terça-feira, 4 de abril de 2023

O grande salto. Hatshepsut

 Esta história, que agora tem o seu epílogo, está dividida em três partes. Para melhor compreensão é aconselhável ler as duas primeiras.





Abri os olhos. A mulher sentada ao meu lado parecia não estar muito satisfeita. Na verdade tinha razões para isso porque eu estava encostado a ela. Olhei de relance. A mulher lia uma revista científica francesa que, por sinal, era muito do meu agrado. Sciences et Vie.
«Peço desculpa se a incomodei.»
Fitou-me com olhos de mau olhado. Um crente em superstições teria feito de imediato o sinal da cruz. Claro que a tinha incomodado e muito. Decerto que interrompera mais do que uma vez a leitura do artigo.
«Não respondeu» pensei. «Deixa-me espreitar o que ela está a ler.»
Hatshepsut. Faraó do antigo Egito. A curiosidade, já que tinha alguns dados sobre a governação desta mulher-faraó da XVIII Dinastia, levou-me a ler um pouco do texto à revelia da dona da revista. Tinha sido uma importante faraó do Império Novo. Conhecia-se pouco dela. Aliás a sua memória fora quase apagada. Apesar da barba postiça, símbolo de faraó, devia ter sido uma bonita mulher para o seu tempo. Se pudesse saber mais sobre ela...

Mas porquê o meu interesse repentino? 
Quanto à segunda mulher, a que estava na minha frente, essa parecia gozar com a situação caricata de eu estar a falar para o boneco. Neste caso para a boneca. Uma boneca feia como os trovões, que metia medo ao susto e isso mais.
«Dormia como um anjo.» Comentou.
Então e o que aconteceu com a Maria?
O comboio começou a abrandar.
«Estamos a chegar a Lisboa, senhor...»
Lisboa?
«Mário. Chamo-me Mário.»
Nos meus saltos no tempo também havia saltos nos sonhos?
Olhei fixamente para a mulher que estava sentava em frente e sorria para mim. Havia uns certos sinais para aqueles lados que decidi ignorar.
«Eu chamo-me Celeste. Maria Celeste.»
«Bonito nome.»
«Mas pode tratar-me por Maria.»
«Mais Marias, não!»
«O que foi que disse?»
«Nada, Maria Celeste. Se não se importa, prefiro tratá-la assim. Apenas pensei alto.»
«Por Celeste?»
«Não. Maria Celeste. Se não se importa.» Repeti.
«Ah sim. Claro que não me importo. Mas diga-me uma coisa, o Mário é do género de homens que pensa em voz alta?»
«Não se trata de regra geral» admiti. «Mas por vezes distraio-me e sai-me caro. Estes descuidos resultam de males do coração. Nunca lhe aconteceu?»
«Sou mais materialista. Não me deixo envolver a ponto que saia maltratada, sabe?»
«Ainda bem para si. Mas porquê sair maltratada?»
«Quando me distraio e deixo-me envolver. Isto sem dar atenção aos pormenores.»
«Bom, não percebo. Mas também não interessa.» 
«Pois.» Concordou, sorrindo.
O sorriso da mulher perturbou-me.
«E os seus sonhos concretizam-se?»
«Às vezes. Quando os pensamentos são muito fortes, quase circulares. Obcecantes. Por exemplo, há pouco, quando acordei encostado ao ombro desta senhora que estava a ler um artigo sobre Hatshepsut... Deixe, isto é mais que parvoíce.»
«Diga o que desejou. Ter ardentemente uma aventura com ela?»
«Longe disso. A mulher é muito feia e antipática. Fiquei obcecado por outra coisa.» 
Riu-se.
«Estou a referir-me à outra mulher. Hat... qualquer coisa.»
«Hatshepsut.»
«Sim.»
«Bem. Onde quer chegar?»
 «Isso pergunto eu.»
Ah!, a força do bloqueio. Que força era aquela que estava a instalar-se sem cerimónia?
Era mais que um bloqueio. Digamos, uma espécie de envolvimento que me perturbava. Queria pedir-lhe que deixasse de sorrir mas não conseguia.
Então, aconteceu. De um momento para o outro o seu rosto transformou-se e deixei de a ver tal como era. Pelo menos naqueles curtos momentos em que a conheci. De seguida, tive uma sensação estranha. Pareceu-me que as coisas rodavam à minha volta. Os outros lugares da carruagem. As pessoas. Via tudo num movimento de rotação cada vez mais rápido.
«Está a sentir o mesmo que eu?»
A minha pergunta ficou sem resposta porque ela já não estava na minha frente. Talvez atrás da cortina nublada que continuava a rodar sem que se adivinhasse um momento de inversão que fizesse aquela maldita rotação parar.
«Não entendo isto que está a acontecer-me. Talvez que se me levantar a sensação passe.»
Nada feito. Agora sentia-me nauseado. Olhei para a minha direita. Não havia ninguém. O lugar estava vazio e nem sequer havia vestígio da revista.
Entretanto a rotação centrou-se apenas no espaço ocupado antes pelo rosto da minha interlocutora, mas agora via tudo a escurecer e cada vez mais perto, mais perto. Ao mesmo tempo, a aproximação indesejável de uma espécie de túnel escuro que ameaçava engolir-me. Uma situação de não retorno que me levava para o desconhecido. Queria gritar mas o grito não saía.
«Quem me está a tramar?» gritei a plenos pulmões.
Logo a seguir veio a resposta. Aconteceu o imprevisível.   

O deserto

Passei a mão pelo rosto alagado em suor e depois pela testa. Aquele deserto não tinha fim e o sol, quase na vertical, queimava. A temperatura do ar devia estar acima dos cinquenta graus. Ao fundo, uma neblina ondulante mostrava-me umas imagens convidativas que davam-me alento para prosseguir em frente. Ao fundo, na linha do horizonte, os meus olhos viam um oásis. Por outro lado tinha quase a certeza que era uma miragem. Mas parar naquele inferno era o mesmo que morrer.
Onde estava?
Olhei em volta, tentando orientar-me. O desânimo instalou-se de vez.  Mesmo que conhecesse o segredo das dunas que a força do vento podia alterar de um momento para o outro, tinha a certeza que em nada ia beneficiar. O deserto não era nem nunca fora a minha vida. Quanto ao destino próximo, aquele horizonte prometedor que os meus olhos abrangiam no momento, só estava na minha frente por mera coincidência. Em última análise, não via destino à minha frente. Verdade nua e crua. Infelizmente.
Aquela situação inesperada em que me via envolvido fazia-me lembrar Rolando, personagem de uma história antiga que um dia imaginei e que o meu amigo António teve a gentileza de passar para o papel. Um cavaleiro perdido no deserto que era o seu mundo, mas que, por força duma grande tempestade, lhe mostrara então outra imagem completamente desconhecida. A seguir, foi a luta contra as sucessivas situações adversas que surgiram, cada uma pior que a outra. Uma luta desigual com o deserto da qual iria sair fatalmente derrotado. Primeiro, foi o cavalo que caiu por terra. O seu fiel companheiro de muitas aventuras que chegou ao fim da resistência física. Depois ele. Perdido. Esgotado. A ver imagens distorcidas ao longe que não correspondiam à realidade. Ao mesmo tempo,  a sentir uma vontade irresistível de fechar os olhos. De dormir. De sonhar.
Lembrava-me especialmente de um momento em que Rolando, o cavaleiro solitário do deserto, enfiou, em vão, a mão na saca dos mantimentos. Tinha mastigado o último naco de carne há umas tantas horas. E do cantil não escorria uma única gota de água.



Comigo era parecido o que estava a acontecer. Os lábios quase se pegavam à boca, mas nem tinha cantil nem sequer alforge para mantimentos. Rolando não acreditava no oásis que avistava ao longe, embora soubesse que o fim estava escrito nas estrelas longínquas, para lá do sol e do cortejo de astros, seus prisioneiros. As células do seu corpo tinham sido formadas por biliões de átomos de hidrogénio que vinham dos tempos da grande explosão. E o seu fim estava próximo. 
Acreditava também que as minhas células continham os átomos de hidrogénio dos tempos da grande explosão, mas nem sequer via um oásis distante na minha frente. Apenas existia uma neblina provocada pelo sobreaquecimento do ar.
Olhei mais uma vez em volta e perguntei a mim mesmo por que carga de água tinha ido parar àquelas malditas areias escaldantes.
Lembrava-me apenas da viagem de comboio e das duas mulheres. Uma que falava e outra que não falava. 
E o nome?, Hatshepsut. Um nome que não me dizia nada se a relacionasse comigo. Nem me lembrava, nos meus tempos recuados de estudante, de ler nos livros de História tal nome. Só alguns anos depois li numa revista um extenso artigo sobre a governação desta importante mulher-faraó.  
Fui parar àquele deserto sem saber como nem porquê. Com um vestuário leve mas sem um chapéu, nem um lenço minúsculo para me proteger a cabeça do sol assassino. Nada. Mesmo nada para me cobrir a cabeça e naquelas condições apenas me esperava um desfecho. A morte. Sem alternativa.
Só podia ser uma brincadeira de alguém. Mas o certo é que aquela situação estava a deitar-me fisicamente abaixo. Ia acontecer-me o mesmo que ao Rolando, embora ele acordasse mais tarde à beira de um lago e com a presença de uma formosa mulher, afinal o motivo das suas constantes viagens através do deserto, desejando sempre tê-la sua sem nunca a ter. Mas isso era a história de Rolando e Dinares. Uma história trágica cujo desfecho só dependera da minha vontade como contador de histórias que era.
Já nem sequer passava a mão pelo rosto e pela testa para enxugar o suor. Os sintomas fatais estavam a chegar a passos largos. Sede. Vertigens. Agonia. Delírio. Desejo de parar. De fechar os olhos. Enfim uma cópia fiel da história que tinha engendrado. Mais umas dúzias de passadas e era o fim da última batalha que nunca imaginara que viria a acontecer naquelas circunstâncias trágicas.
«Que sede horrível!»
Não me restava outra opção senão continuar em frente. Mas vacilava, vacilava cada vez mais. Era inevitável cair na armadilha daquelas areias malditas.
Estava perante uma situação que não desejava nem ao meu maior inimigo. Se é que uma pessoa como eu tinha inimigos.
«Ernesto? Nem tu me ajudas?»
Um amigo imaginário da minha infância que me respondeu, logicamente, com o silêncio.
Já não sabia se caminhava, se estava ajoelhado nas areias tórrida e mortíferas, ou se tudo não passava de um sonho ruim. Nem mesmo sabia se era real aquele momento em que um vulto se debruçou sobre mim, nem tão pouco os sons que saíram da sua boca e que não entendi patavina.
«Que cara é essa? Mas chega-te para lá, meu!»
O homem seminu estava debruçado sobre mim e o seu hálito não era nada agradável, denunciando que aqueles dentes, embora alvos, nunca tinham conhecido a escova e a pasta dentífrica.
Aparentando alguma estranheza acariciou os botões da minha camisa creme e os calções de ganga quase a tocarem os joelhos.
«Nunca viste nada parecido com isto, ó calmeirão?»
Voltou-se para trás e soltou alguns sons guturais, sons esses que não entendi. O homem tinha a cabeça rapada e também o tronco e pernas não mostravam vestígios de pilosidade.
O outro homem que estava mais atrás aproximou-se. Também tinha a cabeça rapada. Foi o que pude ver, além da pele escura dos seus corpos.
Chineses não eram, mas a linguagem que usavam estava a ser para mim uma autêntica chinesice. E isso irritava-me. Sabia que ele não ia entender-me, mesmo assim tentei:
«Onde estou?»
Como resposta ou não, o primeiro homem, mais corpulento que o outro, ergueu-me como se fosse uma pena e pegou-me às costas.
«Ó brutamontes!, mais cuidado com a minha carcaça.»
Silabou algo que não consegui entender e não tive outro remédio senão deixar que me transportasse.
Não durou muito o meu instável estado de consciência. Um manto negro envolveu-me e foi tudo.


O despertar foi mais lento e complicado que o outro. A custo abri um olho e de nada valeu. Vi tudo nublado à minha volta e tive ainda que esperar algum tempo até que os sentidos reagissem aos estímulos exteriores e conseguisse ver e ouvir o que estava para lá da cortina que teimava em não se descerrar. 
«Olá!»
Este lento despertar prometia ser mais agradável. A jovem, também seminua, sorria para mim e deixava ver a alvura dos seus dentes que aparentavam não terem cárie.
Deixei que passasse um pano pela boca, rosto e depois pela testa e cabelos. A sensação foi de alívio.
«Ah!, obrigado.»
Ela continuou a sorrir e molhou o pano numa taça de barro pintada a vermelho. A operação anterior repetiu-se.
A seguir deu-me a beber um líquido que bebi com sofreguidão e que identifiquei como sendo água.
«Mais, por favor.»
Pareceu entender, mas acenou negativamente com a cabeça. Estendi um braço na direção do seu tronco para insistir no pedido e como resultado a minha mão tocou num dos seus seios firmes, pouco volumosos. Ela não acusou o toque, parecendo interpretá-lo como uma carícia. Deixei ficar a mão e foi a minha vez de sorrir.
Este ato anestesiou-me. Era bom, quer ela fosse servidora no paraíso ou na antecâmara do inferno, onde estive até adormecer, pois sentia-me muito debilitado. O que se passara comigo no deserto estava escondido por uma cortina muito espessa. A minha ideia é que só me salvara por um mero acaso ao ser encontrado pelos dois homens seminus.
«Eu» apontei para mim. «Mário.»
«Marió?»
Acenei afirmativamente com a cabeça.
Quase logo a seguir (pareceu-me) fui sacudido por um "sismo" e abri os dois olhos.
«Outra vez, ó brutamontes?»
Estava a ser injusto com o meu salvador, mas preferia-o à distância. Não acreditei que o colosso tivesse interpretado as minhas palavras, mas coincidência ou não, afastou-se logo. Talvez a expressão do meu rosto. Acho que a sua aparição momentânea foi explicada pela necessidade de se certificar do meu estado de saúde, pois logo a seguir vi na minha frente uma mulher de meia idade, muito morena e de rosto cheio, que vestia uma túnica comprida de cor azul, ligada aos ombros por duas alças largas que lhe cobriam os seios. Ao contrário da jovem, o seu semblante, apesar de sério, não escondia uma certa curiosidade. Também estava no seu direito de perguntar:
«Quem é este?»
O facto de vestir aquela túnica até quase aos pés era um sinal que devia pertencer a um estrato social mais alto. Não pude ver se tinha também o cabelo rapado porque a cabeça estava ornamentada por um tecido que me pareceu ser rígido, com vários fios também a penderem dele.

