segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

A nota de quinhentos

 


P



ersistem, embora já com menos frequência, os fenómenos paranormais. Passam-se muitos dias sem que aconteçam e então julgo que se foram para sempre. Puro engano. Estão de volta quando menos espero, embora acredite que já perderam a força do impacto dos primeiros tempos. Já lá vai o tempo da novidade. Por outro lado, desisti de tentar abrir mais cortinas que me levaram a becos sem saída. Bem tentei. A resposta foi sempre a mesma. Não que mostrasse medo pelo desconhecido. Antes pelo contrário. Houve tempos que lancei desafios após desafios. O silêncio e a falta de dados concretos foram argumentos suficientes para crer que não passava de um mero canal de comunicação sem autonomia para ir mais além. Resignado, resolvi baixar o estado de vigília até um nível quase adormecido.
Casos como o que aconteceu num sábado de quase fim de século são aquilo que posso chamar “pequenos nadas”, comparados com os do tempo dos anos do deus menor, sem dúvida a espinha dorsal de uma época que me deixou perplexo e psicologicamente vulnerável ao ataque daquilo a que chamei na altura a coisa. Foi um tempo muito perigoso que abalou a minha sanidade mental. Mas já passou. É quase história. Confesso, no entanto, que guardo saudades desses momentos incríveis. Se é imprudência evocar estes pensamentos ligados ao paranormal, não posso evitar. Penso que eles não voltarão com a intensidade com que se mostraram. A causa principal foi encaminhada para o constelado do céu, o mesmo donde, perdida, encontrou-me por acaso, como eu a encontrei uma vez numa noite morna de verão. Sei que não volta a acontecer. Agora só acontecem coisas que não passam de pequenas coincidências que já não beliscam muito.,
Mas vamos ao caso...

Há alguns meses que tínhamos combinado ir à "feira da ladra". No entanto havia sempre um obstáculo de última hora que adiava a visita para outro sábado, ameaçando o evento tornar-se num definitivo dia de “São Nunca à tarde”.
Mas naquele sábado aconteceu mesmo, embora tivesse sido decidido próximo das quatro da tarde. Aliás, foi uma boa altura para se fazerem compras no que dizia respeito a velharias e antiguidades, expostas, numa amálgama, no chão e nas mesas, porque a feira aproximava-se do fim e havia margem de manobra para os preços serem regateados e espremidos o mais possível.
As velharias expostas constituíam o que de mais incrível que se podia imaginar. Quanto às antiguidades, essas seduziam-me mas não lhes chegava, pois as boas peças continuavam a preços inacessíveis à bolsa de um professor. Limitei-me a comprar por cem escudos um livro relacionado com os mistérios da memória e um conjunto de chaves de bocas por trezentos escudos. Quanto à minha companheira interessou-se por um puxador em cristal que custava três contos, mas acabou por comprar, na mesma bancada, duas chávenas da Vista Alegre com os respetivos pires. O curioso é que cada uma custava dois contos e quinhentos e a mulher baixou logo para dois, sem ser preciso regatear. Mesmo assim ela não aceitou no momento e continuámos a nossa volta, desta vez pelas bugigangas. Como não encontrámos nada de especial, voltámos ao sítio das chávenas. A ideia de ambos estava no puxador.
A mulher reconheceu-nos e fez de imediato outra oferta tentadora.
Arrematado!, como teria dito um leiloeiro.
Negócio fechado. Sem sabermos como, as duas chávenas ficaram ao todo por dois contos setecentos e cinquenta.
Afastámo-nos e ela olhou para mim, deveras intrigada.
«Não me digas...?»
«O que é que eu digo?»
«Foste tu?» sorriu. «Não me digas que foste tu que a baralhaste!»
«Que ideia mais louca! Nem sequer estava interessado nas chávenas.»
«Mas eu estava.»
«Ora.»
Era tarde e alguns vendedores arrumavam os artigos, ou já tinham abandonado os locais de venda. Talvez o verdadeiro motivo daquele saldo estivesse na necessidade da vendedora precisar de realizar capital.
Que fazer?
Visitar a igreja de S. Vicente, proposta sua que foi aceite. Em má hora porque fomos encontrar a Amparo e o irmão no local do crime, dois amigos seus muito religiosos e autocolantes com tendências altas de pressão.
Como resultado, nós que íamos apenas visitar a igreja tivemos que assistir ao terço e não conseguimos fugir à missa das seis. Não pretendíamos demorar muito tempo e acabámos por ficar mais que uma hora. Dois em um era muito. Resignei-me. Deus ia compensar-me pela demora no santo sacrifício da missa.
Quanto à visita, esta valeu pelo belíssimo altar de Santo António, onde repousam os restos mortais da sua mãe.
Durante o terço e a missa a minha atenção foi desviada por várias vezes para uma estátua em pedra, junto ao altar-mor. Mais uma vez Santo António com o Menino Jesus. Não sei explicar porquê, mas senti um enorme desejo de comunicar com ele. Claro que não consegui. O resultado foi dar mais atenção à estátua do que ao que se passou durante as cerimónias do terço e da missa.
No momento do ofertório lembrei-me que não tinha dinheiro trocado. A cesta estava próxima e já não dava para pedir à minha companheira uma moedita emprestada. Restava-me abrir a carteira e rezar aos santinhos para encontrar uma nota de vinte escudos.
Procurei com cuidado. Nem vestígios. Talvez tivesse uma nota de cem escudos. Pois. Esperanças baldadas. Só tinha uma nota de quinhentos, o que representava muito dinheiro. Não que o querido Santo António não merecesse.
«Adeus, nota.» Lamentei-me.

Quando saímos já passava das sete horas da tarde. Felizmente tempo de jantar e não para comermos caracóis que eu detestava. Entretanto arrefecera um pouco e eu fui buscar os agasalhos ao Peugeot azul que estacionara ao fundo de uma rua íngreme que dava para a rua Voz do Operário.
Já muito perto do carro vi no chão uma coisa que me fez parar de imediato. Não era possível o que os meus olhos estavam a ver!
O Santo António não gostava de mim.
Tentei retificar o primeiro pensamento que me ocorreu. Se não era verdade que não gostava de mim, então devia haver outro motivo.
Entretanto ficara parado no meio da rua, sentindo os pêlos dos braços, das pernas, dos próprios cabelos. Tudo, mesmo tudo, se eriçou.
«Uma nota de quinhentos!» exclamei.
Compreendi de imediato o significado da coisa. Chorei tanto o dinheiro ofertado na igreja que logo tive um retorno amaldiçoado.
O santo não gostou da minha atitude mesquinha e devolveu-me a nota de quinhentos.
«Vai sair-me cara esta nota de quinhentos que voltou...» Pensei.
A devolução da nota de quinhentos escudos, ocorrida para além do meu entendimento, não tinha lógica. Desta vez nada fiz nem pedi, durante a missa, o alívio para o problema na região cervical. Apenas tentei estabelecer um contacto com uma imagem de Santo António e o Menino que estava do meu lado direito, junto ao altar. Talvez que tivesse feito algum pedido de que não me lembrava.
Com a nota de quinhentos nas mãos encaminhei-me para o carro e quedei-me a observá-la melhor. A nota tinha a chapa CHG 929191.
Seria um detalhe importante? Não sabia.
Conservei ainda a nota de quinhentos durante alguns meses, sem saber o que fazer dela. Até que acabei por dá-la a uma pessoa necessitada.
Este caso não passou de uma coincidência, ou foi mais que isso?

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Inquietação

  



Não interessa saber quantos são hoje porque o que está a acontecer supostamente até já pode ter acontecido. Também não ponho de parte a hipótese de vir a acontecer no futuro. Este início parece ser muito confuso. Melhor dizendo, nebuloso. E talvez até já tenha decidido que deve ser assim. Porquê? Não sei.  Ou cá tenho as minhas razões. Creio que já entenderam que quero relatar um acontecimento intemporal. E assim, já posso esclarecer que faz amanhã quatro meses que aconteceu. Ou mais que um ano.

