Mário nunca mais esqueceu aquele dia em que foi a Fátima com os primos canadianos. Da tranquilidade. Da paz de espírito que o abraçou. Do ambiente místico que o influenciou para acontecer então o que aconteceu. Sentiu-se bem em Fátima, especialmente depois de ver os primos comprarem velas. Tentando ajudar alguns entes que já não eram deste mundo, comprou também velas. Seis. Uma para a Manuela, outra para a infeliz Catarina (1) e mais quatro em intenção de familiares já falecidos.
Mas na realidade não foi esse o motivo porque aquele dia ficou indelével, bem marcante para o futuro.
Mas na realidade não foi esse o motivo porque aquele dia ficou indelével, bem marcante para o futuro.
Esteve uma hora de pé, estático, a assistir ao terço na capelinha das Aparições e não sentiu quaisquer problemas nas pernas, ao contrário do que acontecia vulgarmente. Quanto à Júlia e à irmã ficaram sentadas à frente. O Hélder esteve quase sempre ao seu lado, um pouco afastado para a direita, aparentemente a leste de tudo quanto estava a passar-se na capelinha.
Foi mesmo ele que fez aquele pedido, como aconteceu uma vez em Lisboa (2)?
O mais estranho estava para vir. Coisa muito simples e aparentemente natural. Ao mesmo tempo rápida na duração. E muito, mesmo muito estranha!
Tudo começou quando uma jovem de blusa vermelha foi colocar-se ao seu lado direito, quase se encostando. Não teve tempo para desconfiar das suas intenções porque, minutos depois, uma outra mulher, também nova, talvez um pouco mais velha que a primeira, apareceu à entrada do recinto da capela. Observou-a com atenção. Era alta e tinha um perfil egípcio. Trazia uma criança pela mão.
Aproximou-se dele. Passou pela frente e foi colocar-se do lado esquerdo, embora ligeiramente afastada.
O curioso é que vieram ambas do seu lado direito. Portanto, segundo ele, vieram do futuro.
Ainda não estava restabelecido da surpresa quando, em baixo, começaram a rezar o terço. Foi então que sentiu a segunda mulher a chegar-se a si.
Distraiu-se ou fez de propósito? Ou era impressão sua? Ficava para sempre a dúvida. Uma coisa era verdade. Foi “guardado” por duas mulheres que vieram do futuro. Como o fizeram, não sabia. Viajantes, como estas duas mulheres, só existiam na ficção científica.
Um pormenor que não lhe escapou. A segunda mulher cantava divinamente. De vez em quando olhava para ela e via o seu rosto de perfil, imperturbável. Estava ao seu lado como se ele não existisse. Mas o contacto do seu corpo era real. Um contacto ao de leve de uma mulher que vestia uma saia vermelha, de bolas brancas. Da cor da blusa não se lembrava. Ficou em segundo plano
Que significado podia dar a tanto vermelho?
Esqueceu. Sentia-se bem. Respirava-se paz em Fátima. Podia ter ficado ali mais tempo, rodeado por aquele ambiente de plena serenidade. Mas teve que acompanhar os primos e a irmã.
Na viagem de regresso falou da Manuela, acedendo a um pedido da prima. Pouco depois deu conta que ela adormeceu e então calou-se. A Júlia acordou quase de seguida e perguntou-lhe de chofre, sem mais delongas:
«A Manuela teve uma filha?»
A que propósito?
«Acho que não. Porque perguntas?»
«Foi uma ideia que me veio à cabeça.»
«Estou mais descansado. Mudando de assunto...»
Perguntou-lhes se tinham visto alguém ao seu lado na capelinha, quando acabou o terço e vieram ter com ele, ou mesmo antes. Para seu espanto responderam que não se lembravam. Não disseram que não tinham visto. Apenas não se lembravam. No mínimo, muito estranho. registou.
Pararam na Nazaré para lanchar. Mais propriamente no Sítio. Enquanto lanchavam, o seu primo mostrou interesse em conhecer o que aconteceu a D. Fuas Roupinho quando perseguia um veado.
«Não sei muito bem. Aliás é uma lenda. Nesse dia um nevoeiro intenso não deixou que desse conta que, com o entusiasmo da perseguição a um veado, se aproximasse perigosamente do topo de uma falésia. Era demasiado tarde quando o cavaleiro viu onde estava. Então implorou à Virgem e de imediato o cavalo estacou, ficando os dois suspensos à beira do precipício. Em síntese, parece que é isto.»
«Muito interessante.»
«Mas é uma lenda, Hélder. Vale o que vale.»
«Sim, claro. Vamos lá depois do lanche?»
«Acho que não. Porque perguntas?»
«Foi uma ideia que me veio à cabeça.»
«Estou mais descansado. Mudando de assunto...»
Perguntou-lhes se tinham visto alguém ao seu lado na capelinha, quando acabou o terço e vieram ter com ele, ou mesmo antes. Para seu espanto responderam que não se lembravam. Não disseram que não tinham visto. Apenas não se lembravam. No mínimo, muito estranho. registou.
Pararam na Nazaré para lanchar. Mais propriamente no Sítio. Enquanto lanchavam, o seu primo mostrou interesse em conhecer o que aconteceu a D. Fuas Roupinho quando perseguia um veado.
«Não sei muito bem. Aliás é uma lenda. Nesse dia um nevoeiro intenso não deixou que desse conta que, com o entusiasmo da perseguição a um veado, se aproximasse perigosamente do topo de uma falésia. Era demasiado tarde quando o cavaleiro viu onde estava. Então implorou à Virgem e de imediato o cavalo estacou, ficando os dois suspensos à beira do precipício. Em síntese, parece que é isto.»
«Muito interessante.»
«Mas é uma lenda, Hélder. Vale o que vale.»
«Sim, claro. Vamos lá depois do lanche?»
Tiveram oportunidade de ver a marca deixada por uma das patas do cavalo de D. Fuas na ponta do Bico do Milagre.
«Se fosse verdade!»
Mário tentou imaginar a cena do milagre e ficou cético. O fio do pensamento ajudou-o a acompanhar o inevitável voo sem rede de cavaleiro e cavalo pelo precipício rumo a uma morte certa. Só a Virgem podia travar essa queda. E, segundo a lenda, travou. Rezava a lenda.
«Só acredita quem tem fé, Hélder. Quanto a mim, preciso de ver para crer. O que é impossível visto ter acontecido em mil cento e troca o passo.»
«Tens razão. Entramos na capela?»
«Vão vocês. Eu fico por aqui.»
Deixou que entrassem na capela e aproximou-se o mais que podia da ponta da falésia. Olhou para baixo e arrepiou-se.
«Impressionante! Ninguém escapa se cair daqui.» Sussurrou.
Foi então que aconteceu algo insólito. Em pensamento, abriu os braços e começou a planar ao nível da falésia.
«Maravilhoso!»
Naquele momento era só o sonho que comandava a sua vida e por isso deixou-se ir, cada vez mais para baixo, sentindo no rosto a brisa suave que soprava dos lados do mar. Continuou a descer, sempre de braços abertos, sentindo-se um deus alado. Era maravilhosa a sensação. Só queria que não acabasse. Mas acabou.
Pouco depois estava na praia. Admirou-se com duas coisas. A primeira implicava a segunda. O sol, muito alto, localizado a sul. E a praia cheia de banhistas como se o calendário marcasse o mês de agosto. E ele sabia que não era verdade, tanto para um caso como para o outro. Na verdade, àquela hora o sol estava no ocaso e a época balnear alta já tinha passado. No mínimo, era muito estranho. Não sabia explicar o que estava a acontecer. De um momento para o outro tinha na frente um cenário novo, como se estivesse a assistir a uma peça de teatro com dois atos com diferenças nítidas. Na primeira parte regressara de Fátima com os primos e a irmã. Na segunda, houvera uma súbita alteração no espaço-tempo. Mas era bem verdade que primeiro estranhava-se e depois entranhava-se.
Ziguezagueou entre as pessoas em fato de banho, deitadas sobre as toalhas, até chegar ao muro que dava acesso à estrada, que atravessou sem hesitação. Atingiu na zona pedonal onde se localizavam as esplanadas que viu repletas de veraneantes. Ao fundo, as ruas estreitas começavam a inclinar-se, prenúncio do começo da subida para o Monte Branco. onde era o parque de campismo. Déjà vu!
