigo onde dormiram uma pequena parte da noite até que amanheceu com um céu muito azul e um astro-rei a erguer-se, supostamente, no oriente.
«Já alguma vez te tinha acontecido...?»
«De que estás a falar?»
«Do que aconteceu.»
«Se eu fosse um anjo não tinha sentido...» 

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Mais puro que uma borboleta de asas brancas

 

 


 
Mário nunca mais esqueceu aquele dia em que foi a Fátima com os primos canadianos. Da tranquilidade. Da paz de espírito que o abraçou. Do ambiente místico que o influenciou para acontecer então o que aconteceu. Sentiu-se bem em Fátima, especialmente depois de ver os primos comprarem velas. Tentando ajudar alguns entes que já não eram deste mundo, comprou também velas. Seis. Uma para a Manuela, outra para a infeliz Catarina (1) e mais quatro em intenção de familiares já falecidos. 
Mas na realidade não foi esse o motivo porque aquele dia ficou indelével, bem marcante para o futuro.

Esteve uma hora de pé, estático, a assistir ao terço na capelinha das Aparições e não sentiu quaisquer problemas nas pernas, ao contrário do que acontecia vulgarmente. Quanto à Júlia e à irmã ficaram sentadas à frente. O Hélder esteve quase sempre ao seu lado, um pouco afastado para a direita, aparentemente a leste de tudo quanto estava a passar-se na capelinha.
A certa altura, Mário começou a olhar fixamente para a imagem da Senhora do Rosário e os olhos encheram-se de lágrimas. Deu consigo pedindo para Ela não o levar. Logo de seguida a dúvida assaltou-o.
Foi mesmo ele que fez aquele pedido, como aconteceu uma vez em Lisboa (2)?
O mais estranho estava para vir. Coisa muito simples e aparentemente natural. Ao mesmo tempo rápida na duração. E muito, mesmo muito estranha!
Tudo começou quando uma jovem de blusa vermelha foi colocar-se ao seu lado direito, quase se encostando. Não teve tempo para desconfiar das suas intenções porque, minutos depois, uma outra mulher, também nova, talvez um pouco mais velha que a primeira, apareceu à entrada do recinto da capela. Observou-a com atenção. Era alta e tinha um perfil egípcio. Trazia uma criança pela mão. 
Aproximou-se dele. Passou pela frente e foi colocar-se do lado esquerdo, embora ligeiramente afastada.
O curioso é que vieram ambas do seu lado direito. Portanto, segundo ele, vieram do futuro.
Ainda não estava restabelecido da surpresa quando, em baixo, começaram a rezar o terço. Foi então que sentiu a segunda mulher a chegar-se a si.

Distraiu-se ou fez de propósito? Ou era impressão sua? Ficava para sempre a dúvida. Uma coisa era verdade. Foi “guardado” por duas mulheres que vieram do futuro. Como o fizeram, não sabia. Viajantes, como estas duas mulheres, só existiam na ficção científica.
Um pormenor que não lhe escapou. A segunda mulher cantava divinamente. De vez em quando olhava para ela e via o seu rosto de perfil, imperturbável. Estava ao seu lado como se ele não existisse. Mas o contacto do seu corpo era real. Um contacto ao de leve de uma mulher que vestia uma saia vermelha, de bolas brancas. Da cor da blusa não se lembrava. Ficou em segundo plano
Que significado podia dar a tanto vermelho?
Esqueceu. Sentia-se bem. Respirava-se paz em Fátima. Podia ter ficado ali mais tempo, rodeado por aquele ambiente de plena serenidade. Mas teve que acompanhar os primos e a irmã. 
Na viagem de regresso falou da Manuela, acedendo a um pedido da prima. Pouco depois deu conta que ela adormeceu e então calou-se. A Júlia acordou quase de seguida e perguntou-lhe de chofre, sem mais delongas:
«A Manuela teve uma filha?» 
A que propósito?
«Acho que não. Porque perguntas?»
«Foi uma ideia que me veio à cabeça.»
«Estou mais descansado. Mudando de assunto...»
Perguntou-lhes se tinham visto alguém ao seu lado na capelinha, quando acabou o terço e vieram ter com ele, ou mesmo antes. Para seu espanto responderam que não se lembravam. Não disseram que não tinham visto. Apenas não se lembravam. No mínimo, muito estranho. registou.
Pararam na Nazaré para lanchar. Mais propriamente no Sítio. Enquanto lanchavam, o seu primo mostrou interesse em conhecer o que aconteceu a D. Fuas Roupinho quando perseguia um veado.
«Não sei muito bem. Aliás é uma lenda. Nesse dia um nevoeiro intenso não deixou que desse conta que, com o entusiasmo da perseguição a um veado, se aproximasse perigosamente do topo de uma falésia. Era demasiado tarde quando o cavaleiro viu onde estava. Então implorou à Virgem e de imediato o cavalo estacou, ficando os dois suspensos à beira do precipício. Em síntese, parece que é isto.»
«Muito interessante.»
«Mas é uma lenda, Hélder. Vale o que vale.»
«Sim, claro. Vamos lá depois do lanche?»

Tiveram oportunidade de ver a marca deixada por uma das patas do cavalo de D. Fuas na ponta do Bico do Milagre.
«Se fosse verdade!»
Mário tentou imaginar a cena do milagre e ficou cético. O fio do pensamento ajudou-o a acompanhar o inevitável voo sem rede de cavaleiro e cavalo pelo precipício rumo a uma morte certa. Só a Virgem podia travar essa queda. E, segundo a lenda, travou. Rezava a lenda.
«Só acredita quem tem fé, Hélder. Quanto a mim, preciso de ver para crer. O que é impossível visto ter acontecido em mil cento e troca o passo.»
«Tens razão. Entramos na capela?»
«Vão vocês. Eu fico por aqui.»
Deixou que entrassem na capela e aproximou-se o mais que podia da ponta da falésia. Olhou para baixo e arrepiou-se.
«Impressionante! Ninguém escapa se cair daqui.» Sussurrou.