Tentei soerguer-me. De imediato a mulher fez-me um gesto para desistir. Nem foi preciso. Estava demasiado fraco para o fazer.
«Isto está mau, Mário.» Admiti.
O seu aceno com a cabeça foi sintomático. De certeza que não me entendeu.
Repeti a experiência anterior.
«Eu» apontei apara o meu tronco. «Mário.»
Franziu o sobrolho e respondeu. Também não percebi o que ela disse.
Logo a seguir, afastou-se e pude ver-lhe as costas nuas, cheias. Ainda pude ver a jovem, que me limpou o rosto e deu-me de beber, fazer uma vénia acentuada à passagem da dama da túnica. Confirmava-se a importância hierárquica daquela mulher que até não era nada que se desperdiçasse.
Entretanto surgiram mais duas jovens, uma seminua e outra com uma túnica branca, em linho, cobrindo-lhe o corpo. A primeira trazia duas taças com frutas diversas. Mangas, figos, melancia e tâmaras, pude observar. Mas quem começou a servir-me foi a outra. A fruta vinha já partida em pedaços.
«Grato, meninas, mas acho que posso comer sozinho.»
É o podes! O primeiro pedaço de manga que tirei da taça e levei à boca perdeu-se pelo caminho. Estava bem pior do que pensava.
Ambas sorriram e fiquei contrariado.
«Riam riam...»
Então a jovem da túnica, muito morena, de rara beleza, fez um gesto à outra para se afastar. A frescura da fruta e da jovem foram um bálsamo para me sentir melhor.
«Eu, Mário. E tu?»

Vi-a muito séria e o diálogo ficou por aqui. Não respondeu.
A mulher de ar majestoso voltou à cena. Trazia na mão direita uma tigela fumegante. Consegui soerguer-me na cama.
O que bebi não foi do meu agrado, mas convenci-me que ia fazer-me bem.
«Obrigado.»
Como resposta, esboçou um breve sorriso.
Estava quase a adivinhar onde estava. Só continuava a dúvida sobre o que me aconteceu no comboio e como fui parar àquele deserto que, só por milagre, não se transformou no meu túmulo.
Os saltos no espaço e no tempo ainda não tinham parado. Tinha o pressentimento que este fora muito profundo.

Pareceu-me que o caldo de sabor desagradável estava a fazer o seu efeito restaurador. Aos poucos, a força voltava. Sentia-me outro. Não diria, rejuvenescido e pronto para nova aventura depois desta que não foi desejada. De qualquer forma, com o sopro ideal para uma nova vida.
E se tentasse levantar-me?
A jovem da túnica branca sorriu com a tentativa que esbocei e deixou escapar alguns monossílabos que não entendi. Quanto à mulher do toucado, essa manteve-se impassível e com a curiosidade aumentada. Não era preciso fazer um grande esforço para admitir que era dotada de uma grande força anímica, já que a força física teria que ser demonstrada.
Mas onde estavam os meus calções e o resto?
Embaraçado, escondi as pernas de imediato e olhei, algo furioso, para a mulher. E foi então que vi. Uma cabeça de cobra estava presa naquela espécie de toucado.
«Coisa estranha!» pensei. «Sei para que serve, mas não é lógico admitir que se aplique aqui, no meio do deserto, neste local desconhecido onde vim parar.»
Foi então que ela se aproximou de novo e começou a mirar-me com um ar meio interrogativo meio apreciador. Se eu não sabia onde estava, certamente ela tinha uma dúvida mais forte ou igual ao meu desconhecimento. Mas não ousou questionar-me porque, certamente, desconhecia como fazê-lo. Havia um abismo enorme que nos impedia de estabelecer contacto, a não ser usando a mímica, um modo muito limitativo para se obterem êxitos rápidos.
Tentei de novo.
«Eu» apontei para o meu tronco. «Mário.»
A mulher do toucado olhou para trás, na direção da jovem desnuda que me socorreu pela primeira vez e ainda na minha fase meio delirante.
«Marió...» repetiu a jovem.
«Marió?»
Acenou que sim com a cabeça.
«Tenho que melhorar isto.» Admiti.
Se, em tempos, consegui entrar no corpo do Pedro, o homem que jogava no casino em mais que uma máquina dos cifrões à procura de um processo de vencer aquele jogo que, como todos, era manipulado e não aleatório, tal como os chefes de sala e fiscais queriam fazer ver, e também consegui encontrar uma forma do meu rosto se modificar, a ponto de nada ter a ver com o original, então como não seria possível entender a linguagem daquela gente estranha do deserto que, por sinal, me salvou a vida?
«Os meus calções e as boxers
Ficou impávida e serena.
Quem era aquela mulher tranquila, de rosto com traços suaves e uns olhos castanhos, escuros, que me inspirava segurança?
Segunda pergunta: onde estava?
A primeira resposta trazia a segunda por acrescência.
«Malditos mosquitos!» deixei escapar a impaciência, olhando de soslaio para a minha interlocutora.
Pareceu-me que entendeu o meu desespero, pois bateu de imediato as palmas e duas jovens acorreram, solícitas, com paus compridos terminados em plumas que começaram a agitar com suavidade. Claro que sentia calor, mas não era bem aquilo que queria, embora fosse agradável.
«Não!» exclamei, desesperado. «São estes malditos mosquitos que não me largam.»
E logo pensei que estava a fazer figura de parvo porque a minha linguagem era para elas uma algaraviada e também vice-versa.
Novo bater de palmas e logo as duas jovens se afastaram. A própria mulher do rosto tranquilo acionou um dispositivo que fez soltar um tecido transparente que começou a rodear os limites da cama.
«Finalmente!» exclamei, num sussurro. «Obrigado, quem quer que sejas, desconhecida do olhar duro e sereno. Estes mosquitos malditos dão-me cabo do juízo. Se tivesse aqui dum-dum...»
Ficou-se por um acenar da cabeça e afastou-se, seguida da jovem da túnica branca que me pareceu ser também de casta superior e pelas outras duas que considerei serem escravas. Ao silêncio das suas vozes juntou-se o silêncio das suas ausências.
Entretanto a claridade permaneceu por mais de uma hora até que senti a aproximação do crepúsculo. Instintivamente levei a mão ao pulso esquerdo e praguejei. Além dos calções e boxers, também o relógio primava pela ausência.
«Ladrões!»
Logo as jovens acorreram. Com um gesto violento tratei logo de as afastar. Arrependido, acenei para elas.
«Desculpem, estou nervoso.»
A sua resposta foi um sorriso largo para o homem simpático que oscilava entre o são e a demência. Mas não era coisa para menos, dada a situação em que estava depois de ser encontrado no deserto às portas da morte.
Os minutos foram correndo. Inevitavelmente. Por mais que tentasse sair dum pensamento circular mais ele permanecia. Tão forte era essa corrente circular que adormeci com os tais pensamentos obsessivos.

Despertei com o ruído barulhento das aves ao amanhecer. Abri, primeiro a medo, um olho e logo o fechei. O curioso é que nada tinha visto senão o que podia ter visto para lá de uma neblina muito espessa. Apenas reagira por instinto, receando que a realidade fosse dura.
«Deixa-te de mariquices, Mário!»
E abri, em simultâneo, os dois olhos.
O olhar da mulher do toucado que parecia zelar por mim suavizou-se. Em silêncio, estendeu-me a mão que segurava os calções que quase me davam pelos joelhos e as imprescindíveis boxers.
«Obrigado.» Foi o que consegui dizer.
Vesti-me, resguardado pelo fino lençol de linho que cobria o meu corpo.
«Já me sinto outro.» Admiti.
«Sim?»
Esfreguei a cabeça com as duas mãos. Pensei que nada era o que parecia ser. O sol do deserto tinha-me feito mal. O resultado estava bem visível. Agora ouvia a voz da mulher que certamente era a manda-chuva.
Ainda em silêncio, estendeu-me o relógio automático. Desta vez não tive tempo ou disposição para lhe agradecer.
«Três das tarde!»
E saltei da cama, sem vacilar. O mosquiteiro, com que na altura me envolveram providencialmente, já tinha sido recolhido.
Apeteceu-me espreguiçar mas fiquei a meio caminho. Ela notou e sorriu. Para espanto meu estendeu os braços e simulou o gesto que eu tinha suspendido.
«Não achas mal?»
Puro disparate. Ela não entendia o que eu estava a dizer. Só por instinto acertara nos meus desejos. De qualquer forma, fiz aquilo que queria fazer. Com gosto. Muito gosto. Dois em um. Um ato de preguiça e outro de alongamento do corpo. E mais. Claro que ela não achava mal. Havia um abismo enorme entre as nossas civilizações qualquer que fosse a sua, no tempo e no espaço. Certamente era um ato não censurado no seu mundo.
«Isso... mostra-me esse teu olhar sereno e deixa que os olhos escuros se valorizem!»
Estávamos frente a frente. Ela dava-me pelo ombro.
«E agora que vamos fazer?»
Encolheu os ombros.
«O que puderes fazer.»
As dúvidas que tinha deixavam de ser dúvidas. Ela entendia-me e, o mais estranho de tudo, eu também a entendia. O desejo expresso na véspera tinha-se concretizado.
«Ai! Isto não está bom! Que me deste de beber ontem naquele caldo intragável? Soube-me mal.»
Sorriu com uma certa dose de ironia.
«A cura.»
Uma resposta que me deixou desarmado.
Sonhava? Era mesmo. O resultado de uma exposição mais que intensa às radiações solares.
«Ouve... como te chamas?»
Demorou a responder.
«Hatshepsut. O meu nome diz-te alguma coisa?»
«Hatshepsut? Acho que apanhei sol a mais no deserto. É que a cabeça lateja-me. Se calhar estou ainda algures no deserto à espera que a morte me leve. Diz-me que isto é mais que uma miragem. Um sonho bom dentro de um sonho ruim.» 
Coincidência incrível! Era sobre aquela mulher que a outra, a mal jeitosa, estava a ler na revista Sciences et Vie
Pareceu ignorar as dúvidas que me assaltavam.
«Já te sentes bem? Tens vontade de comer?»
«Talvez.»
«Ganso. Peixe. Grão. Melancia. Quando chegares à mesa logo te decides.»
«És mesmo tu?» perguntei, quase atordoado pela situação insólita, corolário de muitas outras situações insólitas.
«Já o disseste. Amon é testemunha e está connosco porque não interfere nas minhas dúvidas. Mesmo assim, pergunto: vens do mundo dos deuses? Será que Amon te enviou para mim?»
Era mesmo ela. A mulher majestosa que se intitulou filha de Amon e que governou o Egito, aparentemente em conjunto com o sobrinho-enteado, Tutmósis III.
«Estou no Egito!» deixei escapar num sussurro. «E tu és mesmo...?» perguntei, de sobrolho franzido.
«Hatshepsut. Única filha legítima de Tutmósis I e Ahmose. Senhora de duas terras...»
«E onde estão as coroas? Não pode ser! De certeza que tudo isto é um delírio. Acorda-me, mulher do olhar sereno!»
«Sentes-te mesmo bem?»
«As forças voltaram. Melhor do que nunca.» Exagerei.
Num gesto largo indicou-me para a seguir por um corredor longo, ladeado por pequenas estátuas gémeas, cópias fiéis da minha companheira do momento. Homens e mulheres, seminus e de cabeça rapada, encostaram-se à parede, entre as estátuas para nos deixarem passar, dobrando os troncos e baixando as cabeças em sinal de respeito ou submissão. Uma delas foi a primeira jovem que vi no momento em que estava entre a vida e a morte. Desta vez trazia os seios cobertos.
Parei junto da jovem. Era inevitável.
«Que beleza de mulher!» pensei.
«Como te chamas, jovem?»
«Nétis, meu senhor.»
«És muito bonita. Quero agradecer-te. Mataste-me a sede e não deixaste que bebesse demasiado. Decisão sábia, a tua.»
«Podia ser fatal, senhor.»
«Deixa para lá o senhor. Vá lá. Quero ouvir outra vez a tua voz doce.»
«Sim. Podia ser fatal, Marió.»
«Assim está bem.» 
A suposta Hatshepsut voltou para trás e parou junto de nós. Receei o pior. Desconhecia as suas intenções.
«Ela não fez nada de mal. Estava a agradecer-lhe...»
«E eu não estou a censurá-la, Marió. Agrada-te esta mulher?»
Olhei para uma e para outra e disse:
«Sim, ela atrai-me muito. Mas do sítio donde venho não é bem assim que são as coisas. Tem que haver um acordo entre os dois intervenientes.»
«Duvido, Marió, enviado de Amon. Estás no Egito dos faraós. Não na tua terra.»
«Não sou enviado do teu deus, nem de Hórus, nem de nenhum outro! Bem gostava de saber como vim aqui parar. Ajudas-me? Por favor!»
Olhou muito séria para mim. Tentei ler-lhe o pensamento mas fiquei-me por aí. Devia ser uma mulher de grande caráter.
«Não te recordas, claro. Depois falamos de tudo disto.» Disse, fitando a jovem. 
«Esquece. Nada te obriga a ficar com ela.»
Mas não me esqueci do brilho nos olhos das duas. De Nétis e dela própria, Senhora de duas terras.
O que passou por um incidente foi dado como resolvido e continuámos a atravessar o corredor ladeado por estátuas que parecia não mais acabar.
Estátuas gémeas de Hatshepsut?
Seguramente que sim e vi mais que cem. Não era exagero. E as decorações nas paredes, imagens coloridas que provavelmente contavam histórias passadas (algumas hínicas) e carateres indecifráveis, deixaram-me abismado.
«Pronto, já chegámos.»
O que vi, considero que era indescritível. Além do exotismo da mesa longa em ébano, de tampo espesso e desenhado e pequenos pés prismáticos grossos, também trabalhados, e das cadeiras baixas, toscas, mas quase de certeza cómodas, outros artefactos chamaram-me a atenção como quatro florões sobre colunas graníticas, oriundas quiçá da Núbia, localizados nos cantos da sala. A mesa tinha várias travessas quadrangulares de um metal prateado onde existiam diversos frutos como melancia, laranjas, tâmaras, figos. Outras, circulares, com grão de bico e favas ornamentadas com rodelas finas de cebola e bagos de uvas. A completar o conjunto, jarros em cerâmica e também de metal amarelo, bem como copos de metal amarelo.
Estranhei a ausência de ervas aromáticas.
«Que pena estes palácios serem construídos com materiais perecíveis e por isso não terem chegado aos nossos dias. Pelo contrário, os templos funerários, em pedra resistiram às inclemências do correr do tempo.» Pensei. «Porquê essa diferenciação?»
A resposta era mais simples do que julgava. Os faraós e pessoas de linhagem superior davam importância, acima do que se pudesse imaginar, aos seus templos funerários. Tudo o resto era supérfluo para o futuro.  
«Posso saber a tua opinião sobre o que estás a ver?»
«Não consigo ter palavras, Hatshepsut...»
«E isso o que quer dizer?»
«Que estou extasiado!»
Foi a resposta. Sintética. 
«Ah!»
«É agradável à vista e...»
Não completei a frase. Acabava de chegar a jovem da túnica branca que nunca deixara de estar presente durante os momentos em que eu estive semi-inconsciente.
«Neferuré. É a minha filha.»
Foi assim que apresentou a jovem.
«Só tenho a agradecer-te pela tua dedicação, Neferuré, filha de Hatshepsut.»
«Fiz por ti porque te vi a dormir como um deus vivo. És um enviado de Amon e vens dar-nos conselhos sobre as expedições à Núbia e a Punt, estou certa?»
Falou-se muito das expedições egípcias a Punt, cuja localização ainda hoje se desconhece. A mais conhecida foi ordenada pela própria Hatshepsut. Eram expedições amigáveis onde se faziam trocas, saindo sempre os egípcios a ganhar. As suas ofertas eram pontuais, em contrapartida, recebiam marfim, ouro, árvores como a mirra e o incenso, muitas delas enraizadas, animais exóticos. Era lógico que ninguém dava nada a ninguém já nesse tempo. Por algum motivo era. Portanto, talvez se tratasse de prestarem um simples ato de vassalagem ante os egípcios, povo mais poderoso militarmente.   
«Não sou um deus vivo, nem, tão pouco, vim enviado por Amon, o vosso deus supremo. Nem sequer sei porque vim.»
«Punt fica para oriente. Falas como se Amon não fosse o teu deus.»
«E não é, Neferuré.»
«Desiludes-me. Isso é blasfémia!» exclamou, irritada, olhando para a mãe com ar de censura.
«Bom» interrompeu a mulher-faraó. «Vamos para a mesa. Os gansos e os peixes não podem esperar. Frios não sabem bem e requentados muito menos.»
«Porque foi que não te percebi quando estiveste doente e agora falas como nós?» perguntou a filha de Hatshepsut.
«Mistérios.» Pensei.
«Também eu gostava de saber.» Foi o que pude responder.
«Mas os deuses vivos nunca adoecem!»
«Confirmo o que disse atrás. E mais ainda: será que já viste alguma vez o deus vivo em carne e osso?»
«Só te vi a ti. Mas a mãe é filha de Amon e...»
Recordei-me do que li sobre o mito do nascimento de Hatshepsut. Parece que tudo começou no reino dos deuses. Provavelmente num momento de tédio, Amon sacudiu o dito tédio ao ter uma ideia de génio. Uma daquelas ideias que só os grandes deuses podem ter.
Essa ideia era, nem mais nem menos…
«Vou gerar um novo filho!»
Mas havia um problema. Necessitava de encontrar uma mulher ideal para ser a portadora do seu futuro filho. Não podia ser uma qualquer.
Chegou a Tebas e encontrou logo a mulher ideal. Ahmose, a esposa de Tutmósis I. Nem mais nem menos.
E decidiu:
«Tu foste escolhida para gerar o futuro faraó do Egito!»
Dito e feito. Amon entrou no quarto da rainha disfarçado de Tutmósis I. A rainha dormia profundamente, mas acordou ao sentir o perfume que emanava do corpo do marido que não era outro senão Amon-Rá em toda a sua plenitude. Emocionou-se pela grandiosidade do deus, que lhe disse a frio:
«Sou Amon e vamos gerar um filho.»
«Tudo bem. Numa boa.»
Ela disse que sim (que remédio!, relaxa e goza...) e o casal uniu-se sexualmente seguindo a tradição de Amon-Rá. Depois, Amon-Rá informou "que a filha que nasceria da união dos dois governaria o Egito em todas as esferas de poder do palácio".
Os sacerdotes não concordaram (adultério divino?) mas foram obrigados a legitimar a história porque era o deus venerado pelo povo egípcio que o impunha. E também por motivos materiais, que até podiam pesar mais do que os restantes.
Como contrariar a jovem?
«Fico junto de ti à mesa.» Afirmou Neferuré, afastando de propósito uma das alças do vestido branco de linho, comprido até aos pés, para o lado. «Gostas do odor do meu perfume?»
«Neferuré!» agastou-se a Senhora de duas terras. «Preciso de falar contigo.»
«Não o queiras só para ti, mãe!» disse, com um sorriso irónico. 
A rainha limitou-se a encolher os ombros e fiquei entre as duas mulheres. Uma rosa em botão e outra florida em toda a sua plenitude. Mas o meu pensamento estava longe das duas.
Alexandra?
Não. Talvez não, logo após o regresso precipitado naquele dia em que fomos a Fátima.
Sim. Definitivamente pensava nuns seios firmes que toquei sem intenção e que não fugiram do contacto.
E a propósito, onde estava aquela formosa mulher?
«Estás ansioso, Marió, meu amigo?»
A mulher-faraó pareceu ler os meus pensamentos e senti-me um pouco embaraçado. Mas logo me recompus.
«Claro que não.»
Que ideia! 
«Aí vêm as travessas com os gansos. Vais apreciar o modo como estas aves são preparadas.»
Nem de propósito. Nétis aproximou-se de nós e estendeu a travessa para a sua rainha.
«É muito dedicada a mim.» Disse, mostrando ternura pela jovem.
«És, Nétis?» perguntei, fixando-a bem nos olhos.
«Daria a minha vida, senhor...»
«Prefiro o peixe grelhado. Serve o convidado, Nétis.»
Inevitável. Os nossos olhares cruzaram-se e só depois ela serviu-me uma parte suculenta do ganso. A jovem Neferuré dispensou, tal como a mãe.
«Reservo-me para o peixe. Sabes como se chama o peixe que vão servir daqui a pouco, Marió?»
«Do sítio donde venho há um peixe do Nilo que se chama Perca. Dir-te-ei quando o vir, Neferuré.»
«Que fazes aí especada, criatura?» perguntou a filha da Senhora de duas terras.
«Espero ordens do senhor.»
«Favas ou grão, Marió?» perguntou Hatshepsut. «Vai por mim. Favas. Cai bem melhor.»
«Então está bem. Por favor, Nétis...»
A jovem fez uma vénia graciosa e serviu-me, de olhos em baixo, as favas, aparentemente estufadas.
«Nétis...»
Levantou o olhar, sorrindo discretamente.
«Senhor?»
«Obrigado.»
E depois afastou-se.
Segui-a com o olhar até que saiu da sala.
«Vinho?» perguntou Hatshepsut, com um sorriso cúmplice.
Os seus pensamentos eram impenetráveis. Ou fazia futurologia para as próximas horas, e daí a ação desinibidora do álcool, ou então tinha dado conta da intensidade do meu olhar dirigido para a serviçal.
«Sim, por favor.»
Intrigava-me estar a ser servido pela mulher-faraó que, por acaso, não trazia a inseparável barba falsa, símbolo do faraó.
O vinho não se comparava com o nosso. Era áspero. Diria mesmo, a atirar para o azedo.
«Se não és um deus vivo, então donde vens, ó Marió?» perguntou a filha de Hatshepsut com a insolência própria da juventude.
«Deixa o nosso convidado saborear o ganso em paz, Neferuré.»
«Não faz mal, eu respondo já. É muito simples. Venho do futuro.»