Ouviu uma música familiar que vinha dum café à esquerda. Achou estranho. Não ouvia a “Marina” há muito tempo.
«Que saudades, Marino Marini! Nunca mais terei vinte anos…»
Lembrou-se que, em tempos, no fim dos anos cinquenta, cantava com um certo à-vontade essa canção do conjunto Marino Marini. Era tão estranha a situação que se aproximou do café e espreitou para o seu interior. Pasmou com o que viu. Uma antiga máquina de discos, igual à que existia no snack de F..., onde passou longos dias azuis com Patrícia. Mas o mais estranho ainda é que ainda não tinha acontecido o momento em que a Patrícia hipoteticamente entrou na sua vida. E contudo, sabia desse acontecimento futuro.
«Estranho!»
Pois, Mário. Mesmo muito estranho.
Encolheu os ombros e escolheu uma rua ao acaso que começou a subir. Pouco depois percebeu que estava no Monte Branco, onde se situava o antigo parque de campismo com o seu característico amontoado de tendas dos mais diversos formatos, dispostas de forma quase anárquica. Foi avançando. A animação era grande. Muito provavelmente estava a correr a hora do almoço. De nada lhe valia consultar o relógio de pulso que certamente marcava outro tempo. Daí concluir que só se encontrava ali como resultado dum mergulho profundo que entretanto tinha feito no passado.
Ouviu uma música familiar que vinha dum café à esquerda. Achou estranho. Não ouvia a “Marina” há muito tempo.
«Que saudades, Marino Marini! Nunca mais terei vinte anos…»
Lembrou-se que, em tempos, no fim dos anos cinquenta, cantava com um certo à-vontade essa canção do conjunto Marino Marini. Era tão estranha a situação que se aproximou do café e espreitou para o seu interior. Pasmou com o que viu. Uma antiga máquina de discos, igual à que existia no snack de F..., onde passou longos dias azuis com Patrícia. Mas o mais estranho ainda é que ainda não tinha acontecido o momento em que a Patrícia hipoteticamente entrou na sua vida. E contudo, sabia desse acontecimento futuro.
«Estranho!»
Pois, Mário. Mesmo muito estranho.
Encolheu os ombros e escolheu uma rua ao acaso que começou a subir. Pouco depois percebeu que estava no Monte Branco, onde se situava o antigo parque de campismo com o seu característico amontoado de tendas dos mais diversos formatos, dispostas de forma quase anárquica. Foi avançando. A animação era grande. Muito provavelmente estava a correr a hora do almoço. De nada lhe valia consultar o relógio de pulso que certamente marcava outro tempo. Daí concluir que só se encontrava ali como resultado dum mergulho profundo que entretanto tinha feito no passado.
Viu um grupo de campistas dispostos em círculo. Ainda distante, afinou o ouvido. O som harmonioso de um acordeão fez reviver nele recordações agradáveis de tempos em que foi quase feliz ali mesmo e que podiam ter marcado uma reviravolta fantástica no seu destino.
«Não aconteceu. Talvez esteja a acontecer.» Admitiu.
Curioso, aproximou-se mais e avistou um acordeonista de meia idade, com porte atlético, bigode farto, concentrado em fazer deslizar no momento exato os dedos pelas teclas certas, ao mesmo tempo que abria e fechava o fole. Executava no momento uma antiga canção francesa que Mário conhecia como os dedos da mão. Moulin Rouge. A primeira canção que ensaiou nos seus tempos de menino e moço com uma colega pianista, cerca de três anos mais velha que ele, que morava na sua rua. Os ensaios foram tantos ou tão poucos que atingiu quase a perfeição. Mas o espetáculo de variedades nunca veio a acontecer e não se lembrava porquê. Foi o primeiro corte no seu futuro como cançonetista. Seguir-se-iam vários. Toda sua vida cavalgou em cortes.
Era uma recordação ou vivia o momento?
Franziu o sobrolho e lembrou-se dos jovens companheiros que partilhavam com ele uma barraca da Mocidade Portuguesa. Eram ao todo quatro, mas mais valia terem sido três.E porquê? Muito simples Lembrou-se que um deles cometeu um erro grosseiro só por causa de um simples ovo cozido. O grupo trabalhava com tarefas distribuídas e não era preciso um dizer como cada um devia desempenhar a sua missão. Um abria as latas de atum, outro descascava as batatas que iam ser cozidas, com os ovos, num tacho, outro punha a mesa, ou melhor, colocava os pratos, os copos e os talheres sobre a areia, e, finalmente, o último devia descascar os ovos já cozidos. Infelizmente para ele só descascou o seu e os restantes companheiros ficaram a olhar na sua direção. Imperdoável. Ato cem por cento egoísta. Daí ser banido do grupo e passar a figura de estilo, um companheiro virtual, por exemplo. Rigor levado ao extremo porque talvez tivesse sido censurado por cometer dois simples pecados, mas que o marcaram. Gula e egoísmo. Justificou-se com a fome que até lhe picou o estômago depois de uma demolidora manhã de praia com sol escaldante e ondas de água salgada tentadoras, culminando com uma subida ao Monte Branco, onde se localizava o parque de campismo que tinha na periferia uma mata gostosa pelas razões que virão a seguir.
«E nós?, não estamos cansados?» perguntou o Fernando, o elemento do grupo que acompanhava à viola as canções que o Mário cantava.
«Desculpem. Não volta a acontecer.»
Está bem, abelha...
Acabou de chegar da praia e já estava junto do grupo de campistas que assistiam à exibição do virtuoso acordeonista, onde não faltava a arte e um pouco de vaidade.
Momento curioso. O acordeonista alemão levantou os olhos e descobriu-o entre a pequena multidão.
Déjà vu!
O olhar de Mário dirigiu-se para uma mulher, quase trintona, de cabelos escuros compridos que lhe sorriu e identificou logo como sendo a enteada do acordeonista. Achava-a atraente e até já lhe vira grande parte dos seios quando ambos lavavam roupa nos lavadouros do parque. Ela mesma teve a bondade de lhe explicar como se lavavam uns calções, ao vê-lo em atitude desajeitada sem saber que volta a dar aos mesmos. Passou-lhe os calções para as mãos e foi nesse preciso momento que ela baixou o tronco e ficaram a espreitar para ele os belos e generosos seios que o excitaram duma forma aguda. Entenda-se. Não foi ele que espreitou. Os seios da bela Marisa é que foram os únicos responsáveis. Certo? Certo.
Mário, dez anos mais novo que ela, sentiu-se por momentos um cavalo à solta. Só por momentos porque logo foi domado, mas não deixou de tentar fazer futurologia ao lembrar-se do que se passava, à noitinha, com os jovens casais, portugueses e francesas, que se dirigiam para a mata, levando consigo uma imprescindível manta ou um cobertor. Talvez um dia (uma noite) também levasse para a mata dos seus sonhos o cobertor e a companheira dos cabelos compridos. Talvez.
Despertou ao ouvir os primeiros acordes inconfundíveis da canção Granada e deu pelo acenar com a cabeça do alemão na sua direção. Ato contínuo, aquele introvertido quase assumido começou a cantar. Os olhares dos assistentes voltaram-se para ele, mostrando admiração, olhares esses que ignorou porque o seu mundo era o mundo das canções. Só reparou na bela Marisa dos seios generosos e sorriu para ela sem se enganar na letra. O alemão pareceu não apreciar a cena porque logo subiu o tom, tentando levar Mário a cometer uma fífia, o que não aconteceu porque este, sabia como reagir a tal mudança. Bastava baixar o queixo e foi o que fez.
No fim, muitas palmas, inclusivamente vindas do acordeonista. Mário retribuiu também com palmas e aproximou-se dele para o cumprimentar. Mas o objetivo era outro. Só ele sabia.
«Nós vamos andando, Mário. Não te demores.» Disse o Calado.
«Já vou.»
«Não te percas.»
«Brincalhão...»
Estaria a fazer bem, em vez de regressar à tenda, mais barraca que tenda, que a Mocidade Portuguesa da vila lhes tinha emprestado?
