Tenho ao meu lado um copo meio de vinho que já não rodopia. E como não rodopia as minhas ideias ainda estão nebulosas. Lógico. Então vou beber mais uma pinguinha. O vinho é bom.
Estou sentado no chão. Há um gravador na minha frente. A fita da cassete vai-se desenrolando e enrolando, mantendo a velocidade e registando as palavras ditas que se esquecem no momento.
O que me aconteceu há meses na rua, quando fui obrigado a baixar-me para apanhar uns objetos sem o mínimo interesse deixa-me perplexo. Não entendo. Estou a jogar na penumbra não sei com quem. E, para ver melhor o problema, é altura de molhar outra vez a goela. Vou encher o copo porque estou com muita sede. Não sou alcoólico, nem nunca fui. Mas hoje algo me impele para a bebida.
Bom, vai ficar aqui a garrafa. No chão. Ao lado do copo. Mesmo à mão. Este caso é melindroso e precisa de iluminação. Até acho piada porque parece que eu voltei aos tempos antigos. Começo a sentir-me toldado. Tento concentrar-me. Não sei porquê, mas lembrei-me do Mário, um contador de histórias e da sua própria história. O Mário estava habitualmente no interior do snack da Sacor com um copo meio de água, duas chávenas vazias e tinha a Patrícia na sua frente, com olhar distante, alheada do que se passava à sua volta, inclusivamente dele (1). Mas agora a situação é outra. Sou e não sou o Mário. Não vejo gaivotas na minha frente e não tenho alucinações, apesar de ter bebido alguns copos deste vinho com grau enganador.
Tudo está bem, obrigado. Vou beber mais um copo.
Está a fazer um ano que fui a Fátima. Recordo-me desse dia em que tive uma atração especial pelo túmulo do Francisco e ainda hoje não sei explicar porquê. Mas que houve atração, houve. Fiquei pregado ao solo, a olhar, a pensar no destino implacável que arrebatou duas crianças no espaço de um ano e que deixou uma terceira que ainda hoje está viva.
Senti-me fascinado. Tudo parou à volta de mim e fiquei a olhar, a olhar. Estático. Preso ao chão. Por um momento, longe do mundo materialista que me escravizava. Por um momento sublime, ligado àquele silêncio quase hipnótico que santificava o local.
Coincidência ou não, está a fazer um ano que começaram a acontecer fenómenos insólitos, alguns muito desagradáveis. Foram momentos que ultrapassei com dificuldade. Hoje parece que quase tudo passou.
Que certezas tenho?
Estou sentado no chão, a falar, sem as gaivotas na minha frente, mas ainda inibido. Ainda lúcido, estou a vencer os dois eus. Devo ser um terceiro. Sinto-me extremamente positivo. Continuo a ver as cassetes na minha frente. Está tudo normal. E se alguém, mais tarde, ouvir esta gravação e as outras que fiz, deve pensar que há uma diferença abissal. Hoje estou frio, muito calculista. Não me sinto triste. Estou a beber. Simplesmente a beber. A esconder o desejo de alcançar o que não posso ter. E o que não posso ter? Talvez mais cortinas para descerrar.
É inevitável acontecer. Não consigo evitar, por mais que tente. Sinto que estás a chegar a mim. Sabes? Claro que não podes saber aí desse lado, do azul constelado do céu. Tenho saudades da tua voz. Do teu sorriso triste. Dos teus olhos também tristes. Nunca consegui saber a causa da tua morte. Se sofreste. Se o teu último pensamento foi dirigido para mim. Tudo isto porque Deus não fala comigo. Há muito. Ou nunca falou. Não interessa. Ele é que sabe porquê. Ou então está enganado.
Se, ao menos, soubesse que estavas bem! Se pudesse fazer:
“Tchim tchim!”
(Vibração do copo depois de bater na garrafa...)
Quando te vi pela primeira vez estavas vestida de branco. Uma trança caía pelas tuas costas. Eras muita jovem e eu também. Apaixonei-me logo por ti. Mas o mundo dá muitas voltas.
A inspiração que corre no meu rio de águas turvas deixa que veja o seu fundo de calhaus rolados, testemunhos de uma vida longa, quase eterna comparada com a vida dos humanos. Será que sou quem julgo ser, ou então sigo os passos daquele que já fui?