Pássaros de ferro nos céus de Amon


Mãe e filha olharam uma para outra e no momento percebi que me tinha precipitado. Mas o que estava feito, estava feito. Se tentasse remediar o mal, pior seria. Preferi ficar na expectativa. Uma solução cómoda e talvez eficaz.
«Marió, apreciemos primeiro esta lauta refeição que te dedico e depois vais-me explicar este mistério do futuro. Se quiseres, claro...»
«Não!» interveio Neferuré, excitada, virando-se para mim. «Estás a entrar em contradição pois disseste que não eras um deus-vivo, que não tinhas nada a ver com Amon, e tudo mais. Explica-te. Por Hórus, explica-te.»
«Ela pôs-me entre a espada e a parede e a mãe não se impõe.» Pensei.
«Neferuré...» troquei um rápido olhar com Hatshepsut. «Este banquete é em minha honra, não é?»
«Acho que sim.»
«Achas ou tens a certeza? Diz o que pensas que eu também direi na altura certa tudo sobre o futuro, se alguma vez se proporcionar. És jovem e impetuosa como os da tua idade. Pela aparência não tens mais que dezassete anos e eu desculpo-te por isso.»
«Está bem, eu espero. Atira-te ao ganso. Mas olha bem que há carne bem mais gostosa ao pé de ti!»
Ignorei a insinuação.
«Neferuré...»
«Sim, minha mãe?»
«Depois falamos.»
A mulher-faraó sorriu e acenou com a cabeça, satisfeita. Preferiu também ignorar o convite que a filha me fez. Melhor para mim. Não dava mais complicação.
Que sorriso era aquele que não consegui descodificar?
As mentalidades egípcias eram mais avançadas do que eu imaginava. Ainda por cima a insinuação vinha do raio de uma fedelha que ainda não tinha dezoito anos.
Entretanto, a filha da rainha tinha exibido descaradamente a perna.
«Começa a comer o ganso antes que arrefeça de todo. É a parte mais saborosa e a Nétis não se esqueceu de te premiar com semelhante acepipe.» Disse a rainha.
«Agora que o dizes, tenho que agradecer-lhe.» Aproveitei a oportunidade.
«Também acho. Queres agradecer-lhe já?» perguntou, irónica.
Uma deixa que não quis aproveitar logo. Fingi ignorar a pergunta, limitando-me a sorrir.
O resto do banquete correu dentro daquilo que considerei ser a normalidade. Apreciei especialmente os figos e os damascos. Quanto ao peixe, semelhante à Perca, achei que o grelharam de mais e ficou seco. Foi muito gabado. Gostos não se discutiam.
Só mais um pormenor que me estava a escapar. Não voltei a ver a bela Nétis. Pior para mim.
Acabada a refeição passámos para uma outra sala, mais pequena e confortável, igualmente decorada por artistas que considerei serem de primeira água.
Foram servidos vinhos em pequenos copos de cobre, finamente decorados nas suas paredes exteriores.
«E o verdete, Mário?» pensei. «Será que os egípcios desta época conhecem o efeito do azul do sulfato de cobre?»
Alguns faraós tinham morrido depois de submetidos, por atentados ou por vontade própria, ao veneno poderoso de cobras como a naja. Foi o caso de Cleopatra VII, que escolheu a morte como opção a deixar-se governar por Roma.
Os momentos mais oportunos para o crime estavam ligados às refeições. Talvez os escravos ou cães servissem de provadores da altura. No caso de Hatshepsut, pelo menos durante o banquete em minha homenagem, tal não aconteceu, a não ser que os ditos "provadores voluntários" dessem antecipadamente o seu contributo nas cozinhas. Preferi jogar à defesa.
«Já bebi muito ao almoço e não quero sentir-me toldado, Hatshepsut. Se não levas a mal, dispenso, com alguma mágoa, estas bebidas que devem ser muito agradáveis.»
«Como queiras. Mas eu não dispenso.»
«E tu, filha da Senhora de duas terras, ainda és muito nova para te entregares a libações de adultos.» Comentei, dirigindo uma crítica construtiva à jovem princesa.
«Por Hórus! Vou fazer daqui a pouco dezoito anos...»
Ato contínuo estendeu-se de forma provocadora numa espécie de canapé com recortes finos nas costas, entre almofadas decoradas com cores garridas. O que não seria depois de mais um ou dois copos de vinho que nada devia ter de adamado.
«Queres provar, Marió?» perguntou. «Aproxima-te que não te como. Mas vontade não me falta. Ah ah...»
O pior estava para vir, ou ela entrava entretanto em coma alcoólico?
Valeu-me a intervenção pronta da mãe faraó.
«Ainda estás em condições de ouvir o nosso convidado, Neferuré?»
Não foi o efeito do veneno de naja que se fez sentir na jovem, mas sim o do álcool.
«Dispenso.»
«Melhor assim. Queres acompanhar-me até aos jardins, Marió?» olhou para a filha. «Aí estamos mais à vontade.»
«Pois não.»
«Gostava que ela estivesse presente, mas enfim... depois vossa alteza real, Senhora de duas terras, transmite-lhe tudo o que vou revelar-lhe.»
«Marió, que é isto que estou a ouvir? Por favor, continua a tratar-me por Hatshepsut.»
Saía de uma para meter-me noutra?
Com um gesto brusco dispensou a duas escravas, completamente nuas, que agitavam paus de madeira com plumas no topo. Estas eram negras retintas.
«Temos que suportar o calor porque esta conversa que vamos ter não admite testemunhas, não achas? Só tu e eu. Ainda bem que a Neferuré se embriagou.»
Preparei-me para toda e qualquer surpresa. Afinal, Hatshepsut estava a ser muito amável para mim.
«Sou todo ouvidos.»
«Que é isso de vires do futuro?»
«Não sabes a que futuro quero referir-me...»
Como dizer-lhe?
«Para mim, o futuro é o amanhã. E depois, a seguir a depois. Até ao dia do julgamento. E eu sou filha de Amon. Não vou precisar que Anúbis me conduza à presença de Osíris para julgamento. E estou já a tratar da construção do meu tempo funerário. O funeral será uma festa porque, de certeza, vou continuar a viver. E a vida que me espera será muito melhor do que esta. Disso tenho a certeza.»
Tinha assim tanta certeza?
«Eu sei como encaram o futuro para além da morte.  Mas aquele futuro de que te quero falar está antes da morte e distante de muitos e muitos "Akhet", "Peret", ou "Shemu". É um tempo avançado que já foi percorrido por diversas civilizações.  Vamos a ver se não estou a complicar mais a situação.»
Impacientou-se.
«Por Amon, explica-te!»
«Está bem. Para começar, esta minha época donde vim é muito avançada no tempo e em conhecimentos. Nem imaginas como. Pássaros de ferro, que hoje não vês, a voarem nos céus de Rá. Doentes com morte iminente a serem salvos porque receberam corações novos que foram extraídos de mortos. Mágicos a verem coisas minúsculas que tu nunca conseguirias ver com os teus olhos. Imagina, milhares e milhares de vezes mais pequenos que um mosquito. E muito mais que te espantaria talvez até à loucura. Tenho receio de te provocar um choque terrível, Hatshepsut! As tuas ideias são muito diferentes das minhas. A imaginação. O que vemos. Aquilo em que acreditamos. Olha, os tempos são outros. Mas acredita que tudo o que te vou revelar é pura verdade. Não te peço para acreditares de imediato. Apenas para ouvires até dizeres basta. E depois, peço-te que medites.»
«Assustas-me, Marió! Mas pássaros de ferro nos céus de Rá, acredita que já vi.»
«Lá, no futuro, chamamos aviões e alguns podem transportar mais de trezentas pessoas. Mas acredita, nunca os verás. O quê? Que pássaros eram esses de que estás a falar?»
«Eram de ferro. Não tinham asas.»
«Não é possível! E onde os viste?»
«Para o norte. Uma vez, quando fizemos uma expedição aos túmulos dos nossos antepassados. Eles estavam lá, pousados no chão. Eram redondos. Enormes.»
«Ovnis nas pirâmides de Guiza!» pensei. «Certos lunáticos sempre tinham razão.»
«Eram muitos?»
«Três, Marió. Levantaram voo, rodando, quando nos aproximámos. Um deles fez-se em fogo e ardeu quase todo.»
«Podes desenhar o sítio onde os viste e como eram?»
«Sim.»
Fez um gesto largo para um guarda que estava próximo e logo este se aproximou.
«O escriba do palácio que venha cá. Rápido.»
O guarda fez uma vénia e afastou-se a correr. Logo outro tomou o lugar dele.
«É eficiente o funcionamento da guarda real.» Pensei.
«Sobrou alguma coisa do pássaro de ferro?»
«Sim. Pedaços de ferro. Nada os fez derreter.»
«E onde estão?»
«Ficaram lá.»
«Era importante eu ver esses destroços!»
Perguntou o que eram destroços.
«O que restou dos pássaros
«Ah sim. É impossível de momento. Estão muito longe.»
Pouco depois chegava o escriba com a folha de papiro e o material para escrita.
«Podes ir, Mané...»
O escriba fez uma vénia e afastou-se. Então Hatshepsut começou a desenhar e, se tinha dúvidas, estas desapareceram.
Extraterrestres a visitarem as pirâmides, porquê?
«Sempre é verdade que eles estão entre nós!»
«Quem são eles, Marió?»
«Eu disse eles?»
«Pareceu-me.»
«Bom, não interessa o que disse. Estava só a pensar em voz alta.»
Acontecia que, desde sempre, os
 fenómenos naturais tinham uma forte correlação com os costumes e acontecimentos do Egito. Era o ciclo de cheias do Nilo, o movimento dos astros, as alterações no clima... tudo influenciava o dia a dia do povo. Até a morte e o após morte tinham uma explicação diferente.
Era por aí que eu ia desenrolar a trama.
«Peço-te que acredites em mim, Hat... Posso chamar-te assim? É que me custa um pouco...»
«Claro, claro. Até gosto.»
«De uma vez por todas quero dizer-te que não sou um enviado de Amon ou outra divindade. Vim de uma terra distante e muita água já correu no teu rio. Milhares de Akhet passaram pelo teu grandioso reino. Muitos faraós governaram nas tuas terras.»


