Quantos são hoje? Não interessa. Hoje é hoje. O que interessa é que já fui jovem e não estou a falar do presente, embora esteja a falar no presente. Mais concretamente estou a falar para o presente e para o futuro de casos que desenterrei do tempo em que era jovem.
Segundo li em tempos num livro de L. Ron Hubbard [1], todos os acontecimentos passados ao longo da vida dum ser humano ficam registados na memória. Não vai fugir à regra esta história recheada de recordações, naturalmente falíveis neste ou naquele pormenor, mas fico isento de culpa de dolo se tiver falhado neste ou naquele pormenor. Espero mesmo que as minhas qualidades observacionais minorem as faculdades inerentes à mente analítica.
Ditas estas palavras, à guisa de introito, vamos à história. Não é bem autobiográfica. Aí há que contar com a mescla de "reais e fictícios" que eu, Mário, vou introduzir. Um pouco de sal e pimenta tempera a história.
Sempre fui um apaixonado mais ou menos silencioso. Melhor dizendo, discreto. Este sempre também quer dizer precoce. Veja-se que, ainda sem ter atingido os dez anos, tive a primeira paixão silenciosa.
Fixando-me nos meus tenros dez anos, havia uma coletividade que os meus pais frequentavam em noites festivas, abrilhantadas, por bailes, muitas vezes alternados com orquestras portuguesas e espanholas e claro que eu e a minha irmã Olinda não ficávamos em casa. Por vezes havia variedades com artistas que eram prata da casa. Eu tinha boa voz, mas nunca fiz parte desse grupo de jovens corajosos, mais velhos do que eu. Comecei a brilhar, sim, na Escola Secundária, quando, no primeiro ano, a minha voz foi posta à prova ao piano pelo senhor Benjamim que ficou encantado e pôs-me logo como solista do orfeão, que ia do primeiro ao sétimo ano. Mas desse tempo vou apenas falar do que considero essencial.
Voltando à coletividade da vila, conforma referi não participei nas variedades, mas fui um espectador entusiasta desde os primeiros tempos.
E passo a explicar o porquê desta alusão à coletividade, aos seus bailes, orquestras, ao ceguinho que tocava piano divinamente, mas quando se embriagava tínhamos o arroz queimava porque desatava a desafinar e os companheiros da orquestra seguiam pelo mesmo caminho. Uma espécie de reação em cadeia como acontece com a bomba atómica.
Há uns dias, inesperadamente, soltou-se um dos ficheiros mais profundos da memória, algo estranho que me deixou na dúvida. Seria capaz de o descodificar? O seu nome dizia-me alguma coisa. Mas não bastava um nome. Tinha que haver um motivo. E esse motivo, pensando melhor, talvez fosse um ponto de partida para o ligar à história que podia ou não ter interesse.
O Francisco Santiago foi um homem que tive o prazer de conhecer na minha infância. Era amigo do meu pai e estava ligado pela música, e talvez não só, à coletividade artística, sustentada por homens do comércio que florescia a olhos vistos na vila.
Na minha memória conservou-se até hoje a imagem de um homem cinquentão que primava por andar sempre bem vestido e penteado desprendimento que lhe causou alguns amargos de boca cabeça, talvez por um fixador que era usado na altura. É de admitir que não havia vento que o soltasse do lugar. O homem tinha a sua profissão, mas também se dedicava à música, compondo canções populares [2] nas horas livres [3]. Uma dessas canções que criou teve um êxito estrondoso, não passando, no entanto, para fora do âmbito da coletividade. Chamava-se essa canção, ”O Gato do Manel Zé” e ainda, por vezes, dou comigo a trauteá-la no duche. Esta referência tem importância porque ele tinha uma filha que era minha colega e amiga. Uma vez deu-me um conselho sobre um caso sentimental que não segui e do qual me arrependi mais tarde. Tinha que ser? Mais uma vez o determinismo a pôr-se à frente do livre arbítrio, e para mal dos meus pecados.
Um dia, a Rita, filha do brilhante compositor regional, convidou-me para uma festa noturna em sua casa. Era uma rapariga avançada para a época, daí a festa privada ser feita com o consentimento, ou não, do pai. Era também muito inconstante no campo sentimental. Desprendimento que lhe causou alguns amargos de boca
«Faço amanhã à noite uma festa na minha casa. Há baile e há comes e bebes, Mário.»
«Mas eu sou um cepo a dançar.» Desculpei-me.
«Ninguém dá por isso, pá. E olha que vai a Alice.»
«Tens a certeza?»