Foi então que aconteceu algo insólito. Em pensamento, abriu os braços e começou a planar ao nível da falésia.
«Maravilhoso!»

Naquele momento era só o sonho que comandava a sua vida e por isso deixou-se ir, cada vez mais para baixo, sentindo no rosto a brisa suave que soprava dos lados do mar. Continuou a descer, sempre de braços abertos, sentindo-se um deus alado. Era maravilhosa a sensação. Só queria que não acabasse. Mas acabou. 
Pouco depois estava na praia. Admirou-se com duas coisas. A primeira implicava a segunda. O sol, muito alto, localizado a sul. E a praia cheia de banhistas como se o calendário marcasse o mês de agosto. E ele sabia que não era verdade, tanto para um caso como para o outro. Na verdade, àquela hora o sol estava no ocaso e a época balnear alta já tinha passado. No mínimo, era muito estranho. Não sabia explicar o que estava a acontecer. De um momento para o outro tinha na frente um cenário novo, como se estivesse a assistir a uma peça de teatro com dois atos com diferenças nítidas. Na primeira parte regressara de Fátima com os primos e a irmã. Na segunda, houvera uma súbita alteração no espaço-tempo. Mas era bem verdade que primeiro estranhava-se e depois entranhava-se.
Ziguezagueou entre as pessoas em fato de banho, deitadas sobre as toalhas, até chegar ao muro que dava acesso à estrada, que atravessou sem hesitação. Atingiu na zona pedonal onde se localizavam as esplanadas que viu repletas de veraneantes. Ao fundo, as ruas estreitas começavam a inclinar-se, prenúncio do começo da subida para o Monte Branco. onde era o parque de campismo. Déjà vu!
Ouviu uma música familiar que vinha dum café à esquerda. Achou estranho. Não ouvia a “Marina” há muito tempo.

«Que saudades, Marino Marini! Nunca mais terei vinte anos…»
Lembrou-se que, em tempos, no fim dos anos cinquenta, cantava com um certo à-vontade essa canção do conjunto Marino Marini. Era tão estranha a situação que se aproximou do café e espreitou para o seu interior. Pasmou com o que viu. Uma antiga máquina de discos, igual à que existia no snack de F..., onde passou longos dias azuis com Patrícia. Mas o mais estranho ainda é que ainda não tinha acontecido o momento em que a Patrícia hipoteticamente entrou na sua vida. E contudo, sabia desse acontecimento futuro.
«Estranho!»
Pois, Mário. Mesmo muito estranho.
Encolheu os ombros e escolheu uma rua ao acaso que começou a subir. Pouco depois percebeu que estava no Monte Branco, onde se situava o antigo parque de campismo com o seu característico amontoado de tendas dos mais diversos formatos, dispostas de forma quase anárquica. Foi avançando. A animação era grande. Muito provavelmente estava a correr a hora do almoço. De nada lhe valia consultar o relógio de pulso que certamente marcava outro tempo. Daí concluir que só se encontrava ali como resultado dum mergulho profundo que entretanto tinha feito no passado.

Viu um grupo de campistas dispostos em círculo. Ainda distante, afinou o ouvido. O som    harmonioso de um acordeão fez reviver nele recordações agradáveis de tempos em que foi quase feliz ali mesmo e que podiam ter marcado uma reviravolta fantástica no seu destino.
«Não aconteceu. Talvez esteja a acontecer.» Admitiu.
Curioso, aproximou-se mais e avistou um acordeonista de meia idade, com porte atlético, bigode farto, concentrado em fazer deslizar no momento exato os dedos pelas teclas certas, ao mesmo tempo que abria e fechava o fole. Executava no momento uma antiga canção francesa que Mário conhecia como os dedos da mão. Moulin Rouge. A primeira canção que ensaiou nos seus tempos de menino e moço com uma colega pianista, cerca de três anos mais velha que ele, que morava na sua rua. Os ensaios foram tantos ou tão poucos que atingiu quase a perfeição. Mas o espetáculo de variedades nunca veio a acontecer e não se lembrava porquê. Foi o primeiro corte no seu futuro como cançonetista. Seguir-se-iam vários. Toda sua vida cavalgou em cortes.
Era uma recordação ou vivia o momento?
Franziu o sobrolho e lembrou-se dos jovens companheiros que partilhavam com ele uma barraca da Mocidade Portuguesa. Eram ao todo quatro, mas mais valia terem sido três.E porquê? Muito simples Lembrou-se que um deles cometeu um erro grosseiro só por causa de um simples ovo cozido. O grupo trabalhava com tarefas distribuídas e não era preciso um dizer como cada um devia desempenhar a sua missão. Um abria as latas de atum, outro descascava as batatas que iam ser cozidas, com os ovos, num tacho, outro punha a mesa, ou melhor, colocava os pratos, os copos e os talheres sobre a areia, e, finalmente, o último devia descascar os ovos já cozidos. Infelizmente para ele só descascou o seu e os restantes companheiros ficaram a olhar na sua direção. Imperdoável. Ato cem por cento egoísta. Daí ser banido do grupo e passar a figura de estilo, um companheiro virtual, por exemplo. Rigor levado ao extremo porque talvez tivesse sido censurado por cometer dois simples pecados, mas que o marcaram. Gula e egoísmo. Justificou-se com a fome que até lhe picou o estômago depois de uma demolidora manhã de praia com sol escaldante e ondas de água salgada tentadoras, culminando com uma subida ao Monte Branco, onde se localizava o parque de campismo que tinha na periferia uma mata gostosa pelas razões que virão a seguir.
«E nós?, não estamos cansados?» perguntou o Fernando, o elemento do grupo que acompanhava à viola as canções que o Mário cantava.
«Desculpem. Não volta a acontecer.»
Está bem, abelha...
Acabou de chegar da praia e já estava junto do grupo de campistas que assistiam à exibição do virtuoso acordeonista, onde não faltava a arte e um pouco de vaidade. 
Momento curioso. O acordeonista alemão levantou os olhos e descobriu-o entre a pequena multidão.