Não que tivesse alguma coisa a ver com esse movimento nacionalista, de cariz fascista, fortemente implantado nos jovens da época, mas foi o que se arranjou. O pai, homem de esquerda, nunca consentiu que ele usasse a farda de militante e, entre coisas, importantes ou não, perdeu uma grande hipótese de se tornar um caso sério no atletismo, nomeadamente na velocidade pura em que denotava qualidades de raiz. Quanto ao resto, até agradeceu.
«Olá, Mário! Você esteve muito bem como de costume.»
«Obrigado, Marisa.»
Trocaram um sorriso rápido e ela encolheu os ombros.
«O Holmer quis colocá-lo mal, não foi?»
«Talvez. Mas inclino-me mais para um desafio que me fez. Felizmente consegui superar.»
Aqueles olhos contavam coisas, diziam coisas!
Mário esboçou um pequeno galanteio, mas limitou-se a abrir a boca em virtude do alemão já estar na frente deles.
«Viva, amigo Mário! Esteve divinamente. Como de costume, aliás.»
«E nós?, não estamos cansados?» perguntou o Fernando, o elemento do grupo que acompanhava à viola as canções que o Mário cantava.
«Desculpem. Não volta a acontecer.»
Está bem, abelha...
Acabou de chegar da praia e já estava junto do grupo de campistas que assistiam à exibição do virtuoso acordeonista, onde não faltava a arte e um pouco de vaidade.
Momento curioso. O acordeonista alemão levantou os olhos e descobriu-o entre a pequena multidão.
Déjà vu!
O olhar de Mário dirigiu-se para uma mulher, quase trintona, de cabelos escuros compridos que lhe sorriu e identificou logo como sendo a enteada do acordeonista. Achava-a atraente e até já lhe vira grande parte dos seios quando ambos lavavam roupa nos lavadouros do parque. Ela mesma teve a bondade de lhe explicar como se lavavam uns calções, ao vê-lo em atitude desajeitada sem saber que volta a dar aos mesmos. Passou-lhe os calções para as mãos e foi nesse preciso momento que ela baixou o tronco e ficaram a espreitar para ele os belos e generosos seios que o excitaram duma forma aguda. Entenda-se. Não foi ele que espreitou. Os seios da bela Marisa é que foram os únicos responsáveis. Certo? Certo.
Mário, dez anos mais novo que ela, sentiu-se por momentos um cavalo à solta. Só por momentos porque logo foi domado, mas não deixou de tentar fazer futurologia ao lembrar-se do que se passava, à noitinha, com os jovens casais, portugueses e francesas, que se dirigiam para a mata, levando consigo uma imprescindível manta ou um cobertor. Talvez um dia (uma noite) também levasse para a mata dos seus sonhos o cobertor e a companheira dos cabelos compridos. Talvez.
Despertou ao ouvir os primeiros acordes inconfundíveis da canção Granada e deu pelo acenar com a cabeça do alemão na sua direção. Ato contínuo, aquele introvertido quase assumido começou a cantar. Os olhares dos assistentes voltaram-se para ele, mostrando admiração, olhares esses que ignorou porque o seu mundo era o mundo das canções. Só reparou na bela Marisa dos seios generosos e sorriu para ela sem se enganar na letra. O alemão pareceu não apreciar a cena porque logo subiu o tom, tentando levar Mário a cometer uma fífia, o que não aconteceu porque este, sabia como reagir a tal mudança. Bastava baixar o queixo e foi o que fez.
No fim, muitas palmas, inclusivamente vindas do acordeonista. Mário retribuiu também com palmas e aproximou-se dele para o cumprimentar. Mas o objetivo era outro. Só ele sabia.
«Nós vamos andando, Mário. Não te demores.» Disse o Calado.
«Já vou.»
«Não te percas.»
«Brincalhão...»
Estaria a fazer bem, em vez de regressar à tenda, mais barraca que tenda, que a Mocidade Portuguesa da vila lhes tinha emprestado?
Não que tivesse alguma coisa a ver com esse movimento nacionalista, de cariz fascista, fortemente implantado nos jovens da época, mas foi o que se arranjou. O pai, homem de esquerda, nunca consentiu que ele usasse a farda de militante e, entre coisas, importantes ou não, perdeu uma grande hipótese de se tornar um caso sério no atletismo, nomeadamente na velocidade pura em que denotava qualidades de raiz. Quanto ao resto, até agradeceu.
«Olá, Mário! Você esteve muito bem como de costume.»
«Obrigado, Marisa.»
Trocaram um sorriso rápido e ela encolheu os ombros.
«O Holmer quis colocá-lo mal, não foi?»
«Talvez. Mas inclino-me mais para um desafio que me fez. Felizmente consegui superar.»
Aqueles olhos contavam coisas, diziam coisas!
Mário esboçou um pequeno galanteio, mas limitou-se a abrir a boca em virtude do alemão já estar na frente deles.
«Viva, amigo Mário! Esteve divinamente. Como de costume, aliás.»
«Obrigado, senhor Holmer. Só graças a si.»
«. Não diga tal. Olhe uma coisa, quer almoçar connosco?»
Mário virou-se instintivamente para a Marisa e julgou adivinhar no seu rosto um encorajamento.
«Aceito. Não exagere, senhor Holmer. O meu amigo é que executou divinamente a melodia. Aceito o convite com todo o gosto. Vou já avisar os meus companheiros que não almoço com eles. É só um momento...»
«Espere. Traga-os consigo. A feijoada chega para todos. Mas não convide aquele que anda com um quico enterrado pela cabeça abaixo.»
«Feijoada... que bom!» pensou.
«Também não gosta dele. Mais razão nos dá por estarmos arrependidos de termos convidado o Ricó a fazer parte do nosso grupo.»
«Então vá chamar os seus amigos que o almoço não tarda. Onde pensas que vais, Marisa? Não te esqueças, minha filha, que hoje és tu a pôr a mesa.»
Notou um ar de contrariedade na mulher que lhe estava a dar volta à cabeça.
«Não demoro. Descansa que não fujo às minhas obrigações.»
«Assim espero.»
Dirigiram-se então para a dita barraca da Mocidade Portuguesa.
«Parece que vocês não se entendem.»
«Ele tem a mania que manda em mim e nem sequer é meu pai. Já sou maior e vacinada há uns bons anos.»
«Faz bem em reagir contra o controle dele.»
Mário virou-se instintivamente para a Marisa e julgou adivinhar no seu rosto um encorajamento.
«Aceito. Não exagere, senhor Holmer. O meu amigo é que executou divinamente a melodia. Aceito o convite com todo o gosto. Vou já avisar os meus companheiros que não almoço com eles. É só um momento...»
«Espere. Traga-os consigo. A feijoada chega para todos. Mas não convide aquele que anda com um quico enterrado pela cabeça abaixo.»
«Feijoada... que bom!» pensou.
«Também não gosta dele. Mais razão nos dá por estarmos arrependidos de termos convidado o Ricó a fazer parte do nosso grupo.»
«Então vá chamar os seus amigos que o almoço não tarda. Onde pensas que vais, Marisa? Não te esqueças, minha filha, que hoje és tu a pôr a mesa.»
Notou um ar de contrariedade na mulher que lhe estava a dar volta à cabeça.
«Não demoro. Descansa que não fujo às minhas obrigações.»
«Assim espero.»
Dirigiram-se então para a dita barraca da Mocidade Portuguesa.
«Parece que vocês não se entendem.»
«Ele tem a mania que manda em mim e nem sequer é meu pai. Já sou maior e vacinada há uns bons anos.»
«Faz bem em reagir contra o controle dele.»
«É complicado, mas estou a conseguir.»
«Cá estamos. Não repare na qualidade desta tenda que só parece uma barraca. Ou melhor, é mesmo uma barraca. Foi o melhor que pudemos arranjar.»
«Ora, o que interessa é que vocês vieram para cá.»
Pressentia que não lhe era indiferente e, a ser verdade, talvez acabassem a encher de amor a mata.
«Que olhar é esse, Mário?»
«Adivinhaste os meus pensamentos obscuros.» Pensou.
«Nada nada...»
«Diga lá!»
«Lá.»
