terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Evocação

 


Analogia


 
Tudo existe, no presente e no esquecimento...
O desejo que sempre tive de beijar os teus lábios. A saudade de um passado que ruiu. Tudo não passou de uma ilusão.
O nosso sonho?, que é feito dele?
Há um abismo profundo a separar os caminhos de ontem e de hoje. Há mil promessas que imitam fachos de realidade. Só vejo uns olhos tristes e longínquos a fitarem-me, em segredo, na contemplação hipnótica de um deus quase deus para ti. É doloroso viver no presente e no esquecimento. Tão doloroso que chego a pensar que esqueci. Talvez por isso, para manter ardente a chama, me envies miragens, tão perfeitas que sou arrastado na torrente do sonho que, mais tarde ou mais cedo, desagua em pesadelo.
Os teus lábios estão frios. Distantes. Ainda ontem, quando nos encontrámos, eras a rapariga do vestido branco. Sempre te vi jovem. Para mim, nunca foste a mulher que o outro beijou. Há esquecimento semeado pelo presente que não tem calor para germinar. Ao mesmo tempo, o presente está esburacado pelo rebentamento de sonhos, rosas sem perfume que enfeitam mitos.
Quem nos afastou tão de repente?
Eras a estrela que deixou de brilhar no caminho de um transviado. Jamais terei os teus lábios de sabor a morangos silvestres. Jamais te terei...
Mas um dia, vi-te. Toda de branco. Olhos tristes e longínquos. Conheci-te logo ao primeiro olhar. Eras a mulher única. A mulher que deixei fugir.
Os nossos projetos?, lembras-te?
Podia ter acontecido, mas o maquinista da vida levou-me por caminhos diferentes que me afastaram de ti. Se pudesse, quebrava as grilhetas que me prendem à solidão e subia ao teu mundo para conhecer o sabor dos teus lábios. Hoje estão frios...
No céu brilhava uma estrela que era a luz da minha vida. Mas um dia parti. Depois, ouvi dizer que se apaixonaram por ti, estrela. Ouvi dizer que me esqueceste. Morreu o sonho. Agora não há nada.

Nunca mais te vi, nem nunca mais te verei. Mas há quem diga que ainda te ouve chorar...

domingo, 8 de novembro de 2020

A fábula dos limites

 Uma história para os leitores dos 11 aos 99 anos...



Contam os mais velhos que ele sonhava há muito com o mar alto, mas o receio de ser devorado pelos predadores implacáveis, mantinha-o perto da costa, junto aos rochedos que a maré-alta cobria. Além disso, julgava-se muito novo para tentar a aven­tura, dizer adeus aos rochedos costeiros e partir para a longa viagem dos seus sonhos. Mas não estava longe dos seus planos. O desejo, por vezes, emergia com mais força e dava-lhe mais um pouco de audácia. Não nascera para ficar agarrado às águas da plataforma que se aprofundava mar adentro. Queria ir para longe, conhecer outros habitats, outras vidas.
Sonhava enfrentar o perigo a todo o risco, em­bora sentisse aquele receio natural dos novatos inexperientes. Tinha que se vencer a si próprio, porque, naquela tenra idade, ele ainda era a personificação do medo. Acreditava, contudo, que o seu dia estava para chegar em breve. Até lá, continuaria a nadar nas águas costeiras, a ver o mesmo marasmo de sempre, salvo um ou outro predador a atacar, mais longe, os incautos que se aventuravam para tragar uma presa ao seu alcance dimensional.
E os dias foram passando. E também os meses. À medida que as engrenagens do tempo prosseguiam na sua sequência natural, sentia-se cada vez mais inquieto e era urgente tomar uma decisão. 
Assim, resolveu dar um primeiro passo, começando por evitar os companheiros habituais, temerosos sedentários como ele, e procurar os mais experientes que lhe contavam histórias inimagináveis dos mistérios do mar alto.
Foi mais um alento. Entusiasmou-se. Sedento de aventu­ras em novas águas, sen­tiu-se mais do que nunca aprisionado naquela zona restrita. Sofria por não poder aventurar-se mais para diante. Ao largo, dizia-se, um tubarão traiçoeiro vi­giava constantemente o espaço limite, não per­mitindo a menor possibilidade de fuga ao incauto que se aventurasse para lá dos limites.
Fora criado num ambiente de proteção que o influenciava diretamente. Os mais velhos, conscientes do perigo, não o encorajavam. Diziam para ter paciência e esperar que ganhasse mais força e experiência. Mas ele pouco os ouvia e continuava a sonhar com o dia em que se libertaria de todos os medos. Queria soltar-se das amarras próprias da sua tenra idade, tornar-se independente, enfrentar o imprevisível, confrontar-se com o bem e o mal, fugir às armadilhas dos predadores, ultrapassar os seus próprios limites.
Mas como?, se era tão temeroso?
Um desejo peri­goso que era necessário concretizar. Absolutamente necessário. Não sabia muito da vida. Sonhava despren­der-se do sedentarismo protetor da costa, mas, ao mesmo tempo, sentia-se agarrado ao bem-es­tar e à segurança rotineira do dia-a-dia. Uma dualidade que era urgente resolver. Mas os seus pensamentos não bastavam. Queria mais. Sempre mais.
«Um dia, tomarei de assalto o meu destino porque quero conhecer novas águas, todas as águas onde há vida. Um dia, nadarei ao acaso, livre, até que seja velho e sábio, consciente que tive uma vida cheia.»
Que era preciso acontecer para que o seu sonho se realizasse e, quando chegasse a velho, tivesse já recebido o sopro importante da experiência?