Déjà vu!
O olhar de Mário dirigiu-se para uma mulher, quase trintona, de cabelos escuros compridos que lhe sorriu e identificou logo como sendo a enteada do acordeonista. Achava-a atraente e até já lhe vira grande parte dos seios quando ambos lavavam roupa nos lavadouros do parque. Ela mesma teve a bondade de lhe explicar como se lavavam uns calções, ao vê-lo em atitude desajeitada sem saber que volta a dar aos mesmos. Passou-lhe os calções para as mãos e foi nesse preciso momento que ela baixou o tronco e ficaram a espreitar para ele os belos e generosos seios que o excitaram duma forma aguda. Entenda-se. Não foi ele que espreitou. Os seios da bela Marisa é que foram os únicos responsáveis. Certo? Certo.
Mário, dez anos mais novo que ela, sentiu-se por momentos um cavalo à solta. Só por momentos porque logo foi domado, mas não deixou de tentar fazer futurologia ao lembrar-se do que se passava, à noitinha, com os jovens casais, portugueses e francesas, que se dirigiam para a mata, levando consigo uma imprescindível manta ou um cobertor. Talvez um dia (uma noite) também levasse para a mata dos seus sonhos o cobertor e a companheira dos cabelos compridos. Talvez.
Despertou ao ouvir os primeiros acordes inconfundíveis da canção Granada e deu pelo acenar com a cabeça do alemão na sua direção. Ato contínuo, aquele introvertido quase assumido começou a cantar. Os olhares dos assistentes voltaram-se para ele, mostrando admiração, olhares esses que ignorou porque o seu mundo era o mundo das canções. Só reparou na bela Marisa dos seios generosos e sorriu para ela sem se enganar na letra. O alemão pareceu não apreciar a cena porque logo subiu o tom, tentando levar Mário a cometer uma fífia, o que não aconteceu porque este, sabia como reagir a tal mudança. Bastava baixar o queixo e foi o que fez.

No fim, muitas palmas, inclusivamente vindas do acordeonista. Mário retribuiu também com palmas e aproximou-se dele para o cumprimentar. Mas o objetivo era outro. Só ele sabia.
«Nós vamos andando, Mário. Não te demores.» Disse o Calado.
«Já vou.»
«Não te percas.»
«Brincalhão...»
Estaria a fazer bem, em vez de regressar à tenda, mais barraca que tenda, que a Mocidade Portuguesa da vila lhes tinha emprestado?

Não que tivesse alguma coisa a ver com esse movimento nacionalista, de cariz fascista, fortemente implantado nos jovens da época, mas foi o que se arranjou. O pai, homem de esquerda, nunca consentiu que ele usasse a farda de militante e, entre coisas, importantes ou não, perdeu uma grande hipótese de se tornar um caso sério no atletismo, nomeadamente na velocidade pura em que denotava qualidades de raiz. Quanto ao resto, até agradeceu.
«Olá, Mário! Você esteve muito bem como de costume.»
«Obrigado, Marisa.»
Trocaram um sorriso rápido e ela encolheu os ombros.

«O Holmer quis colocá-lo mal, não foi?»
«Talvez. Mas inclino-me mais para um desafio que me fez. Felizmente consegui superar.»
Aqueles olhos contavam coisas, diziam coisas!
Mário esboçou um pequeno galanteio, mas limitou-se a abrir a boca em virtude do alemão já estar na frente deles.
«Viva, amigo Mário! Esteve divinamente. Como de costume, aliás.» 
«Obrigado, senhor Holmer. Só graças a si.» 
«. Não diga tal. Olhe uma coisa, quer almoçar connosco?»
Mário virou-se instintivamente para a Marisa e julgou adivinhar no seu rosto um encorajamento.
«Aceito. Não exagere, senhor Holmer. O meu amigo é que executou divinamente a melodia. Aceito o convite com todo o gosto. Vou já avisar os meus companheiros que não almoço com eles. É só um momento...»
«Espere. Traga-os consigo. A feijoada chega para todos. Mas não convide aquele que anda com um quico enterrado pela cabeça abaixo.»
«Feijoada... que bom!» pensou.
«Também não gosta dele. Mais razão nos dá por estarmos arrependidos de termos convidado o Ricó a fazer parte do nosso grupo.»
«Então vá chamar os seus amigos que o almoço não tarda. Onde pensas que vais, Marisa? Não te esqueças, minha filha, que hoje és tu a pôr a mesa.»
Notou um ar de contrariedade na mulher que lhe estava a dar volta à cabeça.
«Não demoro. Descansa que não fujo às minhas obrigações.»
«Assim espero.»
Dirigiram-se então para a dita barraca da Mocidade Portuguesa.
«Parece que vocês não se entendem.»
«Ele tem a mania que manda em mim e nem sequer é meu pai. Já  sou maior e vacinada há uns bons anos.»
«Faz bem em reagir contra o controle dele.» 
«É complicado, mas estou a conseguir.» 
«Cá estamos. Não repare na qualidade desta tenda que só parece uma barraca. Ou melhor, é mesmo uma barraca. Foi o melhor que pudemos arranjar.»
«Ora, o que interessa é que vocês vieram para cá.»
Pressentia que não lhe era indiferente e, a ser verdade, talvez acabassem a encher de amor a mata.
«Que olhar é esse, Mário?»
«Adivinhaste os meus pensamentos obscuros.» Pensou.
«Nada nada...»
«Diga lá!»
«Lá.»
«Não brinque.»
Salvou-o a presença dos amigos.
«Rapaziada... estamos convidados para almoçar na caravana do senhor Holmer. Ainda bem o que Ricó não está.»

