Essa coisa multiplica-se ao gerar acontecimentos estranhos e perturbadores em que ele, impotente, limita-se a ser um canal de comunicação, o que lhe provoca um desgaste psíquico prejudicial ao equilíbrio físico e mental. O último surgiu recentemente sob a forma de rotura e foi a responsável pela reviravolta que deu na vida. Foi ao mesmo tempo uma lufada de ar puro e outra que o embriagou de entusiasmo, não deixando, no entanto, que separasse as águas. Afinal não era bem o que queria, mas nada feito. Perdeu várias escolhas e teve que aceitar aquela.
O seu novo "ator" é uma personagem atraente, calma, estável sob o aspeto psicológico. Parece controlar tudo à sua volta, mostrando as características gerais dos homens do signo Escorpião e fala muito com ele. Gere a própria memória, expande-a até aos limites necessários, apaga dados importantes quando dá conta que estão vulneráveis e insere outros falsos.
Que fazer?..., propor a fusão dos dois interlocutores, ou destruir simplesmente aquele processo de caminhada em ascensão crescente para um poder que assusta os outros e assusta-o ainda mais que a eles, embora faça finca pé em esconder o que o atormenta e amedronta?
É um erro fatal perder a lufada de ar puro que tanta força lhe dá. Tem que ser prudente. Por enquanto vai fingir que o outro eu não existe e tudo aquilo que acontece fora dos contextos reais afinal não passa de mera alucinação. E assim é inevitável falar outra vez da dama de negro e do jogo em que os dois estão envolvidos. O tabuleiro de quadrados pretos e brancos está preparado com as peças nos seus lugares e situadas frente a frente. Só espera por ela e não vai demorar muito tempo. Certo. Chegou. Aí a temos. Pressente que vai avançar com um peão, lenta e inexoravelmente no tabuleiro de xadrez, onde as peças estão imóveis e à mercê dos jogadores de um só rei.
Ela traz em si o habitual olhar belo e sinistro de todas as mulheres fatais no sentido fatal da fatalidade. Um olhar que deixa ver o seu desejo insaciável. Quer sempre mais e mais que mais! E ele é forçado a dar-lhe tudo. Tudo? Menos que tudo. A alma. Não a vende por nada deste mundo. Se perder a alma será o fim da sua existência como ser humano. E depois não sabe o que se segue para além da alma.
Por vezes, a dama de preto mascara-se e isso não é bom. Encontrou-a pela primeira vez sentada à mesa de um café. Vestia de vermelho, tinha um chapéu branco, largo e olhava-o por detrás de uns óculos modernos, espelhados. Sentiu que ela não era real por causa da intensidade do olhar e da própria forma de vestir. No silêncio absoluto de um café vazio, observava-o fixamente. Apenas observava-o.
Quem era essa mulher e donde veio?
O poder do olhar começava a tomar conta de quase todos os comandos do seu cérebro, a ponto de impedir que fosse dono da vontade [1]. De nada valia lutar. Reagir. Num instante ela dona e senhora da sua vontade. estava à sua mercê. Mas, em princípio, parecia que ela queria apenas manifestar o seu poder naquele café quase deserto, onde só ele e os donos estavam presentes que desconheceram desde princípio a presença daquela mulher, como mais tarde confirmaram.
A dama de negro abandonou o tabuleiro prematuramente. Admira-se. O jogo nem sequer teve início. Quer entender porquê, mas há toda uma blindagem entre os dois. De qualquer forma, hoje venceu a batalha de um só rei, mesmo sem esta ter começado. Mas não venceu a guerra. Tem que estar alerta porque ela mostrou outros trunfos ainda não visíveis. Não tem dúvidas. Há destroços dentro de si que não consegue camuflar. Não sabe como foram aí parar. São destroços que não podem ser removidos e devem ter trazido consigo algumas destruições para o médio prazo.
Entretanto ela voltou e diz que traz consigo uma proposta que considera irrecusável. Em troca, quere-o só para si. Mas para atingir esse objetivo, precisa de ter a sua alma, insiste. A proposta é tentadora. Fá-lo pensar. É uma oportunidade única. Será que vai aceitar a imortalidade a troco da sua alma? E para que quer ela a alma de um vulgaris de Lineu como ele é? Que mais está por detrás deste negócio irrecusável que levanta suepeitas? Atingir o patamar da eternidade é uma tentação, mas o preço da alma, por mais alta que seja a proposta de troca, não se pode alienar. E depois... vai descobrir o que estará para lá da porta?
Ela ri, irónica. Um trovejar vindo do monstro que é.
«Então queres ir ao outro lado da porta e depois voltar, só porque és eterno?»
Acena que sim com a cabeça. Talvez aceite a proposta. Mas a dama de negro diz que nunca ninguém conseguiu ir a esse sítio e voltar. O bilhete da viagem é só de ida. Os que partem nunca regressam.
«Porquê? deves ter um motivo muito forte.»
«Há muitos mistérios que tenho de decifrar.»
«Que mistérios são esses?»
Não responde.
«Nada feito. Ou melhor. Se me entregares a alma... O que é fácil, porque tudo tem um preço»
«Que mistérios são esses?»
Não responde.
«Nada feito. Ou melhor. Se me entregares a alma... O que é fácil, porque tudo tem um preço»
«A alma não a dou a ninguém!»
«Brincas comigo. É mau. Nem imaginas como é mau brincar comigo. Mas, adiante. Então, nada feito quanto ao outro lado da porta.»
E afastou-se.
Ah!, felizmente que ainda é mortal. Aquilo foi mais uma sugestão diabólica que partiu da megera do que um encontro real. Esteve por pouco. Mas não ficou descansado porque ela vai voltar. Tem a certeza. Vai voltar vestida de vermelho ou doutra cor. Com promessas tentadoras reforçadas pelas inevitáveis feromonas cujos odores deixam no ar rastos de desejos. Usando esses meios torna-se ainda mais perigosa. Mas ele não cede. Qualquer seja o formato que use, o seu preço continuará acima daquele que ela propõe. Até um dia? Talvez. Mas só quando as peças do seu tabuleiro estiverem todas por terra e o jogo terminar. E ele entrou no jogo para defender a alma.
Que fez de importante na vida, para o bem e para o mal, para ser tão solicitado por aquela horrorosa, e ao mesmo tempo, atraente, que é dama que veste de negro?
De repente há uma mudança. Tão brusca que não deu pela transição. Se calhar até não houve transição. A dama de negro ou quem quer que tenha sido, foi discreta e eficaz. Fulminante. Parece que lhe deram com um spray e adormeceu de imediato. De qualquer forma, viu do outro lado do tabuleiro outra jogadora que não era a dama de negro. Ou então não conseguiu identificar o seu novo disfarce.