Naquele dia os deuses do oceano estavam nervosos. Das profundezas vinham correntes fortes que revolviam a água salina, impelindo-a contra as rochedos. Depois, esta elevava-se e caía, de novo, sobre as rochas erodidas.
O mar, onde vivera toda a sua existência, tinha destas coisas. Por vezes zangava-se e mostrava as garras. Ele sabia que muitas vezes não contava com a sua complacência e punha-se de imediato a salvo. Mas naquele dia, mais temeroso do que nunca, sentiu-se em perigo. Deba­tia-se junto à costa com a força brutal da corrente que o empurrava para os rochedos onde se escondia o perigo. Tinha que encontrar mais forças para pode regressar em segurança. Mas em vão. De­pressa todas as suas resistências estariam esgotadas. Restava-lhe deixar-se arrastar para as pedras negras, onde não sabia que a morte imperava, por detrás das fendas que se abriam, traiçoeiras. Julgou adivinhar que ia ficar pri­sioneiro, que podia ser capturado pelos monstros que as habitavam. Cada vez estava mais perto dos rochedos. Sentia medo, o mesmo medo que o obrigou a não se aventurar para além do limite que o próprio medo estabeleceu. Afinal já não ia ser arrastado para o mar alto. Lição única: o perigo estava em qualquer parte e podia surgir a todo e qualquer instante.
Teve sorte. Finalmente as águas ficaram calmas e ele agradeceu aos deuses por terem aplacado a fúria do mar, irado por um motivo que desconhecia. O mais importante é que estava são e salvo e deslocava-se para o seu meio acolhedor. A aventura ficava para mais tarde, depois de se recompor do susto. 
A maré baixa deixou ver o fundo arenoso, onde um ou outro nadador seden­tário se deslocava até alguns metros adiante. Havia água bastante para os peixes minúsculos conti­nuarem nas suas ondulações nervo­sas.
Quis o acaso que um acontecimento quase fatal para ele mudasse o rumo dos acontecimentos. Livre arbítrio ou destino, foi o "abre-te Sésamo" para o seu sonho se concretizar.
Sentia-se em segurança na maré baixa, embora estivesse limitado a uma superfície pouco razoável. Enfim, não se podia ter tudo!

«Que bom estar a salvo! Mas um dia vou conseguir...»
Não adivinhou que, entre os rochedos submersos, um polvo dava o seu habitual passeio gracioso, agitando os oito braços pegajosos, ao mesmo tempo poderosos. Como sempre, os olhos brilhavam de cobiça, na expectativa de encontra­rem algum incauto que se aventurasse nos seus domínios. Continuou deslizando suavemente, mudando de cor conforme a conveniência, adap­tando-se ao escuro ou ao claro do fundo. Ele sabia tornar-se silencioso e invisível aos sentidos das futuras vítimas. E depois? Depois, ai dos vencidos perante a presença de um invertebrado implacável e misteriosamente inteligente para a sua condição fisiológica. 
Aproveitou o fluxo da corrente e deixou-se levar, de olhos brilhantes e atentos. Era bem verdade ser o abutre do mar, ou o sujeito ruim que se escondia na sombra e lançava, de repente, os seus ataques mortíferos aos mais desprevenidos. Os mais velhos contavam muitas histórias de incautos que tinham sucumbido aos abraços traiçoeiros de semelhante criatura.
De repente, os olhos do polvo brilharam mais. Ficou imóvel e fez-se à cor do rochedo vizinho. Agora não era mais que um rochedo grotesco de pequenas dimensões. Só os olhos bri­lhavam de gula, antevendo uma boa refeição.