«Como de costume ainda não chegou da praia. Nós somos os galegos e ele o patrão. Mas hoje amola-se.» Disse o Fernando.
«Pois. O senhor Holmer não quer que ele vá.»
«É para que horas?» perguntou o Calado, com água na boca.

Estavam todos fartos de passar fome com os caldos Knorr, as batatas cozidas  e as latas de conserva.
«Para já.»
«Então, vamos.»
Oportunidades raras daquelas não se perdiam. Finalmente iam quebrar o jejum das desgraçadas refeições que faziam por via da falta de dinheiro na caixa de folha que o Calado geria. Por mais milagres que fizesse não dava para mais que carapaus assados, ou atum de conserva, com batatas e cenouras cozidas e caldos Knorr, com esparguete, para a sopa. Um vira o disco forçado.
Quando chegaram já a mesa estava posta.
«Eu disse que punha a mesa.»
«A feijoada não pode esperar muito tempo» disse o alemão em tom de gozo. «Sentem-se, por favor. O Mário fica ao meu lado. A seguir, os seus amigos.»
«Grande sacana!» desabafou este, falando para dentro. «Que se passa? Parece que tens ciúmes. Já vi tudo.»
E que viu o cantor de Granada?
Entretanto a Marisa levantou-se para servir os convidados.
«Fica onde estás, Marisinha querida» disse o anfitrião. «Cada um serve-se...»
«Que é isso, Holmer?» perguntou de imediato a mãe da Marisa, algo agastada. «Deixa a pequena em paz.»
Desenhava-se um princípio de conflito.
«Obrigada, mãe. Eu vou servir os nossos convidados.»
O alemão desistiu de replicar e ela levantou-se e começou a servi-los. Mário sentiu a proximidade cúmplice do corpo esbelto daquela mulher de cabelos compridos.
«Vamos lavar a roupa?» sussurrou.
Ela sorriu e encostou-se mais a ele, atitude que não passou despercebida ao danado do alemão.
«Está bom assim?»
«Obrigado, Marisa.»
Queria acariciar-lhe os seios firmes e generosos. Beijá-los. 

Despertou com a voz nasalada do alemão.
«A feijoada está ótima. A minha Elsa é uma cozinheira de alto gabarito. Valha-me ao menos isso.»
Mário ignorou o alcance das últimas palavras.
«Parabéns, minha senhora. Está mesmo como eu gosto.»
«Obrigada. É muito gentil.»
À medida que o tempo passava e o vinho tinto escorria pelas gargantas, todos se libertavam de formalidades básicas e o diálogo cruzado tornou-se mais alto porque já ninguém ouvia ninguém. Entretanto, o Mário e a Marisa iam trocando os olhares que podiam. O inimigo estava alerta.
A certa altura ela apontou para o copo dele. Interrogou-se. Não conseguiu entender o que queria dizer. Então a Marisa levantou-se e serviu mais um pouco de feijoada a todos, demorando junto a Mário.
«Cuidado que ele vai enchendo o seu copo à socapa!»
«Ah sim. Obrigado.»
Por pouco! Começava a sentir as ideias nubladas. As conexões entre os neurónios estavam a entrar em curto-circuito. O único pensamento que aparecia mais nítido relacionava-se com o desejo obsessivo de estar com ela na mata. Juntamente com o cobertor, claro, porque arrefecia muito à noite.
«Ah!, se eu pudesse! Entendes o que os meus olhos tentam dizer-te, Marisa?»
«Disse alguma coisa, Mário?»
«Estou apaixonado por ti!» disseram os seus olhos.
«Não.»
A sobremesa foi mousse de chocolate, muito do agrado do Fernando. Seguiu-se o café.
Holmer puxou de uma caixa de charutos e ofereceu aos convidados. Só o Calado não se fez rogado.
«Vais apanhar uma bebedeira de fumo» avisou o Mário. «É pior do que beberes mais um copo a mais de tinto.»
E olhou ostensivamente para o alemão que se limitou a sorrir.
«Vamos dar uma volta?» perguntou, em voz baixa a Marisa.
Mário acenou com a cabeça, mas achou de bom tom agradecer o almoço que lhes tinham proporcionado. Só depois se levantou.
«Mulher, vai buscar a garrafa de brandy para beber com os meus amigos...»
Fez um gesto de recusa. Os outros optaram por ficar.
«Fique mais um pouco, Mário. Beba connosco...»
«Cala-te, verme.» Pensou. 
«Mais uma vez obrigado, senhor Holmer, mas preciso de dar uma volta porque comi muito.»
«Vamos então.» Aproveitou a Marisa.

Mário lançou-lhe um olhar indefinido. Queria compreender. Por um lado, ela dizia que sim; por outro, era melhor não acreditar em ilusões. E ilusões eram ilusões.

Lembrou-se de uma jovem (3) com quem se correspondia há quase um ano. Não se conheciam pessoalmente e tinham combinado encontrar-se na Nazaré, precisamente no parque de campismo. Até ao momento, a jovem, que só conhecia pelo diminutivo Leta, não tinha aparecido e, portanto, era uma carta fora do baralho. A Leta estudava num colégio interno perto de Coimbra e confidenciara-lhe todos os podres passados dentro e fora do colégio. Portanto, considera-a uma protegida e procurava dar-lhe conselhos úteis de como enfrentar e defender-se de todo aquele ambiente nada recomendável que a rodeava. A ser verdade, em nada algumas das suas colegas saíam beneficiadas. Saídas clandestinas à noite, abortos, relações lésbicas, roubos, chantagens, casos muito complicados fora do conhecimento da direção do colégio. Assim, queria protegê-la, dar-lhe bons conselhos. Mas pronto, se ela não tinha aparecido era porque não estava interessada. Nem sequer lhe interessava dar-lhe o benefício da dúvida.