"Segundo o sistema egípcio de crenças, a morte consistia num processo onde a alma se desprendia do corpo. Com isso, acreditavam que a morte seria um estágio de mudança para outra existência. Sendo o corpo compreendido como a morada da alma, havia uma grande preocupação em conservar o corpo dos que faleciam. Dessa forma, desenvolveram-se variadas técnicas de mumificação capazes de preservar um cadáver durante anos a fio.
A mumificação era realizada por um profissional específico. Após retirar as vísceras, os restos mortais da pessoa eram repousados em uma mistura contendo carbonato de sódio e água. Finalizada a imersão, diversas substâncias e ervas eram introduzidas no corpo para evitar a deterioração dos tecidos. Na etapa final do procedimento, o morto era enfaixado e coberto por uma cola que impedia a contaminação pelo ar.
Terminada a mumificação, o falecido era colocado num sarcófago posteriormente depositado num túmulo.
Através da análise dos túmulos, estudiosos puderam descobrir qual era a posição ocupada pelos mortos.
Os sacerdotes e faraós eram sepultados nas mastabas, construções em formato de trapézio divididas em dois compartimentos, um destinado ao sarcófago e outro que armazenava as oferendas do ritual funerário.
Logo após o falecimento, segundo a crença egípcia, o indivíduo perdia o acesso a todos os prazeres e regalias que desfrutava em sua existência terrestre. Para recuperar os seus benefícios numa nova existência, a pessoa, fosse qual fosse a sua posição social em vida, era conduzida pelo deus Anúbis para se apresentar ao Tribunal de Osíris, local em que sofria uma avaliação de seus erros por outros quarenta e dois seres divinos. Antes do início do julgamento, era entregue ao falecido o Livro dos Mortos, onde obtinha as devidas orientações de seu comportamento durante a sessão a ser realizada. Para que recebesse a aprovação das divindades, era necessário que o julgado não tivesse cometido uma série de infrações, como roubar, matar, cometer adultério, mentir, causar confusões, manter relações homossexuais e escutar as conversas alheias. No ápice do julgamento, Osíris pesava o coração do falecido numa balança. Para que a pessoa recebesse aprovação o seu coração deveria ser mais leve que uma pena. Caso contrário, o indivíduo não poderia entrar no Duat, uma espécie de submundo dos mortos. Uma vasta área sob a Terra, ligada à Nun, as águas do abismo primordial. O Duat era o reino do deus Osíris e da residência de outros deuses e seres sobrenaturais. A região através da qual o deus-sol  viajava de oeste para leste durante a noite e também o lugar onde as almas das pessoas passavam, após a morte, para o julgamento.
Se os pratos da balança ficassem em equilíbrio, o morto podia festejar com as divindades e os espíritos dos mortos. Mas se o coração fosse mais pesado que a pena, a sua cabeça era devorada por um deus com cabeça de crocodilo. Ammit devoradora ou comedora de almas, era um demónio fêmea na religião no Antigo Egito, a personificação da retribuição divina para todos os males realizados em vida. Devorava aqueles que eram julgados como pecadores. Uma fera com corpo misto de leãohipopótamo e crocodilo. Um demónio de punição, mas, todavia, uma divindade."

«Marió, estás a querer dizer-me que, definitivamente, não és filho de Amon?»
«Nem destas terras que fazem parte do teu reino. Vim de muito longe. E de outro tempo, conforme já te disse. Estou de passagem, sem saber como vim parar ao teu grandioso país. Acredito que um dia vou regressar ao futuro.»
«Vieste parar aqui num pássaro de ferro? E que aconteceu entretanto ao pássaro?»
Como dizer-lhe, se nem eu próprio tinha uma explicação para este fenomenal mergulho no passado?
«Olha, Hat, não sei. Juro-te que não sei. Era fácil chegar às tuas terras num pássaro de ferro, mas no meu tempo. Ver as pirâmides dos três faraós e a Esfinge. Mas tal como serão no meu tempo e não no teu. Imagina só que sofreram muitas mutilações causadas por gente ruim. Por exemplo, a Esfinge já não tem nariz...»


«Ai isso é que tem!»
«No meu tempo não terá. No futuro. Se houvesse aqui um pássaro de ferro, dos que têm asas, que nos pudesse levar ao meu tempo, então poderias ver com os teus olhos que estou a falar verdade. E há outra coisa. Alguns dos nossos cientistas admitem que a Esfinge foi construída muitos anos antes das pirâmides. Mas talvez não seja bem assim.»
Hatshepsut não respondeu de imediato. Dobrou o tronco e começou a remexer a terra com um graveto. Tentei adivinhar a confusão que ia naquela pobre cabeça. E a culpa era minha. Esteve aparentemente em meditação durante alguns minutos, até que se decidiu a falar.
«É estranho tudo o que me contas.»
«Acredito. Não tenho meios para te explicar. Olha, como Senenmut tem planos para construir o teu templo funerário dedicado a Amon, os nossos cientistas têm processos para chegarem à verdade.»
«Continua.»
«No futuro donde vim há construções muito altas que abrigam milhares de pessoas. Como já te disse, podemos falar de pessoas que têm corações tirados de mortos e isso salvou-lhes a vida. Bem como outros órgãos. Têm remédios poderosos para salvarem das doenças as vidas de muitas pessoas e assim podem viver mais anos. Os homens têm outros meios de se deslocarem na terra, no mar e no ar, meios esses que são muito rápidos. Por exemplo, barcos de ferro.»
Interrompeu-me, incrédula.
«Barcos de ferro! E não vão ao fundo?»
«Não.»
«Pronto, estou disposta a tudo. Vocês são mágicos. Não os queria ver como invasores, acredita.»
«Depois, há máquinas que fazem contas incríveis num abrir e fechar de olhos. E carros poderosos, bem como pássaros de ferro e barcos que transportam coisas maléficas que, lançadas da terra, do ar, ou do mar, podem causar a destruição total do nosso planeta. Chamam-se bombas nucleares. Avançaram tanto nas descobertas que chegaram ao ponto de encontrar um meio de se destruírem a si próprios. Têm...»
Fez um gesto que me obrigou a interromper as minhas revelações.
«Metes-me medo, Marió!»
«Queres que continue?»
«Por enquanto.» 
«Pois vou revelar-te mais uma coisa. No nosso tempo os homens já visitaram a lua com pássaros de ferro de diversas formas. Partiram num pássaro alongado como o tronco duma árvore. A seguir usaram outro pássaro, este mais leve, e quando chegaram perto da lua passaram para um terceiro pássaro ainda mais leve que pousou na lua.»
«Porquê a lua?»
«A lua não tem ar para se respirar, sabias? E é inóspita. O frio é insuportável. Os homens não podem sobreviver se não construírem abrigos que possuam ar para respirarem. Não há hipótese das sementes darem o trigo ou das árvores darem frutos. Mas os homens levaram alimentos e fatos próprios para andarem na lua. Valeu a pena ir à lua? Digamos que a lua foi uma experiência muito importante para os homens irem mais longe...»
«Ter com Amon?»
«A propósito, no futuro continuará a haver muitos deuses, mas as pessoas que têm o mesmo deus juntaram-se para formar aquilo a que chamamos religião. Quanto ao objetivo de explorar o que está para lá do céu não é ir à procura de um deus, qualquer que ele seja.» 
A rainha objetou.
«E mesmo que quisesse nunca conseguiria. Amon está invisível, assim como qualquer deus menor. Mas voltando ao que me revelaste sobre essa viagem em que não acredito, desculpa-me... Porquê? Já não lhes chega os nossos torrões para lançarem a semente à terra e os rios e o mar para viajarem?»
«Estás satisfeita com o que tens, apesar de seres rainha?»
«Claro que não» admitiu. «Falta-me sempre qualquer coisa, por mais insignificante que essa coisa seja.»
«Agora imagina quando certos homens pensam no futuro dos seus. Um dia, que vem longe, terão que abandonar a Terra por uma questão de sobrevivência.»
«És sábio, Marió. Mas como sabes se estou insatisfeita com o que tenho?»
«Sei, pronto. A insatisfação é própria da natureza humana. Do homem... e da mulher. Faltará sempre qualquer coisa para poder estar mais perto da felicidade. Está comigo. Contigo. Mas não é só o desejo que conhecer o que está para lá do céu. Conforme já disse, um dia o homem terá que partir para outros lugares fora da Terra.»
«Porquê?» 
«Por exemplo, a queda de um corpo gigante vindo do espaço no nosso planeta pode provocar uma grande destruição e até o fim da vida de todos os humanos e animais que vivam na terra, mar e ar. E também das plantas.»
«O quê?»
«Como dizer-te? Para lá do céu existem muitos corpos a girarem em torno do sol. E muitos outros, muito distantes, para lá do sol.»
«O sol é que gira...»
Já esperava esta objeção.
«Foi assim que se pensou durante muitos anos.»
«E estavam errados?»
«Sim. Continuando, os homens terão que ter outras alternativas para sobreviverem. E penso que vão conseguir.»  
«Não contes nada disto à pobrezinha da Nétis quando estiveres com ela.» 
«Vou estar com ela?» 
Sorriu. 
«Olha, vamos para dentro?» propôs, muito séria. «É que me contaste já tanta coisa que me baralhaste as ideias. Esta noite vou dormir mal. Mas gostava muito de ir ao vosso futuro.»
«Também eu.»
«Também tu?»
«Não sei se posso voltar, Hat...»
«Da mesma forma como não sabes como cá chegaste, um dia vai acontecer. É preciso acreditar!»
Já lá dizia a cigana que jogava no casino. E um dia acreditou noutra realidade que era nunca mais voltar ao casino para ter hipótese de sobreviver ao caos em que se tornou a sua vida.
«Queres ouvir mais?»
«Por hoje chega.» 
Tinha tanto para lhe contar!
«Vou ver o que se passa com Neferuré. Bebeu em excesso. Não sei o que hei de fazer àquela rapariga...»
«Acho bem» consultei o relógio. «E eu aproveito para descansar um pouco, se não te importas.»
Notei que sorria com sarcasmo.
«Descansar? Ah sim, desejo-te um bom descanso. Olha lá, emprestas-me por uma noite essa coisa que tens presa no pulso para mostrar ao tutor de Neferuré? Mede o tempo, não é?»
Referia-se ao relógio.
«Sim. Chama-se relógio. E tem um calendário. Claro que empresto.»
«Ele vai gostar de ver. Parece mágica esta coisa, Marió, meu amigo. E olha... é com ele que devias falar sobre o que acabaste de contar-me. Senenmut é mais entendido.»
«Assim farei quando houver oportunidade.»
Depois de me separar de Hat, enquanto me encaminhava para o meu quarto cogitava em duas coisas. A primeira, porquê aquele sorriso sarcástico quando me desejou um bom descanso? A segunda, porque me pediu emprestado o relógio por uma noite para o mostrar a Senenmut?
Uma noite?
Haveria alguma ligação escaldante entre os dois?
Aliás, já desconfiava disso quando, em tempos, lera numa revista que o tutor de Neferuré até podia ter sido seu pai.
«Hum... daí Hat ser comedida comigo.» Pensei.
A princípio pareceu-me que se sentia atraída por mim, mas enganei-me. Não que desdenhasse. Enfim, o próximo futuro se encarregaria de ditar a última palavra.
Já à entrada do quarto, fracamente iluminado, enquanto tirava umas tâmaras de uma taça sobre uma mesa redonda, reparei que o mosquiteiro estava posto.
«Boa ideia que alguém teve. Assim, não vou ser picado.»
Eram duas boas ideias, pensei. O mosquiteiro armado e as tâmaras, doces como o mel, que estavam a saber-me tão bem! Ia ter uma noite descansada e bem precisava de retemperar as forças. 
Despi os célebres calções que chegavam quase aos joelhos e a camisa de linho fino, esta uma oferta da provocadora Neferuré. A seguir, afastei o mosquiteiro e mergulhei na cama baixa e rija, como se impunha, em busca do descanso mais que merecido do guerreiro. É que o dia fora longo e eu não me sentia ainda a cem por cento. Longe disso.
«Oh!»
Adivinhem quem tinha à minha espera?