«Oh!, um polvo! E que grande ele é!»
Notou-lhe os olhos bri­lhantes de cobiça. Se não fosse o brilho, diria que era um rochedo.
O polvo esteve parado por momentos, expectante. Parecia pensar. Depois, recomeçou a deslocar-se. Caute­loso, seguiu-o, ao mesmo tempo que dava à cana comprida uma posição ideal. Notou algo de estranho na ati­tude do molusco. Por certo tinha uma presa como alvo. O seu deslizar suave e sub-reptício não o enganava. Já tinha observado muitos polvos e conhecia todas as suas manhas. Este não fugia das normas.

Não se enganou na avaliação que fez.
«Ele tem uma vitima...» Admitiu. «Onde está?»
Ah!, era mesmo! O infeliz ficara preso no rochedo em anel.
«Morre, maldito!»
Se fosse no mar alto, teria sido diferente. O pobre animal podia fugir ou ser capturado. Assim, numa armadilha, inde­feso como estava... 
Debruçou-se sobre a poça de água e agarrou-o, com cuidado. Saltou mais alguns rochedos adiante, lançou-o para longe e convenceu-se que a vítima indefesa já estava a salvo. Depois, ficou de braços abertos, como um deus, voltado para a imensidão oceânica. O sol refletia-se nas águas e tornava-as azuis, verdes, cinzentas.
Saltou outra vez de rochedo em rochedo, voltando para trás, ao ponto de partida, até junto do polvo. Contemplou-o demo­radamente. A morte modificava a face das coisas. Aquilo tinha os olhos baços. Não era mais que uma massa cinzenta, informe, o que o fez sorrir. Boa aquisição. Mais um ou dois como aquele e ganhava o pão para si e para os seus.
Pegou na cana e recomeçou a sua faina.

Se não fosse a atitude do predador dos predadores, o pequeno peixe nunca teria ultrapassado os limites destinados aos não ambiciosos.
Já no mar alto, disse adeus aos compa­nheiros sedentários do dia-a-dia e lançou-se à aventura com que sempre sonhara.
Os mais velhos não sabem das suas aventuras. Se ganhou experiência e foi para longe fazer a sua vida entre amigos e inimigos, ou se outro peixe o devorou de imediato e com ele morreu o sonho. 
Não sabem porque nunca mais voltou... 

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Alzheimer


Se és como as andorinhas que voltam todos os anos ao mesmo beiral, não compreendo porque tardas em chegar. Ou será que desististe? Se desististe, não recebi a tua carta de despedida. Foi assim que combinámos. Tenho quase a certeza. Se desistisses, escrevias uma carta. Nem que fossem cinco ou seis palavras. Bastavam cinco palavras. "Desculpa, mas não posso ir". Não interessava porquê. Não vinhas e pronto. Mas não escreveste, nem te vi no sítio que tínhamos combinado.
Não importa saber em que dia estamos. Antes do tempo ou para lá do tempo. Ainda espero por ti, sabes? À hora combinada. Do dia não me lembro. Da hora, sim. E do mês. Setembro. Tenho a certeza. Mas podia ser outro mês.
Vem ter comigo. A minha madrugada espera por ti. No azul do tempo dos sorrisos. Na planície avermelhada do ocaso. No lago de bonança que foi ontem. Na encruzilhada dos desencontros que estão sempre a acontecer. Tanto faz, desde que venhas. Quero ter a certeza se o nosso destino foi ontem ou se está para acontecer. Já te avisto ao longe. Correndo. Quiçá ao meu encontro. Não tenho a certeza. Penso que esqueci-me do dia. Só me lembro da hora. Setembro já passou. Mas não importa. Para nós é sempre setembro. Estás mais perto. Sinto no ar o odor do teu perfume. Ah... abriste os braços. Quero abraçar-te. Ter a certeza que ainda és minha. Quero beijar os teus lábios e sentir o sabor a morangos silvestres ou isso. Quero dormir contigo na mesma cama. Acordar com os teus braços enlaçados no meu tronco. Fazer amor contigo. Como aconteceu ontem. Ontem? Talvez não. Se foi ontem, não me lembro. Mas aconteceu. Quero ter a certeza que aconteceu.
Não me viste. Passaste por mim. Tinhas os braços abertos e os cabelos soltos ao vento quando te vi ao longe. O teu rosto mostrava felicidade. Os olhos não eram tristes. Não. Infelizmente. Enganei-me. Afinal não aconteceu na hora combinada. Como pude enganar-me! Não eras tu. Se fosses tu, não tinhas os cabelos soltos ao vento. Nem o teu rosto irradiava alegria. Afinal estava numa encruzilhada de destinos e a mulher que julgava que eras tu passou por mim rumo a outra madrugada.
Mas prometeste voltar. E se prometeste, talvez tenha sido eu quem mais uma vez faltou ao encontro. Faltei ao encontro porque esperei por ti à hora errada. Tudo falhou. O mês. O dia. Até a hora. E assim, é tarde. Demasiado tarde para nos encontrarmos outra vez.
Perdoa-me se não consegui encontrar-me contigo. Esqueci-me também da hora. Da cor dos teus cabelos. Se tinhas rosto redondo. Testa capricorniana. Se os teus cabelos eram curtos. Olhos cor do ciúme. De amêndoa. Cor da traição. Ou negros como o carvão. Se eras morena. Se tinhas a pele sedosa. Esqueci-me também do tom da tua voz. E do mundo que sonhámos juntos e que nunca vimos. Dos beijos que demos e dos que ficaram por dar. Das zangas. Da cama ontem cheia de amor e hoje vazia de ti. Esqueci-me se ontem foi domingo. Do tempo que deixei passar. Das marés vazias sem uma onda para agarrar.
Ah!, se eu pudesse lembrar-me que também me esqueci de ti!