«Disse-lhe que tu ias…»
Com essa estratégia lá me convenceu, embora não tivesse ficado muito animado. A Alice era uma rapariga que tinha uma grande paixão por mim. Reservava-a para qualquer chamada de última instância, quando as coisas me corriam mal sentimentalmente.
O segundo andar do prédio onde morava com o pai dava para um terreno onde, quando era mais novo, cheguei a jogar à caganita e a treinar com espadas de madeira, preparando um assalto aos do castelo, juntamente com os amigos de então, um dos quais de certeza o Armando Slimpas que infelizmente já não é deste mundo. De certeza que neste momento está a ver-me e a recordar esses belos tempos, enquanto passeia ao longo dos extensos campos verdes do Senhor.
«Olá, amigo Armando.»
Ao tempo da festa noturna da Rita devia ter dezasseis ou dezassete anos. Não me lembro muito bem dessa festa. Principalmente do que aconteceu na sala improvisada para o baile e para os comes e bebes. Dos meus interesses e motivações. Apenas sabia que o meu amor dessa época morava em Estremoz. Distante da vista e bem perto do coração. Assim era nessa altura.
Noite da festa...
No momento estou na varanda que deve ter uns oito metros de extensão e dá para poente. Há um muro acinzentado, muito provavelmente em pedra e tijolo, a limitá-la. Dá-me pela cintura e parece ser seguro. A noite vai um pouco adiantada. Estou a ver a Lua em quarto crescente e também Vénus, um pouco mais abaixo no horizonte. Como sou mau dançarino achei por bem isolar-me até à hora dos comes e bebes. Mas não estou só na varanda. Do meu lado esquerdo diviso um vulto de rapariga que também olha a Lua ou assim. Está mais debruçada do que acho razoável. Por uma razão específica temo por ela.
Sentiu-se observada e olhou para o meu lado. Sorri, entretanto. O seu sorriso é triste. Tem olhos claros. Não os vejo bem, mas sei que são claros porque conheço a rapariga. É a Cristina. Também, como eu, deve sentir-se excluída do restante grupo. É uma jovem estranha. Isola-se muito. Não lhe conheço historial de namoros. Há quem diga que é lésbica. Não sei. Nunca convivi com ela. Mas tem razão para estar triste porque morreu-lhe o pai há pouco mais de cinco anos. Suicidou-se no túnel que está para sul, a duzentos metros da estação do caminho-de-ferro.
Fico a pensar no trágico acidente que lhe levou o pai. Um desgraçado qualquer, mas muito importante de repente porque se transformou, depois de morto, num centro de atenção, apenas por um ou dois dias, pois quase todos os dias aconteciam casos estranhos na vila.
Na missa do sétimo dia quem estaria presente para lhe prestar a última homenagem?
«Não vale a pena esperar, Mário, que encontramo-lo pelo caminho, antes de entrarmos no túnel. Temos tempo de sobra. Os comboios andam sempre atrasados. Até dá para fazer uma mija...»
«E se ele já saiu da última estação?»
O Armando era o mais afoito dos dois. Também não era de admirar que as desgraças caíssem com mais frequência em cima dele.
«Estamos é a perder um tempo precioso. Anda daí. De repente fiquei ansioso.»
Sempre a correr, seguiram pela linha, saltando travessa sim, travessa não. Ao fundo, avistava-se a abertura do túnel que, aos poucos, ia ficando mais próxima. Pararam à entrada. Um receio mútuo envolvia os dois amigos.
«Vamos, Mário!»
«Vai tu à frente. Vejo mal no escuro.»
«É melhor ires tu...»
«Pronto, nem um nem outro. Vamos os dois, e lado a lado.» Sentenciou o Armando.
Resolvido o diferendo entraram no túnel.
«Está escuro como breu. Parece que há água na linha. Sempre te disse que o túnel metia água.»
«Tu é que estás a meter água. Deixa-te de imaginações parvas e segue mas é em frente. Tu e os teus medos da água. Na última encarnação deves ter sido um flibusteiro que se afogou. Olha, talvez o timoneiro holandês. Quem sabe?»
«Tens razão. Quem sabe se não fui esse. Mas olha uma coisa? Gostava mais de ter sido o comandante e de andar à espadeirada com os piratas. Deve ter liquidado muitos.»
Estavam para lá do meio do túnel e já havia mais claridade.
«Olha.»
«Que foi?»
O Armando apontou para o chão.
«É uma coisa a brilhar. Parece um vidro. Não vês?»
«Tens olhos de lince!»