«Não brinque.»
Salvou-o a presença dos amigos.
«Rapaziada... estamos convidados para almoçar na caravana do senhor Holmer. Ainda bem o que Ricó não está.»
«Como de costume ainda não chegou da praia. Nós somos os galegos e ele o patrão. Mas hoje amola-se.» Disse o Fernando.
«Pois. O senhor Holmer não quer que ele vá.»
«É para que horas?» perguntou o Calado, com água na boca.
Estavam todos fartos de passar fome com os caldos Knorr, as batatas cozidas e as latas de conserva.
«Para já.»
«Então, vamos.»
Oportunidades raras daquelas não se perdiam. Finalmente iam quebrar o jejum das desgraçadas refeições que faziam por via da falta de dinheiro na caixa de folha que o Calado geria. Por mais milagres que fizesse não dava para mais que carapaus assados, ou atum de conserva, com batatas e cenouras cozidas e caldos Knorr, com esparguete, para a sopa. Um vira o disco forçado.
Quando chegaram já a mesa estava posta.
«Eu disse que punha a mesa.»
«A feijoada não pode esperar muito tempo» disse o alemão em tom de gozo. «Sentem-se, por favor. O Mário fica ao meu lado. A seguir, os seus amigos.»
«Grande sacana!» desabafou este, falando para dentro. «Que se passa? Parece que tens ciúmes. Já vi tudo.»
E que viu o cantor de Granada?
Entretanto a Marisa levantou-se para servir os convidados.
«Fica onde estás, Marisinha querida» disse o anfitrião. «Cada um serve-se...»
«Que é isso, Holmer?» perguntou de imediato a mãe da Marisa, algo agastada. «Deixa a pequena em paz.»
Desenhava-se um princípio de conflito.
«Obrigada, mãe. Eu vou servir os nossos convidados.»
O alemão desistiu de replicar e ela levantou-se e começou a servi-los. Mário sentiu a proximidade cúmplice do corpo esbelto daquela mulher de cabelos compridos.
«Vamos lavar a roupa?» sussurrou.
Ela sorriu e encostou-se mais a ele, atitude que não passou despercebida ao danado do alemão.
«Está bom assim?»
«Obrigado, Marisa.»
Queria acariciar-lhe os seios firmes e generosos. Beijá-los.
Despertou com a voz nasalada do alemão.
«A feijoada está ótima. A minha Elsa é uma cozinheira de alto gabarito. Valha-me ao menos isso.»
Mário ignorou o alcance das últimas palavras.
«Parabéns, minha senhora. Está mesmo como eu gosto.»
«Obrigada. É muito gentil.»
À medida que o tempo passava e o vinho tinto escorria pelas gargantas, todos se libertavam de formalidades básicas e o diálogo cruzado tornou-se mais alto porque já ninguém ouvia ninguém. Entretanto, o Mário e a Marisa iam trocando os olhares que podiam. O inimigo estava alerta.
A certa altura ela apontou para o copo dele. Interrogou-se. Não conseguiu entender o que queria dizer. Então a Marisa levantou-se e serviu mais um pouco de feijoada a todos, demorando junto a Mário.
«Cuidado que ele vai enchendo o seu copo à socapa!»
«Ah sim. Obrigado.»
Por pouco! Começava a sentir as ideias nubladas. As conexões entre os neurónios estavam a entrar em curto-circuito. O único pensamento que aparecia mais nítido relacionava-se com o desejo obsessivo de estar com ela na mata. Juntamente com o cobertor, claro, porque arrefecia muito à noite.
«Ah!, se eu pudesse! Entendes o que os meus olhos tentam dizer-te, Marisa?»
«Disse alguma coisa, Mário?»
«Estou apaixonado por ti!» disseram os seus olhos.
«Não.»
A sobremesa foi mousse de chocolate, muito do agrado do Fernando. Seguiu-se o café.
Holmer puxou de uma caixa de charutos e ofereceu aos convidados. Só o Calado não se fez rogado.
«Vais apanhar uma bebedeira de fumo» avisou o Mário. «É pior do que beberes mais um copo a mais de tinto.»
E olhou ostensivamente para o alemão que se limitou a sorrir.
«Vamos dar uma volta?» perguntou, em voz baixa a Marisa.
Mário acenou com a cabeça, mas achou de bom tom agradecer o almoço que lhes tinham proporcionado. Só depois se levantou.
«Mulher, vai buscar a garrafa de brandy para beber com os meus amigos...»
Fez um gesto de recusa. Os outros optaram por ficar.
«Fique mais um pouco, Mário. Beba connosco...»
«Cala-te, verme.» Pensou.
Lembrou-se de uma jovem (3) com quem se correspondia há quase um ano. Não se conheciam pessoalmente e tinham combinado encontrar-se na Nazaré, precisamente no parque de campismo. Até ao momento, a jovem, que só conhecia pelo diminutivo Leta, não tinha aparecido e, portanto, era uma carta fora do baralho. A Leta estudava num colégio interno perto de Coimbra e confidenciara-lhe todos os podres passados dentro e fora do colégio. Portanto, considera-a uma protegida e procurava dar-lhe conselhos úteis de como enfrentar e defender-se de todo aquele ambiente nada recomendável que a rodeava. A ser verdade, em nada algumas das suas colegas saíam beneficiadas. Saídas clandestinas à noite, abortos, relações lésbicas, roubos, chantagens, casos muito complicados fora do conhecimento da direção do colégio. Assim, queria protegê-la, dar-lhe bons conselhos. Mas pronto, se ela não tinha aparecido era porque não estava interessada. Nem sequer lhe interessava dar-lhe o benefício da dúvida.
«Apoie-se em mim e deixe-se levar, Mário. Finja que está desequilibrado. Ou está mesmo?»
«Foi por pouco. Mas porque carga de água ele queria embriagar-me, Marisa?»
«Muito simples. Para o deixar mal visto perante mim. Sabe que não gosto de ébrios. Estive casada com um durante mais de três anos. Bastou.»
«Ah... então é isso. Não sabia que já foi casada.»
«Ora, o que interessa é que vocês vieram para cá.»
Pressentia que não lhe era indiferente e, a ser verdade, talvez acabassem a encher de amor a mata.
«Que olhar é esse, Mário?»
«Adivinhaste os meus pensamentos obscuros.» Pensou.
«Nada nada...»
«Diga lá!»
«Lá.»
«Não brinque.»
Salvou-o a presença dos amigos.
«Rapaziada... estamos convidados para almoçar na caravana do senhor Holmer. Ainda bem o que Ricó não está.»
«Como de costume ainda não chegou da praia. Nós somos os galegos e ele o patrão. Mas hoje amola-se.» Disse o Fernando.
«Pois. O senhor Holmer não quer que ele vá.»
«É para que horas?» perguntou o Calado, com água na boca.
Estavam todos fartos de passar fome com os caldos Knorr, as batatas cozidas e as latas de conserva.
«Para já.»
«Então, vamos.»
Oportunidades raras daquelas não se perdiam. Finalmente iam quebrar o jejum das desgraçadas refeições que faziam por via da falta de dinheiro na caixa de folha que o Calado geria. Por mais milagres que fizesse não dava para mais que carapaus assados, ou atum de conserva, com batatas e cenouras cozidas e caldos Knorr, com esparguete, para a sopa. Um vira o disco forçado.
Quando chegaram já a mesa estava posta.
«Eu disse que punha a mesa.»
«A feijoada não pode esperar muito tempo» disse o alemão em tom de gozo. «Sentem-se, por favor. O Mário fica ao meu lado. A seguir, os seus amigos.»
«Grande sacana!» desabafou este, falando para dentro. «Que se passa? Parece que tens ciúmes. Já vi tudo.»
E que viu o cantor de Granada?
Entretanto a Marisa levantou-se para servir os convidados.
«Fica onde estás, Marisinha querida» disse o anfitrião. «Cada um serve-se...»
«Que é isso, Holmer?» perguntou de imediato a mãe da Marisa, algo agastada. «Deixa a pequena em paz.»
Desenhava-se um princípio de conflito.
«Obrigada, mãe. Eu vou servir os nossos convidados.»