O jogo continuou equilibrado, com trocas de peças quase similares. Peão por peão. Cavalo por bispo. Mais ou menos isso. Tudo levava a crer que o jogo caminhava para um empate. Era só uma questão de tempo a preencher uma mão cheia de jogadas. Mas o empate não aconteceu porque ela cometeu um erro grosseiro, ou fez de propósito uma jogada de erro. Foi assim que ele conseguiu ganhar. A dama de negro nunca tinha jogado tão mal. Mal de verdade. Aquilo era uma viragem brusca e parecia que ela já não tinha o poder consigo.
«Quem és tu agora?» arriscou perguntar.
«Adivinha.»
«Um anjo que caiu na Terra? Não acredito.»
Não respondeu. Limitou-se a sorrir. Era tão diferente da camaliónica dama de negro! Mesmo assim, apostou no seguro.
«Sabes que não vendi a alma?»
«Ah sim?»
Pergunta a seguir a outra ambígua. Devia ter em conta. Até porque sentiu na adversária um breve pestanejar. Bom sinal para si.
«Não me digas que...»
«Que o quê? Oh, não. Isso que estás a pensar nada tem a ver.»
«Já agora, estou a pensar em quê?»
«Bom, vejamos o que se passa contigo. Não notas a diferença?»
«Sim. Sinto-me leve. Leve como nunca me senti.»
Admirou-se. Era verdade.
«Também acho que sim. Que estás mais leve. Isso não te diz nada?»
Estranha concordância.
«E estou leve, porquê?»
«É fácil saber porquê. Mas antes, como te chamas?»
Sentia-se mais leve que uma pena e ela não lhe ficava atrás. Mas ao longe, a Marcela parecia encurtar a distância a cada momento.
«Ela vai apanhar-nos.»
«Se assim for, enfrento-a. Nada receies.»
Um pensamento estranhou apossou-se dele. Algo lhe dizia que nada ia acontecer de mal se a Marcela os alcançasse.
«Deixa-me aqui. Tu corres mais depressa. Salva-te, meu amor!»
«Nunca, Matilde! Não volto a cometer o mesmo erro.»
Entretanto, como que por encanto, abriu-se um círculo luminoso na sua frente. A luz era tão intensa que lhes feria a vista. Podia notar-se que rodava.
«Um portal!»
Era a salvação deles.
«O que é isso?»
«Uma porta para outro mundo.»
«E o que está para lá? Tenho medo...»
«Não tenhas, Matilde. Dá-me a mão. O que nos espera do outro lado não pode ser pior do que aquilo que podia acontecer naquela sala porque era mais que certo que eu ia perder o jogo. Até o vale verde com todos aqueles mortos-vivos a errarem pelos campos é uma melhor opção.»
«Deixem-me ir também!»
Era a Marcela que entretanto tinha chegado junto dos fugitivos. Olhou frontalmente para ela. Foi um momento. Logo a seguir acenou com a cabeça e fez-lhe um sinal para os seguir.
«Tenho medo, amor!»
«Não podemos perder tempo.»
«E se...?»
«Vem, Matilde! Depressa!»
E mergulhou no círculo que tinha uma luz intensa.
«Finalmente acordaste!»
Demorou a ficar consciente.
«Ah... és tu.»
Olhou em volta.
«A Matilde?»
«Quando recuperei os sentidos não a vi. Mergulhei logo a seguir a ti. Ela estava indecisa...»
«Estava escrito.» Conformou-se.
«Nada está escrito. Nós é que "escrevemos" o que queremos fazer e o que não queremos.»
«Portanto, não acreditas também no livre arbítrio.»
«O que é isso?»
«No livre arbítrio tudo acontece por acaso.»
«Em certas coisas, talvez.»
«Esta conversa dava muito pano para mangas. O mais importante de momento é saber o que vamos fazer agora. Pelos vistos voltámos ao vale.»
«Também creio que sim.»
A situação era complicada. De um momento para o outro a dama de negro podia descobri-los.
«Mas este vale não é o mesmo!»
«Como assim, Marcela?»
«Repara, o vale não é verde. E a vegetação é rasteira e está seca.»
«Tens razão. E também há outra coisa. Repara no horizonte.»
«O Sol! E o céu tem nuvens...»
Desta vez tinham que admitir que a mão do livre arbítrio, após o mergulho no portal, levara-os para um mundo desconhecido.
«Repara, Marcela, se seguirmos na direção do sol, que parece estar a pôr-se no horizonte, vamos encontrar uma planície. Achas bem...?»
«Se adivinhei o teu pensamento, queres deixar o vale e seguir pela planície.»
«Mas tu não lês os meus pensamentos?»
«Claro que não. Isso só aconteceu antes. Naquele vale todo coberto de verde.»
«Conta-me por que motivo servias aquela bruxa da dama de negro?»
«É uma longa história. Como tu, também um dia fui parar àquele vale. Ao contrário do que te aconteceu, fui ao encontro de um grupo que estava em fuga, depois de ter sido subjugado pela megera. Mas foi sol de pouca dura. Fomos apanhados dias depois. Nunca mais soube deles.»
O resto já sabia. Ficou sujeita aos caprichos da dama de negro até que ele apareceu e depois aconteceu o que aconteceu.
«Afinal quem era ela?» perguntou.
«Um ente ao serviço de Satã.»
«Agora estamos livres. Vamos então para ocidente.»
«Para ocidente?»
«É onde se põe o sol.»
«Mas tu sabes onde raio fomos parar, Pedro?»
«Só sei uma coisa. Estamos algures num outro universo.»
«E agora o que será de nós?»
«Olha, vamos por aí. Ou não queres a minha companhia?»
«Vou pensar nisso» disse, sorrindo. «Mas vendo bem, não tenho outra hipótese. E tive muita sorte em encontrar-te.»
«Ainda és mais bela quando sorris.»
Pararam e ficaram frente a frente.
«Que foi, Pedro?» perguntou ela.
«E se tudo isto não passar de um sonho?»
«Quem sabe? Olha, dá-me um beijo.»
E ele deu-lhe um beijo. Um beijo longo.
«E agora?»
«Agora, abraça-me. Se me beijaste num sonho da forma como me beijaste, acredito que a Branca de Neve era prima dos sete anões!»
«Também sabes essa da Branca de Neve?»
Ela voltou a sorrir e ele abraçou-a.
«E então?»
«Então temos que encontrar um abrigo para passarmos a noite.»
E encontraram um abrigo onde dormiram uma pequena parte da noite até que amanheceu com um céu muito azul e um astro-rei a erguer-se, supostamente, no oriente.
«Já alguma vez te tinha acontecido...?»
«De que estás a falar?»
«Do que aconteceu.»
«Se eu fosse um anjo não tinha sentido...»
«Brincas comigo. É mau. Nem imaginas como é mau brincar comigo. Mas, adiante. Então, nada feito quanto ao outro lado da porta.»
E afastou-se.