Neste curto período de tempo a minha vida modificou-se radicalmente. Não me estou a referir à componente profissional que, por sinal, mudou para melhor. Trata-se, portanto, da outra componente. Estou à beira de mudar a agulha para um novo rumo. Se é melhor ou pior, por enquanto não posso saber. São condicionalismos do presente. Assim, o tempo dirá. De qualquer das formas, admito que deixei de vez a ilha, a treta da última onda, a paragem nos tempos das indecisões. Tudo. É isso. De uma vez por todas deixei passar a porra das ondas que só produziram indecisões parvas. Portanto, pus a metáfora no lixo e ganhei balanço para um novo salto no desconhecido. Mais um. É a minha sina. Outros chamam-lhe Karma. Eu chamo-lhe porra de vida. Só isso.
Tudo fica bom no começo. Os ventos são sempre favoráveis e os avanços são coroados de êxito. Pelo menos assim aconteceu no primeiro mês. Foi bom deixar de navegar à vista e substituir o homem do leme pelo piloto automático. 
Conforme já disse, tudo corria bem. Até que um novo desenvolvimento deixou-me inquieto. Sou um homem de bem. Apenas não admito que me deitem areia para os olhos e obstruam a passagem para a liberdade plena. Sim, trata-se de uma situação nova que não vou conseguir resolver sozinho. Preciso da intervenção de Deus ou do "666". Não sou extremista, embora a resolução deste imbróglio assim o exija.   
Contei à Margarida, que é o meu novo amor ou capricho imprevisível. Ouviu-me em silêncio e depois sentenciou, com voz suave de sereia:
«Deixa que eu trato disso.»
Mais nada. A não ser, um sorriso que considerei indefinido e um beijo ao de leve.
«Vê lá o que vais fazer…»
«Nada de especial, amor. Deixa comigo.» 
Seria ela a mulher de negro com seu tabuleiro, a cama ora cheia de amor, ora vazia? Uma premonição que não pesei bem. Mea culpa. 
Fiquei descansado. Mas logo a seguir tive uma sensação de desconforto que não revelei. Preferi calar-me e falar mais tarde do desconforto. Não queria interferir com ela porque a nossa relação estava ainda naquela fase ingénua em que pensamos que não há problemas e, se os há, têm sempre uma solução “light”.
Os dias passaram-se e senti-me melhor. Não quis perguntar à Margarida o que fez. Escondi-me no esquecimento. Pelo menos a coisa ficou em banho maria por mais alguns dias. Até que ela abriu a folha do esquecimento.
«Sobre aquilo, Rodrigo…» 
Já me esquecia. Chamo-me Rodrigo. E ela é a Margarida, conforme já tomaram conhecimento. Mas também podemos ter outros nomes...)
«Aquilo?»
Deixou passar alguns segundos. Não mais que meio minuto.
«Já tratei daquilo.»
«Sim?»
Então passou à fase do esclarecimento. Ouvi-a com atenção. E não era caso para menos, pois disse que contactou uma tal Carolina, mulher de artes cartomantes e de outras ainda, quem sabe que outras...
«Nada de mal lhe aconteceu.» 
Ela, o obstáculo. Mas não a conhecia. Tanto fazia. Só tinha receio do efeito boomerang.
«Assim espero. E como foi?»
«Fizeram apenas uma coisa que se chama chamado
«E o que é isso?»
Explicou-me então que era um trabalho difícil de médiuns. Entraram em contacto com o subconsciente da pessoa visada e avisaram-na que devia, para seu bem, parar com as intenções de bloqueio que vinha exibindo.
«É mais que certo que a pessoa obedece inconscientemente à ordem. Pelo menos nos primeiros dias. Depois, há que repetir o contacto as vezes que forem necessárias.»
«Então não acabou.»
«Pois não. Olha, até à meia-noite é melhor estarmos juntos. É para tua segurança.»
«Mas diz-me…»
«Só amanhã, querido.»
E assim aconteceu. No dia seguinte contou-me o que aconteceu.
A Carolina e outro médium entraram em contacto com o subconsciente da mulher que estava a bloquear a nossa relação e travaram com ela um diálogo de persuasão, tentando convencê-la, metendo-lhe medo de que, para seu bem, devia abandonar as consultas que estava fazendo e deixar que eu seguisse a minha vida. Era melhor para ambos. Mas parece que ela foi renitente nas suas intenções. Segundo a tal Carolina, revelou ser “muito refilona”.
«Resultados?»
«Só com o tempo.»
Duvidei ser possível fazerem tal trabalho de entrar à distância no subconsciente de uma pessoa e convencê-la, metendo-lhe medo, que devia abandonar uma atitude tomada e deixar-me em paz.
«Mas afinal o que se passa, Margarida?»
«Muito simples. Ela consultou uma brasileira para fazer amarração. Mas já está tudo resolvido.»
Fiquei a pensar. O mesmo deve ter feito a minha companheira. Nunca imaginei que chegássemos à situação crítica de estarmos ligados em tão pouco tempo, como estávamos. Aos poucos, sem que desse conta, foi-me fazendo o cerco. Bem me avisou um amigo.
«Tem cuidado, Rodrigo. Não te deixes envolver. A Margarida não é mulher para ti.»
«Eu sei o que estou a fazer, pá.»
«Só por causa de meia dúzia de quecas? Cuidado que ela é ninfomaníaca!»
«Se é, ainda bem. Então são mais que seis quecas. Depois, cada um segue o seu caminho. Mas onde queres chegar?»
«Cuidado com a tua carteira, amigo! Não te esqueças que quem te avisa teu amigo é.»
Fiquei intrigado. Que sabia o Tomás que eu não sabia? É certo que as paixões são cegas e criadoras dos maiores disparates. Uma vez passadas, também a neblina passa. E então já é tarde.
«Está bem, amigo. Fico avisado.»
«Não te esqueças.»
Pois foi. Poucos dias depois a nossa relação estava consumada e eu nem sequer pensava em fugir. Se ela era ninfomaníaca, conforme o meu amigo jurava a pés juntos, então é bom. Temo-nos amado noite a seguir a noite até à exaustão? Ela é fantástica. Nunca uma mulher me levou tanto aos píncaros como ela. E quanto aos avisos do Tomás, acho que ele não tinha razão.

Em julho fomos passar uma semana a casa de uma amiga da Margarida. Uma vivenda simpática perto da Nazaré cedida pela Ondina, ausente algures em França onde, segundo a minha amante, trabalha que nem uma moura para ter mais tarde uma reforma condigna.
«Mas que idade essa tua amiga tem?»
«Trinta e seis anos.»
«Ainda é muito jovem. Demasiado cedo para pensar a cem por cento no conforto à lareira do crepúsculo. E é casada?»
Sorriu.
«Compreendes…» 
Não. Não compreendia. Ou melhor: só se...
«É fufa?»
«Penso que sim. Mas vive só.»
«E tu nunca…?» 
Tive um pensamento estranho. Algo me dizia que as ninfomaníacas também podiam ser fufas. davam para os dois lados.
«Achas? Longe vá o agoiro. Somos apenas amigas. Conhecemo-nos desde os sete anos.»
«Pronto, não te abespinhes. E sabes uma coisa?»
«Não sou bruxa, amor.»
«Tens razão. Mas ficas ainda mais bonita quando te zangas.»
«E depois?»
«Depois…»
Aproximei-me mais até os nossos corpos se tocarem. Escaldavam.
«Rodrigo!»
«Sim?»
Quem podia resistir aos encantos de uma mulher caliente?
Lembro-me que os dias estiveram anormalmente quentes, bem como a nossa paixão ou amor (nunca cheguei a saber). Os avisos do Tomás moravam longe e estavam quase esquecidos. Aliás até já admitia ter encontrado a minha alma gémea.
«As almas gémeas não existem, Rodrigo.» Disse-me um dia uma apaixonada.
«Bem sei» sorri. «Mas deixa-me sonhar. Quem sabe?» 
Foi a minha alma gémea até que, um dia, uma nuvem passageira a levou.
Até parecia. estava adormecido por um desses filtros do amor. Bem gostava que o meu amigo estivesse presente naquele momento. Quanto ao balanço do que aconteceu nessa semana em nada se diferenciou dos dias anteriores. Só passámos mais tempo juntos, dado que as nossas atividades profissionais foram suspensas. Estávamos de férias.
As manhãs foram todas passadas na Nazaré, na praia do sul. Só num dia ficámos até ao fim da tarde. Almoçámos numa esplanada e depois fomos ao Sítio (D. Fuas Roupinho a quanto obrigas!). Nos outros dias almoçámos numa simpática e quase deserta casa de pasto da aldeia, onde nos regalámos invariavelmente com peixe grelhado, salvo uma vez em que o almoço foi mais pesado. Nada mais nada menos que sopa da pedra. Quanto às noites, essas tiveram a história do costume. Deitámo-nos quase sempre por volta das onze horas, mas adormecemos muito mais tarde, por razões óbvias.
À margem das rotinas verificadas noite fora, aconteceu, a meio de uma dessas noites, um suposto fenómeno que me intrigou deveras e ainda hoje me inquieta.
Fui acordado repentinamente. Ela estava histérica. Jurou a pés juntos que teve uma visão. Algo mau, relacionado com a minha mão e o irmão dela. 
«Não entendo. Que tem a ver o teu defunto irmão com a minha mão?» 
«Cala-te!» 
Calei-me. A Margarida estava fora de si. Deixei que continuasse.
A certa altura, estando acordada pegou-me na mão ou viu a minha mão levantar-se como se fosse a mão de um morto. Afirmou que a mão estava fria, não tinha a mínima ação. Repliquei que podia estar dormente. Disse que não. Via ali coisa do irmão já falecido há uma meia dúzia de anos. Estava assustada com o que sentira e agarrou-se muito a mim. Enquanto vivo, o irmão fizera-lhe sempre a vida negra. Porquê? Talvez porque não lhe perdoava ser a menina predileta do pai. 
«Invejava-me. mais que uma vez disse-me que era burra e nunca acabaria o curso.» 
«Afinal, a maldição foi para ele. Uma espécie de boomerang...»
«Sim.» 
«Suicidou-se?» 
«Não quero falar disso.» 
Foi a única vez que dei conta ter acontecido algo de insólito com ela e de que não dei conta.. Paradoxalmente, essa noite serviu para incendiar ainda mais a paixão que ambos sentíamos, contrariando as previsões do meu amigo. Mas nunca consegui saber se ela falou verdade nessa noite.
«Não foi um pesadelo, Margarida?»
Disse que não. Repetiu que acordou por um motivo desconhecido e quase a seguir viu a minha mão elevar-se. Julgou até que eu estava a brincar. Mas pôs logo a ideia de parte quando pegou na minha mão.
«Estava gelada, amor. Era ele! O Aníbal quer separar-nos…»
«Está morto, Margarida. Deixa o teu irmão em paz.»
«O que quer que tenha sido, vivo ou morto, queria afastar-nos.»
Até podia ter sido outro ente enviado pela tua ex!
«Então não era o teu irmão?»
«Não sei. Aquilo tinha a mão gelada.»
«Aquilo era a minha mão, Margarida.»
Apertou-me o tronco com força desusada. Se acreditasse em entes do outro mundo também desconfiava que não era ela naquele momento.
Aos poucos, o aperto foi-se atenuando e ela aninhou-se no seu aconchego.
Arrepiei-me. A Margarida sentira a minha mão fria. E agora toda ela era gelo.
Acendi a luz do candeeiro da mesa de cabeceira e virei-me para ela.
«Não será aquela presença que sentimos quando estamos deitados?»
«Qual presença, amor?»
«Mas…»
«Mas o quê?»
Senti novo arrepio. Ela não era ela!
Não sei como fiz, mas de repente estava fora da cama.
«Então, querido, já passou.»
Respirei fundo. Dizia? Não dizia? Optei por nada dizer. Eu quase que gozara com a sua visão, ou melhor, com a sensação da minha mão gelada. Mas agora…
«Margarida, como foi que viste no escuro a minha mão a erguer-se?»
Senti que estava a dar-me um nó cego. Mas... e todo aquele histerismo que presenciei?
«Não acreditas em mim, Rodrigo?»
Voltei para a cama e ela aproveitou para encostar-se o mais que pôde. A seguir ficou muito séria, acariciou-me os cabelos e tentou beijar-me. Digo tentou, pois no momento afastei-me. Ainda conservava a sensação desagradável do seu corpo gelado. Que noite aquela!
A propósito, admiti também como causa a presença da Jovita. Uma relação que acabou em tragédia. Suicidou-se porque deixei-me seduzir por outra mulher. Foi um mau momento que passei. Não deixou qualquer escrito a justificar porque se suicidou, mas durante muito tempo fui tomado por um sentimento de culpa. Não a devia ter deixado. Por outro lado, nem eu nem ela seríamos felizes se seguíssemos o mesmo caminho. Na verdade, éramos incompatíveis e ela até concordou. Mais ainda. Reforçou a ideia da incompatibilidade. E então ganhei coragem e a relação acabou. Ficámos amigos. Mas não bastou. E foi aí que comecei a passar por maus bocados. Ela apareceu-me mais que uma vez e quase pirei. Foi aí que a Margarida voltou a entrar. Consultámos uma médium e pronto. Coisa fácil, segundo ela. Encaminhou-a para a luz e as aparições pararam como que por encanto. Mas essas consultas não foram baratas. Custaram-me mais que dois mil euros. Nunca acreditei que ela me deixasse, mas agora a coisa funcionava de outra maneira. Admiti até mais que uma vez que ela encarnava na Margarida. Acontecia quando estávamos deitados e nos olhávamos. Então, ficava muito sério a fixá-la. Depois, pegava-lhe nos cabelos, acariciava-os, acachapando-os aos lados. E então, sim. Era ela. A Jovita. O seu olhar doce. Aquela expressão que nunca se varrera da minha memória.
Seria possível ou tudo não passava de uma alucinação?
«O que se passa?» pergunta ela, parecendo encantada com o meu olhar. 
Pelo contrário, sentia-me inquieto.
«Tenho a certeza que já nos conhecemos no passado!»
Déjà vu?
«E eu também» aproveitava-se talvez da situação. «Temos muito em comum que não foi adquirido só nestes dois meses.»
«Quem fomos, Rodrigo?»
«Não importa saber. Agora somos nós. Só nós.»
Sentia-me bem agarrado à Margarida. Bendita aparição!
«Parece que fomos siameses!» dizia ela.
«Longe vá o agoiro. Incesto não, Margarida!»
Demos vários passeios pelos arredores. Não deixámos de ir a Alcobaça, onde a Margarida gastou mais que um rolo a tirar fotografias aos túmulos de Pedro e Inês, principalmente ao túmulo do monarca cruel. Andámos também pelas Caldas, Óbidos, Baleal, Peniche, S. Martinho do Porto. Não deixámos de ir a Fátima, onde chegámos já perto do pôr do sol.
O que há de especial a dizer em relação a Fátima?
Na verdade, ela não gostou. E, coisa estranha, no dia seguinte rebentou uma crise forte que atribuiu à ida a Fátima. Fiquei de pé atrás. Não posso esquecer-me do que disse em relação à sua felicidade. Essa só seria alcançada à custa da destruição de outra relação. E assim aconteceu. Por outro lado, das duas ou três crises que houve, a Margarida relacionou-as com merda certamente vinda da minha outra relação. Alguém lhe dissera, mais que uma vez, que havia uma pessoa mais velha a fazer magia, talvez um homem que se fazia pagar bem.
«Não acredito. Ela não é pessoa para isso...»
«E vai sozinha!»