domingo, 4 de outubro de 2020

Sortilégio incorpóreo

Estava uma noite invernosa. Aos meus ouvidos chegavam os uivos aterradores do vento, daqueles que só se ouviam uma vez na vida. Chovia torrencialmente. Por detrás dos vidros da janela da sala fitava o arvoredo agitado numa ondulação algo anormal e incaracterística, mas própria de uma borrasca invernosa. Só que estávamos ainda no início do outono. Nessa noite horrível apostava que nenhum ser humano se ia aventurar à intempérie. Poucos carros passavam na estrada, a cem metros da vivenda que tinha alugado para férias. E que ricas férias, pensei. E que ótimo momento escolhi para recuperar de um princípio de esgotamento provocado pelo excesso de trabalho, com aulas a mais, alunos insuportáveis, explicações também a mais e consequentes resultados pouco favoráveis. Para completar o quadro, ressacava de uma paixão fracassada.
Gostei logo da casa. Tinha muita luz. A sua orientação, virada para sul, era a ideal para ler os meus livros de ficção científica.
Na aldeia ouvi falar de um fantasma que assombrava a casa, notícia que me deixou ainda mais motivado. Adorava fantasmas, sobretudo porque nunca me tinha confrontado com uma única assombração.
Cansei-me de assistir ao temporal que não dava tréguas lá fora e resolvi sentar-me no único sofá que existia na sala.
Em frente havia uma pequena mesa de apoio e um aparador de um só corpo, encostado à parede e, sobre este, um quadro pintado a óleo. Aliás, o quadro chamou-me logo a atenção no dia em que o senhorio me mostrou a casa.
«Comprou o quadro?»
«Não. Já existia quando adquiri esta casa há um ano.»
«É charmosa e ao mesmo tempo estranha, esta mulher. Os olhos escuros parecem seguir-me enquanto me desloco na sala. Já reparou?»
«Não se deixe influenciar pela mulher do quadro.» Aconselhou-me.
Levantei-me. O olhar profundo daquela mulher tinha de facto qualquer coisa de estranho.
É capaz de ser o tal fantasma!
Detive-me com mais atenção a observar a mulher. Cabelo escuro, curto. Testa alongada, tipicamente capricorniana. Quase de certeza uma mulher, segundo rezavam as crónicas astrológicas, que não se envolveu no amor, com medo de comprometer-se e de sair magoada de uma relação hipoteticamente destinada ao fracasso.
Um alfinete de brilhantes prendia uma rosa vermelha à blusa. Era mais um adorno que um resguardo a proteger os seios. Depois havia nostalgia no olhar, denunciando traços profundos de uma mulher madura, entre os quarenta e os cinquenta, realçados com exagero pelo pintor.
E que mais, além de umas calças azuis de ganga e de uma vulgar blusa branca?
Desviei o olhar com dificuldade e voltei-me para enfrentar com a vista a tempestade que se desenvolvia lá fora.
Maldita noite!
Um raio rasgou o céu escurecido e quase a seguir ouvi um ribombar medonho, prolongado, que estremeceu os vidros do aparador. Mais um relâmpago e um novo trovão. A sinfonia mais tenebrosa que podia estar a acontecer.
Bonito! Temos a tempestade mesmo em cima da casa…
Fiz uma verificação sumária às janelas da casa e confirmei que estavam fechadas com segurança. Mas de seguida tive um pensamento negativo. Admiti que os génios do mal tinham marcado um encontro sinistro naquela noite mas logo deixei escapar um sorriso com aquela ideia estúpida. «Vês muitos filmes de cariz insólito.» Pensei.
Mas dito e feito. Contra toda a lógica uma janela da sala abriu-se de repente e assustei-me pela primeira vez.
Calma, Mário. Talvez que a janela não estivesse bem fechada. Trata mas é de a fechar de novo e quanto antes.
Assim fiz. Só então reparei no quadro. Estava inclinado para a direita.
Não gosto nada de ver-te assim, de esguelha. Vamos mas é a endireitar-te. Pronto, está melhor. Mas não me olhes com esse olhos profundos. Se estivesse aqui a Odete certamente que comentaria jocosamente a minha apreciação aos teus olhos.