Ah!, felizmente que ainda é mortal. Aquilo foi mais uma sugestão diabólica que partiu da megera do que um encontro real. Esteve por pouco. Mas não ficou descansado porque ela vai voltar. Tem a certeza. Vai voltar vestida de vermelho ou doutra cor. Com promessas tentadoras reforçadas pelas inevitáveis feromonas cujos odores deixam no ar rastos de desejos. Usando esses meios torna-se ainda mais perigosa. Mas ele não cede. Qualquer seja o formato que use, o seu preço continuará acima daquele que ela propõe. Até um dia? Talvez. Mas só quando as peças do seu tabuleiro estiverem todas por terra e o jogo terminar. E ele entrou no jogo para defender a alma.
Que fez de importante na vida, para o bem e para o mal, para ser tão solicitado por aquela horrorosa, e ao mesmo tempo, atraente, que é dama que veste de negro?
De repente há uma mudança. Tão brusca que não deu pela transição. Se calhar até não houve transição. A dama de negro ou quem quer que tenha sido, foi discreta e eficaz. Fulminante. Parece que lhe deram com um spray e adormeceu de imediato. De qualquer forma, viu do outro lado do tabuleiro outra jogadora que não era a dama de negro. Ou então não conseguiu identificar o seu novo disfarce.
O jogo continuou equilibrado, com trocas de peças quase similares. Peão por peão. Cavalo por bispo. Mais ou menos isso. Tudo levava a crer que o jogo caminhava para um empate. Era só uma questão de tempo a preencher uma mão cheia de jogadas. Mas o empate não aconteceu porque ela cometeu um erro grosseiro, ou fez de propósito uma jogada de erro. Foi assim que ele conseguiu ganhar. A dama de negro nunca tinha jogado tão mal. Mal de verdade. Aquilo era uma viragem brusca e parecia que ela já não tinha o poder consigo.
«Quem és tu agora?» arriscou perguntar.
«Adivinha.»
«Um anjo que caiu na Terra? Não acredito.»
Não respondeu. Limitou-se a sorrir. Era tão diferente da camaliónica dama de negro! Mesmo assim, apostou no seguro.
«Sabes que não vendi a alma?»
«Ah sim?»
Pergunta a seguir a outra ambígua. Devia ter em conta. Até porque sentiu na adversária um breve pestanejar. Bom sinal para si.
«Não me digas que...»
«Que o quê? Oh, não. Isso que estás a pensar nada tem a ver.»
«Já agora, estou a pensar em quê?»
«Bom, vejamos o que se passa contigo. Não notas a diferença?»
«Sim. Sinto-me leve. Leve como nunca me senti.»
Admirou-se. Era verdade.
«Também acho que sim. Que estás mais leve. Isso não te diz nada?»
Estranha concordância.
«E estou leve, porquê?»
«É fácil saber porquê. Mas antes, como te chamas?»
«Pedro.»
«E eu sou a Marcela.»
Que se passava? Ainda andava por ali ou aconteceu qualquer coisa que o ultrapassou? E havia mais. O tabuleiro do jogo tinha desaparecido. Bem como as peças.
Que se passava? Ainda andava por ali ou aconteceu qualquer coisa que o ultrapassou? E havia mais. O tabuleiro do jogo tinha desaparecido. Bem como as peças.
«Ganhei, não ganhei?»
«Ganhaste, sim, Pedro.»
«Ganhaste, sim, Pedro.»
«E agora?»
«Agora vem comigo ver os outros.»
Estranha sequência. Os outros. Quais outros? Não entendia o motivo daquele erro grosseiro de principiante que a dama de negro cometeu. Mas, ao mesmo tempo, a mulher que tinha agora na sua frente não parecia ser mais uma das facetas da dama de negro. Quem era, afinal?
«Os outros?» repetiu.
Não respondeu à pergunta.
«É fácil acompanhar-me. Não disseste que te sentias leve?»
«Deixa-te de graças. Apesar de me sentir leve, não sei voar. Afinal para que serve estar mais leve. Para onde me queres levar?»
«Lembras-te daquela conversa sobre a alma?»
«Sim, perfeitamente. Recordo-me que não troquei a alma por nada deste mundo. Muito menos a vendi.»
«Achas? Já alguma vez ganhaste um jogo que nunca chegou a começar?»
«A que propósito vem isso? Tenho a certeza que houve o jogo. Ela cometeu um erro grosseiro e eu aproveitei. Não podia perder a oportunidade. Tu fazias o mesmo.»
«Há muitas formas de perder a alma, sabias?»
«Perder?»
Estranha sequência. Os outros. Quais outros? Não entendia o motivo daquele erro grosseiro de principiante que a dama de negro cometeu. Mas, ao mesmo tempo, a mulher que tinha agora na sua frente não parecia ser mais uma das facetas da dama de negro. Quem era, afinal?
«Os outros?» repetiu.
Não respondeu à pergunta.
«É fácil acompanhar-me. Não disseste que te sentias leve?»
«Deixa-te de graças. Apesar de me sentir leve, não sei voar. Afinal para que serve estar mais leve. Para onde me queres levar?»
«Lembras-te daquela conversa sobre a alma?»
«Sim, perfeitamente. Recordo-me que não troquei a alma por nada deste mundo. Muito menos a vendi.»
«Achas? Já alguma vez ganhaste um jogo que nunca chegou a começar?»
«A que propósito vem isso? Tenho a certeza que houve o jogo. Ela cometeu um erro grosseiro e eu aproveitei. Não podia perder a oportunidade. Tu fazias o mesmo.»
«Há muitas formas de perder a alma, sabias?»
«Perder?»
«Sim.»
«Pensando que tinha ganho?»
Sentiu-se impotente. Se a dama de negro levou a sua avante, não entendia como conseguiu. Apenas admitiu uma hipótese.
«Tem calma. Não é o que pensas.»
«És amiga dela?»
«Olha, deixemos isso para depois porque muita coisa importante vai acontecer. Antes disso, tens direito a um desejo. Formula. Mas só depois de acontecer algo.»
«Algo?»
«Não te armes em desconfiado.»
Achou estranho e bizarro. Era melhor aguardar. Ao mesmo tempo pensou que nem tudo estava perdido. Talvez que o desejo permitisse que ele pudesse regressar ao seu lado de sempre. Sim. Porque naquele momento devia estar do outro lado. E vivo, talvez. Enquanto estivesse "vivo, talvez" era possível acontecer tudo. E ele estava vivo. Tinha-se beliscado e sentira a dor.
Sentiu-se impotente. Se a dama de negro levou a sua avante, não entendia como conseguiu. Apenas admitiu uma hipótese.
«Tem calma. Não é o que pensas.»
«És amiga dela?»
«Olha, deixemos isso para depois porque muita coisa importante vai acontecer. Antes disso, tens direito a um desejo. Formula. Mas só depois de acontecer algo.»
«Algo?»
«Não te armes em desconfiado.»