Quando regressámos a Lisboa cada um foi para o seu apartamento. Quanto à relação, esta manteve-se bem acesa e a Margarida continuou a ser fenomenal na cama. Parecia que nada nem ninguém era capaz de destruir o que sentíamos um pelo outro. Tínhamos até pensado em apressar o casamento. Não fazia sentido cada um viver no seu canto.
«Que achas, Margarida?»
«Casamos a meados de agosto. Sim, amor?»
«Concordo. E fazemos um casamento secreto. Nem os nossos amigos vão saber. Só ao civil, bem entendido.»
«Combinamos amanhã? Tenho ainda outra coisa para dizer-te.»
«Está bem, meu amor. Estás grávida?»
«Longe vá o agoiro!»
«Longe vá...?» 
«Sim. Logo vês. É para interesse de ambos. Almoçamos hoje no “Sem Nome”?»
«Se não te importas, vamos almoçar à Baixa.»

Já na Baixa alvitrei que almoçássemos num restaurante da rua dos Correeiros.
«E que restaurante?» perguntou.
«Escolhe tu.»
Optou por um que ficava no princípio da rua. Torci o nariz.
«Não preferes antes o João do Grão?»
«Afinal quem escolhe?»
Notei que estava tensa.
«Pronto. Já cá não está quem falou.»
«Podemos ir a esse. Mas não vou comer bacalhau com grão. Detesto bacalhau.»
«Ninguém te obriga. A ementa é variada. Mas dá corda aos sapatos.»
«Porquê? Tens pressa?»
Expliquei que era um restaurante muito concorrido e estávamos já em cima da umada tarde.
«Ah sim. Então vamos.»
Felizmente ainda havia três mesas vagas. Escolhi a mais recatada, ao fundo da sala.
«Tivemos sorte. Sobre o casamento pouco há para falar. Mas há a outra coisa que não sei o que é.»
«Temos tempo.»
O empregado já estava à espera de ordens. Ela escolheu uma espetada de lulas e gambas e eu preferi uma feijoada de chocos.
«E para beber?»
«Fanta laranja e meia garrafa de Esteva.» 
«Tinto ou branco?» 
«Tinto.»
Comemos em silêncio. Ela pouco falou e eu imitei-a. Tentava adivinhar o que ia naquela cabeça.
Dispensámos o doce e vieram os cafés.
«Bom, Margarida. Vamos ao que tens para dizer. Se dizes que é para nosso bem, imagino que não seja para nos separarmos.»
«Rodrigo! Que tolice a tua!»
«Desembucha então.»
Nos minutos que se seguiram, a conversa decorreu dentro da normalidade. Disse-lhe que os meus projetos profissionais tinham entrado num impasse. Por esse motivo ia deixar o emprego e aceitar uma proposta mais aliciante. O vencimento era ligeiramente superior, mas o motivo tinha mais a ver com o tipo de trabalho.
«Compreendes? Está mais dentro das minhas habilitações.»
«Acho bem. Desde que não te tome tempo exagerado…»
«E agora quero ouvir-te.»
Fiquei apreensivo quando me disse que tencionava montar um negócio.
«Um negócio?»
Disse-lhe para pensar bem. Não devia trocar o certo pelo incerto. Enfim, tentei demovê-la da aventura perigosa em que ia meter-se. Com o estado atual da economia, era melhor ela fazer de morta e esperar por ventos mais favoráveis.
«Espera uns meses. Não deixes que o teu dinheiro seja atirado aos lobos.»
«Mas eu quero-te como sócio!»
«Pensa bem, Margarida. Disseste… como sócio?»
«Sim, amor. Tenho tudo delineado. Só preciso de algum capital…»
«E esse capital vem de mim.»
Foi então que me lembrei do Tomás e dos seus conselhos.
«Cuidado com a tua carteira, amigo!»
Que sabia ele a mais que eu não sabia?
«Concordas? Não sejas ruim. Vá lá!»
Não tive coragem de dizer que não, mas também não disse que sim.
«Vou pensar. E que negócio é esse?
«Trapos.»
«Trapos? Não há já muita loja de trapos por aí?»
«Estás a ser um desmancha-prazeres. Bem me parecia.»
«Como assim?»
«Avisaram-me que eras forreta.»
«Forreta?» exasperei-me. «Quem tem pago todas as nossas libações? Os teus caprichos, como o anel de brilhantes e brincos e o vestido vermelho comprido? Isto para não falar dos cinco mil euros que te emprestei para um investimento em ações que deu em fiasco.»
Adeus, meus ricos cinco mil euros.
«Não fizeste mais que a tua obrigação. Eu dei-te o meu amor. O corpo que tanto te entusiasmou. As noites calientes
«Deste o quê?»
Fui invadido por uma inquietação estranha. Uma daquelas inquietações que já não tinha há muito tempo, ao mesmo tempo que me sentia fora de mim. Então ela precisava de um sócio para entrar com o dinheiro. E deu-me o seu corpo esbelto e o sorriso todo ele cheio de tentações. Aquela mulher era um demónio tentador que quase me tinha levado à certa. Uma autêntica serpente na cama. Todo um mar agitado de prazeres quando eu devia ter escolhido um lago de bonança. Porra de vida. Como fui levado à certa? Mas não era tarde para voltar atrás. Tinha ido bater a boa porta. Afinal o seu objetivo era trocar quecas por dinheiro. Para não lhe dar o nome certo.
Fez-se um silêncio ruidoso. Toda a paixão que nos tinha aquecido durante pouco mais de três meses estava a ser apagada facilmente por um balde de água gelada. E ela pareceu adivinhar.
«Pronto, se não queres entrar para sócio, então abandono o meu projeto. Sabes muito bem que te amo e o nosso amor não pode ser perturbado por um devaneio.»
Entendi que ela estava a tentar dar a volta ao texto. Mas se ia abandonar o seu projeto, também eu abandonava o meu. Um projeto muito mais sério e mais profundo que o seu. Simplesmente vivermos uma vida a dois.
«Margarida…»
«Sim, amor?»
«Vou pensar.»
«No nosso negócio?»
«Não. No nosso futuro.»
«És um poeta, Rodrigo. E até gosto dos poetas, sabes?»
«O quê?»
«Nada.» 
«Mas...»
«Fiquei com uma dor de cabeça terrível. Se não te importas, vou para casa. Telefona-me mais logo. Por volta das dez.»
Levantou-se, lançou-me um olhar inexpressivo e encaminhou-se para a porta. Continuei levantado, mesmo depois de ela sair do meu campo de visão. Então voltei a sentar-me e levei a mão ao bolso do casaco. Logo de seguida surgiu à luz do dia uma pequena caixa castanha que abri.
Adivinhem o que veio à luz do dia?
Sim. Isso mesmo. Um anel de noivado que me tinha custado uma pipa de massa.
Não telefonei à Margarida nessa noite. Nem tão pouco ela. Nem no dia seguinte. Nem tão pouco ela. Nem voltei a procurá-la. Nem tão pouco ela. 
Dias mais tarde voltei à ourivesaria para tentar reaver a minha pipa de massa. Como era de esperar (já alguém me tinha avisado), pagaram-me só o valor do ouro e ainda tiveram a lata de descontarem no peso o diamante. O resultado não se fez esperar. Perdi mais que meia pipa de massa!
A vida dá-nos grandes lições e é bom que as estudemos a fundo e que as mesmas fiquem para memória futura. Quanto ao resto, paz às nossas quecas, Margarida. E porra para as noites calientes.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

A história do cão

 

Uma história verídica extraída do romance  Manuela




Estás diferente e, paradoxalmente, tão parecida, quando percorro as ruelas que sussurram a mesma história que já vivi noutros tempos. És a cidade do “Alto Alentejo cercada” e os teus murmúrios são recordações que voltam no ressoar das minhas passadas pelas pedras gastas das ruas íngremes e estreitas, onde, um dia, caminhei ao lado da rapariga do vestido branco e olhos tristes. Foi há muitos anos. Ao fim de tantos anos e de coincidências in­críveis, dá para pensar. As recordações são tão fortes e obsessivas que têm calor suficiente para destruir o próprio presente que parece nada valer. Não resisto aos chamamentos que o passado me faz. E o passado reflete-se, fa­tal­mente, no presente e no futuro.
Não consigo concentrar-me porque aconteceu um fenómeno es­tranho. Posso chamar-lhe coisa. Também foi um amor à primeira vista.

Saí de casa dos meus tios por volta das oito da manhã. O calor prometia apertar. Antes de me dirigir para o jardim da Corredoura, tirei uma foto­grafia à Sé e outra ao monte da Senhora da Penha. 