A porta, para lá qual imagino que estejas, existe. Está encravada num muro de cristal tão puro, tão fino que se torna invisível aos nossos olhos de simples mortais. Esse muro separa dois mundos. O lado de cá, onde as coisas acontecem e estou sempre, e o lado de lá, o tal mundo invisível, tão negro como a matéria negra e com os poderes dessa matéria que controla a expansão do universo, onde tu vives agora, algures.
Parece que estou a ver-te no Passeio de Portalegre. O teu vestido branco. O cabelo castanho em rabo-de-cavalo. O olhar triste. Tudo me parece real. Não me conheceste. Nesse ano não deste por mim. Dois anos mais tarde fizemos, de mãos dadas, a subida à Senhora da Penha.
Estou a sentir as tuas mãos macias. Já foi há tanto tempo e ainda não me esqueci de ti!
Como estavas bonita naquela noite em que fomos ao cinema Crisfal!
Apareceste pintada e fiquei deslumbrado. O cabelo, habitualmente em rabo-de-cavalo estava apanhado atrás naquela noite e fazia-te mais velha. Olhaste para mim, admirada com a minha expressão, mas nada te disse nem tu me perguntaste sobre o que o meu rosto deixava transparecer. Encantamento. Magia. Não sei. Fiquei bloqueado.
Mais um copo. Este vinho está gostoso.
Neste momento estou a ouvir uma música que me apetece cantar. Perfídia. E estou mesmo a cantar, com versos improvisados. Hoje tudo acontece. A palavra "perfídia" quer dizer traição, falsidade. Da minha parte, traição; e da tua parte, falsidade.
O teu segredo está bem escondido.
Esta noite de domingo tem sido uma noite estranha. Talvez esteja a acontecer magia.
Não consigo recordar-me como foi. De repente dei comigo a declamar o Fel de José Duro, o infeliz poeta que falava com a morte. Parecia até já conhecer os versos mórbidos. Não é verdade. Tinham-me oferecido o livro e limitei-me a guardá-lo numa das três estantes que tenho em casa. E sem a mínima justificação fui buscá-lo nesta noite.
Ontem encontrei-me com ele. Fomos um só. Não posso explicar de outra maneira esta simbiose.
Tenho o dobro da idade que ele tinha quando morreu, zangado com a vida que lhe foi madrasta.
Parece que terminei a longa travessia do deserto. A toda a velocidade, tento apanhar aquele comboio que me fugiu no primeiro apeadeiro. Antes, aí vai a minha homenagem ao poeta que só falava da morte. Um soneto seu...
O MEU CREPÚSCULO
As palavras cruéis que o meu relógio fala
Num gélido estertor, num íntimo cansaço,
Lembram-me o gargalhar dum mórbido palhaço
Que roubasse a ironia ao ventre duma vala...
Encontro um não sei quê na sua voz estranha,
Quando, por essa noite, a apunhalar-me o sono,
Me diz pausadamente: - «És filho do Abandono,
Hás-de sofrer a vida até que a morte venha».
Mas gosto de ouvir, e, às vezes, tenho pena
Que a sua predição, que tanto me envenena,
Perturbe a minha alcova apenas um instante...
Porque julgo ver nele uma alma a soluçar
- Mercê do mau Destino -, a mágoa extravagante
Que sofre do seu mal por não poder chorar!
Neste momento revejo uma fotografia em que estamos sentados no banco da Corredoura dedicado a esse infeliz poeta. Estou a olhar para ti. Pareces pensativa. Talvez já estejas a adivinhar o futuro que te espera.
Tem sido uma noite muito estranha!
Acredito que o poeta está presente e parece que formamos, em certos momentos, um só. Terá talvez apadrinhado o desencontro que tu e eu tivemos na Terra.
Sinto-me demasiado embriagado para a quantidade de vinho que bebi. A pulsação está acelerada. Não sei o que se passa comigo. Quero manter os olhos abertos e eles teimam em fechar-se. Não entendo esta vontade irresistível de fechar os olhos. Parece que estou enfeitiçado. Talvez que exista uma qualquer poção diabólica no vinho.
Vou à asa de banho. Este vinho é diurético. E tem magia.
Vejo-a na minha frente e sei que já não existe!
«Tenho que ir embora...»
«Já?»
Fiz-lhe um gesto para esperar.