«Apoie-se em mim e deixe-se levar, Mário. Finja que está desequilibrado. Ou está mesmo?»
«Foi por pouco. Mas porque carga de água ele queria embriagar-me, Marisa?»
«Muito simples. Para o deixar mal visto perante mim. Sabe que não gosto de ébrios. Estive casada com um durante mais de três anos. Bastou.»
«Ah... então é isso. Não sabia que já foi casada.» 
E que importava?
«Esse casamento foi um equívoco. Mudamos de assunto?»
Concordou. Nada tinha a ver com a sua vida íntima.
A  Marisa desprendeu-se do seu braço e olhou-o frontalmente.
«Sente-se bem?»
«Consigo a meu lado não me podia sentir melhor. Mas... ainda está a desconfiar que bebi mais do que a conta?»
Soprava uma brisa suave naquela tarde de agosto. O Sol, envergonhado, tinha-se escondido-se atrás das nuvens que entretanto tinham surgido, vindas dos lados do mar.

«Onde vamos, Marisa?»
«Por aí...» Indicou o caminho da descida.
«Estou nas suas mãos.»
Ela limitou-se a sorrir e começaram a descida até ao largo onde eram as esplanadas, o que não demorou muito tempo. Mário tinha ficado em modo de espera.
«Cá estamos. Agora vamos procurar uma mesa nesta esplanada.»
Deixou-se levar.
«Ficamos nesta?»
«Pode ser. Que bebe, Marisa?»
«Uma água com gás. Natural, claro.»
«Desculpe, afinal que se passa com o seu padrasto?»
Ela ficou muito séria. Ele sentiu que avançara para terrenos pantanosos. Já não podia voltar atrás.
«Nada que não possa controlar. Passa o tempo a assediar-me e a minha mãe não vê nada ou finge não ver. E agora as coisas complicaram-se. Ele desconfia de nós. Acredite, Mário, que a vossa relação a nível da música tem os dias contados. Você tem uma boa voz de tenor e ele é um músico de primeira água. Daí o entendimento. Mas o galo cantou no poleiro do outro galo e deu faísca da grande.»
Pois era. Sempre que vinha da praia e surgia no meio da assistência, logo ele suspendia a música que estava tocando e lançava no ar os primeiros acordes de Granada. E eu não me fazia rogado. Dava sempre resultado. 
«Que posso fazer?» 
«Nada.» 
«Então?»
«Tudo ia bem até que ele desconfiou que o Mário começava a desbravar o seu território, salvo seja. Daí ter mudado de atitude há pouco e o armadilhasse.» 
«Se não fosse a Marisa!» 
«Certo.»
«Desculpe fazer-lhe esta pergunta: alguma vez ele abusou de si?»
«Quem pensa que sou?»
«Uma mulher séria e encantadora. E com um olhar que me perturba.»
«Já respondeu.»

«Então ele julgava que desbravava o seu território, salvo seja. E a Marisa o que pensa?»
Baixou os olhos.
É agora ou nunca, Mário!
«Bom, acho que me enganei.»
«Então?»
«Somos só dois amigos...»
Estranhamente, ou talvez não, voltou a pensar nos encantos inebriantes da mata. Não resistiu e pegou numa das mãos de Marisa. Sentiu que ela vacilava. Estremecia mesmo.
Praça conquistada, Mário. Mas cuidado! O que parece, pode não ser. Espera por mais resultados...
«Já deve ter adivinhado que nutro por si um sentimento especial...»
Ia a dizer puro, mas lembrou-se de envolvimentos a desenharem-se na mata que não lhe saía do pensamento. Tinha inveja dos pares de francesas e portugueses que, de mãos dadas, à noitinha, se encaminhavam para a mata com o indispensável cobertor que aquecia os corpos e também tapava os pudores, se é que os havia.
«Não pare. Diga mais...»
«Vamos a ver se não me arrependo, mas adiante. A Marisa é uma mulher atraente e eu deixei-me envolver pelo brilho dos seus olhos e não só. Não adianta esconder que gosto de tudo o que vem de si. De estar consigo. De a ouvir. De...»

«De me despir com os olhos.»
«Apanhou-me, é verdade. Embora receie que nunca venha a ser minha. Há um abismo que talvez nos separe e esse abismo é a idade.» 
«Sim? E depois?»
«Acho que cheguei ao fim da estrada.» 
«E?»
Olharam fixamente um para o outro. Não resistiu à tentação de acariciar-lhe o rosto. 
«Se acha que sou o fim da estrada, tudo bem.»
«Então?»
Olhou-o com um misto de ternura e tristeza. 
«Já adivinhou, Mário.» 
Mas tristeza, porquê?
«Quero vê-la sorrir. Pronto, não responda. Mas sorria. Isso. Assim. Agora gostava de partilhar consigo um segredo.»
Aproximou-se mais. Ela recuou.
«É melhor não. Sinto-me constrangida. Julgo que está toda a gente a olhar para nós.»
«Não há problema. Pareço mais velho. Aos catorze aos já ia ver os filmes para maiores de dezoito.»
«Não é nada do que pensas. Sinto-me bem contigo. Repara que estou a tratar-te por tu. Mas acho que avançámos muito em pouco tempo. Afinal mal nos conhecemos.»
«É esse o mistério que nos aproxima. Porque será que nos sentimos atraídos um pelo outro? Desde aquele dia em que me ensinaste a lavar uns calções quando viste que não conseguia dar conta do recado...»
«Não vou esconder que simpatizei logo contigo quando nos encontrámos nos lavadouros. Não sei se ficaste atrapalhado com a minha presença, se pensavas que eu estava a assistir à execução dum ato de nulidade no que dizia respeito à lavagem de roupa.»
«As duas coisas.»
«Acertei.»
«Depois... começaste a lavar roupas íntimas e eu já não sabia onde me meter. É que não havia buracos no tanque senão aquele por onde a água se escoava e aí não cabia. Sair, era cobardia. Preferi ficar. A olhar para ti. A sonhar.»
«E não perdeste a ocasião. Dei conta da expressão do teu olhar cobiçoso.» «Desculpa a minha indiscrição.»
«Ainda bem. Até gostei.» 
Distraiu-se aparentemente com o voo insistente de uma borboleta em volta deles.
«É uma borboleta branca! As borboletas brancas trazem sempre boas novas...» Disse ela.
«Também já ouvi dizer. Mas a borboleta desapareceu. Não me parece ser um sinal muito forte.»