Dei conta de um casal de jovens sentados num banco de tijoleira, virados para o monte, em contemplação e não só. Era cedo. Os namorados não se cansavam de trocar carícias. Podíamos ter sido eu e ela, pensei. Noutro tempo também estivemos ali e no miradouro de São Cristóvão.
A ideia fez-me sorrir. Era absurdo. Não podia estar a ver o passado. A máquina de viajar ao passado ainda não tinha sido inven­tada.
Mas o absurdo estava ainda para acontecer. 
Vi dois cães quando ia a atravessar o Arco do Bispo. Um deles aproximou-se. Pensei que o animal ia rosnar, tal como tinha acon­tecido, estranhamente (mas, o que é que não foi estranho?), em Estre­moz, no dia dois deste mês. Todos os cães que vi na zona da Torre antipatizaram comigo. Ladraram, raivosamente, à minha passagem, como que querendo dizer:
«Não és bem-vindo.»
Um dos cães aproximou-se. Era amarelo. De pelo luzidio, bem tratado. Via-se que tinha dono. Observei-o, cauteloso. Cheirou-me as calças e logo abanou a meia cauda. Fiquei descansado. Parece que tinha pas­sado no exame. Achei que o cão era simpático e disse-lhe duas pa­lavras amigáveis, justificando que não lhe fazia festas por ter as mãos ocupadas: numa tinha o dossier e na outra a máquina fotográfica.
Falar com um cão? Não estava bom da cabeça!
A resmungar, lá segui o meu caminho. E ele fez o mesmo. Com uma diferença. Resolveu ir atrás de mim. Como um cão que se prezava.
Parei.
«Não tenho nada para te dar...»
O animal também parou. Continuei a andar. E ele continuou a se­guir-me.
Como entrar na cabeça do cão e adivinhar os motivos que o levavam a seguir os meus passos?
Aquilo... era mesmo um cão?
O objetivo era a Corredoura, onde ia recordar o passado que me fugiu. Ver, de novo, o banco do jardim onde, tantas horas, eu e ela, estivemos sentados, entregues a contemplações apaixonadas. Foi nesse banco que o nosso amor ganhou raízes profundas e os olhares criaram os mais belos poemas que nunca consegui escrever. Foi aí que o céu virou azul para os dois. Definitivamente, adotámos o azul como estado de alma quando estávamos juntos.
Meti-me por atalhos. Tinha pressa de chegar. O passado estava à minha espera, sem ser preciso usar a máquina do tempo. De vez em quando, olhava para trás. Estranhamente, o cão seguia-me a poucos metros de distância. Sempre que parava, imitava-me e ficava a olhar para mim. Submisso. Talvez à espera de uma carícia. Talvez esperando um doce. 
Esqueci o cão. Naquele momento estava a chegar à Corredoura.
Seria que encontrava o banco?
Reconheci a zona. Havia dois bancos, lado a lado.
Qual deles?
Talvez fosse o que estava mais próximo.
Ou era o outro?
Sentei-me unicamente por intuição. Mas o cão, esse não esteve com dúvidas metafísicas. Encostou o focinho às minhas calças e levantou as patas, tentando saltar para o banco. Admoestei-o, sorrindo.
«Não é lugar para cães...» Disse, apontando para o chão.
Insistiu.
«Sim, o chão...»
Ficou decepcionado, a olhar-me com um ar suplicante e doce. Mas não contemporizei. Que diabo! Não passava de um cão rafeiro. Nem sequer tinha pedigree...
Obedeceu. Mas, sempre que havia um ruído anor­mal à sua volta, levantava-se, corria a investigar, tentava de novo sal­tar para o banco e, resignado, deitava-se aos meus pés. Tantas vezes tentou que acabei por ceder. Deixei-o fazer o que queria. Ganhara todo o direito do mundo. E assim ficou deitado a meu lado, de focinho encostado às calças e olhando meigamente para cima. Pouco depois dormia a sono solto.

A alergia voltou. Comichão no nariz, na garganta. No outro tempo, ela tinha a alergia no fim da primavera e eu não. Só a tive mais tarde. E uma alergia não se pegava. Aparecia. Apenas aparecia. Mas porque me apareceu a mesma alergia que tinha a Manuela?
O cão adormeceu. Ainda não são nove horas da manhã e sinto-me bem. O ar vai aquecer mais. Tudo é silêncio. Oiço apenas o chilrear dos pássaros.
Olho o cão amarelo e sou apossado de uma ideia maluca. Penso que estou a ser castigado. Ter um cão por companhia, quando, noutro tempo, a mulher única, que sempre vi jovem, estava ali, a meu lado. O sonho da companhia imaginada eterna de uns olhos tristes e meigos que ainda hoje não esqueci e os olhos meigos de um cão que veio, não sei de onde, para seguir, fielmente, os meus passos. Coisa surreal esta última, Um cão que me seguiu e que agora dormia ao meu lado direito.
Como era no tempo que nos fugiu?
Ela ficava do lado esquerdo. Julgo que era assim. Era mesmo. Tenho a certeza.
E depois?
Depois parti para outras madrugadas. E tu também, estrela. Mas as tuas madrugadas acabaram cedo. Tinhas trinta e dois anos quando caíste na penumbra e ficaste a flutuar durante longos anos no éter, desorien­tada, até que me encontraste. Hoje talvez vivas cá dentro. Sangrando neurónios. Dia após dia. Descobri-te mais tarde, entre os neurónios que sangravam. Tentei dar-te luz. Penso que era o teu desejo. Mas não quiseste partir. Continuas ainda à minha volta. Por vezes, dentro de mim. Tens medo de partir para uma viagem sem regresso. E choras... dizem que choras com pena de não me teres! Nunca te ouvi chorar. Mas há quem oiça.
Algo veio alterar a situação. Dois cães de pêlo castanho e focinhos alongados, de uma beleza canina nada comparável ao rafeiro deitado ao meu lado, fixaram os olhos no banco. Penso que chegou a hora da partida. O cão já deu conta da presença. Levantou o focinho. Trava-se um diálogo telepático que não atinjo. A seguir, m dos cães afasta-se. O meu salta para o chão.
«Quieto!»
Olha meigamente para mim e parece dizer:
«Tenho que ir...»
Entendi. O outro cão... é uma cadela. Mudou de posição e pude identificar o seu sexo. Cheiram-se. Trocam carícias. Mais uma linguagem que não entendo. Talvez se trate também de um amor à primeira vista. Tudo se passa de forma rápida. Lá vão, Corredoura acima, e eu fico sozinho, tentando estabelecer um paralelismo entre a súbita e nobre amizade de um animal e a paixão que senti um dia por uma mulher especial.
Quando a vi pela primeira, numa noite cálida de setembro, tive a intuição certa. Era a mulher única que estava a ver nos olhos, tristes e ternos, de uma adolescente.

Agora veio um sinal mais forte e o cão esqueceu o dono, par­tindo para um novo rumo. Aconteceu o mesmo comigo. Mas nunca te esqueci. As cartas que trocámos ontem, fizeram-se em cinza. O teu corpo é pó. Hoje só a recordação arde em chama lenta. Mais nada. Tenta compreender. Deves partir. Já és livre. Tens luz!
Na sexta-feira levei-te rosas vermelhas. Ainda estavam as outras rosas do dia três. Secas.
Continuo sem saber como morreste.
É esse o segredo...?, não podes partir porque...?
O teu silêncio dilacera-me a alma. Sinto as garras da culpa. Quando te vi pela primeira vez acendeu-se logo uma luz. Eras tão frágil!
Continuando a pensar no paralelismo entre o cão e o que aconteceu connosco, um dia decidi seguir outro caminho. Agora é o cão que se afeiçoa. Mas um outro valor, mais poderoso, leva o animal a afastar-se em definitivo. De certo modo, fui também um cão para ti. Errei e estou a pagar. Mas tenta compreender. A liberdade é a única coisa que é dona de todos os seres vivos e ninguém deve impedir que cada um siga o seu caminho. Mesmo que não seja o caminho certo.
Também não te posso prender desse lado da porta!

Ontem fui com a Olinda e o tio Carolino a uma "soldadora" do Caia que vivia numa terrinha a poucos quilómetros de Por­talegre. Queria fazer uma experiência. Testar se os meus dons sempre existiam ou se, pelo contrário, em nada evoluíra.
O que viu ela em mim? Uma pessoa nervosa (coisa fácil de desco­brir) e com a boca do estômago inflamada. Nada de grave. Depois, havia a inveja de uma mulher. Tentei obter mais dados. Primeiro eu fazia o trata­mento. Depois se descobriria. Se a situação se inver­tesse, seria mau para mim. Jamais me curaria.
Boa maneira de fugir à informação e de me impingir medicamentos naturais.
Sugeri que talvez fosse um encosto. Nada de espíritos mortos. O meu mal vinha de uma pessoa viva que me invejava muito. E, surpresa das surpresas! Era uma mulher!
Então contei-lhe uma história ligada a uma mulher de vermelho. Não comentou. A fase da medicação tinha chegado. Era sagrado, admiti. Inevitável como um dia seguir a outro. Escreveu numa folha tudo o que devia fazer. Depois, levantou-se para ir buscar os remédios. Descobri um deles antes de ela o recolher. 
«Nervite.»
Sorri, ao ver que tinha acertado. 
«O senhor tem uma corrente muito boa!»
Fiquei a pensar. Tinha uma corrente muito boa. E para que servia se não passava de um canal por onde tudo passava e não podia intervir?

Foi bom retornar ao passado. Recordar. Foi bom encontrar o cão que me seguiu. E não precisei de descobrir. Mas a minha intuição disse-me. O que tem que acon­tecer, acontece mesmo.
Quando um dia te vi, envolta num manto negro de tristeza e fatalidade, acreditei que os meus passos acompanhariam os teus a vida inteira. Enganei-me. O nosso caminho não foi o mesmo. Mas aconteceu amor. De­pois, desencontro. Frustração. E agora, que es­tás do lado de lá, recordo o passado com saudade. Mas não te tenho nem me tens. Nem sei se o que sinto agora é a tua presença. Só me resta o poder do pensamento que é livre. Sonhar.
Como será o amanhã sem ti?
Na véspera da sua morte, Fernando Pessoa disse:
«Não sei o que me reserva o amanhã...»
Também eu não. Apenas tenho a certeza que um dia destes estarei contigo. Pode demorar muito tempo, mas esta premonição vai cumprir-se.

Oiço o ladrar desesperado dos cães. Talvez seja o aproximar do auge sexual. Com os outros animais está o cão amarelo. Um cão que apenas existiu para fazer paralelismo com o passado. Um cão que não foi miragem. Tirei-lhe uma fotografia no jardim da Corredoura. Ficou a olhar para mim, junto ao banco. Que cão tão estranho para ser o que era. E o que era? Um cão que queria, à viva força, deitar-se ao meu lado. E tanto tentou, que conseguiu, ador­mecendo encostado às minhas pernas. Um simples animal irracional concretizou tudo o que foi impossível para nós.
Agora estou neste banco à espera que nada aconteça. Só. Com as imagens do passado. Com o vazio do presente e com a promessa absurda do futuro voltar tal como o sonhámos e que nunca será.
«Está frio!»
«Não, está fresco.»



terça-feira, 16 de setembro de 2025

Vou passando por aqui

História escrita há quatro anos atrás e que volta a primeiro plano... 