O alemão desistiu de replicar e ela levantou-se e começou a servi-los. Mário sentiu a proximidade cúmplice do corpo esbelto daquela mulher de cabelos compridos.
«Vamos lavar a roupa?» sussurrou.
Ela sorriu e encostou-se mais a ele, atitude que não passou despercebida ao danado do alemão.
«Está bom assim?»
«Obrigado, Marisa.»
Queria acariciar-lhe os seios firmes e generosos. Beijá-los.
Despertou com a voz nasalada do alemão.
«A feijoada está ótima. A minha Elsa é uma cozinheira de alto gabarito. Valha-me ao menos isso.»
Mário ignorou o alcance das últimas palavras.
«Parabéns, minha senhora. Está mesmo como eu gosto.»
«Obrigada. É muito gentil.»
À medida que o tempo passava e o vinho tinto escorria pelas gargantas, todos se libertavam de formalidades básicas e o diálogo cruzado tornou-se mais alto porque já ninguém ouvia ninguém. Entretanto, o Mário e a Marisa iam trocando os olhares que podiam. O inimigo estava alerta.
A certa altura ela apontou para o copo dele. Interrogou-se. Não conseguiu entender o que queria dizer. Então a Marisa levantou-se e serviu mais um pouco de feijoada a todos, demorando junto a Mário.
«Cuidado que ele vai enchendo o seu copo à socapa!»
«Ah sim. Obrigado.»
Por pouco! Começava a sentir as ideias nubladas. As conexões entre os neurónios estavam a entrar em curto-circuito. O único pensamento que aparecia mais nítido relacionava-se com o desejo obsessivo de estar com ela na mata. Juntamente com o cobertor, claro, porque arrefecia muito à noite.
«Ah!, se eu pudesse! Entendes o que os meus olhos tentam dizer-te, Marisa?»
«Disse alguma coisa, Mário?»
«Estou apaixonado por ti!» disseram os seus olhos.
«Não.»
A sobremesa foi mousse de chocolate, muito do agrado do Fernando. Seguiu-se o café.
Holmer puxou de uma caixa de charutos e ofereceu aos convidados. Só o Calado não se fez rogado.
«Vais apanhar uma bebedeira de fumo» avisou o Mário. «É pior do que beberes mais um copo a mais de tinto.»
E olhou ostensivamente para o alemão que se limitou a sorrir.
«Vamos dar uma volta?» perguntou, em voz baixa a Marisa.
Mário acenou com a cabeça, mas achou de bom tom agradecer o almoço que lhes tinham proporcionado. Só depois se levantou.
«Mulher, vai buscar a garrafa de brandy para beber com os meus amigos...»
Fez um gesto de recusa. Os outros optaram por ficar.
«Fique mais um pouco, Mário. Beba connosco...»
«Cala-te, verme.» Pensou.
«Mais uma vez obrigado, senhor Holmer, mas preciso de dar uma volta porque comi muito.»
«Vamos então.» Aproveitou a Marisa.
Mário lançou-lhe um olhar indefinido. Queria compreender. Por um lado, ela dizia que sim; por outro, era melhor não acreditar em ilusões. E ilusões eram ilusões.
«Vamos então.» Aproveitou a Marisa.
Mário lançou-lhe um olhar indefinido. Queria compreender. Por um lado, ela dizia que sim; por outro, era melhor não acreditar em ilusões. E ilusões eram ilusões.
Lembrou-se de uma jovem (3) com quem se correspondia há quase um ano. Não se conheciam pessoalmente e tinham combinado encontrar-se na Nazaré, precisamente no parque de campismo. Até ao momento, a jovem, que só conhecia pelo diminutivo Leta, não tinha aparecido e, portanto, era uma carta fora do baralho. A Leta estudava num colégio interno perto de Coimbra e confidenciara-lhe todos os podres passados dentro e fora do colégio. Portanto, considera-a uma protegida e procurava dar-lhe conselhos úteis de como enfrentar e defender-se de todo aquele ambiente nada recomendável que a rodeava. A ser verdade, em nada algumas das suas colegas saíam beneficiadas. Saídas clandestinas à noite, abortos, relações lésbicas, roubos, chantagens, casos muito complicados fora do conhecimento da direção do colégio. Assim, queria protegê-la, dar-lhe bons conselhos. Mas pronto, se ela não tinha aparecido era porque não estava interessada. Nem sequer lhe interessava dar-lhe o benefício da dúvida.
«Apoie-se em mim e deixe-se levar, Mário. Finja que está desequilibrado. Ou está mesmo?»
«Foi por pouco. Mas porque carga de água ele queria embriagar-me, Marisa?»
«Muito simples. Para o deixar mal visto perante mim. Sabe que não gosto de ébrios. Estive casada com um durante mais de três anos. Bastou.»
«Ah... então é isso. Não sabia que já foi casada.»
E que importava?
«Esse casamento foi um equívoco. Mudamos de assunto?»
Concordou. Nada tinha a ver com a sua vida íntima.
A Marisa desprendeu-se do seu braço e olhou-o frontalmente.
«Sente-se bem?»
«Consigo a meu lado não me podia sentir melhor. Mas... ainda está a desconfiar que bebi mais do que a conta?»
Soprava uma brisa suave naquela tarde de agosto. O Sol, envergonhado, tinha-se escondido-se atrás das nuvens que entretanto tinham surgido, vindas dos lados do mar.
«Onde vamos, Marisa?»
«Por aí...» Indicou o caminho da descida.
«Estou nas suas mãos.»
Ela limitou-se a sorrir e começaram a descida até ao largo onde eram as esplanadas, o que não demorou muito tempo. Mário tinha ficado em modo de espera.
«Cá estamos. Agora vamos procurar uma mesa nesta esplanada.»
Deixou-se levar.
«Ficamos nesta?»
«Pode ser. Que bebe, Marisa?»
«Uma água com gás. Natural, claro.»
«Desculpe, afinal que se passa com o seu padrasto?»
Ela ficou muito séria. Ele sentiu que avançara para terrenos pantanosos. Já não podia voltar atrás.
«Nada que não possa controlar. Passa o tempo a assediar-me e a minha mãe não vê nada ou finge não ver. E agora as coisas complicaram-se. Ele desconfia de nós. Acredite, Mário, que a vossa relação a nível da música tem os dias contados. Você tem uma boa voz de tenor e ele é um músico de primeira água. Daí o entendimento. Mas o galo cantou no poleiro do outro galo e deu faísca da grande.»
Pois era. Sempre que vinha da praia e surgia no meio da assistência, logo ele suspendia a música que estava tocando e lançava no ar os primeiros acordes de Granada. E eu não me fazia rogado. Dava sempre resultado.
«Esse casamento foi um equívoco. Mudamos de assunto?»
Concordou. Nada tinha a ver com a sua vida íntima.
A Marisa desprendeu-se do seu braço e olhou-o frontalmente.
«Sente-se bem?»
«Consigo a meu lado não me podia sentir melhor. Mas... ainda está a desconfiar que bebi mais do que a conta?»
Soprava uma brisa suave naquela tarde de agosto. O Sol, envergonhado, tinha-se escondido-se atrás das nuvens que entretanto tinham surgido, vindas dos lados do mar.
«Onde vamos, Marisa?»
«Por aí...» Indicou o caminho da descida.
«Estou nas suas mãos.»
Ela limitou-se a sorrir e começaram a descida até ao largo onde eram as esplanadas, o que não demorou muito tempo. Mário tinha ficado em modo de espera.
«Cá estamos. Agora vamos procurar uma mesa nesta esplanada.»
Deixou-se levar.
«Ficamos nesta?»
«Pode ser. Que bebe, Marisa?»
«Uma água com gás. Natural, claro.»
«Desculpe, afinal que se passa com o seu padrasto?»
Ela ficou muito séria. Ele sentiu que avançara para terrenos pantanosos. Já não podia voltar atrás.
«Nada que não possa controlar. Passa o tempo a assediar-me e a minha mãe não vê nada ou finge não ver. E agora as coisas complicaram-se. Ele desconfia de nós. Acredite, Mário, que a vossa relação a nível da música tem os dias contados. Você tem uma boa voz de tenor e ele é um músico de primeira água. Daí o entendimento. Mas o galo cantou no poleiro do outro galo e deu faísca da grande.»