«Não demoro.»
O vinho é muito diurético. Demorei uma eternidade a urinar.
«Olha...»
Já não está presente. Nunca esteve.
O vinho tem mesmo uma poção diabólica. Nunca imaginei ser capaz de fazer o que fiz. Traí-a. Mas não foi com a Rosa Maria da rua de S. Bento. Juro. Só aconteceu mais tarde com outras mulheres.
É fatal tentar afastar-me. Não consigo enfrentar a verdade. Fujo do efeito fatal daquele veneno etílico e corro a toda a velocidade para apanhar o comboio que perdi.
Viu-o, do cimo das escadas. Era um comboio igual a outros que tinha visto, mas foi há muitos anos. Estava parado na estação, à espera de passageiros retardatários. Sem saber porquê, ocorreu-lhe a ideia que não devia abandonar aquele ponto de observação. A escadaria era longa, mas as pessoas que iniciavam a descida não tinham pressa porque sabiam que o comboio não partia sem elas. E quem eram elas? Certamente pessoas importantes porque tinham o lugar marcado numa viagem que devia estar prestes a começar. O comboio continuava parado na estação. Ia partir em breve. Era fatal acontecer a partida. Ficou indeciso, como acontecia no tempo das paixões que davam forte e ardiam, depressa, feitas supernovas que gastavam, num ápice, todo o seu combustível. Depois nada restava senão algo nebuloso. Sabia que aqueles pensamentos eram impostos e que resultavam de uma interferência que também trouxe aquele comboio fora da época.
Reparou que a locomotiva funcionava a vapor, a partir do carvão que o fogueiro ia deitando na fornalha. Via-se o fumo erguer-se no ar, em rolos sucessivos e ritmados. Pouco faltava para ser dado o sinal da partida. Ou então o comboio ia partir sem sinal do homem da estação.
«Também está à espera?»
«Desculpe, não percebi.»
Não sabia se as frases eram interferências.
Havia lugar para todos os passageiros. Talvez fosse um dia especial. Um dia diferente. Daqueles dias que acontecem poucas vezes. Era lógico? Era lógico ser um dia diferente e também ter lugar sentado?
Olhou em volta. Na verdade, não havia uma pessoa de pé. E lá fora não ficara ninguém. Se ficasse, veria o comboio deslocar-se da esquerda para a direita. Segundo os iluminados, era o rumo tomado para o futuro. Neste caso estava a ver a locomotiva do seu lado esquerdo. Assim, à partida, o comboio deslocava-se da direita para a esquerda, para o passado. Era intrigante sentir o comboio rumo ao seu tempo.
E qual era o seu verdadeiro tempo? Boa pergunta. Dava para especular.
A primeira coisa que viu foi um estreito corredor a meio. Deu alguns passos e foi olhando para a esquerda e para a direita. Viu também pequenas cabinas com bancos corridos, em oposição. Achou que era uma boa oportunidade para as pessoas ficarem frente a frente e assim poderem travar conhecimento.
Sempre não houve sinal de partida. Entregue às suas cogitações, sentiu um esticão forte do arranque do comboio. A gare foi ficando para trás e ele foi seguindo em frente, ao mesmo tempo que espreitava para o interior das cabinas. Viu em todas dois bancos corridos, em madeira. Cada um deles era ocupado por três pessoas. Não se preocupou. Ainda havia muito corredor para percorrer e tinha a certeza de existir um lugar para si. Quem organizou a viagem certamente que contou com ele. Doutra fora não teria avistado o comboio do alto das escadas, parecendo convidá-lo para descer.
Tinha razão. Lá estava o seu lugar, junto a uma das tais janelas de guilhotina. Tal como gostava. Tudo feito sem ter sido descurado o mínimo pormenor. Devia agradecer. Não sabia a quem. Ficava para depois. Quando as ideias ficassem menos nubladas.
Instalou-se. Num primeiro golpe de vista concluiu que não conhecia ninguém que estava sentado na sua frente nem aos lados. Olhou para lá dos vidros. Só viu o negro para lá deles. Não viu uma única luz no exterior. Não havia estações. Não havia ruídos. Era isso. E as pessoas não falavam. Talvez por se desconhecerem. Ou porque não queriam. Ou por outra razão. Por alguma razão seria, porra! E não era tudo. De facto não ouvia o mínimo ruído resultante da fricção das rodas nos carris, nem vindo das vozes daqueles viajantes que, à primeira vista, pareciam autómatos.