A surpresa

Acordei com os primeiros raios de sol a invadirem a minha cama larga. Pisquei os olhos para me adaptar à luz, mas voltei a fechá-los de imediato, deixando-me ficar alguns minutos na modorra habitual de todas as manhã sempre que não tinha em mente algum objetivo imediato. Breves momentos de tédio que deixaram de existir logo que as brumas da memória se desvaneceram.
Foi então que me lembrei dos momentos da véspera que se seguiram ao mergulho no desconhecido quase olímpico e, instintivamente, olhei para a minha esquerda. Estava só, mas não tinha sonhado. A cama, agora vazia, tomara vida e desassossego naquele momento de surpresa ao dar com uma Nétis desnuda, a envolver-me logo com os seus braços sedosos. Aquele mergulho na cama terminara num contacto muito agradável. O resto era só uma recordação agradável que tornava o meu sorriso resplandecente.
Consegui finalmente vencer as últimas resistências e levantei-me para as limitadas necessidades higiénicas.
Quando entrei no salão, a primeira coisa que vi foi a enorme mesa de refeições repleta de travessas com vários frutos e nacos de carne que me pareceram ser de vaca. Havia também dois jarros, um de leite e outro de um líquido espesso que deduzi, ao aproximar-me mais, ser cerveja. O odor era parecido. Vi também pão de trigo abolachado, mel, figos secos e tâmaras.  Todo um manancial calórico. Só uma coisa não havia. Pessoas sentadas à mesa nos bancos baixos. Apenas junto à entrada que comunicava com as cozinhas duas escravas seminuas aguardavam ordens.
A um sinal meu, uma delas aproximou-se.
«Sou o primeiro a entrar na sala?»
A jovem acenou afirmativamente. Mas logo de seguida ficou muito séria e curvou-se.
«Que aconteceu?» perguntei aos meus botões, neste caso aos botões do calção.
«Madrugaste, Marió.»
Virei-me. A Senhora de duas terras acabava de chegar. E não vinha só. Tentei adivinhar quem era o homem que a acompanhava. Não me parecia ser difícil. Segundos depois confirmou-se o palpite.
«Passaste bem a noite?» perguntou, sarcástica. 
Brincadeira de bom gosto.
«Dormi profundamente. Mãozinha de Hat? Sabes muito bem do que estou a falar.»
«Claro que sei. E os seus olhos brilharam logo quando lhe sugeri para te fazer companhia. É uma prova de que gosta de ti, Marió. Mas desculpem-me a indelicadeza que estou a cometer. Apresento-te Senenmut, o meu fiel e sábio conselheiro. Já serviu com êxito o meu pai, Tutmósis, como fiscal das obras palacianas e do templo funerário e não só e agora está ao meu serviço.»
«Senhor Senenmut...» Cumprimentei-o.
Pareceu-me que respirava tranquilidade.
«Os meus respeitos, ó deus-vivo que vieste de longe para nos proteger» curvou-se, em sinal de respeito. «A Senhora filha de Amon-Rá disse-me que se sentia muito honrada e agradecida com a vossa vinda.»
Olhei, admirado para ela e fiquei confuso com o seu semblante sério e impenetrável. Era melhor entrar no jogo.
«Tudo correrá bem, Senenmut. Também sei da confiança que a divina faraó, filha de Amon, deposita em ti a ponto de deixar que trates da educação da jovem Neferuré.»
«Sinto-me muito honrado, senhor. Amo Neferuré como se fosse minha filha...»
Achei oportuno espreitar o semblante da mulher-faraó e desta vez apanhei-a em falso. Quer dizer, pareceu-me emocionada.
«E a propósito, Senenmut, meu fiel amigo e servidor, onde anda a minha filha? As suas serviçais já a preparam para o dia?»
«Neste momento, cavalga pelos campos montada no Atór, a sua montada preferida. O sol ainda vai baixo e é recomendável o seu encontro com a Natureza depois do que aconteceu ontem.»
«Acho bem, amigo.»
Deixei-me embalar pelo diálogo que continuou e foi fatal chamar a mim recordações de leituras feitas em comentários referentes ao par Hatshepsut-Senenmut.

"Hatshepsut nasceu em Tebas em princípios de 1542 a.C., sendo a filha mais velha do faraó Tutmés I e de sua esposa Amósis.
Pouco sabemos sobre sua infância e adolescência, mas certamente cresceu no palácio em meio de um grande luxo e respeito, sendo que era uma princesa descendente direta dos maiores grandes governantes de sua época. Todos os seus irmãos faleceram durante a infância, um atrás do outro diante da impotência dos monarcas.
No meio dessa grande tristeza Hatshepsut conheceu Senenmut, um jovem de origem muito humilde e sem nenhum título real, que não tinha nada a mais que seu talento como construtor. No entanto era dono de uma personalidade leal, o que encantou o pai de Hatshepsut, o faraó Tutmés I.
Assim Senenmut começou uma rápida ascensão social. O jovem acompanhou o faraó como membro de seu exército nas campanhas na Núbia e ganhou o título de ‘governador da casa da filha real’.
Muitos especulam que o amor entre e Hatshepsut e Senenmut tenha surgido durante esse período, mas desde o princípio esse amor foi impossível, sendo que o faraó Tutmósis não permitiria essa união e muito menos a sociedade egípcia. Anos depois, em 1482 a.C., o faraó faleceu e Hatshepsut, com cerca de vinte e quatro anos, contraiu matrimónio com seu meio-irmão, Tutmósis II e passou a ser ‘Grande Esposa Real’.
Conta-se que Tutmósis II era débil e pouco educado e que Hatshepsut o desprezava, mas o golpe mais duro que seu orgulho sofreu foi a afronta que sua esposa o fez ao se negar a consumar a união; se isso foi verdade ou não, o facto é que o casal real teve duas filhas Neferuré e Neferubiti.
Sobre o reinado de Tutmósis II pouco sabemos. O faraó, que tinha uma saúde muito frágil, faleceu prematuramente e Hatshepsut passou a governar o Egito como regente de seu enteado, Tutmósis III que era ainda uma criança de sete anos.
Quando Hatshepsut se tornou a máxima autoridade do Egito, escolheu Senenmut como guardião de si mesma e de suas filhas e deu-lhe títulos como Tesoureiro Real, Governador do Palácio e Supervisor dos Trabalhos Reais.
O fiel Senenmut também se tornou a máxima autoridade administrativa do todo-poderoso clero de Amon, mas passaria para a história sobretudo como o grande arquiteto e construtor do Templo de Deir el-Bahari, dedicado à sua rainha-faraó.
No Templo de Deir el-Bahari, Senenmut foi representado, com a permissão da rainha, com honras quase reais, o que o colocava quase como seu companheiro. Começaram então a circular rumores que Hatshepsut o tornaria seu marido, mas isso ela nunca o fez, sabendo o abismo social que os separava. Por isso muitos historiadores a descreveram como a rainha que escolheu o poder sobre o amor."
«Marió!»
A voz da rainha pareceu vir de longe.
«Sim, Hat?»
«De repente, ficaste ausente.»
Tanto a rainha-faraó como Senenmut estavam preocupados. Pelo sim pelo não decidi usar os meus atributos de representante e mandatário dos deuses.
«Tens razão. Não estive cá...»
«Mas não vi ires no teu pássaro de ferro!»
«Sempre é verdade que esse pássaro voou nos nossos céus e trouxe-o até nós, senhor Marió, deus-vivo?» perguntou Senenmut.
Porque não dizer...?
«Casem-se!»
Limitei-me a sorrir. Estava embaraçado com a resposta a dar. 
Felizmente que a faraó mudou um rumo da conversa.
«Ah... já me esquecia. Obrigada.»

Exibiu o relógio que passou de imediato para as minhas mãos.
«Senenmut achou extraordinário.»
Não pensei duas vezes.
«Esta máquina do meu tempo é muito precisa a medir o tempo. Olha, ofereço-te.»
«Que bom, Marió!»
Ato contínuo tirou um anel do dedo médio da mão esquerda e pô-lo nas minhas mãos.
«Vai proteger-te em vida. E quando morreres, o poder do Deus-Sol fará ressuscitares no outro mundo que te espera. Um dia chegará o tempo da tua eternidade.»
«A turquesa incrustada no anel é um escaravelho! Obrigado, Hat» agradeci, colocando aquela preciosidade no anelar da mão esquerda.

«Com ele na tua posse não vais esquecer-te de mim. É em ouro. Não o percas, nem deixes que te roubem.»
Prometi assim fazer, mas não perguntei o que me acontecia se alguma vez deixasse de o usar.
«Vamos para a mesa? Recomendo que comam bem porque hoje atravessamos o Nilo para a outra margem e a nossa jornada vai ser demorada. Quanto ao resto, é surpresa.»

Surpresa?
Tentei ensaiar várias hipóteses e acabei por desistir. Era cedo para descobrir.
E foi então que a vi.
«Só um momento. Vão comendo. Não esperem por mim. Se me dão licença...»
Ainda fui a tempo de a agarrar pelo braço a meio do corredor que dava acesso às cozinhas.
«Porque ias a fugir, Nétis?»
Os seus olhos brilhavam muito quando se virou para mim. Teriam iluminado a noite mais escura.
«Não fujo, meu senhor. Sou sua...»
«Olha, Nétis, não me fales assim quando estamos sós. Queria dizer-te... queria dizer-te...»
Segurei o seu rosto com as duas mãos e quase a obriguei a olhar-me nos olhos.
«És bela, Nétis! O perfume que o teu corpo exala embriaga-me. Odor a rosas?»
«Oh, senhor, perfumei-me com odores de rosas e jasmim.»
«Foi bom ontem, Nétis?»
«Sim, meu senhor!» exclamou de imediato.
«Repete.» 
Disse, fitando-a a sorrir. Ela sorriu também, aparentando felicidade.
«Sim, Marió!»
«Assim está melhor. Usa sempre essas essências quando estiveres comigo. Prometes?»
«O que é que estás a pedir-lhe?»

A mulher-faraó apareceu no momento inoportuno. Diria que tinha um dom especial para bloquear a nossa relação. Ou era impressão minha?
«Nada, nada. Dizia à Nétis que o ganso estava ainda mais saboroso que ontem.»
«Ah ah. Boa mentira. Ainda nem o provaste nem provas, porque hoje a carne não é ganso.»

«Bom...»
«Não escondas os teus sentimentos. Olha uma coisa, já convidaste a Nétis para nos acompanhar esta manhã na nossa viagem?»
«É possível?»
«Claro. Tu és um deus-vivo e a Nétis uma princesa de terras do norte-oriente. E mesmo que não fosse. Se gostas dela está tudo bem. É tua.»

A travessia do Nilo para a margem ocidental fez-se sem incidentes. Quanto à Nétis, esteve sempre a meu lado.

Já em terra firme, a rainha informou:
«Ainda estamos longe do destino. Agora vamos de carruagem. Eu e Senenmut, numa e o deus-vivo e Nétis noutra.  Concordam?» 
Aquela treta do deus-vivo confundia-me, mas não comentei. Que assim fosse.
«Não sei conduzir esta coisa.» Disse, preocupado.
«A Nétis não tem problema em conduzir a parelha de cavalos.»
«Posso confiar em ti?»
«Sim... meu senhor.»

Segredei-lhe ao ouvido:
«Sim, Mário.»
«Não posso, meu amor!»
«Que estão a segredar os dois, Marió?»
«Nada de especial. Apenas lhe disse que punha a minha vida nas suas mãos.» Sorri.
«E tu, Nétis? Bom, é melhor não responderes.»
«E eu, Senenmut? Nem se põe a questão. Mas hoje vou conduzir. Sinto-me segura.»
«Posso desvendar a surpresa?» perguntei.
«Se souberes...»
«Será que vamos a caminho de Deir al-Bahari?»