Pois era. Sempre que vinha da praia e surgia no meio da assistência, logo ele suspendia a música que estava tocando e lançava no ar os primeiros acordes de Granada. E eu não me fazia rogado. Dava sempre resultado.
«Que posso fazer?»
«Nada.»
«Então?»
«Tudo ia bem até que ele desconfiou que o Mário começava a desbravar o seu território, salvo seja. Daí ter mudado de atitude há pouco e o armadilhasse.»
«Tudo ia bem até que ele desconfiou que o Mário começava a desbravar o seu território, salvo seja. Daí ter mudado de atitude há pouco e o armadilhasse.»
«Se não fosse a Marisa!»
«Certo.»
«Desculpe fazer-lhe esta pergunta: alguma vez ele abusou de si?»
«Quem pensa que sou?»
«Uma mulher séria e encantadora. E com um olhar que me perturba.»
«Já respondeu.»
«Então ele julgava que desbravava o seu território, salvo seja. E a Marisa o que pensa?»
Baixou os olhos.
É agora ou nunca, Mário!
«Bom, acho que me enganei.»
«Então?»
«Somos só dois amigos...»
Estranhamente, ou talvez não, voltou a pensar nos encantos inebriantes da mata. Não resistiu e pegou numa das mãos de Marisa. Sentiu que ela vacilava. Estremecia mesmo.
Praça conquistada, Mário. Mas cuidado! O que parece, pode não ser. Espera por mais resultados...
«Já deve ter adivinhado que nutro por si um sentimento especial...»
Ia a dizer puro, mas lembrou-se de envolvimentos a desenharem-se na mata que não lhe saía do pensamento. Tinha inveja dos pares de francesas e portugueses que, de mãos dadas, à noitinha, se encaminhavam para a mata com o indispensável cobertor que aquecia os corpos e também tapava os pudores, se é que os havia.
«Não pare. Diga mais...»
«Vamos a ver se não me arrependo, mas adiante. A Marisa é uma mulher atraente e eu deixei-me envolver pelo brilho dos seus olhos e não só. Não adianta esconder que gosto de tudo o que vem de si. De estar consigo. De a ouvir. De...»
«De me despir com os olhos.»
«Apanhou-me, é verdade. Embora receie que nunca venha a ser minha. Há um abismo que talvez nos separe e esse abismo é a idade.»
«Sim? E depois?»
«Acho que cheguei ao fim da estrada.»
«Desculpe fazer-lhe esta pergunta: alguma vez ele abusou de si?»
«Quem pensa que sou?»
«Uma mulher séria e encantadora. E com um olhar que me perturba.»
«Já respondeu.»
«Então ele julgava que desbravava o seu território, salvo seja. E a Marisa o que pensa?»
Baixou os olhos.
É agora ou nunca, Mário!
«Bom, acho que me enganei.»
«Então?»
«Somos só dois amigos...»
Estranhamente, ou talvez não, voltou a pensar nos encantos inebriantes da mata. Não resistiu e pegou numa das mãos de Marisa. Sentiu que ela vacilava. Estremecia mesmo.
Praça conquistada, Mário. Mas cuidado! O que parece, pode não ser. Espera por mais resultados...
«Já deve ter adivinhado que nutro por si um sentimento especial...»
Ia a dizer puro, mas lembrou-se de envolvimentos a desenharem-se na mata que não lhe saía do pensamento. Tinha inveja dos pares de francesas e portugueses que, de mãos dadas, à noitinha, se encaminhavam para a mata com o indispensável cobertor que aquecia os corpos e também tapava os pudores, se é que os havia.
«Não pare. Diga mais...»
«Vamos a ver se não me arrependo, mas adiante. A Marisa é uma mulher atraente e eu deixei-me envolver pelo brilho dos seus olhos e não só. Não adianta esconder que gosto de tudo o que vem de si. De estar consigo. De a ouvir. De...»
«De me despir com os olhos.»
«Apanhou-me, é verdade. Embora receie que nunca venha a ser minha. Há um abismo que talvez nos separe e esse abismo é a idade.»
«Sim? E depois?»
«Acho que cheguei ao fim da estrada.»
«E?»
Olharam fixamente um para o outro. Não resistiu à tentação de acariciar-lhe o rosto.
«Se acha que sou o fim da estrada, tudo bem.»
«Se acha que sou o fim da estrada, tudo bem.»
«Então?»
Olhou-o com um misto de ternura e tristeza.
Olhou-o com um misto de ternura e tristeza.
«Já adivinhou, Mário.»
Mas tristeza, porquê?
«Quero vê-la sorrir. Pronto, não responda. Mas sorria. Isso. Assim. Agora gostava de partilhar consigo um segredo.»
Aproximou-se mais. Ela recuou.
«É melhor não. Sinto-me constrangida. Julgo que está toda a gente a olhar para nós.»
«Não há problema. Pareço mais velho. Aos catorze aos já ia ver os filmes para maiores de dezoito.»
«Não é nada do que pensas. Sinto-me bem contigo. Repara que estou a tratar-te por tu. Mas acho que avançámos muito em pouco tempo. Afinal mal nos conhecemos.»
«É esse o mistério que nos aproxima. Porque será que nos sentimos atraídos um pelo outro? Desde aquele dia em que me ensinaste a lavar uns calções quando viste que não conseguia dar conta do recado...»
«Não vou esconder que simpatizei logo contigo quando nos encontrámos nos lavadouros. Não sei se ficaste atrapalhado com a minha presença, se pensavas que eu estava a assistir à execução dum ato de nulidade no que dizia respeito à lavagem de roupa.»
«As duas coisas.»
«Acertei.»
«Depois... começaste a lavar roupas íntimas e eu já não sabia onde me meter. É que não havia buracos no tanque senão aquele por onde a água se escoava e aí não cabia. Sair, era cobardia. Preferi ficar. A olhar para ti. A sonhar.»
«E não perdeste a ocasião. Dei conta da expressão do teu olhar cobiçoso.» «Desculpa a minha indiscrição.»
«Ainda bem. Até gostei.»
Distraiu-se aparentemente com o voo insistente de uma borboleta em volta deles.
«É uma borboleta branca! As borboletas brancas trazem sempre boas novas...» Disse ela.
«Também já ouvi dizer. Mas a borboleta desapareceu. Não me parece ser um sinal muito forte.»
«É mesmo assim. Já trouxe as notícias e foi-se embora.»
«E...?»
«Há de voltar.»
«Oxalá.»
Mas continuou a ver tristeza nos seus olhos esverdeados.
«Que se passa contigo, Marisa?»
«Nada. Está tudo bem.»
«Verdade?»
«Sim.»
Levantou os braços. Marisa achou-o exuberante.
Aproximou-se mais. Ela recuou.
«É melhor não. Sinto-me constrangida. Julgo que está toda a gente a olhar para nós.»
«Não há problema. Pareço mais velho. Aos catorze aos já ia ver os filmes para maiores de dezoito.»
«Não é nada do que pensas. Sinto-me bem contigo. Repara que estou a tratar-te por tu. Mas acho que avançámos muito em pouco tempo. Afinal mal nos conhecemos.»
«É esse o mistério que nos aproxima. Porque será que nos sentimos atraídos um pelo outro? Desde aquele dia em que me ensinaste a lavar uns calções quando viste que não conseguia dar conta do recado...»
«Não vou esconder que simpatizei logo contigo quando nos encontrámos nos lavadouros. Não sei se ficaste atrapalhado com a minha presença, se pensavas que eu estava a assistir à execução dum ato de nulidade no que dizia respeito à lavagem de roupa.»
«As duas coisas.»
«Acertei.»
«Depois... começaste a lavar roupas íntimas e eu já não sabia onde me meter. É que não havia buracos no tanque senão aquele por onde a água se escoava e aí não cabia. Sair, era cobardia. Preferi ficar. A olhar para ti. A sonhar.»
«E não perdeste a ocasião. Dei conta da expressão do teu olhar cobiçoso.» «Desculpa a minha indiscrição.»
«Ainda bem. Até gostei.»
Distraiu-se aparentemente com o voo insistente de uma borboleta em volta deles.