Achou estranho e bizarro. Era melhor aguardar. Ao mesmo tempo pensou que nem tudo estava perdido. Talvez que o desejo permitisse que ele pudesse regressar ao seu lado de sempre. Sim. Porque naquele momento devia estar do outro lado. E vivo, talvez. Enquanto estivesse "vivo, talvez" era possível acontecer tudo. E ele estava vivo. Tinha-se beliscado e sentira a dor.
«E então?»
«Então o quê?»
«Sentiste a dor?»
«Sim.»
Estava vivo.
«Vem comigo que não te arrependes.»
«Aonde vamos?»
«Já vais ver.»
O vale era verde. Não era um caraterístico vale como aqueles que tinham encaixado um rio, em "v" ou em "u", conforme a origem da sua formação. Era um vale todo ele verde e não muito profundo e de uma extensão quase a perder de vista. Entre o verde abundante viam-se, aqui e ali, algumas árvores de portes diversos. Todo o resto, salvo uma zona à frente do sítio onde ele estava no momento, destacava-se, pela abundância, o rubro das papoilas. Para amenizar ainda mais o ambiente que o envolvia não soprava uma brisa, sequer suave, até porque suaves eram já as brisas. Quanto à temperatura do ar, esta era amena, propícia a longas caminhadas. Longas caminhadas que não lhe interessava fazer. Sobretudo queria saber o porquê de estar naquele local que lhe inspirava tranquilidade. Demasiada tranquilidade. E tudo aconteceu a seguir a um convite que a Marcela lhe fez.
Sobre ele viu também um céu muito azul, talvez de um matiz mais claro do que o costume. E o mais estranho de tudo é que não avistava o sol. Daí talvez o azul suave do céu.
Foi então que a sua mente despertou para uma outra realidade. Aliás, já notara antes de chegar ao vale. Era precisamente a leveza dos seus movimentos, como se a influência da pressão atmosférica quase não se fizesse sentir. O todo que era ele resumia-se agora só à alma?
Então... tinha chegado ao outro lado?
Boa pergunta para nenhuma resposta. Mas antes que se angustiasse com aquele mistério que o envolvia, acabou por ter uma resposta inesperada. De repente, o vale mostrou uma coisa. Homens e mulheres que passeavam em pequenos grupos entre as plantas herbáceas e as árvores. Elas vestiam túnicas brancas e eles túnicas azuis, estas últimas de cor mais intensa que o azul celeste do seu céu sem sol.
Começou a sentir-se inquieto. Tudo o que os olhos estavam a alcançar nada tinha a ver com ele. Assim parecia. E aquilo não fazia sentido. Ou fazia?
Foi então que reparou estar vestido como os outros homens que observou à distância.
«Sentes-te confuso, não sentes?»
«Achas que sim?»
«Então não estás confuso.»
«Não sei explicar o que sinto. Faltam-me as palavras.»
Virou-se para ela. Só então reparou na suavidade e beleza do seu rosto. Os contornos do resto do corpo também complementavam o que vira no rosto da mulher a quem perguntou se era um anjo. Mas faltavam-lhe as asas. Era assim que os anjos apareciam nos quadros pintados pelos pintores célebres e por todos os outros, talvez com valor, que não passaram do anonimato.
«Onde estou? Quem é toda esta gente vestida com trajes esquisitos e porque estou também vestido como eles?»
«Vem comigo que não te arrependes.»
«Aonde vamos?»
«Já vais ver.»
O vale era verde. Não era um caraterístico vale como aqueles que tinham encaixado um rio, em "v" ou em "u", conforme a origem da sua formação. Era um vale todo ele verde e não muito profundo e de uma extensão quase a perder de vista. Entre o verde abundante viam-se, aqui e ali, algumas árvores de portes diversos. Todo o resto, salvo uma zona à frente do sítio onde ele estava no momento, destacava-se, pela abundância, o rubro das papoilas. Para amenizar ainda mais o ambiente que o envolvia não soprava uma brisa, sequer suave, até porque suaves eram já as brisas. Quanto à temperatura do ar, esta era amena, propícia a longas caminhadas. Longas caminhadas que não lhe interessava fazer. Sobretudo queria saber o porquê de estar naquele local que lhe inspirava tranquilidade. Demasiada tranquilidade. E tudo aconteceu a seguir a um convite que a Marcela lhe fez.
Sobre ele viu também um céu muito azul, talvez de um matiz mais claro do que o costume. E o mais estranho de tudo é que não avistava o sol. Daí talvez o azul suave do céu.
Foi então que a sua mente despertou para uma outra realidade. Aliás, já notara antes de chegar ao vale. Era precisamente a leveza dos seus movimentos, como se a influência da pressão atmosférica quase não se fizesse sentir. O todo que era ele resumia-se agora só à alma?
Então... tinha chegado ao outro lado?
Boa pergunta para nenhuma resposta. Mas antes que se angustiasse com aquele mistério que o envolvia, acabou por ter uma resposta inesperada. De repente, o vale mostrou uma coisa. Homens e mulheres que passeavam em pequenos grupos entre as plantas herbáceas e as árvores. Elas vestiam túnicas brancas e eles túnicas azuis, estas últimas de cor mais intensa que o azul celeste do seu céu sem sol.
Começou a sentir-se inquieto. Tudo o que os olhos estavam a alcançar nada tinha a ver com ele. Assim parecia. E aquilo não fazia sentido. Ou fazia?
Foi então que reparou estar vestido como os outros homens que observou à distância.
«Sentes-te confuso, não sentes?»
«Achas que sim?»
«Então não estás confuso.»
«Não sei explicar o que sinto. Faltam-me as palavras.»
Virou-se para ela. Só então reparou na suavidade e beleza do seu rosto. Os contornos do resto do corpo também complementavam o que vira no rosto da mulher a quem perguntou se era um anjo. Mas faltavam-lhe as asas. Era assim que os anjos apareciam nos quadros pintados pelos pintores célebres e por todos os outros, talvez com valor, que não passaram do anonimato.
«Onde estou? Quem é toda esta gente vestida com trajes esquisitos e porque estou também vestido como eles?»
«De momento não te posso dizer.»
«E tu, diz-me, afinal quem és?»
«Já disse. Sou a Marcela. Não era o que querias?»
«Não percebo, Marcela.»
«Olha, chegaste finalmente ao outro lado da porta. Como lhe chamas. Sempre desejaste saber o que se passava por cá. E aqui tens a resposta. Observa e absorve tudo o que vês.»
«É... é só esta simplicidade? Um campo verde com árvores e pessoas a passearem pelo verde. Parece que formam grupos. Homens e mulheres. Ignoram-se como se fossem cegos.»
«Já disse. Sou a Marcela. Não era o que querias?»
«Não percebo, Marcela.»
«Olha, chegaste finalmente ao outro lado da porta. Como lhe chamas. Sempre desejaste saber o que se passava por cá. E aqui tens a resposta. Observa e absorve tudo o que vês.»
«É... é só esta simplicidade? Um campo verde com árvores e pessoas a passearem pelo verde. Parece que formam grupos. Homens e mulheres. Ignoram-se como se fossem cegos.»