O atentado


Virou-se para mim, surpreendida. Atrás do seu olhar profundo, habitualmente impenetrável, escondia-se agora um ser fraco, acossado, que nada tinha de divino. Aliás, aquela história que alguns investigadores contavam sobre a sua origem divina, resultante de uma relação entre a rainha sua mãe e um Amon caprichoso e imaginativo, disfarçado de Tutmósis II, não me soava bem. Fora mais uma tentativa de reforço da sua ambição de ser faraó a todo o custo, decisão que até a tinha levado a sacrificar o grande amor da sua vida.
Demorou uns segundos a recompor-se.
«Sabes uma coisa, Marió, vou convidar-te para trabalhares conjuntamente com Hapuseneb. Estou verdadeiramente espantada com os teus dons de adivinhação.»
«Quem é esse Hapuseneb?»
«O sumo-sacerdote de Amon. É um fiel colaborador que me tem apoiado muito.»
«Compreendo. À custa de mais poderes para ele, não é? Troca por troca. E ninguém fica a perder.»
«Não permito que me faltes ao respeito, Marió!»
«Peço desculpa, Senhora de duas terras. Excedi-me. Mas do local de onde venho, a verdade não se esconde.»
«Nem sempre.» Pensei.
«Que sabes de nós?» perguntou.
«Apenas estou a lidar com algumas conjeturas retiradas das fontes onde bebi.»
«Não percebo.»
Como explicar-lhe?
«Aos meus tempos chegaram notícias sobre ti, Hat. Dos papiros que resistiram ao correr dos tempos e também dos afrescos que não foram apagados. Deles pude tirar algumas conclusões. Reinaste juntamente com Tutmósis, teu sobrinho e enteado, mas penso que, durante grande parte do teu reinado, na verdade ele fez figura de corpo presente.»
«Não entendo.»
«Em boa verdade, já com o título de mulher-faraó, enviaste-o para várias expedições, umas guerreiras, outras diplomáticas, e na verdade foste tu quem governou. Mas posso continuar?»
Autorizou com um ligeiro aceno de cabeça.
«O templo que dedicaste ao teu suposto pai, Amon, foi sendo erigido sem sobressaltos com a colaboração dos camponeses no tempo das grandes cheias. Bem sei que eram pagos, assim como os sacerdotes que conseguiste convencer. Ao mesmo tempo, era uma forma de manteres os camponeses ocupados, sem terem oportunidade de pensarem em atentados ou isso. Governaste bem. Nada faltou aos teus súbditos. Tiveste sempre os celeiros cheios. O deus Amon protegeu-te. Tentaste preparar a tua filha Neferuré para ser a continuadora da dinastia de mulheres com que sonhavas. Enfim, reinaste com inteligência e justiça. Mas…»
«Mas o quê?»
«Calo-me?»
«Fiquei curiosa.» 
Nétis e Senenmut tinham-se afastado discretamente há uns tempos para junto dos carros.
«E se não gostares do que vou dizer?»
«Esquece que estás a falar com a mulher-faraó. Continua, por favor.»
Era agora ou nunca que ia dizer-lhe.
«Apostaste tudo no poder e esqueceste uma coisa importante que há na vida.»
«Como sabes?» adivinhou. «Eu e ele continuámos a amar-nos mesmo depois de ser coroada. Adora a minha filha Neferuré e tenta educá-la.»
Levantei o indicador direito para a interromper. Alguns historiadores admitiam a hipótese de Neferuré ser filha do seu tutor. Era sobre esse assunto melindroso que ia interrogar Hatshepsut.
«Diz, Marió.»
Talvez não fosse boa ideia, reconsiderei.
«Nada. Não tem importância.»
«Mas sabes como são os jovens» continuou. «Nas tuas terras se a coisa não é igual, é parecida. Ou não?»
De certeza que era pior, em virtude das amplas liberdades de que os jovens gozavam.
«Esquece os jovens do meu futuro e volta ao assunto de que te desviaste. Porque não se casam?»
«É tarde. Quando o meu pai terreno era vivo, nunca ousei pedir-lhe autorização para ter Senenmut por marido pois já sabia que era impossível ele concordar, embora tivesse o meu Senenmut na conta de homem competente e fiel. Mais tarde, surgiu outro obstáculo. Os sacerdotes…»
«Mas conseguiste convencê-los que a tua origem era divina!»
«É diferente. Se estivesses no meu lugar, então irias entender.»
«Mas não estou. Casa com ele. Ainda não é tarde. Quando o monstro que há em Tutmósis acordar, então sim, vai ser demasiado tarde.» 
«Dizes que vieste do futuro, mas falas como se estivesses por cá há muito tempo.  Ou és o deus-vivo, representante de Amon, ou então não sei em que pensar mais.»
Ignorei a dúvida que me punha na altura. Por vezes era bom jogar com a ambiguidade. Mas obriguei-a a meditar mais profundamente.
«Desabafa, mulher-faraó. O teu coração é demasiado grande só para albergar nele o amor pela tua filha.»
«Olha, temos que ir ter com eles. Mas ainda não te revelei para onde vamos. Nem é preciso. Tu sabes.» Disse, convicta, olhando para os acompanhantes que aguardavam junto dos carros, por sinal bélicos, pois destinavam-se, em tempos de guerra, a transportar o condutor e o arqueiro. «Ou será que estou enganada?»
«Claro que sei. E antes que nos juntemos a Senenmut e a Nétis, põe-te de pé atrás com o sumo-sacerdote de Amon. É certo que ele, Senenmut e altos funcionários, sete anos após o início do reinado do faraó-criança Tutmósis III apoiaram-te quando da declaração do teu estatuto divino e de faraó. Tornaste-te a quinta governante da XVIII Dinastia...»
«E?»
«Esquece. Não quero falar mais do futuro.»
«Tu sabes...?»
«Sim, Hat. Tudo bem. Tens governado muito bem e sem grandes sobressaltos. Mas em breve virá um tempo em que vais perder a força e o discernimento e o teu sobrinho aproveitará a oportunidade para tomar conta do poder. Até lá, vive a vida, tira o melhor partido dela. Não posso dizer mais.»
«E esse dia...»
A legitimação da sua ascensão ao trono foi transmitida pela suposta transformação do deus Amon no pai de Hatshepsut, conceção que conferiu a Hatshepsut origem divina, dando-lhe, portanto, mais autoridade. Conforme sabia, uma outra forma de mostrar autoridade era apresentar-se como homem, usando para o caso uma barba postiça. Por sinal ainda não tivera ocasião para a ver nesses disfarces. Talvez usasse a barba em atos públicos importantes, ou quando fosse "retratada" em estátuas ou simplesmente desenhada.
«Pronto, conformo-me. Afinal a vida não tem interesse se descobrirmos o que nos vai acontecer amanhã. Que tens contra o sumo-sacerdote?»
«Nada. É só um aviso.»
«Que agradeço. Mas vamos lá visitar o meu templo funerário antes que se faça tarde.»
«Vou ficar de boca aberta.»
«Como podes dizer isso se ainda não o viste?»
«Faço uma pequena ideia...»
«Sim. E o que tens contra Hapuseneb?» repetiu.
«Talvez nada. Mas há uma coisa que aconteceu no templo de que ele não gostou. Dedicaste também o templo a Hathor. Portanto, ao amor. E ele, sumo sacerdote, não terá relacionado essa dedicatória com o teu mais que tudo Senenmut?»
«E que pode ele fazer?»
«Um amor escondido é mais perigoso que um amor declarado e visto por todos. Quanto custa subornares essa criatura? Nas minhas terras do futuro, é comum dizer-se que toda a pessoa tem um preço. O do sumo-sacerdote, qual é?»
Pôs-me uma mão no ombro e replicou:
«Esse preço é muito alto. Uma filha de Amon não deve nem pode unir o seu destino com um plebeu!»
«Talvez tenhas razão. Mas podias sondá-lo. Ver até onde é possível quebrares a cadeia.»
«Meu bom amigo, acho que não vou conseguir. Vá, chama a tua mais que tudo Nétis.»

Não tinha palavras para elogiar aquela obra de arte que os meus olhos contemplavam. Um monumento talhado na rocha, equilibrado por três grandiosos terraços hipóstilos situados em níveis crescentes. Só havia um senão. Os pátios eram uma cópia descarada dos de um faraó da décima primeira dinastia de nome Mentuhotep II que tinham sido construídos há mais de seiscentos anos. Se não me enganava, eram pátios do primeiro templo mortuário a ser construído em Deir el-Bahari. Havia, contudo, uma atenuante para o plágio de Senenmut. A rainha admirou muito o templo do faraó do Antigo Egito e desejou construir algo semelhante mas mais grandioso.
«Nétis, dá-me a mão. Isso. Tens a pele muito macia. E tal excita-me.»
As últimas palavras tinham sido sussurradas ao seu ouvido.
«Marió!»
«Não tenhas receio. A rainha apoia a nossa relação.»
«Bem sei. Não é isso. É que estou a viver um sonho demasiado belo para ser verdade. Tenho um pressentimento ruim, Marió…»
«Estou aqui para te proteger desse teu pressentimento ruim.»
«Que tens a dizer deste templo, Marió?» perguntou a rainha. «Viste alguma coisa parecida?»
«É sumptuoso. Se nas minhas terras do futuro o vissem assim?»
«Então…»
«No meu tempo ele está muito maltratado. Afinal foram muitos anos que passaram.»
Dizia-lhe que, depois de morrer, o seu nome tinha sido, à ordem de Tutmósis III, apagado e substituído em todas as inscrições pelo do seu pai Tutmósis I?
Optei pela omissão.
E assim era Deir-el-Bahari. Um complexo de templos situado a oeste do Nilo, em oposição a Luxor.
«É tudo obra de Senenmut. Os pátios. O templo sumptuoso. Dediquei-o a Amon. Em primeiro lugar. A seguir a Hathor e a Anúbis.»
Porquê Anúbis?
Os pátios, de grandes dimensões, estavam-me atravessados.
Dizia? Não dizia?
Ora, via-se nitidamente que eram uma cópia fiel dos do primeiro templo mortuário a ser construído ali para o faraó Mentuhotep II, há seiscentos anos.
«São parecidos com os de Menthuotep II.»
«Tens razão. Gostei muito do templo e disse-o a Senenmut. Ele fez-me a vontade. Os terraços são maiores. As capelas dedicadas a Hathor e a Anúbis são grandiosas. Mais ainda a capela dedicada a Amon.»
«Está quase acabada.»
«Sim. E o pórtico do segundo pátio com relevos da expedição que enviei a Punt. E olha para estas esfinges...»
«Magnífico! Tão altas!»
Estávamos no momento na avenida que dava acesso ao monumento.
«E a fila de árvores à frente» comentou Nétis. «Vieram de Punt, não foi, minha rainha?»
«Sim. São mirra e incenso. Foram oferecidas como prova de admiração pelo nosso povo. Os meus jardineiros cuidaram delas para que resistissem durante a viagem. Olhem como elas estão viçosas como se tivessem sido plantadas aqui há muito. Amon ficou feliz com este jardim que a sua filha lhe ofereceu.»
Sabia. Tinham sido transportadas com raízes e estas envoltas em terra. Como sabia do resto. Muitas oferendas, e valiosas, da parte do rei de Punt e uma insignificante compensação dos egípcios. Admiração, uma ova. Submissão, isso sim. Havia homens armados na expedição dos cinco barcos. 
«E também ouro e animais exóticos?»
«O que é que tu não sabes?»
«Muita coisa. Por exemplo, estas colunas e outras que tenho visto, são quadrangulares. Mas os vossos artífices já as sabem fazer redondas. Não seriam mais grandiosas?»
Não respondeu.
«Grandioso é o templo que tem a câmara escavada na rocha com as suas capelas.»
Senenmut conseguiu unir de uma forma harmoniosa o envolvimento natural rochoso ao edifício erigido, muito bem inserido na verticalidade da montanha. A culminar, o santuário dedicado a Amon foi cortado do próprio penhasco.
Este templo, bem conservado, agora falando em termos de futuro, recebeu o nome de Djeser-djeseru, ou seja, "o sublime dos sublimes", o palácio da eternidade da rainha.
E as colunatas de Punt e do Nascimento?
Estava desejoso de as ver.
Quanto às pirâmides, estas foram definitivamente abandonadas e substituídas por sepulturas integradas em túmulos escavados na rocha, no vale dos Reis, nas falésias de Tebas.
«Onde está Senenmut?» perguntei. 
«Foi ver o andamento das obras na capela de Amon. Ele é o mentor deste magnífico "palácio de milhões de anos".»
«Não se compara com as pirâmides, mas também é uma obra grandiosa. Quero felicitá-lo.»
«Vamos começar a visita? Estamos no fim do primeiro pátio. O segundo espera-nos.»
De facto era só subir a rampa.
«Vamos ver as imagens da expedição a Punt e...»
Não me deu saída, talvez porque já estava a afastar-se de nós na direção do fundo do pátio. Provavelmente queria fazer-nos uma surpresa ou encontrar-se com o seu fiel servidor e amante.
«Não gosto nada que se afaste.» Disse Nétis.
«Não te preocupes que tem a sua guarda pessoal.»
«Mesmo assim. Vamos segui-la…» 
«Nétis, meu amor, nunca vi coisa semelhante! Por nada deste mundo quero perder a colunata de Punt. Esqueci-me de perguntar se a rainha de Punt era anã ou tinha uma doença grave. Lembra-me, Nétis.»
Peguei-a pela cintura, chegando-a junto de mim. Ela olhou docemente para cima porque a diferença de alturas era notória.
«Não me esqueço. Mas como sabes isso dessa rainha?»
Como resposta, limitei-me a sorrir.
«Meu amor, queria viver eternamente contigo, mas pressinto que não vamos estar muito tempo juntos.»
«Porque dizes isso? Hoje já é a segunda vez!»
«Nem na outra vida que nos espera. Já deves ter uma preferida nas terras longínquas donde vieste...»
Não lhe respondi porque num instante tudo muda!
«Oh!, por Hórus...»
Vi Nétis olhar para os lados onde estava a Senhora de duas terras e compreendi logo a razão da sua angústia. Dois homens, armados de lanças, vinham correndo do lado nascente na direção de Hat e, estranhamente, não vi sinais dos guardas da rainha.
Um desfecho terrível estava suspenso por segundos e pouco ou nada podia fazer. Muito menos ainda se continuasse parado e não seguisse Nétis que corria, tão veloz quanto uma gazela, na direção da sua amada rainha.
Demasiado tarde. Cheguei no momento em que ela se interpunha entre a lança do homem mais avançado e Hat, sendo de imediato trespassada pela ponta em ferro da lança.
Entretanto o segundo homem preparava-se para estender o braço para o lançamento fatal.
«Por Amon, detém-te!»
Foi só o que consegui dizer, já que não estava armado e mesmo que estivesse de nada servia.
O homem parou e o alvo mudou num segundo. Passei a ser eu. Já estava entre Hat e o homem que empunhava a lança e eu tinha um braço levantado com a palma da mão virada para ele. Como o homem não era quirólogo, bem lhe interessava ver as linhas da palma da minha mão, as cruzes, as estrelas e tudo isso. Os sinais que desenhavam o destino.  E perante a situação do momento, um destino muito pessimista.
Mas que se passava?
O assaltante ficara imobilizado, como se de repente se tivesse transformado numa estátua.
«Detém-te! Detém-te! É Amon quem te ordena...»
Parecia estar a resultar, mas até quando?
Felizmente os guardas da rainha já tinham aparecido e passaram logo pelas armas o criminoso. Do outro assassino já não vi sinais.
Corri para a Nétis. Era demasiado tarde. Já não vivia. Um novo mundo esperava-a. Um mundo onde eu não estava, nem estaria, mas por outra razão que não a que a doce Nétis admitira.
«Obrigada, meu amigo! Salvaste-me a vida. Tu e a infeliz Nétis. Guardarei perto do meu jazigo um lugar para ela. Quando chegar a minha vez, na outra vida falaremos de ti, da tua infinita bondade e do desgosto de não poderes estar com ela. É pena, porque esta vida é só uma passagem para o além.»
Não respondi. Só pensava que devia ter corrido mais veloz que a infeliz. E não fui mais veloz porque me atrasei a pensar no que estava a acontecer quando devia ter sido mais rápido que o acontecimento. Era isso e era tudo.
«Porque foi, Hat?»
«É tudo obra de Tutmósis. Maldito seja o meu enteado!»
«Não é isso. Mais tarde falamos desta cruel tentativa de assassínio. Só quero saber porque cheguei tão tarde…»
«Chegaste tarde porque afinal não és, de todo em todo, um deus-vivo. E falaste verdade quando insisti que eras e logo negaste com veemência. Se fosses um representante de Amon tinhas conseguido evitar a morte da tua amada. Mas salvaste-me a vida. Por todo o meu reino vai correr a notícia. E perante os meus súbditos serás considerado e venerado como um deus-vivo. Mandarei inscrever a tua boa ação nas paredes do templo e o meu escriba preferido registará a mesma nos papiros.»
Servia-me de muito, pensei. Entretanto, se acaso alguma vez aparecessem os registos não queria estar na pele dos egiptólogos perante este paradoxo mais paradoxal ainda que o do neto que foi ao passado e matou o avô.
Os meus olhos continuavam pregados no corpo ensanguentado da minha apaixonada.
«Que me interessam as honrarias, minha pobre Nétis?»
«Não lhe vai faltar nada. Prometo. Até o barco do faraó para, quando acordar, fazer a viagem que a há de levar ao outro mundo. E os espelhos. E as jóias. E as arcas com os vestidos. E os óleos perfumados. E também o trigo. Tudo.»
«Vai servir de muito.»
«Duvidas?»
«Porque tudo é relativo, tenho quase a certeza. Diz-me uma coisa, Hat, por acaso já visitaste o sarcófago do teu pai?»
«Não. Seria um sacrilégio. Até porque a câmara mortuária está selada. Mas perguntas isso, meu amigo, porquê?»
«Pela simples razão que tenho a certeza que está lá tudo tal como ficou quando a câmara foi encerrada e selada. A múmia. Os móveis. A comida. Tudo, Hat. Isto no caso de não ter sido saqueada a última morada do teu pai.»
«Não percebo. Que insinuas?»
«Para que servem todas aquelas coisas que ficaram com o teu pai na câmara mortuária? É muito simples. Para o acompanharem na sua viagem para o outro mundo e assim nada lhe faltar. Mas continuaram lá, compreendes?»
«Por acaso sabes? Aliás, ainda é cedo. Há o julgamento. A balança de Osíris...»
«Tretas.»
«O quê?»
«Os faraós são deuses na Terra. Não precisam de ser julgados. Têm livre trânsito para o novo mundo ou qualquer outro mundo que se possa imaginar. Tretas, Hat. Conversa fiada.»
«Não percebo isso de tretas e conversa fiada.»
Como dizer-lhe?
A chegada de Senenmut evitou-me o embaraço. Vi-o profundamente emocionado a ouvir o relato da filha de Amon-Rá sobre a tragédia que aconteceu e talvez do modo como a salvei a ela, mulher-faraó. Aproveitei o momento para me afastar e poder pensar, sem intromissões, na porra desta vida que sempre me deu tudo com uma mão e logo a tirou com a outra. Frase vulgar mas que me assentava como uma luva de número certo.
Depois, despedi-me da minha amada. Não mais esqueceria a única noite que passámos juntos. Gostava de ter acordado com ela ao meu lado. Não aconteceu. Nem ia acontecer porque partiu para as terras do outro mundo que, esperava, fosse melhor do que este. Se é que existia... 
«Adeus, meu amor!»