O safado do padre Luís é que tinha olhos de lince. E mais outra coisa: diziam que à noite, depois dos serviços religiosos, ele despia a batina, tirava o colarinho engomado, montava na BMW e metia-se a caminho do Bairro Alto, para as putas. Que Deus lhe perdoasse, mas não se livrava da fama. Os julgamentos na praça pública tinham quase força de lei. Lá isso tinham.
Baixaram-se ao mesmo tempo. Fantástico! Era um vidro de relógio intacto. Como podia ser possível? O embate do corpo do suicida contra o comboio decerto fora violento. Mais que violento. Era quase um milagre terem encontrado aquele vidro sem a mínima mazela. Não. Milagre, não. O desgraçado atentara contra a própria vida e não se podia falar de milagre. Teve bilhete direto para o Inferno.
Foi a vez do Mário fazer a sua descoberta.
«Miolos, Armando! Miolos e restos de sangue. Brre! Bem disseram que havia miolos espalhados na linha.»
«Bruxos! Deixa ver melhor... Que nojo! Estou a ficar indisposto. Acho que vou vomitar.»
«Maricas pé de salsa!»
«Vamos embora!»
«Espera. Só queria encontrar uma mão. Dava vinte e cinco tostões por uma mão do morto. Decepada, claro. Com um pouco de sorte ainda vou encontrar uma, Armando.»
«E a minha avó também. Para que queres tu a mão?»
«Ora, para levar para a escola e meter cagufa às raparigas. De certeza que ficavam todas histéricas. Já imaginaste o espetáculo?»
Para lá da tristeza que deixava transparecer, quis saber o que se passava naquela mente estranha. Depois do sorriso que me lançou, voltou à situação inicial de olhar em frente. Hesito. Devo ir ter com ela? Nunca falei com ela. Alguma vez há de ser. Mas não vou convidá-la para dançar, porque sou um grande cepo. Um contraído. Principalmente nas músicas mais aceleradas.
O Vítor Berto e a Ana devem estar a dançar muito agarrados. Para eles não há músicas movimentadas. Só slows. Aquele namoro não me parece ser sincero. O mês passado ele namorava com a Rita. Ambas gostam dele. O namoro é à vez.
Deixo os três em paz. Algo me diz que qualquer coisa não bate certo, pois a Cristina debruçou-se mais no muro e agora olha para baixo. Ainda é uma altura considerável. Que vê? Só o escuro porque o negrume é total. Oh! Vai atirar-se, vai atirar-se! Não hesito. Corro para ela e consigo agarrá-la pelas pernas. Felizmente que é leve. Mesmo assim a situação é complica. Força, Mário, tu consegues!
Lentamente, vou puxando-a para cima. Já a seguro pelas nádegas. O tato revela-me uma coisa que acho imprevisível. A Cristina não tem cuecas! Falta pouco para a salvar. Já está!
«Louca! Que ias fazer?»
Não responde. Já a tenho a salvo. Não solta uma palavra. Agarra-se muito a mim e soluça convulsivamente.
Pouco depois, deixo que se solte. A seguir acaricio-lhe os cabelos. Continua sem falar. Deve estar em estados de choque. Eu também estou, mas a minha situação é diferente.
Finalmente deixa escapar um meio sorriso.
«Pregaste-me cá um destes sustos!»
«Desculpa.»
Volta a encostar-se a mim. Sinto o contacto do peito. Todo eu sou sensações estranhas. Tenho que acalmar a fera.
«Queres desabafar? Juro que não digo nada a ninguém.»
«És uma pessoa de bem.»
Desengana-te, Cristina. Por vezes sou oportunista.
«Como te sentes?»
«Não sei o que se passou na minha cabeça. Obrigada, Mário.»
Pego-lhe na mão.
«Vamos lá para fora falar?»
«E os outros?»
«Estão entretidos. Vai ser fácil. Entramos na sala a dançar...»
«Mas eu não sei dançar...»
«Deixa-te levar. Depois saímos nas calmas.»
«Sim.»
«E aqui vamos. Vês que é fácil?»
«Tu és o máximo, Mário!»
Ela nem sabia o sacrifício que estava a fazer. Felizmente que estavam todos entretidos a dançar o “Baião da Ana”.
«Foi um impulso. Parecia que alguém me empurrava.»
«Sentes arrepios de frio?»
Disse que não. Então, sosseguei-a.
«Ainda bem.»
«Achas que foi o meu pai que me chamou?»
«Não penses nisso.»
Depois daquela tragédia, o louco do pai ainda devia andar perdido, talvez no limbo, não encaminhado.
Estávamos no jardim da vila. O jardim que deu lugar a outro que tanto me encantou enquanto fui criança. Em vez do parque infantil havia agora um mamarracho de um obelisco circundado por um lago desproporcionado. Uma obra prima de um assassino da arte.