«É mesmo assim. Já trouxe as notícias e foi-se embora.»
«E...?»
«Há de voltar.»
«Oxalá.»
Mas continuou a ver tristeza nos seus olhos esverdeados.

«Que se passa contigo, Marisa?»
«Nada. Está tudo bem.»
«Verdade?»
«Sim.»
Levantou os braços. Marisa achou-o exuberante. 
«O que é?»
Mas ele lá tinha as suas razões.
«Olha! A borboleta branca sempre voltou...»
«Que bom!»

Ficaram muito sérios. Mário pareceu ver nos seus olhos um longo e serpenteante regato de águas límpidas e, voando ao longo dele, uma borboleta que batia graciosamente as suas asas cor da pureza. Seguiu-a com o olhar, talvez voando acima dela, talvez no mesmo, até que atingiu um ponto onde as águas desapareciam bruscamente numa queda de muitos metros.
Já envolvido no voo da borboleta, fletiu o tronco e mergulhou profundamente rumo ao desconhecido, perdendo, ao mesmo tempo, a identidade.

Sob o sol impiedoso o Marinho brincava no quintal. Tinha em mente fazer uma corrida de bichos-de-conta e para tal precisava de os encontrar. Para isso estava a usar uma técnica algo cruel que consistia em arrancar, uma a uma, pela raiz, urtigas que, por sinal, lhe irritavam dolorosamente as mãos. As raízes vinham com torrões agarrados e entre os mesmos estavam os insignificantes crustáceos tão desejados.
A pista de corridas situava-se na varanda de chão cimentado junto ao pequeno muro que segurava as grades. Inicialmente juntava-os em monte no ponto de partida. Alguns enrolavam-se como uma bola e tinha que os abrir com cuidado dada a sua fragilidade. Assim, a partida não se realizava ao mesmo tempo e acrescia a dificuldade de ultrapassagens dos mais lentos pelos mais rápidos.
Já tinha rejeitado uns tantos porque procurava o provável campeão, de maiores dimensões, certamente o mais rápido dos rápidos.
«Que estás a fazer aí de cócoras, ó Marinho parvalhão?»
Virou-se, embora já tivesse reconhecido a voz. Era a Dorinda, uma rapariga de pele tisnada pelo sol e com alguma porcaria à mistura que acentuava o tom. Pensava ele e não estava longe da verdade. Os cabelos, ainda mais despenteados que o costume, também não ajudavam a rapariga no que dizia respeito ao aspeto. A Dorinda era filha da empregada de limpeza da vizinha de cima, uma mulher que lhe complicava o sistema nervoso pela postura que exibia enquanto subia as escadas do quintal tossia de forma ininterrupta, escarrando com frequência para o quintal. Tais atitudes deixavam a pobre criança muito nauseada. E tinha razão para isso.

 «Porcalhona!» disse para si.



 