Aquela descoberta perturbou-o um pouco. Nunca devia ter cedido à curiosidade que o levou a entrar no comboio que não era do seu tempo. Era urgente procurar uma explicação.
Coçou a cabeça, indeciso. Devia estar a sonhar. Não se lembrava como fora ter ao cimo das escadas. O antes não tinha existido para ele.
Fez uma descoberta das arábias. Aquela estação tinha mais a ver com o metropolitano, pois desceu por escadas, embora não fossem escadas rolantes.
Consultou o relógio. Apenas viu um fundo cinzento.
«Mau sinal!» admitiu, admirado.
Resolveu fazer uma experiência com o jovem do rosto macilento que estava na sua frente. Dava-lhe aí uns vinte e três, vinte e quatro anos. Não mais que isso.
Primeiro, fez-lhe um ligeiro aceno. Na segunda tentativa, sorriu. Era um bom começo. Ele tinha fixado o olhar em si.
«Diz-me as horas, por favor?»
«São onze e dez.» Respondeu, muito sério.
Caso curioso. O homem novo tinha um relógio de bolso preso por uma corrente prateada. Chamavam-lhe cebola noutros tempos. Agora não se usava.
Porque é que chamavam cebola? Bom, não interessava. Pensando na pergunta que fez ao homem do rosto macilento, achou por bem justificar-se.
«Muito obrigado. Acontece que o meu relógio não tem pilha e por isso fiz a pergunta. Ou melhor: a pilha gastou-se.»
«Pilha?»
Mostrou-lhe o relógio de pulso. Um Swatch que não era de coleção. Trouxe-lhe um amigo da América. Que Swatch? A resposta foi só um gesto de estender o braço.
«Lá me esqueci do relógio outra vez!»
O jovem passou as mãos pelo rosto, cofiou o bigode e depois olhou para o chão da carruagem. Instintivamente acompanhou o seu olhar e reparou nos sapatos que tinha calçados. Fora de moda. Já agora o fato. O casaco era cinzento-escuro, de bandas estreitas. As calças tinham dobras. Quanto ao boné estava puxado para a testa e era também cinzento, a condizer com a cor das calças.
Reparou então que a mulher à sua direita olhava fixamente na sua direção. Parecia trespassá-lo com o olhar. Devia ser um daqueles tipos de mulher fatal. Nada feia. Vestia calças vermelhas e t-shirt preta. O decote era generoso, dos tais que mostravam quase tudo. E o resto de tudo imaginava-se.
Meteu também conversa com ela.
«Pode dizer-me para onde vai este comboio?»
Continuou a olhar fixamente para ele, mas acabou por falar.
«Desculpe... o senhor disse a palavra "comboio"?»
«Pois foi, minha senhora.»
«Mas qual comboio?»
Queria baralhá-lo?
A mulher tinha sorrido em tom irónico.
«Claro que estou a referir-me a este comboio vetusto!»
«Está a brincar comigo. Que comboio é esse de que está a falar? Que eu saiba, aqui não passam comboios...»
Também lhe pareceu que não, pois reparou que estava a caminhar empedrada com paralelepípedos graníticos.
Consultou o relógio. Eram dez horas da manhã e estava e entrar num café. Estranhou. Estava quase vazio. Apenas viu, numa mesa a meio, e mesmo no alinhamento do balcão, que se estendia em profundidade, na perpendicular à linha das montras, uma mulher.
«Coisa estranha!»
A mulher vestia de vermelho (2), usava um chapéu branco de abas largas e escondia os olhos com óculos escuros, espelhados.
«A mulher de vermelho!»
Tinha más recordações dessa mulher.
Curioso. Parecia olhar para ele. Não. Talvez que fosse só impressão sua. Aqueles óculos espelhados, de lentes quase circulares, davam para admitir todas as hipóteses e mais algumas.
Ficou especado a olhar para ela, mesmo antes de chegar ao balcão. A mulher deixava transparecer um ar distinto. Demasiado distinto para aquele vulgar café de praia. Além do mais, já tinha começado a época balnear e ninguém vestia de uma forma tão elegante naquele sítio, por ser despropositado. Era estranho.