A vida por um fio!


Vínhamos dos lados do templo. Em frente estava o deserto em toda a sua extensão agreste. Mas parecia não haver problema em seguirmos em frente, embora nem eu nem ela soubéssemos que destino esperava por nós. A manhã estava radiosa. O sol, ainda a subir timidamente no azul celeste, prometia responsabilizar-se por mais um dia tórrido. A rotina no dia a dia do Egito. Deserto, sol e calor.
«Por acaso sabes dizer-me para onde vamos, Nétis?»
Parou e pegou-me nas mãos. A seguir levantou a cabeça e fixou em mim os seus olhos doces.
«E tu sabes?»
A sua pergunta desarmou-me.
«Não. Por isso mesmo estou a perguntar-te...»
Encostou a cabeça ao meu peito e teríamos ficado uma eternidade se não ouvisse uma restolhada intrigante na areia. Só podia vir da areia. Era isso. Da areia. Uma coisa perigosa!
«Que foi, amor?» perguntou.
Na nossa frente já estava o resultado do sinal de alarme que, curiosamente, só eu tinha sentido.
«Cuidado!»
«O quê, meu amor? É apenas uma naja. Elas só atacam em perigo iminente para a sua sobrevivência. Não tenhas receio. Vamos, continuemos.»
Admirei-me da sua calma ante a proximidade do perigo.
«Tens a certeza?»
«Sou destas bandas, ó homem que veio do futuro.»
«Mas...»
«É como digo. Olha, afastemo-nos simplesmente do seu caminho. Fomos nós que sobressaltámos esta filha de Amon.»
«Vai atacar-nos. Ou eu não me chame Mário.»
«Marió.»
«Tens razão.»
«Confia em mim.»
Curiosamente, ela estava certa. O réptil baixou de imediato as guardas quando passámos ao lado.
«Vês, Marió?»
«Alarmei-me. Desculpa.»
«Tu, um deus-vivo...»
Sorriu de gozo. Gostei do seu sorriso que me envolveu e paralisou por momentos. O veneno de cobra também produzia esse efeito. Mas nada tinha a ver.
«Os deuses também têm as suas fraquezas.»
«Pelos vistos, têm!»
«Nétis.»
«Meu amor?»
«Devia ter-te conhecido mais cedo!»
«No meu tempo?»
«Tens razão. Sou parvo.»
«Deixa. Este nosso momento pode significar uma eternidade. Conheci-te há pouco, mas tu vieste de longe para estares comigo e não foi por acaso. O tempo que ficou para trás não conta. Este nosso tempo, sim. Temos que o aproveitar enquanto temos o tempo connosco.»
Coincidência ou não, ela ainda ontem fizera referência à limitação do tempo.
Pegou-me na mão e puxou por mim.
«Então, vamos.»
«Espera só um pouco. Deixa que sinta a presença do odor a rosas desse teu perfume.»
«Rosas e não só. Jasmim. Também jasmim, meu amor.»
«Tens razão. Mas o poder do cheiro a rosas parece sobressair. É tão agradável!»
Aos poucos, o ar aquecia. Não tardava que o ambiente se tornasse insuportável. Sufocante. Depois, só via dunas na minha frente. E o pior é que as mesmas pareciam iguais. Receava que ela não soubesse o caminho. Pronto, estava dito. Entregava-me nas suas mãos, como se ela fosse o meu destino.
E não era?
Uma voz interior dizia que não.
«Nétis...»
«Sim?»
Olhei para trás. Acabava de perder a última referência. O templo que estava em construção e ao qual Hat dedicara a três divindades, especialmente ao deus dos deuses.
«Sabes o caminho?» insisti.
«Que caminho, Marió querido?»
«Não é verdade o que estou a pensar?»
«Diz-me.»
«Sabes para onde vamos?»
«Sim. Anúbis está a traçar-nos o caminho.»
«Anúbis?»
«Sim.»
«Que tem a ver ele connosco, Nétis?»
«Tudo. Mas tu não vais a julgamento.»
«Julgamento? Meu Deus, onde me fui meter! Na balança de Osíris e na pena de avestruz...»
Parou e abraçou-me.
«Se correr mal nunca me deixes. Tu és um deus. Só eu é que vou ser julgada. Prometes que não me deixas?»
«Tens menos pecados do que eu. Não é justo.»
«Sempre queres partir na viagem?»
«Qual viagem, Nétis? Não combinámos nada!»
«Olha...»
Só continuei a ver areia à minha volta. Areia onde me perdia. Tinha que confiar nela.
«Falta muito para chegarmos, Nétis?»
E foi então que desesperei. Estava só. Perdido. Sem água. Sem alimentos. Sem força para continuar. Entregue aos desígnios do acaso que só me mostravam areia a perder-se de vista.
Quanto à Nétis, agora era uma miragem, embora sentisse a presença do perfume que exalava do seu corpo de pele macia.
«Não pode ser verdade! Isto é um sonho! A Nétis morreu ontem em defesa da sua rainha.»

Acordei, sobressaltado e respirei de alívio. Estava alagado em suor, deitado na minha cama larga, demasiado larga para uma só pessoa.
Seria que o sonho se tinha iniciado ainda antes da visita que tinha feito ao templo que Hat tinha dedicado às suas três divindades?
Com receio estendi, devagar, a mão para a minha direita. O lençol de linho estava frio.
«Era bom de mais.»
Mas que odor intenso era aquele que vinha do lado da cama onde tivera a mão por momentos?
«Nétis?»
«...»
«Sei que estás aí!»
O odor a rosas foi-se dissipando aos poucos.
«Rosas e jasmim...»
Saltei bruscamente da cama. Que sonho aquele!

Fui encontrar a rainha-faraó tomando a refeição da manhã.
«Bom dia, minha amiga.»
«Descansaste?»
«Não. Perdi-me no deserto com a Nétis.»
Pensei mas não disse.
«Mais ou menos, minha boa amiga. Marcou-me profundamente tudo o que aconteceu ontem. Ainda julgo que é mentira. E tu, como te sentes?»
«Já estou habituada. Não é a primeira vez que sofro um atentado.»
Admiti que, um dia, seria a última vez se ela não desse mais atenção ao comportamento da sua guarda pessoal. Não entendia o motivo porque a guarda estava tão distante.
«Queria falar-te de algumas coisas, amiga.»
«Está bem. Mas antes bebe um sumo de melancia e come estas apetitosas tâmaras. Ou leite. Já sei que a cerveja não é do teu agrado antes de um almoço substancial. Gostos não se discutem.»
Não tinha a Nétis para me apaparicar, nem o seu sorriso doce e envolvente. Mas preferi guardar o pensamento só para mim.
«Por agora não te faço a vontade. Olha uma coisa, ainda não tive oportunidade de conhecer o teu sobrinho Tutmósis.»
«Não tiveste nem vais ter tão cedo. A meu pedido foi para o norte numa expedição guerreira e também de negócios. Não regressa tão depressa. Se estás pensar nele como alguém que está por detrás do atentado, esquece. Não temos provas. Um dos seus lacaios foi morto e o outro desapareceu. Que podemos fazer?»
«Tens razão. Nada. Mas gostava de lhe falar e de o ouvir. Olhos nos olhos.»
«Esquece. Está longe.»
«Porque permitiste que a tua guarda pessoal estivesse tão afastada?»
«Talvez tenhas razão. Direi mais, tens mesmo. Mas eu sou assim.»
«Vives com o perigo à espreita. Não sabes viver de outra maneira. No fio da navalha.»
«Que queres dizer?»
«Das terras donde vim, esta expressão quer dizer que correste um perigo enorme porque não sabes viver de outra maneira. Um dia pode ser-te fatal
«A outra vida que nos espera é bem melhor e devemos aproveitar da melhor forma esta curta passagem vivendo a vida à nossa maneira. Sempre gostei, como dizes... de viver na navalha.»
«No fio da navalha» emendei. «Mas tens assim tanta certeza no que te espera na suposta segunda vida? Isso faz-me lembrar os jogos de computadores que oferecem várias vidas aos jogadores antes que o jogo termine prematuramente.»
«Disseste computador?»
«Esquece. São coisas do meu mundo. Insisto: essa vivência no fio da navalha custou a vida à minha amada.»
«Acredito que estejas triste. Amanhã terás outra Nétis para te servir.»
«És uma mulher fria. Devias usar sempre a barba postiça de faraó todo-poderoso.»
«Como sabes? Nunca me viste com a barba. Ah!, estava a esquecer-me que vieste do futuro e já sabias...»
«Olha, estás redondamente enganada. Ela não me servia à mesa nem na cama! Tratava-a de igual para igual. O mesmo não fazes com o homem que amas. E é uma pena.»
«Que sabes tu?»
«Não te esqueças que vim do futuro. Como dizem, no pássaro de ferro que surgiu nos céus de Amon.»
«E onde caiu esse pássaro? Ainda ninguém o viu.»
Entendi a sua dialética. Queria afastar-me do essencial porque não lhe convinha.
«Por acaso negas que essa tua sede desmedida de alcançares o poder te roubou a hipótese de viveres a vida com o amor da tua vida? Não me enganas com o casamento que foi engendrado pelo teu pai. Tutmósis II foi uma fachada. Era bruto e ignorante. Tu sempre amaste Senenmut!»
A profundidade dos seus olhos escuros esbateu-se. Uma lágrima rebelde soltou-se. Depois outra. Afinal a rainha não era de vidro.
«O meu pai nunca iria permitir que casasse com um plebeu.»
«Certo. Mas agora é diferente. E não é o fantasma do teu pai que vai ser o obstáculo. É outro mais poderoso. A sede do poder. Bem sei.»
«Mas...»
A rainha estava a perder o combate aos pontos.
«Ainda não é tarde. Casa com ele. Vocês amam-se!»
Fez-se um silêncio perturbador entre nós. Agora era eu quem estava no fio da navalha.
«Não sabes com quem estás a falar!»
«Sei. Acredita que sei. Com uma mulher que vendeu o amor.»
«Não entendes. Tenho um objetivo bem mais forte que o amor por Senenmut. Neferuré...»
«E?»
«Quero que seja a minha sucessora nas duas coroas que simbolizam o poder sobre as terras do norte e do sul. Estou a trabalhar nesse sentido.»
«Como estás enganada! A tua filha...»

Ainda fui a tempo de travar as ordens do pensamento. Não lhe podia dizer que a filha ia morrer em breve. Felizmente que ela levou a conversa para outro azimute.
«Não quero que case com o meu sobrinho. Farei todos os possíveis para que tal não aconteça.»
Tinha que dizer-lhe!
«Mas já aconteceu. Eles têm um caso.»
«Como sabes?»
«Bom, sei.»
«É verdade. Mas ela descobriu que ele tem um harém e não admite que faça amor com outras mulheres, quer sejam concubinas ou não. É vulgar acontecer.»
«Oxalá se afaste dele. E tu tem cuidado. Ele está a fazer-se homem e um dia vai exigir o seu lugar.»
«Tu sabes mais e não queres dizer.»
Se sabia!
Então a nossa conversa foi interrompida pela chegada de uma jovem que lhe falou ao ouvido.
Coisa grave, pensei. Mas mais grave do que imaginava.
«Não pode ser!»
Não podia ser, o quê?
Hatshepsut fitou-me com a profundidade dos seus olhos escuros. Estava aterrorizada.
«Tutmósis!»
«Mas não estava longe?»
«Impossível! Ele devia estar em Punt. E já entrou no palácio.»
«Então?»
«Qualquer coisa estranha está a acontecer. Os meus guardas foram mortos a sangue frio. Esconde-te, Marió, que ele vai matar-te também!»
Era estranho. Mais um salto no tempo. Um pequeno salto de dias. Prometi que ia enfrentar o seu sobrinho. Que ela não se esquecesse dos meus poderes. 

«Aqui temos o nosso deus-vivo! E onde está esse famoso pássaro de ferro?»
Fiquei paralisado. Ele tinha desembainhado a espada.
«Não, Tutmósis!»
«O que ele fez é sacrilégio. Tem que morrer.»
«Não o podes provar, tia. Mas vamos ao que importa fazer. Este homem é um intruso e um farsante. Não é nenhum enviado de Amon. Vais morrer, mentiroso!»
«Tenta e logo vês o que acontece.» Disse, sem a mínima convicção. 
«Neferuré não te vai perdoar!»
«Bem me parecia. Não é o que está a acontecer? Eu ponho e tu dispões, querida tia. Vamos a ver se ela não tem o mesmo destino que tu.» Disse, e virou-se para a rainha: «orquestraste tudo muito bem, como de costume, tia. O casamento não se fará, mas faço-te uma proposta! Dá-me mãos livres para reinar.»
«Tutmósis... reinamos os dois.»
Com um empurrão empurrou Hat para o lado e avançou para mim, de espada em punho, mais raivoso que um cão com raiva.
«Por Amon, detém-te!»
E que fez Amon?