A expressão do rosto da Marcela não mostrou qualquer sinal de pista.
«Vamos aproximar-nos?»
«Sim.»
Ela caminhou na direção do grupo mais próximo e ele seguiu-a.
«E tu?»
«Lembras-te do conflito que estavas a ter com a dama de negro e que, segundo admites, queria roubar-te a alma?»
«Se me lembro, Marcela! A bruxa desistiu.»
Não deu por qualquer reação às suas palavras.
«Mas diz-me de uma vez por todas. És um anjo?»
«Mais ou menos, para ti. Faltam apenas as asas para teres o quadro certo.»
«Não brinques. Em que ficamos?»
Já estavam junto ao grupo. Três mulheres e dois homens. Na altura ele viu-os sentados no chão coberto de relva. Parecia que se preparavam para a merenda. Só faltava a dita cuja.
«Não falam uns com os outros.» Confirmou.
«Sim, tens razão. Mas repara nos rostos. Resplandecem de felicidade.»
Comprovou que aquela felicidade que os rostos denunciavam era estranhamente monótona. Comportavam-se como autómatos.
«Vamos aproximar-nos?»
«Sim.»
Ela caminhou na direção do grupo mais próximo e ele seguiu-a.
«E tu?»
«Lembras-te do conflito que estavas a ter com a dama de negro e que, segundo admites, queria roubar-te a alma?»
«Se me lembro, Marcela! A bruxa desistiu.»
Não deu por qualquer reação às suas palavras.
«Mas diz-me de uma vez por todas. És um anjo?»
«Mais ou menos, para ti. Faltam apenas as asas para teres o quadro certo.»
«Não brinques. Em que ficamos?»
Já estavam junto ao grupo. Três mulheres e dois homens. Na altura ele viu-os sentados no chão coberto de relva. Parecia que se preparavam para a merenda. Só faltava a dita cuja.
«Não falam uns com os outros.» Confirmou.
«Sim, tens razão. Mas repara nos rostos. Resplandecem de felicidade.»
Comprovou que aquela felicidade que os rostos denunciavam era estranhamente monótona. Comportavam-se como autómatos.
«Não quero ser como eles!»
«Ninguém te obriga, Pedro.»
Seria?
Nunca imaginou a felicidade vista sob esse prisma. A não ser que eles falassem telepaticamente. Mas nem sequer davam as mãos, trocavam olhares inflamados, ou abraçavam-se.
«Que esperavas então?»
«Que esperavas então?»
Leu-lhe o pensamento.
«Mais. Não sei. Certamente tudo menos isto. Parecem fantasmas sem correntes. Mas algo os prende. Posso ir falar com eles?»
«É escusado. Eles não te veem.»
«Será que estão num mundo paralelo?»
«É uma hipótese. Pelo menos para ti.»
«Mais. Não sei. Certamente tudo menos isto. Parecem fantasmas sem correntes. Mas algo os prende. Posso ir falar com eles?»
«É escusado. Eles não te veem.»
«Será que estão num mundo paralelo?»
«É uma hipótese. Pelo menos para ti.»
«Em que ficamos?»
«Parecido com isso.»
«Talvez no céu.»
«O céu não existe.»
«Nem os jardins do Senhor?»
«Também não.»
Voltou aos fantasmas sem correntes.
«E a ti, eles veem-te?»
Ignorou a pergunta.
«Vem comigo. Vou mostrar-te outra coisa.»
«Mas responde-me. Por favor, responde-me!»
«Queres a resposta? Não. Eles também não me veem.»
«Então são cegos.»
«Para nós que estamos noutra dimensão.»
Sentiu que a Marcela mentia. Com que intenção, não sabia.
«Estás a confundir-me.»
«Pois estou.»
«De propósito?»
De repente houve magia! Num momento, o vale que era verde transformou-se numa sala exígua de paredes brancas, sem janelas, apenas ornamentada com um sofá branco com capacidade para três pessoas, uma mesa clara de tampo quadrado, uma coluna em mármore branco e uma cadeira também branca num dos cantos da sala. Tudo iluminado por uma luz muito branca que ele não descobriu donde vinha.
Estremeceu. As dúvidas eram cada vez maiores. A sua mente devia estar completamente invadida e quase dominada. Aquela nova transição não tinha explicação lógica. Era muito comum nos filmes e davam-lhe um nome. Bom, não interessava.
«Como aconteceu esta magia, Marcela?»
Ela não respondeu porque acabava de entrar uma mulher na sala pela porta oposta ao sítio onde eles estavam. Pressentiu que alguma coisa perturbadora ia acontecer.
«Não te aproximes. Só podes vê-la.»
«Mas é a Matilde!»
A última ligação que perdeu só por culpa sua. Traiu-a e ela não suportou essa situação. Morreu com overdose de barbitúricos. Uma morte trágica que o perturbou. Sentiu-se culpado. Mas que fazer? Eram já águas passadas. Não voltavam atrás. E agora ela tinha entrado naquela sala.
Trocaram um olhar intenso e leu muita tristeza nos seus olhos. Depois, voltou-se para a bela Marcela que parecia um anjo sem asas.
«Como apareceu ela aqui?»
«Era a tua namorada?»
«Estávamos casados...»
«Eram felizes?»
«Sim. Até que tudo mudou de um momento para o outro.»
«Porquê?»
«Soube que eu tinha outra relação. Mas foi um acaso. Uma daquelas paixões que perdem a chama rapidamente. Sabes como é?»
«Não. Nunca aconteceu comigo. Explica-me melhor.»
«Talvez no céu.»
«O céu não existe.»
«Nem os jardins do Senhor?»
«Também não.»
Voltou aos fantasmas sem correntes.
«E a ti, eles veem-te?»
Ignorou a pergunta.
«Vem comigo. Vou mostrar-te outra coisa.»
«Mas responde-me. Por favor, responde-me!»
«Queres a resposta? Não. Eles também não me veem.»
«Então são cegos.»
«Para nós que estamos noutra dimensão.»
Sentiu que a Marcela mentia. Com que intenção, não sabia.
«Estás a confundir-me.»
«Pois estou.»
«De propósito?»
De repente houve magia! Num momento, o vale que era verde transformou-se numa sala exígua de paredes brancas, sem janelas, apenas ornamentada com um sofá branco com capacidade para três pessoas, uma mesa clara de tampo quadrado, uma coluna em mármore branco e uma cadeira também branca num dos cantos da sala. Tudo iluminado por uma luz muito branca que ele não descobriu donde vinha.
Estremeceu. As dúvidas eram cada vez maiores. A sua mente devia estar completamente invadida e quase dominada. Aquela nova transição não tinha explicação lógica. Era muito comum nos filmes e davam-lhe um nome. Bom, não interessava.
«Como aconteceu esta magia, Marcela?»