Hesitou entre ficar virado de costas para a mulher ou então enfrentá-la. Estava deveras intrigado. Talvez por isso ficou virado para ela. Enquanto esperava pelo café foi enfrentando, com dificuldade, o seu olhar, tentando, em resposta, fitá-la também, mas com um certo ar de provocação. Apreciou a sua figura e concluiu que, apesar da idade, ainda era atraente. Devia ter entre cinquenta e cinquenta e cinco anos. O cabelo era preto, pintado. O chapéu de abas largas não o tapava de todo. Nada havia sobre a sua mesa. Nem uma chávena de café. E ela continuava a observá-lo.
Ah!, ainda bem. A mulher tirou o chapéu e pousou-o na cadeira à sua esquerda. Assim, ele confirmou que o seu cabelo era preto e estava bem penteado, embora dum modo clássico, E outra coisa, ainda. Tal imagem lembrava uma mulher dos anos trinta.
Olhou de novo e procurou ser insistente. Nada como da outra vez. A mulher continuava imóvel, olhando ainda fixamente para ele. Se ao menos tirasse aqueles óculos espelhados para lhe ver a cor dos olhos! Se conseguisse falar com ela...
Encolheu os ombros e dirigiu-se para a mesa onde estava a mulher.
Enganou-se ou a força instalou-se nele?
«Desculpe...»
«Sim?»
«Donde me conhece?»
A mulher sorriu, irónica.
«Que o leva a fazer semelhante pergunta?»
«O seu olhar insistente. Mesmo com esses olhos escondidos através dos óculos espelhados tenho a certeza que esteve sempre a observar-me desde que entrei neste café.»
«Tem razão. Estava a observá-lo. Mas não fique de pé. Sente-se, por favor.»
«Obrigado. Aceito o seu convite. Toma alguma coisa? Um café... um chá?»
«Obrigada. Tomei mesmo agora.»
Não viu a chávena. Mais uma dúvida a juntar às muitas dúvidas.
Esboçou um sorriso de circunstância e rebuscou um assunto qualquer que não lhe ocorreu. Foi ela quem começou:
«Já amou alguma vez à primeira vista?»
Estranha pergunta. Mas... bingo!
«Sim. Foi há muito tempo.»
Há muito, muito tempo.
«E que aconteceu depois?»
Ia para responder. Sem mais nem menos a mulher começou a rir-se de uma forma algo descontrolada.
«Está a rir, porquê?»
Não obteve resposta. Aliás, já conhecia aquele riso que soava a raiva. Talvez fosse despeito. Um riso sarcástico, de quem não acreditava em nada que viesse dele ou doutro qualquer. Um riso escarninho, mas discreto. Quase sussurrante.
«Não há amor como o primeiro! Que grande farsa!»
Porque eram agora tão tristes os seus olhos?
Estava outra vez sentado em frente ao homem do rosto macilento.
«O senhor levantou-se há pouco porque pensou que o meu relógio não estava certo?»
«Não é isso, meu bom amigo. As pessoas vão muito caladas. Achei estranho e resolvi fazer uma experiência.»
«Que experiência?»
«Vê aquela mulher de t-shirt preta?»
«O que é isso de "ti chârte"? E onde está a mulher?»
Olhou na direção onde tinha visto a mulher e encolheu os ombros, resignado.
«Desculpe. Devo ter adormecido e sonhei.»
«Não. O senhor ausentou-se.»
Procurou uma desculpa razoável.
«O comboio esteve parado numa estação e eu saí. Não me pergunte mais nada. Há muitas coisas que se contam e há outras que não vale a pena contar. Ninguém acredita nelas.»
«Este comboio nunca parou. Garanto-lhe.»
«Compreendo. A viagem mal começou ainda.»
«Como assim? Só se foi a sua. A minha nem sequer sei há quanto tempo dura.»
Não replicou.
«Mas então de onde vem o meu amigo?» perguntou o homem do rosto macilento.
Uma boa pergunta. Ele também gostava de saber.
«Só me lembro de ter entrado na última estação.»
O outro tossiu e levou uma mão à boca, tentando suster um vómito. A tosse era seca.
«Não pode ser!»
«O que é que não pode ser?»
«Este comboio nunca parou. E só vai parar no fim da viagem.»
Afirmou que a convicção dele era absurda.