 

A

ntes de entrar nesta história não resisto à tentação de falar de anomalias que ocorrem no casino que frequento cada vez com menos assiduidade por razões óbvias que já aqui foram explicadas em tempos, mas que é importante lembrar. Numa palavra. Alta corrupção. Aliás, estas anomalias são transversais a todos os casinos. É o que penso. Tranquilizem-se. Não se passa de anomalias no tecido do espaço-tempo, tão do agrado dos escritores de ficção científica e que também me agradam, embora não me considere um escritor ligado a esses temas. Sou um contador de histórias, algumas vividas, outras contadas e outras fruto da minha imaginação. E daí não passo. 
Chamando à coação as anomalias que, por sinal, não defini, deixo-as ainda de parte porque quero falar de outras também transversais que têm vindo em crescendo a perturbar a nossa sociedade já muito martirizada recentemente pelo SARS-Cov - 2. O mais estranho de tudo é que têm sido tratadas com luvas, pinças e outras merdas, e aí incluo o pântano em que está atolado o nosso Ministério Público que deixa avançar as ditas anomalias causando uma perplexidade inimaginável, bem como revolta nos cidadãos comuns.
Então, qual é a coisa qual é ela...?
Já todos adivinharam que se trata da corrupção. E esta, por sua vez, não passa sem a companheira designada por "lavagem de dinheiro", uma lavandaria com muitas e diversas ligações que se perdem de vista. Há muitos casos já investigados e também muitos que não conduziram a parte alguma. Enfim, é o país que temos e merecemos ter. Pior, talvez seja a "repúblicas da bananas" e mesmo assim tenho as minhas reservas.
Levando o fenómeno da corrupção para o casino do qual sou utente que cada vez o frequenta menos por razões que estão à vista, recordo o não saudoso tempo em que me lancei em reclamações diversas que acabaram por dar em nada. Fiscais, chefes de sala e inspetores juraram a pés juntos que os jogos nas máquinas eram aleatórios e que não havia as designadas salas de controle. Tudo não passava de teorias da conspiração, sacos onde caíam todas as revoltas silenciosas dos utentes, uma espécie de zombies, cadáveres reanimados com ideias insufladas por agitadores escondidos nas sombras que só queriam provocar o caos. Pobres utentes que faziam as suas queixas no maior do secretismo não fossem chamados a depor e assim revelarem o vício que não os largava. Nesse tempo já se falava à boca cheia de corrupção e conhecia de cor e salteado os beneficiados, embora não tivesse provas diretas para os acusar de ligações a fiscais ou chefes de sala. Os atos de favorecimento eram feitos com alguma discrição, ao contrário do que vem acontecendo agora em que os ditos são feitos à descarada. Entretanto há uma nova ordem entre os utentes queixosos. Parece que estão, aos poucos, a sair do medo de serem descobertos como viciados e os seus protestos começam a ouvir-se mais alto (1). Só não entendo por que motivo os corruptores e os corrompidos agem tão à descarada. Da maneira como estão as coisas dentro em breve tudo vai mudar. A não ser... que haja algo que eu desconheço. Por exemplo, que já se saiba nos bastidores que a sociedade que gere o casino está em risco de perder no fim do ano a concessão. Daí o desespero instalado a nível de alguns funcionários.  Daí as máquinas em geral estarem a não corresponder em restituição de prémios ao que está estabelecido na lei. Daí o saque ser agora maior e mais que evidente e os que ganham estarem a ganhar mais e os que perdem estarem a perder mais. Perante o que está a acontecer, quem não está dentro do esquema não intervém. Nem sei porquê. E neste jogo dentro do jogo, segundo as informações recolhidas pelo Mário, constato que apareceram novos jogadores a atacar forte, bem como outros que já eram utentes há mais tempo, e que a maior parte está a ter retorno. Quanto aos que jogam mais baixo têm vindo, salvo raras exceções, a pagar mais uma vez a fatura. Mas atenção para alguns que jogam alto e não fazem parte dos "protegidos". Agora estão a ganhar, mas, de um momento para o outro, a sorte pode virar. Estejam atentos, façam a sua contabilidade e não se deixem viciar. Continuando a jogar alto é o pior que podem fazer. Não pensem que a sorte pode mudar outra vez. O esquema já vem de longe e faz lembrar aquela história do cão de guarda que deixa entrar o ladrão e abocanha-o à saída.
Prevejo um futuro muito negro para o casino se os responsáveis pela gestão não souberem ou não forem capazes de estancar a estruturação caótica provocada pelo "sistema" que controla a manipulação das máquinas porque já a curto prazo vão perder muitos clientes que estão nos limites.
Que saudades tenho dos tempos em que eu e o Raul jogávamos neste casino que nos dava um dia de sorte e outro de azar!
Um desabafo desagradável face à situação que se vive agora no casino, segundo as informações que recolho. Longe vão os tempos em que jogava nas máquinas dos corações dourados e aquela noite em que descobri uma mulher de etnia cigana que jogava em duas das três máquinas dos corações dourados, usando a alavanca como se estivesse a extrair leite de vacas na estrebaria. Gestos, que me escaparam, daquela mulher que vestia de negro e jogava com satisfação porque o jogo corria-lhe bem. Pelo pouco que vi admiti que ela estava a ganhar. Daí talvez jogar em duas máquinas.
Uma noite, joguei na terceira máquina disponível e o resultado não se fez esperar. Perdi e lamentei estar com azar.
«Jogue naquela máquina, senhor [2]
E indicou a máquina.
«Mas é uma máquina de vinte cêntimos!»
«É preciso acreditar, senhor! Jogue...»
«Perdido por cem...» Pensou.
Joguei e ganhei. 
Tal como tinha acontecido a muitos utentes a mulher deixou-se envolver na teia urdida pelos manipuladores e começou a perder uns dias depois. Até que nunca mais voltou.
Foi nessa altura que conheci a Mariana.

Já depois da meia-noite decidi jogar numa máquina do primeiro piso, de nome Fox on the Run. Logo a seguir ao êxito dos quarenta euros tinha jogado numa dessas máquinas e dera-me bem.
No momento, três jovens, um homem e duas mulheres, olhavam com curiosidade para uma das máquinas. Instalei-me e logo se afastaram. Para meu espanto, pouco depois estavam sentados atrás de mim, feitos mirones, mas mantendo a distância. Não foi a presença deles que me irritou. Já não vinha bem do piso de cima por causa de uma máquina que achei estar a ser manipulada.
«Teoria da conspiração.» Teria dito o Raul.
Aproveitei para expor o meu ponto de vista acerca da manipulação programática de todas as máquinas. Estavam organizadas por temas, formando os tais blocos em que tenho vindo a insistir.
A conversa tomou um rumo tão interessante que até me desinteressei do jogo e tentei estudar as pessoas com quem falava. Uma das mulheres, com olhos escuros e cabelo curto, mostrava-se menos do que a outra. Curiosamente não me era estranha. A outra, mais próxima de mim, de olhos esverdeados, melosos, era tão simpática quanto curiosa de saber coisas sobre o jogo.
Estabelecemos desde logo uma química de comunicação fora do comum.
Vou dar nomes aos três intervenientes nesta  história [3]. A mulher dos olhos melosos, serena, envolvente e incisiva pode chamar-se Mariana. Quanto à companheira dos olhos escuros, que parecia esconder-se de mim, dou-lhe o nome de Carla. E ele, Francisco.
«Já estudou o algoritmo da máquina?» perguntou a Mariana.
Seriam os processos de cálculo? As operações lógicas?
Insistiu.
«Cada máquina tem um algoritmo.»
Seria mais favorável o jogo numa máquina a dezassete linhas? E o dia seguinte? Talvez sim, talvez não. Além disso, devia haver toda uma sequência de acontecimentos que poderiam ser alterados por muitos if... else... then e muitas mais complicações lógicas que "atacavam" situações fora do comum, como apostas fortes, alterações bruscas de valores de créditos apostados, abandonos provocados por prémios (altos ou baixos), entrada dum ticket doutra máquina, uma nota de quinhentos euros introduzida, etc, etc...
«E a roda da sorte?» perguntou a Mariana.
«É uma grande aldrabice. Os prémios não compensam o investimento. Para haver hipótese de acesso à roda é preciso investir continuamente oitenta créditos. E se calha o prémio de trezentos créditos, o mais baixo?»
«Pois é.»
«E qual é para si o melhor jogo?»
«Depende...»
«Depende de quê?»
Senti um brilho novo nos olhos da Mariana.
«Prometo que vou deixar um comentário no blogue.» Disse. «Vocês gostam sempre que se escreva...»
A Mariana prometeu. E também o certo é que promessas levava-as o vento.
«Esta história com vocês vai aparecer.» Prometi.
Pareceu entusiasmada.
«Escreva, escreva.»
"Escreve, escreve, António Ildefonso."
O jovem do fato castanho perguntou:
«Porquê tantos blogues?»
«Uns já acabaram e outros começaram.» Tentei esclarecer.
Entretanto a Carla continuava a mostrar-se discreta.
Esgotou-se a conversa e despedimo-nos. A Mariana reforçou a promessa de deixar o tal comentário.
Fui para a esquerda e eles para a direita. Raciocinei rápido. Aí encontrámo-nos de novo.
Mas onde eram as máquinas do leilão?
«São estas.» Informou a Carla.
Só podia ser aquele grupo de seis máquinas.
«Foi nesta que joguei.» Disse o Francisco, apontando para a máquina do meio.
«Tens cinco euros que me emprestes?» perguntou o Francisco à Mariana.
Procurou na carteira algo que não encontrou. Pelos gestos lentos pareceu-me que procurava de verdade, mas a expressão do rosto dizia o contrário.
«Está bem, abelha...» Deve ter pensado.
Já sabia o que a casa gastava. Ou então, como jogadores compulsivos que me pareceram ser, tinham jogado até à última nota.
Despedi-me mais uma vez.
«Então até à vista...»O olhar fixou-se na Mariana. Foi a última imagem de um filme mal contado, já que, desde o princípio, qualquer coisa não funcionava bem.
Encolhi os ombros e subi as escadas rolantes.
Sabia muito bem que as histórias sem continuidade chegavam quase sempre a um beco sem saída. E esta história da Mariana dos olhos melosos não tinha pernas para andar.
«Vocês gostam sempre que se escreva...»
Dinheiro deitado à rua. Sonhos adiados. Noites mal dormidas. Quase tudo por uma nova história.Mib Men in Black... mais uma máquina para testar.
«Qual é o teu algoritmo?»
A resposta veio quase de seguida. Joguei, perdi e não descobri qual era o algoritmo da máquina...