As lâmpadas deram um pequeno sinal de aviso. Só faltava a luz falhar.
«Bonito serviço!» exclamei, em voz alta.

Desta vez foi mesmo. E a noite tornou-se ainda mais escura que breu. nem de propósito.  Um facho de luz iluminou a estrada, da esquerda para a direita e ouvi o ruído do motor de um carro a aproximar-se. Logo a seguir, um chiar de pneus anunciando uma travagem brusca e uns segundos de suspense mal agoirados por um embate violento, provavelmente contra uma árvore. Seguiu-se um silêncio com o sinal de morte.
Não hesitei. Vesti o blusão e procurei uma lanterna na arrecadação anexa à cozinha. Certifiquei-me que tinha as chaves da porta no bolso das calças e decidi-me a enfrentar, lá fora, a borrasca.
Estranho acontecimento. A chuva tinha abrandado. Quanto ao vento, este continuava bravio.
Rapidamente cheguei à estrada e vi, ao fundo, o carro enfeixado contra uma árvore com a dianteira toda metido para dentro. Confirmava-se a previsão feita. Talvez não houvesse nada a fazer. Mas nunca se sabia. Podia ser mais aparato que outra coisa.

Já junto ao carro, preparei-me para o pior quando apontei a lanterna para o carro. Mas... Fiquei pasmado. O interior do carro não tinha ninguém.
«O condutor foi cuspido!»
Conclusão certa, pois logo a seguir ouvi gemidos. Orientei-me pelo som e foi fácil encontrar o corpo no escuro. Um relâmpago rasgou o céu e iluminou, por momentos, o sítio onde estava, reforçando a intensidade do facho da lanterna. E foi então que vi. Era uma mulher.
Debrucei-me sobre o corpo. Tinha os olhos abertos e fitava-me, espantada.
«Está bem?» perguntei, apreensivo.
Demorou a responder.
«Julgo que sim. Acho que foi só o susto.» 
Achei tranquilidade a mais para quem acabava de sofrer um embate daquela natureza. Certamente resultado do estado de choque em que ficou.
«Teve muita sorte!»
«Acho que sim.»
«Apoie-se em mim. Assim está bem. É um milagre estar viva!»
«Valeu-me ter o vidro aberto do meu lado.»
«E logo todo aberto numa noite destas!» comentei.
Estranho!
Fomos andando em direção à casa. Ela coxeava ligeiramente.

«Senti que estava a adormecer com o calor do aquecimento e abri o vidro do meu lado. Foi mais um gesto instintivo. Estava mesmo a adormecer.»
«Dupla sorte a sua porque também não levava posto o cinto de segurança.»

«Ah sim.» Concordou. 
Já estávamos em casa e entretanto a luz tinha voltado. Um bom sinal.
«Não pergunto se quer aquecer-se. A casa não tem lareira. Também já me disse que sentia calor. Que posso oferecer-lhe?»
«Obrigada. De momento, nada.»
«Mas teve uma tontura! É melhor deitar-se um pouco. Deixe que a ajude.»
Encostou-se a mim e encaminhei-a para o quarto.