«É uma borboleta branca! As borboletas brancas trazem sempre boas novas...» Disse ela.
«Também já ouvi dizer. Mas a borboleta desapareceu. Não me parece ser um sinal muito forte.»
«É mesmo assim. Já trouxe as notícias e foi-se embora.»
«E...?»
«Há de voltar.»
«Oxalá.»
Mas continuou a ver tristeza nos seus olhos esverdeados.
«Que se passa contigo, Marisa?»
«Nada. Está tudo bem.»
«Verdade?»
«Sim.»
Levantou os braços. Marisa achou-o exuberante.
«O que é?»
Mas ele lá tinha as suas razões.
«Olha! A borboleta branca sempre voltou...»
«Que bom!»
Ficaram muito sérios. Mário pareceu ver nos seus olhos um longo e serpenteante regato de águas límpidas e, voando ao longo dele, uma borboleta que batia graciosamente as suas asas cor da pureza. Seguiu-a com o olhar, talvez voando acima dela, talvez no mesmo, até que atingiu um ponto onde as águas desapareciam bruscamente numa queda de muitos metros.
Já envolvido no voo da borboleta, fletiu o tronco e mergulhou profundamente rumo ao desconhecido, perdendo, ao mesmo tempo, a identidade.
«Olha! A borboleta branca sempre voltou...»
«Que bom!»
Ficaram muito sérios. Mário pareceu ver nos seus olhos um longo e serpenteante regato de águas límpidas e, voando ao longo dele, uma borboleta que batia graciosamente as suas asas cor da pureza. Seguiu-a com o olhar, talvez voando acima dela, talvez no mesmo, até que atingiu um ponto onde as águas desapareciam bruscamente numa queda de muitos metros.
Já envolvido no voo da borboleta, fletiu o tronco e mergulhou profundamente rumo ao desconhecido, perdendo, ao mesmo tempo, a identidade.
A pista de corridas situava-se na varanda de chão cimentado junto ao pequeno muro que segurava as grades. Inicialmente juntava-os em monte no ponto de partida. Alguns enrolavam-se como uma bola e tinha que os abrir com cuidado dada a sua fragilidade. Assim, a partida não se realizava ao mesmo tempo e acrescia a dificuldade de ultrapassagens dos mais lentos pelos mais rápidos.
Já tinha rejeitado uns tantos porque procurava o provável campeão, de maiores dimensões, certamente o mais rápido dos rápidos.
«Que estás a fazer aí de cócoras, ó Marinho parvalhão?»
Virou-se, embora já tivesse reconhecido a voz. Era a Dorinda, uma rapariga de pele tisnada pelo sol e com alguma porcaria à mistura que acentuava o tom. Pensava ele e não estava longe da verdade. Os cabelos, ainda mais despenteados que o costume, também não ajudavam a rapariga no que dizia respeito ao aspeto. A Dorinda era filha da empregada de limpeza da vizinha de cima, uma mulher que lhe complicava o sistema nervoso pela postura que exibia enquanto subia as escadas do quintal tossia de forma ininterrupta, escarrando com frequência para o quintal. Tais atitudes deixavam a pobre criança muito nauseada. E tinha razão para isso.
«Porcalhona!» disse para si.
«Não respondes?»
«Olha, estou a apanhar bichos-de-conta para fazer uma corrida na varanda.»
«Mas eles correm mesmo?» perguntou.
«Se queres ver...»
«Não acredito.»
Queria fazer dela parva, pois queria.
«Então não acredites.»
Continuou a arrancar as urtigas pela raiz. Sabia muito bem onde se escondiam os bichos-de-conta.
«Olha, Dorinda. E este vai ser o vencedor.»
«Como sabes?»
«É maior que os outros e não é velho.»
«Velho?»
«Enrolou-se depressa.»
«Bom...»
«Queres assistir à corrida ou não?»
«A tua mãe não gosta de me ver lá em cima contigo.»
«Sério? Ela nunca me disse.»
«Acredita. Não sei que mal lhe fiz.»
A mãe lá tinha as suas razões.
«Vou ver se ela está na cozinha»
A rapariga pôs-lhe uma mão sobre o ombro direito e tentou seduzi-lo.
«Não queres antes ir apanhar borboletas? São tão bonitas! Vi há dias uma de cor celeste...»
O Marinho fez uma careta.
«Celeste... o que é isso?»
«Da cor do céu, cretino!»
«Badalhoca!»
Nome que ouviu numa discussão entre duas mulheres que começaram a puxar os cabelos uma à outra. A princípio até ficou incomodado. Depois, apreciou. Nunca tinha assistido a uma luta entre mulheres. porque é que se puxavam pelos cabelos?
«Prontos, já não te chamo nomes.»
Já conhecia as respostas prontas do Marinho.
«E apanhaste-a?» perguntou, sobressaltado.
«Não consegui.»
«Eu quando as apanho, solto-as logo porque começam a bater as asas e largam muito pó. Se demorar a soltá-las já não conseguem voar e fico com muita pena delas!»
«Se conseguisse apanhá-la, essa ficava para a minha coleção. Que pó?»
«Ora... vê-se muito bem nas borboletas brancas.»
«Ah...»
«Olha ali uma! Vou apanhá-la com a boina…»
As duas crianças faziam diferença de quatro anos. Aos seis anos, Marinho era a inocência em pessoa. Muito rabino, mas puro ainda. Mais puro que uma borboleta de asas brancas. Quanto à Dorinda, mais velha e sabedora de certos mistérios da vida, dada a sua condição social, já com as maminhas a despontar, tinha objetivos que não os do amiguinho. Estariam talvez (ou não) na expectativa de apanharem uma borboleta, branca ou colorida. As coloridas tornavam-se mais difíceis de apanhar porque eram mais rápidas a porem-se em fuga.
«Raio! Deixaste-a fugir...»
«Isso é uma asneira. Não se diz, Dorinda!»
«Sei muitas piores que essa, mas não te conto porque a tua mãe corre logo comigo do quintal.»
«Sim. É melhor ficares calada.»
«Olha... anda para debaixo da varanda. Já me dói a cabeça de apanhar tanto sol. Vamos para a sombra.»
«Ainda agora chegaste e já te dói a cabeça! Não vou. Só depois de apanhar uma borboleta!» teimou o Marinho.
«Deixa-as em paz e faz o que te digo. Tenho uma coisa para te mostrar.»
«Que coisa?»
«Já vais ver. É uma surpresa. Aqui não mostro.»
Que estaria a misteriosa Dorinda a engendrar?
Marinho entusiasmou-se. Gostava de surpresas e de mistérios. Muito. Ainda mais do que dos gatos da dona Francisca.
Pôs a boina com os três vinténs na cabeça, sinal de desistência em relação ao objetivo borboleta. Ela fez-lhe um sinal com a mão e seguiu-a para debaixo da varanda. As portas que davam acesso às duas caves estavam meio fechadas e ela empurrou-as com força. Marinho concluiu que iam entrar na cave.
«Assim vê-se melhor.» Concluiu ela.
«Também acho» concordou. «Mas o que é que tu tens para me mostrar?»
A criança impacientou-se quando a viu avançar mais para o interior da cave. O mistério adensava-se.
«Não ficamos aqui, à entrada da cave?»
«Anda...»
«Está bem, eu vou. Mas vê-se melhor aqui.»
Ficou muito intrigado quando a Dorinda começou a desabotoar a blusa encardida das bolas vermelhas.
«Estás com calor?» arriscou perguntar.
«Claro que não. Põe a mão aqui... Vá, não tenhas medo que elas não te mordem.»
Obedeceu.
«Que notas?»
«Estão crescidas!»
«Sentes alguma coisa?»
«Estão quentes. Bem me parecia há pouco que tinhas calor.»
«O quê?!...»
«É verdade.»
«Paspalhão!»
Então a Dorinda subiu ligeiramente a saia e baixou as cuecas com um gesto rápido.»
«Proibido» pensou Marinho. «Nem sequer posso contar ao Tarzan...»
O Tarzan era o gato preto e branco que jogava a bola com ele. Punha-o entre as pernas de uma cadeira e transformava-o num guarda-redes. Dos melhores. Ainda melhor que o Barrigana do Futebol Clube do Porto.