«Não respondes?» 
«Olha, estou a apanhar bichos-de-conta para fazer uma corrida na varanda.»
«Mas eles correm mesmo?» perguntou. 
«Se queres ver...» 
«Não acredito.» 
Queria fazer dela parva, pois queria. 
«Então não acredites.»
Continuou a arrancar as urtigas pela raiz. Sabia muito bem onde se escondiam os bichos-de-conta.
«Olha, Dorinda. E este vai ser o vencedor.» 
«Como sabes?» 
«É maior que os outros e não é velho.» 
«Velho?» 
«Enrolou-se depressa.» 
«Bom...»
«Queres assistir à corrida ou não?» 
«A tua mãe não gosta de me ver lá em cima contigo.» 
«Sério? Ela nunca me disse.» 
«Acredita. Não sei que mal lhe fiz.»
A mãe lá tinha as suas razões. 
«Vou ver se ela está na cozinha» 
A rapariga pôs-lhe uma mão sobre o ombro direito e tentou seduzi-lo.
«Não queres antes ir apanhar borboletas? São tão bonitas! Vi há dias uma de cor celeste...»
O Marinho fez uma careta.
«Celeste... o que é isso?»
«Da cor do céu, cretino!»
«Badalhoca!»
Nome que ouviu numa discussão entre duas mulheres que começaram a puxar os cabelos uma à outra. A princípio até ficou incomodado. Depois, apreciou. Nunca tinha assistido a uma luta entre mulheres. porque é que se puxavam pelos cabelos?
«Prontos, já não te chamo nomes.»
Já conhecia as respostas prontas do Marinho.
«E apanhaste-a?» perguntou, sobressaltado.
«Não consegui.»
«Eu quando as apanho, solto-as logo porque começam a bater as asas e largam muito pó. Se demorar a soltá-las já não conseguem voar e fico com muita pena delas!»
«Se conseguisse apanhá-la, essa ficava para a minha coleção. Que pó?»
«Ora... vê-se muito bem nas borboletas brancas.»
«Ah...»
«Olha ali uma! Vou apanhá-la com a boina…»
As duas crianças faziam diferença de quatro anos. Aos seis anos, Marinho era a inocência em pessoa. Muito rabino, mas puro ainda. Mais puro que uma borboleta de asas brancas. Quanto à Dorinda, mais velha e sabedora de certos mistérios da vida, dada a sua condição social, já com as maminhas a despontar, tinha objetivos que não os do amiguinho. Estariam talvez (ou não) na expectativa de apanharem uma borboleta, branca ou colorida. As coloridas tornavam-se mais difíceis de apanhar porque eram mais rápidas a porem-se em fuga.
«Raio! Deixaste-a fugir...»
«Isso é uma asneira. Não se diz, Dorinda!»
«Sei muitas piores que essa, mas não te conto porque a tua mãe corre logo comigo do quintal.»
«Sim. É melhor ficares calada.»
«Olha... anda para debaixo da varanda. Já me dói a cabeça de apanhar tanto sol. Vamos para a sombra.»
«Ainda agora chegaste e já te dói a cabeça! Não vou. Só depois de apanhar uma borboleta!» teimou o Marinho.
«Deixa-as em paz e faz o que te digo. Tenho uma coisa para te mostrar.»
«Que coisa?»
«Já vais ver. É uma surpresa. Aqui não mostro.»
Que estaria a misteriosa Dorinda a engendrar?
Marinho entusiasmou-se. Gostava de surpresas e de mistérios. Muito. Ainda mais do que dos gatos da dona Francisca.
Pôs a boina com os três vinténs na cabeça, sinal de desistência em relação ao objetivo borboleta. Ela fez-lhe um sinal com a mão e seguiu-a para debaixo da varanda. As portas que davam acesso às duas caves estavam meio fechadas e ela empurrou-as com força. Marinho concluiu que iam entrar na cave.
«Assim vê-se melhor.» Concluiu ela.
«Também acho» concordou. «Mas o que é que tu tens para me mostrar?»
A criança impacientou-se quando a viu avançar mais para o interior da cave. O mistério adensava-se.
«Não ficamos aqui, à entrada da cave?»
«Anda...»
«Está bem, eu vou. Mas vê-se melhor aqui.»
Ficou muito intrigado quando a Dorinda começou a desabotoar a blusa encardida das bolas vermelhas.
«Estás com calor?» arriscou perguntar.
«Claro que não. Põe a mão aqui... Vá, não tenhas medo que elas não te mordem.»
Obedeceu.
«Que notas?»
«Estão crescidas!»
«Sentes alguma coisa?»
«Estão quentes. Bem me parecia há pouco que tinhas calor.»
«O quê?!...»
«É verdade.»
«Paspalhão!»
Então a Dorinda subiu ligeiramente a saia e baixou as cuecas com um gesto rápido.»
«Proibido» pensou Marinho. «Nem sequer posso contar ao Tarzan...»
O Tarzan era o gato preto e branco que jogava a bola com ele. Punha-o entre as pernas de uma cadeira e transformava-o num guarda-redes. Dos melhores. Ainda melhor que o Barrigana do Futebol Clube do Porto.
«Ficaste mudo?»
Pudera! A menina da Dorinda cheirava a xixi que tresandava.
«Não gostas de ver?»
Aquilo era estranho!
«Sim... mas...»
«Põe aqui a mão.»
Pegou-lhe na mão e encostou-a no sítio.
«Gostaste?»
«Muito» mentiu. «Pois não gostei?»
De facto aquilo não cheirava a rosas.
«Agora quero ver o teu pirolito
Mau mau! Caldo entornado. Começavam as complicações.
«Aqui está frio. Vamos lá para fora.»
«Já vamos. Mostra-me isso. Não sais daqui sem mostrar.»
Começou a desabotoar os botões do calção. Quanto daria para andar lá fora a correr atrás das borboletas!
«Encosta-te...»
Não achava graça nenhuma. Depois aquele cheiro que o atordoava. Tinha que encontrar uma saída.
E encontrou logo. Teve uma ideia brilhante, quiçá salvadora.
«Se formos apanhar borboletas dou-te meio tostão. Depois voltamos.»
Coçou a cabeça, indecisa. Meio tostão sempre era meio tostão.
«Dá cá o meio tostão, medricas da merda!»
Finalmente libertava-se do tormento daquele fedor.
«Toma lá o dinheiro. Olha lá, tens piolhos?»
«Não. Porquê?»
«Estás a coçar muito a cabeça.»
«Claro que não tenho.»
Bendito sol que o aquecia e livrou de problemas. Lá ficaram entretidos a apanhar borboletas e a libertá-las de imediato por proposta sua. Se fossem moscas ou caracóis não tinha a mínima compaixão. Agora as graciosas e fascinantes borboletas que voavam em volta das suas cabeças não eram intocáveis, mas exerciam sobre ele uma fascinação irresistível.
«Que linda!» exclamou Marinho, abrindo as asas do inseto. «São pretas com listas amarelas…»
«Dá-me a borboleta!»
Adivinhou o instinto agressivo da desgrenhada Dorinda e libertou de imediato o inseto indefeso.
«Meu burro! Eu queria a merda dessa borboleta!»
O céu das borboletas. Muito azul. O ar quente junto à terra das urtigas e de outras plantas silvestres a florirem. O mundo verdadeiro do Marinho, a criança ingénua que gostava muito de gatos e atirava-os pela varanda abaixo, acreditando que eles voavam (4). A sessão “mística” no fundo da cave e a perplexidade da criança que não queria mostrar o pirolito a uma amiguinha mais crescida que tinha outras intenções, mas ainda com as mesmas intenções a roçarem os limites da ingenuidade. Por sua vez, o Marinho também estava nos limites da pureza.
«Já estou farta das borboletas. Ainda se ficasse com elas...»
«Para as matares?»
Pegou-lhe no braço.
«Vamos outra vez para a cave.»
«Não!»
«Disseste que voltávamos lá.»
«Pois disse, mas já não me apetecesse ir.»
Ela pensou duas vezes. Reverso da medalha.
«Dou-te um tostão...»
A pureza da criança que gostava de gatos ficou em luta feroz com a ganância. Uma luta que prometia ser breve e com um fim que não era o mais certo. Se todas as pessoas tinham um preço, o Marinho também não fugia à regra.
«Passa para cá esse tostão...»
Mesmas cenas. Mesmos cheiros. Até que o bom do Marinho não suportou mais o cheiro e empurrou-a.
«Brutamontes!»
«É que cheiras muito a xixi e já não aguento mais...»
«Vejam lá!»
«Que estão os dois aí a fazer nesse estado?»
Momento salvador. Apareceu a mãe do Marinho e acabou logo a festa.
Lá fora as borboletas continuavam a voar livremente no azul.
Como era belo o céu de ontem!