Ela não respondeu porque acabava de entrar uma mulher na sala pela porta oposta ao sítio onde eles estavam. Pressentiu que alguma coisa perturbadora ia acontecer.
«Não te aproximes. Só podes vê-la.»
«Mas é a Matilde!»
A última ligação que perdeu só por culpa sua. Traiu-a e ela não suportou essa situação. Morreu com overdose de barbitúricos. Uma morte trágica que o perturbou. Sentiu-se culpado. Mas que fazer? Eram já águas passadas. Não voltavam atrás. E agora ela tinha entrado naquela sala.
Trocaram um olhar intenso e leu muita tristeza nos seus olhos. Depois, voltou-se para a bela Marcela que parecia um anjo sem asas.
«Como apareceu ela aqui?»
«Era a tua namorada?»
«Estávamos casados...»
«Eram felizes?»
«Sim. Até que tudo mudou de um momento para o outro.»
«Porquê?»
«Soube que eu tinha outra relação. Mas foi um acaso. Uma daquelas paixões que perdem a chama rapidamente. Sabes como é?»
«Não. Nunca aconteceu comigo. Explica-me melhor.»
Com explicar? Ela não ia compreender. Tão certo como ele chamar-se Pedro.
«Então, és um anjo! Estas coisas frívolas não te interessam.»
«A tua mulher cometeu um pecado muito grave. Não teve força para suportar a situação que lhe criaste.»
«A culpa foi toda minha. Eu é que devia estar aqui...»
«E não estás?»
«Então, és um anjo! Estas coisas frívolas não te interessam.»
«A tua mulher cometeu um pecado muito grave. Não teve força para suportar a situação que lhe criaste.»
«A culpa foi toda minha. Eu é que devia estar aqui...»
«E não estás?»
«Só agora.»
«Mais vale tarde do que nunca.»
«Tens razão. Mas não sei como vim aqui parar.»
«Olha, para lá desta sala de purificação que são destinadas à purificação estão os alojamentos das rebeldes. Todas as que infringiram gravemente a lei.»
«Só mulheres?»
«Sim.»
«Coisa estranha! Então e os homens?»
«O teu caso diz respeito a mulheres.»
«Ah sim, compreendo.»
«Mas essa lei de que falaste, quem a fez? Cada pessoa é dona de si.»
Demorou muito tempo a fixar os olhos suplicantes daquela que fora sua mulher. Tinha que fazer qualquer coisa por ela. Por exemplo, podia desobedecer ao anjo sem asas.
«Não podes fazer nada. Ela quebrou todas as regras. Quis saltar para o outro lado.»
«Tentou fugir? Assim, sem mais nem menos?»
«Sim. Foi detida no vale. Aliás, o vale não tinha escapatória possível.»
«Justificou porque queria fugir?»
«Não. Provavelmente queria voltar para ti e bem sabes que é impossível.»
«Nada é impossível.»
«Prova.»
«Talvez possa provar.»
«Se o dizes...»
«Tudo bem. Ou tudo mal. E a maldita dama de negro, que suponho andar por aqui, pode quebrar as regras sem sofrer qualquer sanção?»
«É diferente. Não posso explicar. Não, não anda por aqui. As instruções da outra fação são diferentes das nossas. Querem atrair as pessoas para a sua esfera, quaisquer que sejam as tendências. Não olham a meios, percebes? Aliás, como nós. Se é que posso admitir assim.»
«E que fação é essa?»
«Digamos que o lado contrário aos nossos princípios.»
«Agora percebo. Pelos vistos fui disputado pelas duas partes.»
«Exato. Mas o teu caso é diferente. Vieste ter comigo por conta do teu desejo, mas estás ainda com possibilidade de voltar ao lado de lá.»
«De momento não quero voltar.»
«Desengana-te. A voltares, voltas sozinho.»
«És tu quem me prende...?»
«Não. Alguém acima de mim.»
Tentou compreender. O cerne da questão estava no interesse da dama de negro em seduzi-lo e até dizer-lhe que queria levá-lo consigo. E ele veio mesmo.
«Pelos vistos estou aqui à experiência.»
«Como assim?»
«Tu mesma disseste que me davas uma oportunidade. Que formulasse um desejo. O que está para lá da sala deve mostrar uma dessas oportunidades. Os passeios estranhos por aquele vale. Agradeço, mas digo que não. Não é viver. Eles estão numa espécie de estado de coma, Marcela. Depois, aqui não posso falar com a Matilde e tínha tanta coisa para dizer-lhe! Quiçá para recordar os tempos em que éramos felizes. Quiçá para tanta coisa! Quando chegar a minha hora não me tragam para aqui, nem para o vale verde.»
«Tens razão. Mas não sei como vim aqui parar.»
«Olha, para lá desta sala de purificação que são destinadas à purificação estão os alojamentos das rebeldes. Todas as que infringiram gravemente a lei.»
«Só mulheres?»
«Sim.»
«Coisa estranha! Então e os homens?»
«O teu caso diz respeito a mulheres.»
«Ah sim, compreendo.»
«Mas essa lei de que falaste, quem a fez? Cada pessoa é dona de si.»
Demorou muito tempo a fixar os olhos suplicantes daquela que fora sua mulher. Tinha que fazer qualquer coisa por ela. Por exemplo, podia desobedecer ao anjo sem asas.
«Não podes fazer nada. Ela quebrou todas as regras. Quis saltar para o outro lado.»
«Tentou fugir? Assim, sem mais nem menos?»
«Sim. Foi detida no vale. Aliás, o vale não tinha escapatória possível.»
«Justificou porque queria fugir?»
«Não. Provavelmente queria voltar para ti e bem sabes que é impossível.»
«Nada é impossível.»
«Prova.»
«Talvez possa provar.»
«Se o dizes...»
«Tudo bem. Ou tudo mal. E a maldita dama de negro, que suponho andar por aqui, pode quebrar as regras sem sofrer qualquer sanção?»
«É diferente. Não posso explicar. Não, não anda por aqui. As instruções da outra fação são diferentes das nossas. Querem atrair as pessoas para a sua esfera, quaisquer que sejam as tendências. Não olham a meios, percebes? Aliás, como nós. Se é que posso admitir assim.»
«E que fação é essa?»
«Digamos que o lado contrário aos nossos princípios.»
«Agora percebo. Pelos vistos fui disputado pelas duas partes.»
«Exato. Mas o teu caso é diferente. Vieste ter comigo por conta do teu desejo, mas estás ainda com possibilidade de voltar ao lado de lá.»
«De momento não quero voltar.»
«Desengana-te. A voltares, voltas sozinho.»
«És tu quem me prende...?»
«Não. Alguém acima de mim.»
Tentou compreender. O cerne da questão estava no interesse da dama de negro em seduzi-lo e até dizer-lhe que queria levá-lo consigo. E ele veio mesmo.
«Pelos vistos estou aqui à experiência.»
«Como assim?»