«Está a querer desmentir-me?»
Fez um esgar de impaciência e levantou-se quase de imediato. Depois, foi pedindo licença aos outros passageiros para passar. Não conseguiu evitar o joelho de um deles. Voltou para trás.
«Desculpe, senhor. Quer vir até ao corredor desentorpecer as pernas?»
«Agradeço a sugestão, mas fico por aqui.»
Já no corredor, olhou para o exterior. Estava muito escuro, conforme calculava. Não valia a pena ficar no corredor.
«É sempre noite lá fora.»
Não comentou. O comboio continuava a avançar no desconhecido.
«Voltando à nossa conversa, o senhor não acredita que eu entrei na última estação?»
«Não.»
«E porquê?»
Voltou a levar a mão à boca. Dessa vez não tossiu.
«Mantenho a minha. Este comboio nunca parou. E viajo nele há tanto tempo que nem sequer me lembro do momento em que entrei.»
«Então sempre teve que entrar no comboio. Um de nós está a mentir e não sou eu.»
«Eu também não.»
«Recapitulando, ainda há pouco desci as escadas que dão acesso à gare e vi parado, na linha encostada à gare, este comboio vetusto, enegrecido pela fuligem, que parece remontar ao tempo da Maria Cachucha.»
«Quem é essa Cachucha?»
«É uma força de expressão. Não fui o único a descer as escadas. Umas boas dezenas de pessoas também desceram e entraram no comboio. Vinham sem pressa. Só uns cinco minutos depois do comboio apitar estridentemente é que deixou a estação. E sabe mais uma coisa?»
«Não.»
«Os lugares estavam marcados.»
O outro suspirou profundamente.
«Não vou rebater mais a sua versão, mas mantenho a minha.»
«Não terá, entretanto, adormecido?»
Não respondeu.
«Talvez. Olhe lá uma coisa, não lhe parece que o comboio está a abrandar?»
Concordou. Diminuíra a velocidade. Seria que parava?
O comboio acabava de entrar numa estação profusamente iluminada. Olhou através do vidro de uma das janelas e ficou desolado. A gare estava vazia. Sinal de que não havia mais ninguém para entrar. Um último esticão e parou.
«Onde estamos?»
«Boa pergunta. Talvez seja o fim da linha.»
Abriram-se as portas e as pessoas começaram a sair. Calmas, sem atropelos.
Olharam um para o outro.
«E agora?» perguntou o homem do rosto macilento.
«Vamos sair também e ver para onde se dirigem todos estes mortos-vivos.»
«Mortos-vivos? É capaz de ter razão.»
Ao fundo havia três túneis, todos com muita luz. E as pessoas encaminharam-se para eles. Sem hesitações, cada uma entrou no seu túnel.
«Vai pelo túnel que tem a luz mais intensa.»
«Ouviu o mesmo que eu, meu bom amigo?»
«Sim» disse o homem do rosto macilento. «E qual é o túnel?»
«Repare bem. É o do meio.»
«Como sabe?»
«Li num livro.» Mentiu.
Afinal para ele tratava-se de um déjà vu.
«E o que fazemos? Que saiba, não fomos programados como os outros. Isso dá-nos a esperança de estarmos ainda vivos.»
«Começo a desconfiar que não. Ou, na melhor das hipóteses, um de nós está a sonhar e o outro é imaginário.»
«Então?»
«Vamos entrar no túnel do meio.» Decidiu.
Semicerrou os olhos e estacou logo à entrada. Tinha avistado uns vultos.
«Provavelmente eles estão à nossa espera.» Disse o homem do rosto macilento. «Cada um seguirá o seu caminho. Chegou o momento de nos despedirmos.»
«Quem são eles?»
«Amigos. Ou entes queridos que perdemos.»
Agarrou-o por um braço.
«Afinal sempre morremos. Oxalá tenhamos uma vida melhor que a outra que deixámos.»
«Aí vamos nós!»
«Não ouviu uma voz?» perguntou o outro.
«Não.»
Que se passava?
«A voz disse que o senhor deve voltar para trás.»
«E o meu amigo?»
«Eu sigo. Lembre-se que a minha viagem vem de muito longe. Devo andar perdido por aí há muito tempo. A voz diz...»
«Sim?»
«Para eu não ter medo.»