«Que te aconteceu, Mário?»
Veio de muito longe e já não viu nos olhos da Marisa o regato de águas cristalinas.
«Nada de especial, Marisa. Apenas lembrei-me de uma coisa que me aconteceu quando era criança.»
«Como aconteceu?»
«Foi tudo provocado pela borboleta branca que vimos há pouco.»
«Conta-me...»
«Hoje não. Temos coisas mais importantes para conversarmos.»
Acenou com a cabeça.
«Tens razão. Precisamos de conhecer-nos melhor. No fundo, somos só dois estranhos que sentem uma atração mútua. Mais do que isso, penso. Acho que devemos falar mais. Nem sequer sei se por acaso tens namorada, ou uma amiga mais que amiga.»
«Estou livre, Marisa.»
Quase mais livre que uma borboleta de asas brancas!
«Não percebi o que disseste a seguir. Falaste muito baixo.»
«Não disse nada. Pensei em nós e na probabilidade de nos entender-nos no futuro. Tenho menos dez anos que tu. É significativo.»
Ficou muito séria.
«Que sentes verdadeiramente por mim?»
Pergunta sem fuga possível.
«Ora... o mesmo que tu, acho.»
«Boa resposta.»
Reconsiderou.
«Parece que nos precipitámos; Marisa.» Disse.
«Como assim?»
«De repente senti-te distante. Já te disse que sou um sensitivo?»
«Um sensitivo?»
«Pressinto que um obstáculo vai separar-nos e que nunca virei a saber a natureza desse obstáculo.»
«Não acredito em pressentimentos. Estás é a tentar descartar-te, Mário.»
Por uns momentos ficaram calados. Mário mudou de sítio o copo meio de água.
«De qualquer forma, aconteça o que acontecer, acredita que só tu estás no meu horizonte. Já o mesmo não sei de ti.»
Ficou muito séria.
«Precisas duma prova de fogo?» perguntou, sorrindo.
«Como assim?»
«Logo à noite vais tê-la.»
«Diz.»
«Na mata?» 
«Queres...? Como os portugueses com as francesas?»
«Mais logo. Depois do jantar. Na mata... Olha...»«Sim?»«Não te esqueças de levar a manta...»

Até ao anoitecer o tempo correu tão devagar como um relógio parado. Mas como os relógios parados não paravam o tempo, Mário e a sua manta estavam na mata, num sítio estrategicamente isolado. Eram nove horas quando se despediu dos amigos e disse que voltava tarde.
«Aqui há gata!» desconfiou o Fernando.
«Estou com um problema digestivo e preciso de andar por aí» mentiu. «A culpa foi da feijoada. Comi em excesso e bebi muito.»
«Isso vi eu. O Holmer não se cansava de encher-te o copo. Queres que te acompanhe?» ironizou o amigo.
Mário sorriu.
«Não, obrigado.»

À medida que o tempo ia passando, crescia a ansiedade. Nove e meia e ela não vinha. Mas não era tarde. Ainda estavam a chegar alguns casais.
Olhava para a manta estendida no chão coberto pela caruma e imaginava como iria ser ou acontecer.
Dez horas. Por que motivo a Marisa ainda não tinha aparecido?
O tempo foi passando, indiferente à inquietação do Mário.Regressou à tenda já perto das onze. Pensativo e triste, preparava-se para entrar na tenda quando olhou em frente e viu um espaço livre a cerca de vinte metros. Não queria acreditar! Era o espaço onde se situava a caravana do alemão.
«Foram-se embora» deixou escapar. «Não acredito. Ela prometeu!»
«Quem é que prometeu e o quê, Mário?»
«Nada.»«Pois foram» disse o Fernando. «Os cretinos nem sequer se despediram. Parecia que estavam zangados uns com os outros.»
«Não quero acreditar!»
«Em quê?»
«Nada» repetiu. «Não foi nada. Só estou a falar com os meus botões.»
«Desabafa! Os teus botões não se zangam.»
Arriscou:
«A Marisa não deixou nenhum recado para mim?»
«Ah!, a Marisa... Bem me parecia. Já te disse que se foram todos embora. Mas afinal de contas onde é que estiveste metido?»
«Andei por aí.»
«É muito vago. E sabes?, andámos à tua procura por tudo o que era sítio. Se não queres contar, não contes. Ao menos que te tenha feito bom proveito o petisco.» 
Antes fosse.
«Não me chateies mais do que já estou chateado.»
Não contou onde tinha ido. Preferiu guardar para si a frustração que sentiu. Estava tudo tão bem encaminhado e ela foi-se embora sem sequer dizer adeus!
Quem disse que as borboletas de asas brancas eram sinónimo de bom augúrio?

(1) Uma morte anunciada
(2) Não me leves ainda!
(3) Leta
(4) Os Verdes Anos de Mário Contador de Histórias - A Criança que Gostava de Gatos