«Deite-se um pouco a descansar. Entretanto vou buscar um copo de água açucarada.»
Obedeceu.
«Obrigada. Não se incomode. Sinto-me bem.»

«Aparentemente não tem uma única escoriação. E a perna?» 
«Dói-me um pouco a perna direita. Mas acho que vai passar.»
Azar! Não foi preciso despir a sinistrada…
«Deixe que me apresente. Chamo-me Mário Fonseca e sou professor. Só Mário, para si. Estou aqui a recuperar do esforço que requer a minha profissão.»
«Mário para sempre.» Disse ela.
Que insinuação era aquela?
«E eu sou a Inês.»
«Inês para sempre?» insinuei.
«Na eternidade dos tempos» sorriu. «De momento sem ocupação. Já vivi de investimentos em obras de arte.»
Então é conhecedora. Vou perguntar-lhe...
Desisti. Dirigi-me à cozinha. Tirei um copo do armário sobre a bancada e enchi-o com água da torneira. Deitei-lhe duas colheres de açúcar e agitei a água de modo a obter um soluto açucarado. Voltei ao quarto.
A desconhecida estava de olhos cerrados e parecia adormecida. Por momentos tive a sensação que era mais nova do que me pareceu à primeira vista. Fiquei estático, a vê-la. Aquela mulher tinha sobrevivido a um acidente brutal. "Inês para sempre". Quase parecia ser verdade. Mas se não fosse ter sido cuspida…
«Ah... é você!»
«Desculpe se a acordei. Vá, beba. É água açucarada. Vai fazer-lhe bem.»
Soergueu-se na cama e aceitou o copo. Bebeu a água de uma só vez.
«Então?»
«Sinto-me ótima.»

Um milagre a recuperação rápida!
«Deixe-se ficar um pouco a descansar. Eu vou para a sala. Se precisar de alguma coisa não hesite em chamar-me,»
«Obrigada. Não vale a pena. Estou muito melhor.» 
E esboçou uma tentativa para levantar-se. Tentativa que não falhou.
«Seja. A Inês lá sabe. Se está bem, então podemos passar à sala.»
Não precisou que a amparasse.
«Olhe, pode ficar neste sofá e eu vou buscar uma cadeira. Gosto de falar com as pessoas face a face. Um rosto belo como o seu é agradável de ver e de rever.»
«Rever?»
«Desculpe... fiquei com a ideia parva de déjá vu

«Ah... sim. Mas eu não me lembro de si.» 
Não comentei.
«Não quer um chá... ou um café?»
Vi-a olhar fixamente em frente.
O quadro…
Acabou por aceitar um café.
«Gosta?»
«Bem quente, por favor. Gosto de quê?

Pareceu-me que disfarçava.
«Do quadro que tem na sua frente.»
«Ah...»
Voltou o olhar para mim e vacilei. O olhar da bela Inês, amadurecida pelo tempo, que não tinha colo de garça, despiu-me de alto a baixo. Recompus-me. Não me importei. Logicamente até gostava. Aliás, eu é que despia as mulheres com o olhar, diziam. Agora acontecia o contrário.
«Bom, então vou fazer o seu café. Quer mais para o lado arábica ou prefere mais robusta
«Meio termo, por favor.»
«Meio termo não tenho. Nunca me atrevi a fazer lotes.»
«Então tanto faz.»
Enquanto fazia o café lembrei-me duma conversa que tive com o dono do minimercado da aldeia, já depois de feito o contrato de aluguer da casa.

«É o senhor que mora naquela vivenda amarela à saída da aldeia?» perguntou. «Não lhe gabo a escolha.»
«Porquê?»
«Porque sim.»