Sentia-se revoltado. O seu destino acabava ali, à entrada do túnel. Tanta coisa que deixou por fazer!
«Não faz sentido. Quero ir ao encontro dos corpos de luz que estão à nossa espera! Saber o que existe para lá do túnel. Se ela está...»
«Quem é ela?»
«A escolhida.»
«Mas a sua missão ainda não acabou. Deve voltar para trás!»
«Que missão?»
Demorou a responder.
«Não foram obra do acaso os fenómenos que lhe aconteceram. Só que não os entendeu. O senhor é uma espécie de canal de ligação entre dois mundos e ainda não chegou o momento de ser cortada essa ligação.»
«Mas...»
Era verdade. Lembrava-se. Houve um tempo em que os fenómenos se sucediam de uma forma alucinante. A princípio, vacilou. Não sabia muito o que estava acontecendo. Com o passar do tempo, adaptou-se. Fez bem em registar tudo no papel e nas cassetes, salvaguardando-se assim de distorções próprias provocadas pela memória.
«Talvez um dia relate os estranhos casos que me aconteceram e os outros que me contaram.»
«É essa a sua missão. Ficará preso ao seu corpo grosseiro enquanto não a cumprir.»
«E o meu bom amigo, quem é?»
«Sou alguém frustrado que travou um diálogo absurdo com a morte. O destino não me deu a mínima oportunidade porque a tísica destruiu-me o corpo e também a alma.»
«Quero acompanhá-lo!»
«Não vale a pena porque não tem ninguém à sua espera. Nem a tal ela. Ainda não chegou o seu dia.»
«Como sabe?»
«Eles disseram-me.»
«Quem são eles?»
«Os acompanhantes.»
Trocava anos de vida para saber o que se passava do outro lado. Como era esse mundo. Se ela esperava por ele.
«Que fez de mal na sua vida para ser tão castigado?» perguntou ao homem do rosto macilento.
«Não queria morrer. Vivi uma eternidade num quarto de século. Sofri e fui um revoltado por nunca ter sido feliz. Adeus. Um dia voltaremos a encontrar-nos, mas primeiro tem que cumprir a sua missão.»
«Nem sequer me disse o seu nome!»
Era o único passageiro do comboio. Poeta de ocasião e contador do inexplicável, voltava do passado, das carruagens cobertas de fuligem e com janelas de guilhotina, onde encontrou um infeliz poeta de rosto macilento, há muito em viagem, com quem conversou.
Avançou até ao fundo e sentou-se num dos bancos que nada tinha a ver com os outros da viagem de ida. Já ouvia o trabalhar dos motores, bem como o ruído do fechar automático das portas.
Voltava ao seu mundo.
Sentiu o esticão do arranque. Sim. Era real. Regressava de longe. Não sabia de onde. Mas sabia para onde era a viagem…
Simbiose (conclusão)
Tive um ligeiro sobressalto. Estava deitado no chão, a olhar para o teto. Que fazia ali?
Soergui-me com a ajuda do antebraço esquerdo e também da mão. Já sentado no chão, vi o copo e a garrafa, ambos vazios. Havia também o pequeno gravador e também um livro de poemas.
Menos de um litro de vinho não justificava a entrada num vetusto comboio cujo destino eram as terras do tempo perdido, tendo por companhia quase uma centena de mortos-vivos e de um poeta que encarou a morte como quem comia, deliciado, um doce conventual. Depois, havia a sugestão de imortalidade, vinda do fundo dos fundos, alimentada por muitas histórias que ainda tinha para contar.
«Fel... Que faz aqui este livro?»
Comecei a folhear o livro.
«Como ele sofreu!»
Peguei no copo vazio e na garrafa também vazia e dirigi-me para a cozinha. Havia no ar uma sugestão de imortalidade, vinda do fundo dos fundos, alimentada pelas muitas histórias que já tinha contado e das outras que ainda tinha para contar.
Quanto à história das histórias, esta aconteceu em setembro. Ela tinha olhos tristes e partiu cedo, numa viagem sem regresso. Nunca mais a vi, mas dizem que volta todos os anos. Traz uma mão cheia de nada e a outra, vazia de sonhos. E acontece sempre quando as folhas das árvores amarelecem, soltam-se, flutuam por momentos, e logo a seguir caem no chão e esquecem-se de viver.



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