«Tu mesma disseste que me davas uma oportunidade. Que formulasse um desejo. O que está para lá da sala deve mostrar uma dessas oportunidades. Os passeios estranhos por aquele vale. Agradeço, mas digo que não. Não é viver. Eles estão numa espécie de estado de coma, Marcela. Depois, aqui não posso falar com a Matilde e tínha tanta coisa para dizer-lhe! Quiçá para recordar os tempos em que éramos felizes. Quiçá para tanta coisa! Quando chegar a minha hora não me tragam para aqui, nem para o vale verde.»
«Porquê?»
«Que mundo é este que manieta as mentes das pessoas?»
«Referiste "quando chegar tua hora"?»
«Não me digas que já chegou!»
«Talvez.»
«E elas?, aquelas pessoas do vale?»
«Estão mortas. Que podem desejar mais senão aquele estado de felicidade?»
«Que mundo é este que manieta as mentes das pessoas?»
«Referiste "quando chegar tua hora"?»
«Não me digas que já chegou!»
«Talvez.»
«E elas?, aquelas pessoas do vale?»
«Estão mortas. Que podem desejar mais senão aquele estado de felicidade?»
«Rica felicidade. Não falam. Não sorriem. Nem sequer se beliscam.Que fizeram de mal para terem aquela felicidade?»
«Nada. Ou melhor, morreram.»
«E as outras?»
«Nem quero pensar nas outras.»
Queria que acreditasse naquela treta. Que afinal não havia outra vida do lado de cá, se não aquela.»
«Estou desiludido, Marcela.»
«Olha, Pedro, já nada te liga a esta mulher. Apenas ficaram as recordações.»
«Como sabes? E as outras opções? Será que uma delas diz respeito aos Jardins do Senhor? E onde estão esses jardins que, de certeza, nada se parecem com os campos verdes do vale onde estivemos?»
«Só posso dizer-te que esses jardins não estão neste vale.»
O vale era uma situação de passagem. Ninguém sabia. Ele sabia?
«Mas devias saber.»
«Será?»
Aquele anjo sem asas estava a desanimá-lo. Começava a não acreditar na Marcela.
«Estás a esconder qualquer coisa.»
«Desculpa. Não te posso dizer mais nada.»
«Porquê?»
Ela tinha olhado para a porta por onde entrara a mulher que o olhara com uma expressão de grande tristeza. Parecia estar à espera de mais alguém. Bingo! E estava mesmo. A dama de negro era agora a nova personagem em cena e ia tomar a palavra.
«Vamos acabar o jogo, Pedro?»
«Não! Não jogues!»
O grito tinha partido da companheira de outros tempos.
«Matilde!»
Levado por um impulso correu para junto dela e abraçou-a.
«Não me levam a alma! Não a negociei. Juro.»
«Nada. Ou melhor, morreram.»
«E as outras?»
«Nem quero pensar nas outras.»
Queria que acreditasse naquela treta. Que afinal não havia outra vida do lado de cá, se não aquela.»
«Estou desiludido, Marcela.»
«Olha, Pedro, já nada te liga a esta mulher. Apenas ficaram as recordações.»
«Como sabes? E as outras opções? Será que uma delas diz respeito aos Jardins do Senhor? E onde estão esses jardins que, de certeza, nada se parecem com os campos verdes do vale onde estivemos?»
«Só posso dizer-te que esses jardins não estão neste vale.»
O vale era uma situação de passagem. Ninguém sabia. Ele sabia?
«Mas devias saber.»
«Será?»
Aquele anjo sem asas estava a desanimá-lo. Começava a não acreditar na Marcela.
«Estás a esconder qualquer coisa.»
«Desculpa. Não te posso dizer mais nada.»
«Porquê?»
Ela tinha olhado para a porta por onde entrara a mulher que o olhara com uma expressão de grande tristeza. Parecia estar à espera de mais alguém. Bingo! E estava mesmo. A dama de negro era agora a nova personagem em cena e ia tomar a palavra.
«Vamos acabar o jogo, Pedro?»
«Não! Não jogues!»
O grito tinha partido da companheira de outros tempos.
«Matilde!»
Levado por um impulso correu para junto dela e abraçou-a.
«Não me levam a alma! Não a negociei. Juro.»
Virou-se para a dama de negro.
«Vou regressar. E a Matilde vai comigo!»
«Não me faças rir, cretino. É o jogo que vai decidir quem vai e quem fica.»
«Não me faças rir, cretino. É o jogo que vai decidir quem vai e quem fica.»
Agitou-se. O que mais queria era deitar as mãos ao pescoço delicado da "esbelta" megera. Preferiu virar-se para a Marcela.
«E tu, qual é o teu papel nisto?»
Como resposta só viu a expressão ambígua do seu rosto.
«Limita-se a obedecer-me. Foi recuperada da casa das rebeldes.» Disse a dama de negro. «Vamos lá então ao nosso jogo.»
A horrorosa e esbelta dama de negro riu de escárnio e ordenou à subalterna para trazer o tabuleiro com as peças pretas e brancas.
«Falta uma cadeira para o nosso amigo, Marcela. Não te esqueças de a trazer.»
«Amigo?»
«Como queiras, estúpido. Até podias ser meu amigo.»
«Nunca!»
«Tens a certeza?»
«Bruxa!»
«É certo. Sou aquilo que me queres chamar. Mas com poder absoluto, cretino.»
Pouco depois, os dois adversários, já frente a frente, começaram a colocar as peças sobre os quadrados. Ele fazia-o com mais lentidão, parecendo ganhar tempo. Precisava de descobrir uma forma de escapar às garras da dama de negro que queria a sua alma. Ideias, precisava de boas ideias. Entretanto, o jogo já tinha começado. As primeiras jogadas nada trouxeram de desequilíbrio para um ou para o outro lado. Talvez fossem jogadores dignos um do outro.
«Os cavalos estão trocados com os bispos.» Disse a dama de negro.
«Está tudo no sítio. E o jogo já começou. Cheque à rainha.» Replicou o adversário.
Como resposta só viu a expressão ambígua do seu rosto.
«Limita-se a obedecer-me. Foi recuperada da casa das rebeldes.» Disse a dama de negro. «Vamos lá então ao nosso jogo.»
A horrorosa e esbelta dama de negro riu de escárnio e ordenou à subalterna para trazer o tabuleiro com as peças pretas e brancas.
«Falta uma cadeira para o nosso amigo, Marcela. Não te esqueças de a trazer.»
«Amigo?»
«Como queiras, estúpido. Até podias ser meu amigo.»
«Nunca!»
«Tens a certeza?»
«Bruxa!»
«É certo. Sou aquilo que me queres chamar. Mas com poder absoluto, cretino.»
Pouco depois, os dois adversários, já frente a frente, começaram a colocar as peças sobre os quadrados. Ele fazia-o com mais lentidão, parecendo ganhar tempo. Precisava de descobrir uma forma de escapar às garras da dama de negro que queria a sua alma. Ideias, precisava de boas ideias. Entretanto, o jogo já tinha começado. As primeiras jogadas nada trouxeram de desequilíbrio para um ou para o outro lado. Talvez fossem jogadores dignos um do outro.