Boa resposta…
«Se existe algum mistério, não faz mal. Desembuche, homem!»
Olhou em volta, certificando-se que estávamos sós.
«Dizem à boca cheia que essa casa está amaldiçoada. O antigo dono nunca teve inquilinos certos e vendeu a casa muito barata.»
«O que quer dizer com isso?»
«Falava-se de um fantasma que assombrava a vivenda. Mas não quero influenciar o senhor.»
«Claro que não influencia. Até me motiva. Aliás, não tenciono denunciar o contrato.»
«E depois de ouvir uma história que tenho para contar-lhe, não vai mudar de opinião?»
«Logo se vê. Avance, homem, que já me aguçou a curiosidade.»
«Há coisa de uns cinco anos uma mulher veio morar para a vivenda amarela. Conheci-a pessoalmente quando fazia aqui compras. Tal como o senhor gostou da casa. pagou logo seis meses adiantados ao senhorio da altura. Os seus olhos escuros, penetrantes, e a testa alta fizeram-me esquecer os outros traços fisionómicos. Vestia calças de ganga azuis e uma blusa cuja cor não me ocorre.»
Fez uma pausa, talvez para observar como eu estava a reagir.
«Poucos dias depois veio de novo à loja e confessou que não voltava mais, mas deixava semanalmente um papel à porta da rua com a lista de encomendas.» 
«Assim, de um momento para o outro?» 
«Tal e qual. O meu empregado limitava-se a dar três pancadas na porta, a deixar o cabaz com as encomendas e a levantar da soleira a nova lista.» 
«Estranho!» 
«E assim foi. Olhe, meu amigo, ela parecia ser uma mulher comunicativa, sem problemas, muito segura de si. De um momento para o outro, isolou-se. Porquê, não sei. Admiti a hipótese de ser escritora e de precisar de silêncio para o seu trabalho.»
«A mulher tinha cabelos curtos, escuros?»
«É como o senhor diz. Como adivinhou?»
«Então é ela!»
«Ela, quem?»
«A mulher do quadro. Na sala há um quadro de uma mulher com as características que apontou. Mas continue...» 
Fez um gesto largo.
«Há pouco mais a dizer. Uma vez, quando o meu empregado foi levar as compras, não encontrou a lista. Sem saber o que fazer, ficou parado. Depois decidiu-se por bater à porta. Ninguém respondeu. Então deixou à porta a cesta com os víveres, veio para a loja e contou-me o sucedido. Mandei-o voltar no dia seguinte. A cesta continuava na soleira da porta.» 
«E voltou a bater à porta.»
«Sim. Três pancadas.» 
«Ninguém respondeu. Certo? E depois, que aconteceu?»
«Ora. Continuou a ir à casa. Ao fim de pouco mais de uma semana começou a vir do interior um cheiro nauseabundo. Comuniquei o caso ao polícia de giro que, por sua vez falou com o chefe da esquadra. Ato continuo arrombaram a porta e depararam com um corpo da mulher, já cadáver, enforcado.»
«Onde estava o corpo?»
«Na sala.»
«As mulheres matam-se normalmente com veneno ou comprimidos. Não terá havido alguém que a assassinasse?»
«Foi feita a autópsia do corpo, meu amigo.»
«Muito me conta. E agora falam do aparecimento do fantasma dessa tal mulher bela e de olhar penetrante. Vem reclamar o quê?»
«Isso já não sei. Tem que perguntar ao fantasma se alguma vez lhe aparecer. Só sei que essa casa foi arrendada várias vezes e sempre abandonada cerca de um mês após o arrendamento.»
«Porquê?»
«Parece que ouviam ruídos estranhos durante a noite e não conseguiam dormir.»
«Pois.»
«Não vai reconsiderar?»
«Longe disso. Estou há uma semana a habitar a vivenda e ainda não tive agradável prazer de ouvir os tais ruídos estranhos, as coisas a mudarem misteriosamente de sítio, ou então de tomar o pequeno almoço com a mulher do olhar penetrante. Nem que seja um simples café.»

O café estava pronto. Muito quente, como ela tinha pedido. Levei a cafeteira, duas chávenas e pires, e também o açúcar.
«Aqui está. Espero que esteja ao seu gosto.»
Não havia ninguém na sala. Provavelmente ela tinha ido à casa de banho.
Deixei-me ficar sentado, mas avisei:

«Inês, olhe que o café arrefece...»
Nenhuma resposta. Levantei-me e dei duas pancadas ligeiras na porta da casa de banho.
«Inês...»
De novo o silêncio. Senti um breve arrepio percorrer o corpo de alto a baixo.