«Fui feliz aqui quando era criança, Cristina.»
«Sim? Conta-me…»
«Talvez mais tarde. Descansa um pouco, Cristina.»
«Deves ter histórias bonitas para contar…»
Se tinha!
«Sentes-te melhor?»
«Sim. As minhas histórias foram sempre cinzentas.»
Agora que ela estava mais calma talvez fosse o momento de deixar que falasse.
«Queres desabafar, Cristina?»
«Sim.»
Depois daquele sim, estranhamente deixei de ouvir a sua voz. Os seus lábios moviam-se, mas não conseguia ouvi-la.
«Não te oiço, Cristina! Fala mais alto.»
«Mário...»
E a Cristina continuou a falar sobre algo que não conseguia ouvir. Ela com uma expressão do rosto mais animada. Eu, desesperado por continuar a não conseguir ouvir a sua voz.
Quanto tempo durou aquele blackout?
Estava de novo na varanda. Olhei para a esquerda e vi a Cristina olhando em frente, talvez a observar no céu da noite a Lua, Vénus e muitas estrelas, talvez algumas delas já não existentes.
Cocei a cabeça, algo desorientado. Agora não sabia se aquele momento de suspense voltou para trás ou nunca chegou a acontecer. Se a infeliz Cristina ia outra vez tentar atirar-se lá para baixo, onde era o empedrado de paralelepípedos em calcário. Se nada de grave ia acontecer e se tudo não tinha passado de uma mera partida do subconsciente.
Olhou para mim. Outra vez aquele sorriso de há pouco.
«Finalmente, Mário!»
Era a Alice.
«Ah, és tu.»
«Quem querias que fosse, meu parvo? Onde te meteste este tempo todo?»
«Eu...»
«A tua avó torta?»
Não sabia como responder. Deixei que falasse. Era melhor.
«Há mais de meia hora que não ponho os olhos em ti. Já vim aqui várias vezes e não te vi. Nem sequer na sala de jantar.»
«Fui a casa.»
«Mentes tu. Perguntei à Luísa e à Laura e não te viram. E também a outros.»
Que desculpa podia dar?
Foi então que olhou para o outro lado da varanda e viu a Cristina.
«Não me digas que te escondeste com aquela fufa e afinfaste-lhe!»
Ainda bem que não nos tinha visto a dançar enquanto tentávamos sair das vistas de toda a gente.
«Depois falamos melhor. Vem para dentro que eu peço para porem a tocar o disco do "Arrivederci Roma". Estou caliente!»
Aquela canção era o meu cartão de visita quando atuava no conjunto "Red Diamonds". Mas mais uma vez o determinismo fez valer a sua força. Esse conjunto musical, que até mudou de nome, teve um tempo fugaz. Terminou logo a seguir a um convite que nos fizeram para atuar na coletividade do Francisco Santiago e do seu "Gato do Manel Zé".
Foi num domingo logo a seguir ao almoço. Tínhamos meia dúzia de canções no repertório para animar o baile e havia necessidade de fazermos render o peixe.
Nem foi preciso haver malabarismos. Faltou a luz logo a seguir à primeira canção e o baile não continuou. Azar do caraças!
«E os comes e bebes?»
«Já foram, não te lembras? Passa da meia-noite. Anda, tolo. Quero sentir-te todo!»
«Vai andando, Alice.»
Disse que sim e afastou-se. Demasiado fácil para ser verdade. Mas foi.
«Não demores.» Disse ainda.
Olhei para o sítio onde estava a Cristina. Telepatia! Também olhou para mim no momento. E desta vez foi ela quem se aproximou.
«Quero agradecer-te...»
Pus uma mão amiga sobre o ombro e encarei-a com o mais sincero dos sorrisos.
«Prometes que não voltas a fazer...?»
Achei estranha a sua resposta.
«O quê?»
«Bem... aquilo que fizeste.» Engasguei-me.
«Tive quinze a Matemática. Se não fosse a ensaboadela que me deste...»
Então eu dei-lhe explicações de Matemática?
Tudo ficou em suspenso à minha volta. Já não via a Lua no horizonte e logo abaixo Vénus. Nem a Cristina a debruçar-se com perigo no muro. Nem a tentativa que fiz para a salvar. Nem o baile e nós os dois a caminho do exterior. Nem a Alice que andava à minha procura e que veio ter comigo cheia de desejos obscuros.
«Então, Mário, que dizes?»
Fiquei para morrer. A Cristina tinha levantado as saias.
«Mas tu não tens cuecas!»