A partir daquela noite comecei a pensar com frequência na Mariana. Aquela mulher de olhos melosos tinha qualquer coisa em si que me atraía. Infelizmente não voltara a vê-la no casino.
Tinha prometido deixar um comentário no blogue e até à data não o tinha feito. Longe da vista, longe do cumprimento das promessas. Os dias iam passando e continuava sem a ver.
Nesses tempos a gestão das máquinas, mais próxima do cumprimento da lei, permitia que Mário frequentasse com mais frequência o casino e começasse a descobrir alguns podres entre os jogadores. Não entendia porque uns perdiam muito mais do que outros. Por exemplo, um utente que jogava baixo, que alcunhei de Palrador era um dos grandes beneficiados. Não era lógico e comecei a investigar. Foi então que um passarinho disse-lhe ao ouvido que havia uma forte amizade entre ele e um certo chefe de sala que já vinha do tempo do Casino Estoril.
«Então é isso?»
A dúvida ficou estacionária a partir de uma certa noite quando me dirigia para as Star Wars e encontrei-me frontalmente com a Mariana que acabava de levantar dinheiro numa ATM perto do bloco de máquinas do Zorro. Quem estivesse a observar-nos talvez tivesse notado algo diferente nas expressões dos nossos olhares. Ou então equivoquei-se, o que era mais natural dada a diferença de idades. Talvez houvesse uma atração mútua e nada mais.
Apanhados de surpresa, apenas trocámos meia dúzia de frases banais. 
Tinha sido tudo muito rápido, pois o encontro foi interrompido por causa de um grupo de mulheres que vinham a descer as escadas rolantes que ligavam o segundo piso com o primeiro.
«São as minhas amigas. Tenho que ir. Gostei do que li no blogue. Não me esqueci ainda de deixar o comentário...»
«Quando...?»
Aquela pergunta não tinha jeito. O que mais me interessava era saber quando ela voltava ao casino, como se chamava e se podia deixar o número do telemóvel. Nada disso aconteceu.

A propósito do jogo aleatório nas máquinas que fiscais, chefes de sala e inspetores tanto defendiam, uma noite aconteceu algo que me deixou a pensar. Jogava nas máquinas dos cifrões que, na altura, se localizavam para os lados do bar numa orientação quase paralela. Jogava e estava a perder cerca de duzentos euros. Contra o que era costume nela, face à realidade já devia ter abandonado a máquina. Mas não. Teimava. Ela tinha que abrir ao bónus. Entretanto, um fiscal seu conhecido tinha-se aproximado de mim. Assustei-me, pois mal dei conta da sua presença. 
«Senhor Mário, como vai o jogo?»
Olhou frontalmente para mim.
«Mal.»
Não precisava de dizer mais que uma palavra para definir como ia o jogo.
O outro também foi pródigo nas palavras.
«Então, boa sorte.»
E afastou-se. Não decorreu um minuto para a sorte mudar. Recuperei os duzentos euros e ainda fiquei com cerca de cinquenta euros de lucro.
«E esta?»
Carreguei logo num botão situado do lado esquerdo e saquei o ticket.
«Vá lá entender!» 
Mas entendia. Só podia ser interferência do meu amigo fiscal.

Voltando à Mariana, nunca mais a vi no casino. Entretanto o fio do tempo trouxe-me novos acontecimentos que me fizeram esquecer daquela jovem que me tinha informado que cada máquina tinha o seu algoritmo.
Só seis meses depois é que descobri por acaso que a jovem Mariana finalmente deixara o seu comentário na mensagem "A "Entrevista". Um comentário muito favorável para que terminava com a frase:
«Entretanto vou passando por aqui...»
Tentei responder ao comentário para agradecer, mas não consegui enviá-lo porque aquele comentário não aceitava resposta.
Ainda hoje penso na Mariana. Acredito que ela continua a frequentar o casino, mas nunca a irei descobrir porque já me esqueci do seu rosto. Coisa estranha! Eu, que me considero um bom fisionomista...
Quanto aos olhos melosos, quantos não há por ali?
O que mais desejo é que ela seja feliz e será muito bom sinal ter deixado de "passar por aqui", um local nada agradável, cinzento a aproximar-se do negro nos tempos que vão correndo e onde, segundo o que me disse uma vez em resposta um chefe de sala a seguir à minha acusação da existência de corrupção no casino: 
«Tenho confiança nos seus funcionários.»
Eu também "continuo a passar por aqui", embora cada vez com menos frequência, à espera de um milagre. Mas tudo continua como dantes.

[1] Bem me enganei (observação na hora)

[2] É preciso acreditar!

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Foi em setembro que te conheci

 


 



Foi em 9 de setembro de 1955. Ainda ontem era agosto. O tempo passa a correr. Não posso esperar mais. Quero sorrisos. Tenho urgência. Mesmo que não haja sorrisos, vou inventá-los. Imitar a vida que foi nossa e que me roubaram. Quero o amor de volta. Sem condições ou barreiras invisíveis. Bem sei que não consigo alterar o tempo. Voltar atrás até que surja aquela noite que nunca mais vou esquecer. Sei que é impossível. E se não for, então temos um paradoxo, porque ninguém pode mudar o passado. Bem o desejava, mas, ao contrário do desejo, tenho quase a certeza que o relógio acelerou de há uns tempos a esta parte. E cada vez vai acelerar mais, até que seja a única dimensão. O tempo a acelerar e o espaço a desaparecer da vista. Será esse o meu destino. Falando do destino, por causa da aceleração do tempo, tenho receio de ver passar o setembro em que quero reviver o que não vivi precisamente em setembro o nosso setembro que não voltou.
Só por isso e nada mais que isso.
Mas que setembro?
É lógico. Para uns até terá sido agosto. Para outros, talvez janeiro. Ainda para outros, seria necessário inventar um décimo terceiro mês. Cada um sabe de si e do seu mês. Se o deseja recordar ou esquecer. Mas do meu ninguém pode falar. O que aconteceu. Como aconteceu. Porque aconteceu. Porque não aconteceu. Podia não ter passado de um sonho.
E tu?, será que também foste um sonho?
Sim, porque há sempre uma ela com que podemos contar. Sem ela nunca podia haver setembro. A recordação não vem sozinha. Mas partiste, há muito, para uma longa viagem daquelas que não têm regresso. Partiste e perdeste-te com a tua solidão no constelado do céu.
É por isso que aqui estou todos os anos para recordar. Para reviver o que nunca vivi.
Podia ter acontecido. Talvez. Mas também talvez nunca como imaginei que viesse a acontecer.
Há outra coisa. Desta vez estou em agosto, porque disseram-me que o setembro podia não chegar. Não. Não é o fim do mundo. Mas pode ser para muita gente. 
Como foi no tempo em que te amei?

Aconteceu há muito tempo. Faz hoje anos que vi, pela primeira vez, o teu rosto triste. Era uma noite amena de setembro. Foi belo o que aconteceu depois. Mas, um dia, o maquinista da vida levou-me para outros destinos e tu ficaste no cais. Só. Mais triste que a tristeza dos teus olhos casta­nhos. Cada um ficou na sua estrela. Distantes. Só a sonhar com sonho azul.
Não sei porque foi, mas voltei a encontrar-te em cami­nhos paralelos. Esses teus olhos tristes e inquietos que já não eram meus. Foi um absurdo não ter deixado de te amar. Em pouco tempo inventámos o amor e depois deixei-te. De repente. Sem um aviso. Depois, não sei o que se passou contigo. Se continuaste a amar-me. Se me odiaste. Cada um fala de si e julgo que não possas falar-me ao ouvido. Nem tu, nem o teu fantasma.
Eras o meu destino e ainda hoje dizem que estás à minha espera, mas do outro lado da vida. Também ouvi dizer que se enamoraram de ti e não deu certo. De nada valeu para mim. Não te esqueças que nunca me contaram aqueles que hoje dizem que te ouvem chorar com pena de não seres minha.
Mas dirás, se é que podes dizer:
«Porque não vieste ao meu encontro?»
Lamento, estrela. Não sei voar. Assim, continuo preso às limitadas viagens pelas pedras já gastas da calçada. Cansado de viver sem ti. Sem o nosso sonho. Sem o desejo de partirmos para longe. Para a nossa ilha. Aquela ilha onde ninguém nos podia alcançar. Não aprendi a voar pelo azul constelado do céu, entre as estrelas, as galáxias e os universos paralelos e tudo o mais se existir mais. Buracos negros, quero-os longe. Mas adorava descobrir o que está para além deles. Se encurtam distâncias. Se são portas para outros universos. Se deixam que num deles possa ver o nosso sonho de amor tornado realidade. Se muitas coisas mais. 

Não tenho dons. Nem sou filho de Deus. Nunca O vi. Nunca falou comigo. Oxalá no outro universo não tenha interferido e que assim estejamos juntos na mesma estrela.
Dizem os iluminados que somos filhos das estrelas. Nos dois braços podemos ter átomos de hidrogénio que se originaram de estrelas diferentes.
Será mesmo verdade que existem universos paralelos e num deles, eu e tu, os eternos, aí somos felizes?

É um paradoxo ter gostado de ti desde o primeiro momento em que descobri o teu olhar triste perdido no horizonte.  Amo-te. Sempre e até ao fim do fim. Para lá do fim do fim. Na eternidade. Amo-te sem teres hipótese de saber quanto te amei e te amo!
Ainda me odeias?
Só mais seis palavras e depois vou-me embora de vez. São seis palavras mágicas. Pelo menos para mim.
Foi em setembro que te conheci...