«Os cavalos estão trocados com os bispos.» Disse a dama de negro.
«Está tudo no sítio. E o jogo já começou. Cheque à rainha.» Replicou o adversário.
«Não é preciso dizeres.»
«Eu sei, mas apeteceu-me dizer só para te irritar. Vem verificar, Marcela, se ele está a fazer batota.»
No momento em que esta se debruçou sobre o tabuleiro, o homem aproveitou para fazer mais uma jogada. Curiosamente não avançou duas casas com a torre. Seria uma má jogada. Empurrou, sim, a Marcela contra a serviçal de Belzebu e as duas estatelaram-se no chão.
«Matilde, temos que fugir deste maldito inferno!»
Se aquilo não era o inferno, devia estar perto.
«Eles vão fugir!» exclamou a dama de negro. «Corre atrás deles, Marcela.»
«Mas...»
«Obedece! Senão já sabes como é. Voltas para lá.»
No momento em que esta se debruçou sobre o tabuleiro, o homem aproveitou para fazer mais uma jogada. Curiosamente não avançou duas casas com a torre. Seria uma má jogada. Empurrou, sim, a Marcela contra a serviçal de Belzebu e as duas estatelaram-se no chão.
«Matilde, temos que fugir deste maldito inferno!»
Se aquilo não era o inferno, devia estar perto.
«Eles vão fugir!» exclamou a dama de negro. «Corre atrás deles, Marcela.»
«Mas...»
«Obedece! Senão já sabes como é. Voltas para lá.»
Sentia-se mais leve que uma pena e ela não lhe ficava atrás. Mas ao longe, a Marcela parecia encurtar a distância a cada momento.
«Ela vai apanhar-nos.»
«Se assim for, enfrento-a. Nada receies.»
Um pensamento estranhou apossou-se dele. Algo lhe dizia que nada ia acontecer de mal se a Marcela os alcançasse.
«Deixa-me aqui. Tu corres mais depressa. Salva-te, meu amor!»
«Nunca, Matilde! Não volto a cometer o mesmo erro.»
Entretanto, como que por encanto, abriu-se um círculo luminoso na sua frente. A luz era tão intensa que lhes feria a vista. Podia notar-se que rodava.
«Um portal!»
Era a salvação deles.
«O que é isso?»
«Uma porta para outro mundo.»
«E o que está para lá? Tenho medo...»
«Não tenhas, Matilde. Dá-me a mão. O que nos espera do outro lado não pode ser pior do que aquilo que podia acontecer naquela sala porque era mais que certo que eu ia perder o jogo. Até o vale verde com todos aqueles mortos-vivos a errarem pelos campos é uma melhor opção.»
«Deixem-me ir também!»
Era a Marcela que entretanto tinha chegado junto dos fugitivos. Olhou frontalmente para ela. Foi um momento. Logo a seguir acenou com a cabeça e fez-lhe um sinal para os seguir.
«Tenho medo, amor!»
«Não podemos perder tempo.»
«E se...?»
«Vem, Matilde! Depressa!»
E mergulhou no círculo que tinha uma luz intensa.
«Finalmente acordaste!»
Demorou a ficar consciente.
«Ah... és tu.»
Olhou em volta.
«A Matilde?»
«Quando recuperei os sentidos não a vi. Mergulhei logo a seguir a ti. Ela estava indecisa...»
«Estava escrito.» Conformou-se.
«Nada está escrito. Nós é que "escrevemos" o que queremos fazer e o que não queremos.»
«Portanto, não acreditas também no livre arbítrio.»
«O que é isso?»
«No livre arbítrio tudo acontece por acaso.»
«Em certas coisas, talvez.»
«Esta conversa dava muito pano para mangas. O mais importante de momento é saber o que vamos fazer agora. Pelos vistos voltámos ao vale.»
«Também creio que sim.»
A situação era complicada. De um momento para o outro a dama de negro podia descobri-los.
«Mas este vale não é o mesmo!»
«Como assim, Marcela?»
«Repara, o vale não é verde. E a vegetação é rasteira e está seca.»
«Tens razão. E também há outra coisa. Repara no horizonte.»
«O Sol! E o céu tem nuvens...»
Desta vez tinham que admitir que a mão do livre arbítrio, após o mergulho no portal, levara-os para um mundo desconhecido.
«Repara, Marcela, se seguirmos na direção do sol, que parece estar a pôr-se no horizonte, vamos encontrar uma planície. Achas bem...?»
«Se adivinhei o teu pensamento, queres deixar o vale e seguir pela planície.»
«Mas tu não lês os meus pensamentos?»
«Claro que não. Isso só aconteceu antes. Naquele vale todo coberto de verde.»
«Conta-me por que motivo servias aquela bruxa da dama de negro?»
«É uma longa história. Como tu, também um dia fui parar àquele vale. Ao contrário do que te aconteceu, fui ao encontro de um grupo que estava em fuga, depois de ter sido subjugado pela megera. Mas foi sol de pouca dura. Fomos apanhados dias depois. Nunca mais soube deles.»
O resto já sabia. Ficou sujeita aos caprichos da dama de negro até que ele apareceu e depois aconteceu o que aconteceu.
«Afinal quem era ela?» perguntou.
«Um ente ao serviço de Satã.»
«Agora estamos livres. Vamos então para ocidente.»
«Para ocidente?»
«É onde se põe o sol.»
«Mas tu sabes onde raio fomos parar, Pedro?»
«Só sei uma coisa. Estamos algures num outro universo.»
«E agora o que será de nós?»
«Olha, vamos por aí. Ou não queres a minha companhia?»
«Vou pensar nisso» disse, sorrindo. «Mas vendo bem, não tenho outra hipótese. E tive muita sorte em encontrar-te.»
«Ainda és mais bela quando sorris.»
Pararam e ficaram frente a frente.
«Que foi, Pedro?» perguntou ela.
«E se tudo isto não passar de um sonho?»
«Quem sabe? Olha, dá-me um beijo.»
E ele deu-lhe um beijo. Um beijo longo.
«E agora?»
«Agora, abraça-me. Se me beijaste num sonho da forma como me beijaste, acredito que a Branca de Neve era prima dos sete anões!»
«Também sabes essa da Branca de Neve?»
Ela voltou a sorrir e ele abraçou-a.
«E então?»
«Então temos que encontrar um abrigo para passarmos a noite.»
E encontraram um abrigo onde dormiram uma pequena parte da noite até que amanheceu com um céu muito azul e um astro-rei a erguer-se, supostamente, no oriente.
«Já alguma vez te tinha acontecido...?»
«De que estás a falar?»
«Do que aconteceu.»
«Se eu fosse um anjo não tinha sentido...»

Sem comentários:
Enviar um comentário