«Ficaste mudo?»
Pudera! A menina da Dorinda cheirava a xixi que tresandava.
«Não gostas de ver?»
Aquilo era estranho!
«Sim... mas...»
«Põe aqui a mão.»
Pegou-lhe na mão e encostou-a no sítio.
«Gostaste?»
«Muito» mentiu. «Pois não gostei?»
De facto aquilo não cheirava a rosas.
«Agora quero ver o teu pirolito.»
Mau mau! Caldo entornado. Começavam as complicações.
«Aqui está frio. Vamos lá para fora.»
«Já vamos. Mostra-me isso. Não sais daqui sem mostrar.»
Começou a desabotoar os botões do calção. Quanto daria para andar lá fora a correr atrás das borboletas!
«Encosta-te...»
Não achava graça nenhuma. Depois aquele cheiro que o atordoava. Tinha que encontrar uma saída.
E encontrou logo. Teve uma ideia brilhante, quiçá salvadora.
«Se formos apanhar borboletas dou-te meio tostão. Depois voltamos.»
Coçou a cabeça, indecisa. Meio tostão sempre era meio tostão.
«Dá cá o meio tostão, medricas da merda!»
Finalmente libertava-se do tormento daquele fedor.
«Toma lá o dinheiro. Olha lá, tens piolhos?»
«Não. Porquê?»
«Estás a coçar muito a cabeça.»
«Claro que não tenho.»
Bendito sol que o aquecia e livrou de problemas. Lá ficaram entretidos a apanhar borboletas e a libertá-las de imediato por proposta sua. Se fossem moscas ou caracóis não tinha a mínima compaixão. Agora as graciosas e fascinantes borboletas que voavam em volta das suas cabeças não eram intocáveis, mas exerciam sobre ele uma fascinação irresistível.
«Que linda!» exclamou Marinho, abrindo as asas do inseto. «São pretas com listas amarelas…»
«Dá-me a borboleta!»
Adivinhou o instinto agressivo da desgrenhada Dorinda e libertou de imediato o inseto indefeso.
«Meu burro! Eu queria a merda dessa borboleta!»
O céu das borboletas. Muito azul. O ar quente junto à terra das urtigas e de outras plantas silvestres a florirem. O mundo verdadeiro do Marinho, a criança ingénua que gostava muito de gatos e atirava-os pela varanda abaixo, acreditando que eles voavam (4). A sessão “mística” no fundo da cave e a perplexidade da criança que não queria mostrar o pirolito a uma amiguinha mais crescida que tinha outras intenções, mas ainda com as mesmas intenções a roçarem os limites da ingenuidade. Por sua vez, o Marinho também estava nos limites da pureza.
«Já estou farta das borboletas. Ainda se ficasse com elas...»
«Para as matares?»
Pegou-lhe no braço.
«Vamos outra vez para a cave.»
«Não!»
«Disseste que voltávamos lá.»
«Pois disse, mas já não me apetecesse ir.»
Ela pensou duas vezes. Reverso da medalha.
«Dou-te um tostão...»
A pureza da criança que gostava de gatos ficou em luta feroz com a ganância. Uma luta que prometia ser breve e com um fim que não era o mais certo. Se todas as pessoas tinham um preço, o Marinho também não fugia à regra.
«Passa para cá esse tostão...»
Mesmas cenas. Mesmos cheiros. Até que o bom do Marinho não suportou mais o cheiro e empurrou-a.
«Brutamontes!»
«É que cheiras muito a xixi e já não aguento mais...»
«Vejam lá!»
«Que estão os dois aí a fazer nesse estado?»
Momento salvador. Apareceu a mãe do Marinho e acabou logo a festa.Lá fora as borboletas continuavam a voar livremente no azul.
Como era belo o céu de ontem!
«Que te aconteceu, Mário?»
Veio de muito longe e já não viu nos olhos da Marisa o regato de águas cristalinas.
«Nada de especial, Marisa. Apenas lembrei-me de uma coisa que me aconteceu quando era criança.»
«Como aconteceu?»
«Foi tudo provocado pela borboleta branca que vimos há pouco.»
«Conta-me...»
«Hoje não. Temos coisas mais importantes para conversarmos.»
Acenou com a cabeça.
«Tens razão. Precisamos de conhecer-nos melhor. No fundo, somos só dois estranhos que sentem uma atração mútua. Mais do que isso, penso. Acho que devemos falar mais. Nem sequer sei se por acaso tens namorada, ou uma amiga mais que amiga.»«Estou livre, Marisa.»
Quase mais livre que uma borboleta de asas brancas!«Não percebi o que disseste a seguir. Falaste muito baixo.»
«Não disse nada. Pensei em nós e na probabilidade de nos entender-nos no futuro. Tenho menos dez anos que tu. É significativo.»
Ficou muito séria.
«Que sentes verdadeiramente por mim?»
Pergunta sem fuga possível.
«Ora... o mesmo que tu, acho.»
«Boa resposta.»
Reconsiderou.
«Parece que nos precipitámos; Marisa.» Disse.
«Como assim?»
«De repente senti-te distante. Já te disse que sou um sensitivo?»
«Um sensitivo?»
«Pressinto que um obstáculo vai separar-nos e que nunca virei a saber a natureza desse obstáculo.»
«Não acredito em pressentimentos. Estás é a tentar descartar-te, Mário.»
Por uns momentos ficaram calados. Mário mudou de sítio o copo meio de água.«De qualquer forma, aconteça o que acontecer, acredita que só tu estás no meu horizonte. Já o mesmo não sei de ti.»
Ficou muito séria.«Precisas duma prova de fogo?» perguntou, sorrindo.
«Como assim?»«Logo à noite vais tê-la.»
«Diz.»«Na mata?»
«Queres...? Como os portugueses com as francesas?»«Mais logo. Depois do jantar. Na mata... Olha...»«Sim?»«Não te esqueças de levar a manta...»Até ao anoitecer o tempo correu tão devagar como um relógio parado. Mas como os relógios parados não paravam o tempo, Mário e a sua manta estavam na mata, num sítio estrategicamente isolado. Eram nove horas quando se despediu dos amigos e disse que voltava tarde.
«Aqui há gata!» desconfiou o Fernando.
«Estou com um problema digestivo e preciso de andar por aí» mentiu. «A culpa foi da feijoada. Comi em excesso e bebi muito.»
«Isso vi eu. O Holmer não se cansava de encher-te o copo. Queres que te acompanhe?» ironizou o amigo.
Mário sorriu.
«Não, obrigado.»
À medida que o tempo ia passando, crescia a ansiedade. Nove e meia e ela não vinha. Mas não era tarde. Ainda estavam a chegar alguns casais.
Olhava para a manta estendida no chão coberto pela caruma e imaginava como iria ser ou acontecer.
Dez horas. Por que motivo a Marisa ainda não tinha aparecido?
«Foram-se embora» deixou escapar. «Não acredito. Ela prometeu!»
«Quem é que prometeu e o quê, Mário?»«Nada.»«Pois foram» disse o Fernando. «Os cretinos nem sequer se despediram. Parecia que estavam zangados uns com os outros.»«Não quero acreditar!»
«Em quê?»«Nada» repetiu. «Não foi nada. Só estou a falar com os meus botões.»
«Desabafa! Os teus botões não se zangam.»Arriscou:
«A Marisa não deixou nenhum recado para mim?»«Ah!, a Marisa... Bem me parecia. Já te disse que se foram todos embora. Mas afinal de contas onde é que estiveste metido?»
«Andei por aí.»
«É muito vago. E sabes?, andámos à tua procura por tudo o que era sítio. Se não queres contar, não contes. Ao menos que te tenha feito bom proveito o petisco.»
Antes fosse.
«Não me chateies mais do que já estou chateado.»Não contou onde tinha ido. Preferiu guardar para si a frustração que sentiu. Estava tudo tão bem encaminhado e ela foi-se embora sem sequer dizer adeus!
Quem disse que as borboletas de asas brancas eram sinónimo de bom augúrio?
(2) Não me leves ainda!
(3) Leta
(4) Os Verdes Anos de Mário Contador de Histórias - A Criança que Gostava de Gatos


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