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O médium que não cobrou um centavo

 



Abri a porta quase a seguir ao toque da campainha e fiquei à espera.
«Deve ser ele.» Disse a Luísa.
Limitei-me a olhar para ela e fiquei a aguardar. Pouco depois ouvi o correr da porta metálica do elevador e fiz um sinal à Luísa para receber o visitante.
O homem entrou e olhou logo na diagonal. Ficou parado no hall. Parecia estar a leste. Nem boa tarde, nem boa noite. Quase que nos ignorou. Mas foi melhor assim porque pude observá-lo com atenção. Era de compleição forte, não muito alto. Tinha uma cara cheia e assaz patusca. Trazia vestida uma camisa de mangas curtas, calças de ganga e uma camisola azul escura, atada ao pescoço. Na mão direita segurava uma pequena mala prismática, quase cúbica, com pega rígida em cima. Deu-me a ideia de ser um médico. Mas sabia ao que ele vinha.
Disse logo que precisava de ver a casa. Anuímos e deixámo-lo passar para a zona dos quartos e da casa de banho. Começou pelo quarto. Pouco depois regressou ao hall e mal espreitou para a cozinha. Já na sala ficou de novo parado. Eu e a Luísa olhávamos um para o outro, em silêncio. A primeira coisa que pensei foi que, pela amostra, o motivo ao que vinha prometia. Até porque pelo rosto já avermelhado notava-se um início de transtorno.
Teria bebido?
Até pareceu que tinha lido o meu pensamento, pois expirou com vigor. Negativo, avaliei. O hálito testemunhou a favor dele e contra a minha hipótese. Olhou em volta. Não foi preciso convidá-lo a sentar-se porque o fez de imediato no sofá ao lado da televisão.
Pediu um copo de água. Não sei se foi antes ou depois de aquilo acontecer. Tudo se passou do tronco para cima. No rosto e nas mãos. Segui com atenção todas as alterações na sua fisionomia. Não vi qualquer alongamento no rosto. Começou por ficar muito vermelho. Fechou os olhos e iniciou um movimento rápido, cada vez mais rápido com a cabeça. Os movimentos reduziram-se ao fim de um certo tempo e começou com uma espécie de estalidos feitos pela boca e noutra fase modificou-os com um ruído de chuchar, lembrando uma criança, talvez um velho, ou pretendendo imitar sexo oral. O curioso é que não exibia ar de prazer. Parecia mais ligado à violência ou ao sofrimento. As mãos caíam ao longo das pernas e rodavam de palmas para cima, ficando quietas. Isto acontecia depois de uma cena de movimentos bruscos com a cabeça. Houve uma altura em que os movimentos da cabeça, para um para outro lado, quase de rotação, foram mais violentos. Tão rápidos e violentos que receei pela integridade das vértebras cervicais do homem. De vez em quando olhava para a Luísa ou ela olhava para mim. Tínhamos uma enorme vontade de rir, mas, ao mesmo tempo estávamos apreensivos. Sentia as palmas das mãos húmidas, tal era a tensão do momento.
Sempre em silêncio assistimos a uma representação que, se não “falava verdade”, era quase perfeita. Digamos, muito diferente do estilo da vidente Ima, a única pessoa que me convenceu até hoje em termos de autenticidade das suas qualidades mediúnicas. Nunca interrompemos o homem. Nestes casos pensei que era o mais aconselhável. Houve pelo menos duas fases de movimentos com a cabeça muito bruscos e violentos.
Terá durado dez minutos?
Para nós foi uma eternidade. Só queria que o homem acabasse para nos explicar o que se estava passando.
Finalmente ficou imóvel. Pouco depois levantou-se, pegou no copo que estava em cima da mesa oval, bebeu um gole de água, pousou o copo e sentou-se de novo. Tudo feito maquinalmente. Como se nada de anormal tivesse ocorrido. Depois passou as mãos pela pelo rosto e manteve-se imóvel durante mais uns segundos. Não me lembro se as crises foram todas de uma vez ou se voltou a ter outra crise depois de beber água.
Abriu os olhos e olhou, sorridente, para nós. Perguntámos o que acontecera.
«É a primeira vez que me acontece mal entro. Só tive tempo de me sentar. Tudo se passa da porta para o quarto.»
Não tive tempo de perguntar o que se passava. Nem ele dizia. Explicou que não se lembrava de nada. Mas não entendi porque disse que tudo se passava da porta para o quarto.
Simplesmente encarnara e todas as entidades presentes passaram por ele. Admitiu que não teve tempo de avisar para olharmos para o seu rosto, pois daria dados sobre os entes (mortos, sublinhou mais que uma vez) que se tinham apossado dele. Era apenas um médium.
Eu e a Luísa trocámos algumas impressões. Quanto a mim tinha uma imagem de alguém que sofrera muito ao morrer e que certamente era epilética e que tivera convulsões horríveis na fase da agonia. Lembrei-me de uma pessoa familiar que faleceu no hospital depois de estar dez dias em coma. Segundo uma enfermeira ela morreu durante a noite, após horríveis convulsões provocadas pelo envenenamento do sangue, porque os rins já tinham deixado de funcionar. Mas acontecia que essa familiar nada tinha a ver com a Luísa e pus de parte a ideia.
Quando ela falou no pai, já falecido e que nunca cheguei a conhecer, o homem fez um sinal de concordância com o indicador. Admiti que ele concordava com a alusão da Luísa.
Perguntei se os espíritos podiam continuar a vaguear mesmo mais de vinte anos depois de dar-se a morte. Disse que sim. Não gostava de falar em morte. Sim em reencarnação. Para ele o corpo era uma opção.
Pensei numa mulher que amei muito, uma das possíveis suspeitas e dei-lhe alguns dados. Disse logo que não. Senti pena. Curiosamente. De certa forma até gostava que fosse ela, embora não a chamasse já há muito tempo. Aproximava-se o dia da sua morte e até podia ser um chamamento.
O homem voltou a insistir no pai da Luísa. De certa forma podia ser uma causa do mau estar existente na nossa casa. O que acho estranho é o que homem dizia ser apenas um médium e que no seu corpo encarnavam as entidades que vagueavam nas autoestradas de um mundo paralelo, entidades essas que não sabia quem eram.
Então a Luísa passou-lhe para as mãos a fotografia do pai. Embora tivesse dito antes que não voltaria a entrar em transe, mesmo noutro dia que fosse chamado, o certo é que, mal olhou para a fotografia, fez-se vermelho, cerrou os olhos e recomeçou, quase de seguida, o tal movimento brusco e violento muito parecido com duas das fases da crise anterior. A fotografia caiu no chão e aí ficou enquanto durou a crise. Fui eu quem a apanhou. Na fotografia o pai da Luísa vestia uma bata branca. Era, sem dúvida, a confirmação. Mais que confirmação.
Desta vez ficou extenuado, de peito ofegante, com sinais de dores na zona esquerda do peito indicadas pela mão direita aberta sobre o coração.
«Apontou para o coração!» sussurrei.
Confirmou logo a seguir o que eu vira e que descrevi umas linhas atrás. Estivera mal. Sentira mesmo uma dor no peito. Nunca lhe acontecera.
«Ah!» pensei.
«Já cá não está. Dei-lhe luz. Foi difícil encaminhá-lo. Tinha medo.»
«Dizem que há um túnel enorme e escuro para atravessar para o outro lado da luz.» Admiti.
Quando lhe confessei que aconteciam coisas estranhas comigo, ele afirmou que eu era um corpo aberto a que se agarravam as entidades, principalmente as negativas. Seria assim até aos últimos dias da minha vida. Viera ao mundo para cumprir esse destino. Podia facilmente fechar o corpo. Não. Não me aconselhava. Era uma missão que tinha de cumprir. Aí a sua opinião coincidia com a de algumas videntes que diziam que eu estava a pagar faturas. Aí entrava o karma. Tinha de o cumprir senão voltaria de novo atrás sem ter tido hipótese de progredir.
«Mas como afastar os maus espíritos?» perguntei.
Não tive resposta direta. Aconselhou-nos a queimarmos rosmaninho em casa e a fazermos movimentos em cruz com os pés sobre o fumo. À porta, na zona do tapete, devíamos pôr sal, por causa do mau olhado.
O homem disse-me mais que uma vez que me conhecia, mas não sabia donde. Zona da Lapa. Talvez fosse na zona da Lapa.
«Tenho a impressão que não é daí...»
Eu é que não me lembrava dele.
Numa fase em que estava distraído e já depois de ter dito que nos tratava da coluna, falou do caso, não sei a propósito de quê, de uma mulher que tinha dois filhos. Uma filha com quem se dava mal e um filho que muito desejou e que acabou por nascer anormal.
«Ele não é bem anormal. Até conduz...»
Só perguntei:
«Donde é essa mulher?»
«De Almada.»
Sorri e disse de imediato o nome da mulher. Chamava-se Carlota. Confirmou.
«Eu não disse que nos conhecíamos?»
Só não acrescentei que essa mulher espetava alfinetes em bonecas de trapos. Os seus objetivos eram claros como a água. Considerava-a uma pessoa ruim e tinha provas disso. Claro que não lhe transmiti o meu pensamento do momento.
Ficámos por ali.
Seguiram-se as massagens. Primeiro a Luísa. Depois eu.
A propósito das massagens, disse, enquanto massajava as suas costas:
«É por aqui que passa a vida.»
Referia-se à coluna vertebral.
Mais nada de especial acrescentou.
À saída tentei dar-lhe dez contos que tinha posto num envelope. Em vão. Não quis receber.
«De forma alguma.» Disse.
«Dê a alguém que precise.» Acrescentou.
Pareceu hesitar. Logo se recompôs e respondeu:
«Um dia mando-lhes cá alguém receber.»
«Certo.»
Foram quase duas horas de atendimento aparentemente sério que achámos por bem compensar. Para mim não resultou, mas o homem esforçou-se. Bem disse a Florinda, uma amiga da Luísa, que o homem não recebia dinheiro. Era inédito. E estranho, também. Como estranho fora o acaso dele ter tratado a Carlota que, segundo diziam certas más línguas, espetava alfinetes em bonequinhos que simbolizavam pessoas.
Já há meses estivera para vir à nossa casa, mas a ideia fora abortada. Agora, de repente, aconteceu. Aquela confissão deixou-me a pensar.
A mando de quem e qual o objetivo?
Era estranho. Mais que estranho. Admiti que o alvo era eu e alguém pretendia separar-me da Luísa.
«Quando a tratei ela estava de cama e não conseguia levantar-se. Não queria acreditar no fim do tratamento. É que a senhora levantou-se mesmo!»
Seria que a Carlota e a Florinda, amiga da minha companheira, se conheciam?
A Florinda seguia fielmente a Luísa para todo o lado. Quando eu e a Luísa nos conhecemos e, de repente, surgiu o click que nos uniu, acabou-se a companhia e o rabo tremido no Peugeot na Luísa. Provavelmente não gostou que eu tivesse aparecido na vida da Luísa, mas disfarçou bem.
Enquanto o homem me fazia a massagem perguntou-me se não costumava ter dores de estômago. Disse que não. Perguntei porquê.
«Se não lhe dói o estômago, melhor.» Foi a resposta. Não entendi, nem tentei compreender o que estava por trás daquele "melhor".
Falei-lhe na dormência em dois dedos da mão esquerda: o mindinho e o anelar. Provavelmente eram um problema de coluna. Disse que não. Depois perguntou-me há quanto tempo não fazia análises. O colesterol como estava? Bem, muito obrigado. E continuou o tratamento à coluna.
Nesse dia senti, mais que uma vez, junto à camilha da marquise, por detrás do sofá onde o médium estivera sentado, um odor agradável, uma fragrância, que não consegui identificar. Não durou sequer um segundo. Desapareceu e fiquei com a impressão que conhecia a origem daquele odor. Uma origem remota que se perdera após “longos dias azuis de negritude”.
O homem que veio, supostamente por convite da Luísa, trazia alguma missão especial?
Não sei. O certo é que um ano depois mudámos de casa e o nosso idílio não durou mais que seis meses.
Não voltei a ver o homem.


segunda-feira, 11 de agosto de 2025

O lanche dos queijos




"Qual é o teu real?, e qual é o teu fictício, Mário? 
Nesta tarde, os dois entrelaçaram-se..." 