Não podia ser!
«Vou abrir!» gritei.
Abri a porta. Pasmei. A mulher tinha-se eclipsado. A janela da casa de banho continuava fechada por dentro.
Voltei à sala e encontrei-a sentada no sofá, a levar a chávena à boca.
«Pregou-me um susto! Onde se meteu, alma de Deus?»
«Não percebo. Passou-se alguma coisa com você. Pousou as coisas em cima da mesa e dirigiu-se logo para a casa de banho.» Disse ela.
Senti que estava a entrar em paranoia. Havia qualquer coisa errada. Sem dúvida. Não tinha outro remédio senão fazer o que fiz.
«Que está a fazer? Olhe que não consinto!»
Sempre ouvira dizer que os fantasmas eram tão frios como o gelo. Ora acontecia que as mãos e as pernas dela estavam bem quentes.
«Desculpe, estou baralhado. Não tive intenção de a apalpar no sentido corrente do ato.»
«Então como explica o que fez?»
«Acredite que não a vi na sala e fui à casa de banho. Em face do acidente podia ter-se sentido mal. Um derrame interno, por exemplo.»
«Não faz a coisa por menos. Mas isso não justifica que tenha posto as mãos nas minhas pernas!» 
E pernas bem feitas.
Aqueles olhos!
Apontei para a parede onde estava o quadro.
«Não vai negar que...»
Levantei-me de imediato e dirigi-me para o aparador. Por cima dele não havia qualquer quadro, nem escápula para o segurar, nem um simples buraco na parede.
«Mas ele estava ali!» 
«Ele, quem?»
Contive-me e virei-me para ela. Sorriu e depois levantou-se.

«Já me sinto recomposta. É altura de partir...»
«Como? Não vai enfrentar a intempérie!»
«Qual intempérie?»
Abriu a porta da rua. A noite serenara.
«Adeus... Mais uma vez agradeço a sua oportuna intervenção e também a hospitalidade. O café era bom. Robusta?»
«Quase arábica. Um pouco de robusta. Mas vai a pé?»
«Talvez encontre uma vassoura por aí.» Ironizou.
«Não brinque. Bom, tudo bem. Ou tudo mal.»
«Não ligue. Estou a brincar. Adeus, Mário para sempre. Estou-lhe muito grata.»
«Se assim o quer, Inês...»
Fiquei a vê-la, a afastar-se. Voltou-se ainda para trás e fez-me um aceno a que correspondi. Em poucos segundos perdi-a de vista.
Fechei a porta e voltei para a sala. Foi nesse momento que ouvi um estrondo e sobressaltei-me. Olhei em todas as direções e acabei por ver o quadro no chão, à frente do aparador. Senti de imediato um calafrio.
A moldura estava irrecuperável. Quanto à tela não tinha uma única beliscadura.
Senti de novo a chuva a cair. Cocei a cabeça e pus-me a pensar. Certamente a Inês não ia longe. Tinha que voltar para trás.
Esperei alguns minutos e nada. Então peguei na lanterna, abri a porta da rua e dispus-me a enfrentar lá fora a borrasca.
Em poucos tempo cheguei à berma da estrada e apontei a lanterna num e noutro sentido da estrada. Da Inês nem sinal. 
Que fazia ali?
Dispus-me a regressar a casa.
«Ah... o carro!» lembrei-me.
O meu pressentimento não foi infundado. Descobri a árvore onde carro tinha embatido, mas não vi o carro nem qualquer vestígio do embate violento.
«Essa agora!» exclamei.
Voltei para casa. Não preguei olho nessa noite.
De manhã falei com o senhorio e aleguei afazeres de última hora para desistir da semana que ainda me faltava passar.
«Pode verificar que não falta nada na casa. Só o quadro por cima do aparador. A corda partiu-se e ficou danificado. Vou mandá-lo restaurar e depois devolvo-o.»
«De que quadro está a falar? Ah... o daquela mulher...»
«Não se preocupe que vou deixar uma caução. Quanto quer exatamente?»
«Se ele caiu, tanto melhor. Até lhe agradeço. Confesso que sempre me perturbou o olhar daquela mulher. Quem quer que ela fosse, tinha magnetismo no olhar. Ai tinha, tinha!»
Assim acaba a história, iniciada, não propriamente numa noite de borrasca, nem no momento em que aluguei a vivenda pintada de amarelo que, diziam na aldeia, era habitada por um fantasma. Uma mulher de idade madura, que ainda conservava traços de uma beleza que a tornava ainda atraente.
Suicidou-se por amor?
Outra dúvida:
Porque foi que ela voltou?
Duas perguntas que ficavam sem explicação.
Existem portas que ligam, momentaneamente, o nosso mundo e o outro. Está mais que referenciado nos livros da especialidade. 
Mas este caso foi muito mais além do que uma simples ligação de dois mundos, pois quando regressei ao meu apartamento e desfiz as malas encontrei, no fundo de uma delas, um alfinete de brilhantes igual ao que estava pintado no quadro da mulher de cabelos curtos e olhar penetrante.
Da rosa vermelha, nem sinal…