Foi uma tarde de queijos. 
Não vou revelar o nome da aldeia onde se deu o acontecimento. Nem o nome verdadeiro dos anfitriões e dos convidados. Só posso acrescentar um dado. A aldeia situava-se a cerca de cinco quilómetros da casa da praia.
Seguramente o lanche foi num verão depois de 1983, ano em que a minha casa foi arrendada, verão esse "abençoado" por uma tarde de nevoeiro denso, demasiado fria para agosto.
Mas vamos ao lanche. Não interessa dar mais dados.
O lanche consistia em queijos, pão da Encarnação, azeitonas de Elvas, patê, anchovas, refrigerantes, chá e muito vinho. Lá iremos ao vinho, pois há muito a dizer em relação a este precioso néctar. Vamos começar pelos queijos.
Eram de pelo menos de três nacionalidades, nas quais se destacava a nossa.
Serra da Estrela, Serpa, Nisa, Rabaçal, Castelo Branco. Depois, lembro-me do queijo Brie, azul e Gruyère. Faltam mais alguns, mas longe vai o tempo. Havia também requeijão de Seia. Passando aos vinhos, o nosso anfitrião, um homem que antes do 25 de abril era rico e ficara um pouco maltratado com as ações dos "revolucionários dos cravos", esmerou-se em escolher na sua garrafeira preciosidades, como "Quinta da Bacalhoa, Alvarinho (Palácio da Brejoeira), Pegões, Cartuxa, Monte Velho, Grão Vasco. Porca de Murça, Reguengos.
O pão era saboroso, mas, para mim, tinha um contra. Talvez fermento a mais.
E agora começa a história do lanche.

A mesa, em cerejeira, era suficientemente comprida para suportar nove casais. Os anfitriões ocupavam as cabeceiras. Não me lembro de ter havido mudanças de lugares, nem, tão pouco, um discurso longo de abertura. Talvez tivesse havido um breve agradecimento do Luís Alfredo pela comparência dos seus amigos, melhor dizendo, dos amigos da anfitriã. Na verdade todos estavam ansiosos que o repasto começasse. E começou. Felizmente não se deu um acontecimento inesperado, como um sismo ou a erupção de um vulcão há séculos inativo que se tivesse "lembrado" de acordar naquele momento tão desejado.
«Meus amigos, este lanche...»
Passemos à frente do "comam como alarves e bebam o mais que puderem". Poupem no pão e não bebam água porque  dizem que esse líquido faz rãs.
«Quanto ao vinho... começamos pelos de qualidade superior ou pelos outros?»
Era pertinente a dúvida. E inevitável a discussão eclética que se seguiu.
«Então vamos começar por beber os mais vulgares. Quanto aos queijos, cada um é livre de opção. Estão todos na mesa.
«Nós queremos chá!» disse a Luísa.
«Tens mau vinho?» perguntou o Alfredo.
«Para mim, chá de parreira.» Disse a Virgínia.
Era habitual a ingressão daquela boa amiga no mundo do álcool, desde que tivera um mal de amor. Já a tinha visto mais que uma vez deitar abaixo uma garrafa de whisky, antes deste a deitar abaixo. Mais do que uma vez servi de seu confessor. mas nada pude fazer, senão convencê-la a não beber mais. O seu mal de amor era uma doença profunda, sem cura. Não a deixava só enquanto enquanto estivesse mais ou menos bem e sem sinal de recaída à vista.
«Quem quiser fazer striptease, não se acanhe. Mas só daqui a uma hora.»
Resolvido o problema do chá, o Luís, anfitrião daquela lancharada prestes a ter início, deu o sinal da partida.
Quanto à ordem de escolha dos vinhos, previ que ia haver disparate. Mas estava bem. Os vinhos menos maus também se bebiam bem.
Não tinha decorrido uma hora e já todo o mundo estava a levantar a voz, sob pena de ouvir ainda menos o que o parceiro ou a parceira diziam.
«Isto começa a ser um caos.»
Virei-me para a minha esquerda. Era uma amiga da Virgínia que morava em Londres e viera passar uma semana a Portugal. 
«E ainda agora começou.»
«Já agora, chamo-me Sara.»
«Muito gosto, Sara. Sou o Mário.»
«A Virgínia já me falou de si. É muito sua amiga.»
«E eu dela.»
Trocámos um sorriso breve e voltámos aos queijos. A boa disposição de todos era notória. Até que surgiu um pequeno problema.
«Então quando é que vem esse "Quinta da Bacalhoa", Luís? Afinal de contas, há ou não há?»
De repente fez-se silêncio. Não. Não se ia cantar o fado. Olhei para o Luís e vi o seu olhar faiscante dirigir-se para o Vasco. Mas ficou-se. O Onofre foi em seu auxílio.
«És uma besta, Vasco. Inclusivamente devias ser o último a reclamar.»
Todos sabiam do que se tratava. Uma risada geral comprovou-o.
Num fim-.de-semana que podia ter sido igual a tantos outros (e que não foi), o Vasco tinha convidado os amigos para beberem um copo na sua casa.
«Chivas, Vasco? Perdeste a cabeça.»
De todos era o que tinha mais dificuldades financeiras. Que o dissesse o Onofre, que era o seu financiador. Mais que uma vez o outro tinha-lhe batido à porta.
«Foi uma garrafa que um cliente me ofereceu a semana passada.»
«Ah, logo vi. Deixa-me apreciar este néctar.» Disse o Humberto. «Tens-lhe chegado bem!»
Na verdade, o conteúdo da garrafa já ia a meio.
«Tenho bebido logo a seguir ao almoço. O meu cardiologista disse-me que é um vasodilatador.»
«E tem razão» confirmou a Virgínia. «Mas este não é.»
Os convidados presentes ficaram a olhar, ora para a Virgínia, ora para o Vasco.
«Que estás a dizer, Virgínia?»
«Ela tem razão. Este whiski está aguado.» Afirmou o Humberto.
E na verdade, estava. A criminosa era a mulher, que bebia às escondidas e ia atestando o conteúdo da garrafa com água para o marido não dar por uma inevitável baixa de nível do líquido que este bebia como remédio.
O Vasco não ripostou a defender a sua honra, mas a tensão era notória.
«Pronto, aqui estão três garrafas.» Disse o Luís.
Talvez fosse um pouco tarde. Mas mais valia vir tarde do que nunca. Era difícil adivinhar quem notara a diferença de qualidade naquela fase do campeonato.
«Que achas, Sara? Desculpa tratar-te por tu. É um abuso de confiança.»
«Que ideia, Mário. Já somos conhecidos de há muito.»
Sorri e pensei:
«Temos o caldo entornado.»
Seguiram-se os doces. Cada senhora apresentou a sua especialidade e todos os doces, sem exceção, foram aprovados por unanimidade. No meu caso tive que beber mais um copo, como era meu hábito com os doces.
«Podem vir os cafés e os digestivos?»
O café atrasava os efeitos imprevisíveis do álcool, mas os digestivos, aguardente velha vínica, e licores, adiantavam o processo.
Fiquei-me por uma ginjinha de Alcobaça. Sem elas.
«E agora?» perguntou o Duarte.
O Duarte era o contador oficial de anedotas picantes.
«Vamos dar uma volta para desanuviar?»
Era a Sara, a minha companheira do lado.
«Não gostas de anedotas?»
«Nem por isso. Mas confesso que não sabia o que estava para vir. Sinto-me um pouco toldada.»
«Então, vamos enquanto eles estão entretidos. Um de cada vez.»
«Sai tu primeiro.»
«Sim. Espero lá fora.»
Pouco depois estávamos fora da vivenda. Sorrimos um para o outro . 
«Vamos?»
Aquele "vamos" fazia-me lembrar o cavalheiro elegante, uma personagem castiça de duas histórias contadas por mim e que foram publicadas no blogue do meu amigo António (1).
«Sara, que fazes na vida?»
«Eu...»
«Não digas nada. És hospedeira de bordo.»
«Bom, quase acertaste.»
«Então... Porra! Raio!»
«O céu está limpo, Mário.»
Foram as últimas palavras que ouvi. De repente fez-se escuro.

«Com que então os pombinhos saíram da mesa sem pedir autorização!»
Era a Virgínia. Só não entendia porque estava deitado no chão, entre as palhas.
«Não é o que pensas, Virgínia.»
«Pois não.»
Era manhã. Estava deitado no palheiro anexo à casa da Virgínia, a cabeça doía-me e não sabia como tinha ido ali parar.
«Qual foi a vossa ideia, Mário? Podiam ter escolhido o quarto da Sara.»
Foi então que apareceu a Sara, sorridente. Trazia uma chávena nas mãos.
«Bebe, Mário. Vai fazer-te bem. Queres uma aspirina?»
«Sim, por favor. Sara...» Sorri, ainda meio enjoado.
«Não é o que pensas.»
«Foi o que já disse o Mário.» Referiu a Virgínia com ar de gozo. «Como é que vieram parar aqui?»
Olhei para a Sara, perplexo. Encolheu os ombros.
«Da casa da Vanda até aqui são cinco quilómetros e não vieram de carro!»
«Pois não» confirmei. «Olha viemos pelo ar.»
«Montados num unicorn...»
«Deixem-se de graças.»
Olhámos um para o outro outra vez.
«Não sei, Virgínia» confessou a Sara. «E tu também não, pois não?»
«Talvez alguém nos apanhasse na estrada e nos trouxesse...» Disse eu.
«Tu apagaste-te, Mário. Ouvi-te dizer "raio" e mais nada. Também me apaguei a seguir.»
Lançou-nos um ar bondoso. 
«Que história tão mal contada!» 
«É o que se pode arranjar, Virgínia.» Disse eu.
«Isto fica entre nós os três. Só a mim não acontecem estas coisas deliciosas.»
«E os queijos?» perguntei.
«Foi uma lástima. Quando começámos a beber o "Quinta da Bacalhoa" alguém disse que o vinho estava azedo.»
Rimos.
«E estava?»
«Sim, estavam quase todos bêbados que nem um cacho..»

A Sara partiu para Londres nesse mesmo dia, ao entardecer. Nem sequer trocámos contactos.
Nunca cheguei a saber como fomos parar àquele palheiro, nem sequer se chegou a haver algum "encontro imediato do terceiro grau" entre os dois.
Nunca mais a vi.











































 

(1) "Maré Vazia" e "O Cavalheiro Elegante Vai ao Café" http://ashistoriasdemariocontadordehistorias.blogspot.com/2025/03/o-cavalheiro-elegante-vai-ao-cafe.html
http://ashistoriasdemariocontadordehistorias.blogspot.com/2023/05/mare-vazia.html








 



















 

























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