O regresso
O comboio começou a abrandar.
«Estamos a chegar a Lisboa, senhor...»
Informou-me a mulher que estava sentada em frente.
«Mário. Chamo-me Mário Fonseca.»
Nos meus saltos no tempo também havia saltos nos sonhos?
Olhei fixamente para a mulher. O seu sorriso incomodava-me. Havia uns certos sinais para aqueles lados que ignorei.
«Eu chamo-me Celeste. Maria Celeste.»
«Bonito nome.»
«Mas pode tratar-me por Maria.»
Passei a mão pela cabeça. A ideia de estar sonhando dentro de um outro sonho nunca me pareceu ser tão real.
«Sabe?, Hatshepsut está a perder aos poucos o seu poder a favor do sobrinho-enteado Tutmósis.»
«Não entendo.»
«Preciso de voltar a todo o custo. O monstro vai devorar a presa. Ajude-me, por favor!»
«Como assim? Continuo a não entender.»
«Ajude-me.»
«Não posso. Não sei do que se trata. O senhor adormeceu profundamente. De certeza que foi qualquer sonho estranho que teve.»
Voltei-me para o lado.
«Ela tinha uma revista científica. Lembro-me. Lia um artigo sobre uma mulher-faraó da décima oitava dinastia. O seu nome era Hatshepsut...»
«Hat o quê...? E que posso fazer?»
«Não sei explicar.»
«Então não explique o que não consegue explicar. Olhe, o melhor é preparar-se, pois estamos a chegar à gare do Oriente.»
«Tem razão, devo ter adormecido. Mas o que é feito daquela mulher da revista...?»
«Qual mulher?»
«A que estava ao meu lado.»
«Talvez fizesse parte do seu sonho, meu amigo. Não havia ninguém ao seu lado antes de adormecer. Nem depois. Nem agora, como pode verificar. O senhor sonhava.»
De que lado estava o sonho?
Tutmósis avançou para mim, pronto a trespassar-me com a espada. Tentei detê-lo, usando o mesmo artifício que me salvou e à Hat quando da visita ao seu templo funerário. Não teria resultado. A espada não foi travada no seu avanço irreversível e de certeza que a sua ponta de ferro furou o meu tronco. No mesmo instante deve ter acontecido o salto prolongado no tempo que concretizou o meu regresso ao futuro. O que estava a acontecer-me tinha que ser travado sob pena de não poder voltar.
Mas afinal, quando me voltei para a mulher que lia o artigo sobre a mulher-faraó, Senhora de duas terras, quem estava a ver?
«Maria Celeste, por favor...»
O comboio tinha chegado à estação e a minha interlocutora já ia, mais à frente, no corredor. Apenas serviu de animadora dum cenário improvável e estava a ser descartada como figurante imaginária que era.
«Isto está a ficar complicado. Já nem sei o que é real, nem o que é fictício. O que ficou para trás, ou o que virá a seguir...»

Vila Expo. Conheço-te bem. Por diversas razões, gostei e não gostei de ter vivido alguns anos no teu ambiente. Talvez tenha mais boas recordações do que más. Não sei. Afinal foram alguns anos da minha vida, depois daquele inevitável e já tardio "grito do Ipiranga".  Pesando os prós e os contras, parece que não me interessa recordar o que nos aconteceu, a mim e ela, para retirar ilações. Só me lembro da palavra ingratidão. Mais ainda. Posso juntar traição. Definitivamente é um caso para esquecer. 
E pode alguém viver em paz, como ela vive? Sem castigo?
É inevitável. Vai ser devorada pelo seu próprio interior grotesco que a etiquetou de devoradora de homens e também de futuros. Eu fui uma das vítimas. Felizmente resisti porque eu próprio também a devorei. Hoje não sei dela, mas as marcas indeléveis que deixei parecem apontar para um caminho que está a levá-la à autodestruição. Tenho a certeza.
Não completei o pensamento que parecia estar a pender para um julgamento no tribunal a que Osíris presidia, usando como peso decisivo a leveza de uma simples pena de avestruz.
Se os meus pecados desequilibravam os pratos da balança, que dizer então dos seus?
«Mário!»
António e Mónica. Os meus amigos do lado de fora do sonho!
«Finalmente estás de volta!»
«Parece que sim.» Disse, quase a medo.
Hatshepsut... Senhora de duas terras... foi um prazer enorme ter chegado ao teu tempo.


Já em casa da Mónica
«É bom ter-te de volta, Mário. Já estávamos preocupados com a tua ausência...» Disse a Mónica, olhando para mim, enternecida.
«E se imaginassem por onde andei...»
«Então? Não é assim tão difícil!» disse eu. «Primeiro foste a Las Vegas buscar o dinheiro. Não demoraste muitos dias, segundo o telefonema que me fizeste. Depois, imaginámos que tinhas ido ao Porto. É verdade ou estamos errados?»
Mário demorou a responder.
«Bom. Estive e não estive. Ou melhor, estive mas por pouco tempo.»
Admiti que as coisas não tinham corrido bem com a Maria.
«Não compreendo, Mário. Mas passou-se mais de um mês!»
«António, preciso de um café forte e de uma bebida que me abra o espírito.»
Ficou a olhar para nós. Muito sério. Como se a realidade do momento fosse outra que não na nossa presença. Então levantei-me e fui à cozinha tirar o café na máquina expresso. Pouco depois, estava de novo na sala.
«Aqui tens o café, Mário.»
«Obrigado. E a bebida?»
«Um apocalipse
Sorriu.
«Não cheguemos a esse ponto. Isso foi na minha juventude. Agora queria uma coisa alcoólica, mas menos destrutiva que esse tal apocalipse. Mónica, ainda tens daquele rum escarchado, doce e forte como o caraças?»
A Mónica olhou para mim e encolheu os ombros.
«Escolhe outra bebida, Mário. O teu amigo limpou o resto há uns tempos. Ou então...»
«Sim?»
«Tenho uma coisa melhor. Uma aguardente velhíssima. Isto se o António também não lhe deu volta. Ou anis.»
Levantei os braços a clamar inocência.
«Bem sabem que não bebo dessas coisas...» Defendi-me.
«Nem eu.» Afirmou o Mário.
Resolvido o problema da bebida, ficámos os dois à espera.
Paulatinamente, foi bebendo o café e tomando pequenos e sucessivos goles de anis muito doce e daquele que provocava ardor no trajeto até ao estômago.
Ansiosos, quase que bebemos também o anis do Mário.
«Bree! Este queima, mas é bom.»
«Bree?»
«Que é que se passa com vocês?»
«Despacha-te, Mário.»
«Não estou a fazer suspense de propósito. É que há muito tempo que não bebia uma coisa tão boa. Cerveja pastosa, vinho duvidoso. E do café nem se fala. Não quero mais dessa zurrapa. Já bastou todo aquele tempo.»
Aquele tempo. Mas não tinha saudades?
«O café também não prestava? E onde foi isso?»
«Café não bebi...»
«Vais agora contar?»
«Bebia mais um pouco de anis, Mónica.»
«Enche o copo a esse desgraçado...»
Mário sorriu ante a minha sugestão e estendeu o braço.
«Ainda é cedo. Deixa-me ver... Ah!»
«Que aconteceu?»
«O relógio!»
«Não me digas que foste roubado?»
De facto o relógio não estava no pulso.
«Não é isso. Dei-o.»
«Deste à Maria o teu precioso Seiko? Já bastava o computador que te custou os olhos da cara. És um mãos largas. Isso é que és. E o que ganhaste? Nicles. Isso segundo me contaste. Agora tens dinheiro, mas quando compraste o computador para a tua amiga Maria... Vê lá, Mónica, o seu Seiko de estimação. A não ser que... é o que estou a pensar?»
«Não te digo, António.»
«Claro, claro. Mas só desta vez...»
Mário ia a responder, mas ficámos suspensos por um toque de campainha.
«Deve ser a Alexandra. Já me esquecia dela...»
«Mário, é alguém a entregar folhetos de publicidade. A Alexandra...»
«Onde está ela? Continua a pensar em cobras e lagartos de mim?»
«Pior ainda, meu amigo» disse, a medo. «A Alexandra voltou para casa.»
«Qual casa?»
«A sua. Qual havia de ser? Está outra vez com os seus.»
Não pareceu preocupado.
«E tu foste o culpado...» Acusei.
«Eu, António? Essa mulher era uma histérica. Quase me agrediu quando lhe toquei nos ombros em Fátima. E sem qualquer intenção. Apenas a quis ajudar, pois ela estava a desfalecer.»
«A desfalecer?»
«Sim. Ou contou-lhes outra coisa?»
«Bom» disse eu. «Vamos ao que interessa. Conta lá o que te aconteceu.»
«Por outro lado, confesso que gostava que ela estivesse aqui neste momento.»
«Deixa lá a Alexandra para outra altura.» 
«Que anel é esse, Mário?» perguntou a Mónica, movida pela habitual curiosidade feminina.
«Anel?»
«Sim. Mostra lá.  Que mosca te mordeu para andares com cachuchos desse tamanho?»
Mário, surpreendido, olhou primeiro para a Mónica e depois para a mão esquerda.
«Sempre é verdade!»
«Estou a ficar morta de curiosidade. Mas que coisa é esta que estou a ver gravada no anel?»
«Um escaravelho.»
«Um escaravelho?» perguntou a Mónica. «Por que razão esse inseto nojento que lida, digamos...?»
«Com a merda, não tenhas receio. Não é possível!»
«Não é possível, o quê? Explica-te melhor.»
Fez um gesto largo e deixou-nos suspensos, à espera.
«É o que vou tentar fazer, meus amigos. Mas depois não me mandem para o Júlio!»
«Quem é o Júlio?»
«O Júlio de Matos, Mónica.»
«Ah... Mas onde o encontraste?»
«É uma longa história que explica parte destes dias em que estive ausente. Mas primeiro vou falar do escaravelho.»
«O tal que faz bolas com o excremento doutros animais?»
«Não. Um outro. Sagrado, imaginem...»
«Queres que imaginemos o quê?»
«Posso falar?»

"O escaravelho era um dos mais conhecidos amuletos do Antigo Egito. Um objeto rodeado por um quase impenetrável mistério. Estava associado ao deus Khepra e ao Sol que, depois da sua viagem noturna, renascia na alvorada.
O renascimento do Sol passou a evocar também a ressurreição dos falecidos e o escaravelho, animal sagrado, ficou relacionado com o culto dos mortos. A sua função era mover o Sol, tal como movia o excremento que empurrava pelos caminhos.
Era motivo habitual de delicadas peças de ourivesaria que acompanhavam os faraós, após a morte, na sua viagem pela caminhos da eternidade.
Uma joia em forma de escaravelho foi encontrada no túmulo de Tutankhamon e estava exposta no Museu do Cairo. Tinha um pouco mais de dez centímetros de largura e fora confecionada em ouro, cornalina, turquesa, lápis-lazúli, feldspato e calcite. Representava Kepra alado, imagem do sol levante.
O escaravelho alimentava-se de pequenos grãos de esterco que revolvia entre as patas até escavar no solo um  buraco para devorá-lo. Às vezes a fêmea punha um ovo sobre o grão que ficava enterrado até à época do choco. Então, mais tarde, da bolinha de esterco saía um inseto vivo, aparentemente auto concebido. Do ovo fecundado pelo velho escaravelho, que entretanto morria, saía outro escaravelho, tal como a alma se escapava da múmia e ascendia aos céus. O Deus-Sol, criador de todas as coisas da Terra, era como o escaravelho auto concebido.
Assim, o escaravelho significava para os egípcios o símbolo da vida que se renovava eternamente a partir de si mesma. Aquele que, em vida, trouxesse consigo uma imagem escaravelho garantia a persistência do ser e o que levasse a imagem para a tumba tinha a certeza de renascer para a vida.
O escaravelho era o amuleto de vivos e de mortos..."

«Deste-nos uma lição de História do Antigo Egito, Mário.»
O seu olhar pareceu atravessar-me e perder-se na parede atrás de mim.
«Sim. E mais do que isso. Este anel...»
«Diz. Esse anel...?»
«Foi-me oferecido há mais de três mil anos. Hatshepsut...»
«Ai, vais mesmo para lá! Mónica, meu amor, chama já uma ambulância para o Mário... Rápido!»      
Mistérios, lacunas e muitas dúvidas


Mário ficou irritado com os meus comentários. Ainda por cima, para animar mais a festa, a Mónica tinha ajudado à mesma. Dois em um. Nada mais apropriado para fazer sair o animal da toca. Em sentido figurado, entenda-se.
«E se deixasses de armar-te em parvo e ouvisses o que tenho para dizer? E tu também, Mónica. Essa de chamarem a ambulância não tem graça nenhuma. Não estou demente. Se quiserem ouvir-me, têm oportunidade ou não de acreditar no relato da odisseia por que passei. É convosco. Sim, foi uma odisseia e podem crer que não vou inventar nada. Mas daí a considerarem que estou louco vai uma grande distância, meus amigos. Querem ouvir ou não?»
«Estávamos a brincar, Mário. Depois, pesou a frieza como reagiste à ausência da Alexandra e sem dares a mínima explicação ao que aconteceu em Fátima. Somos amigos dos dois, mas nunca julgaremos o culpado ou culpados, se é que os há. Não nos compete. Pelo menos a mim. Mas gostávamos de saber a verdade. Foi assim tão grave para ela voltar para os seus?»
«A Alexandra é um caso encerrado. Até tenho mais motivos para me calar depois que soube que ela partiu sem deixar sequer uma mensagem.»
«E tu, Mário?, quando me telefonaste de Las Vegas...?»
«Tens razão.»
«Assunto encerrado?» comentou a Mónica.
«Assim não nos entendemos.»
À primeira vista não dava muito pela sanidade mental do meu amigo. A ausência do Seiko e o mistério do anel em nada abonavam em sua defesa. Mas também era certo que não ouvíramos ainda o "suspeito", a não ser aquele discurso inflamado e estranho sobre o escaravelho (que fazia do esterco bolas) tornado um amuleto importante no Antigo Egito, a propósito do anel que a Mónica descobrira num dos dedos do nosso amigo. Seria de bom senso ouvi-lo. Talvez tivesse coisas interessantes para relatar e que essas nos impressionassem positivamente.
«Voltando atrás, és capaz de ter razão, Mário. Falámos antes de tempo. Mas puseste-te a jeito...»
«Como assim?»     
«Devias ter começado a contar o que te tinha acontecido. O que foi. Como foi. Mas não, apenas sabemos que estiveste em Las Vegas e, quando me dispunha a ir ter contigo, disseste que não era preciso porque já estavas de volta. Depois, foi o ruído do silêncio absoluto. Não me diz respeito, mas, como teu amigo, nem sequer sei se conseguiste trazer de volta o dinheiro e se tiveste alguma notícia da Amélia, quiçá até se a encontraste. Enfim, estou a zeros.»
«Infelizmente não consegui saber nada sobre o destino da Amélia. Quanto ao dinheiro, trouxe todo. Se voltar a Las Vegas será só por causa do jogo, ou da Amélia... se ainda for viva. Mas não acredito. Em relação ao resto, peço desculpa. E também me retratava perante a Alexandra se acaso ela estivesse presente. Infelizmente não está e o mal entendido ficará por esclarecer. Um mal entendido estúpido, acreditem.»
«Ainda estás a tempo.»
Não mostrou qualquer reação.
Não queiram passar pelo que passei. Houve de tudo. Do bom e do mau. Trago saudades. E uma mágoa enorme por não ter conseguido evitar uma tragédia. Depois de ouvirem, compreenderão porque não abordei logo a ocorrência responsável por estar ausente durante este tempo todo. Mas antes de começar, tenho uma dúvida que quero ver esclarecida já.»
«E qual é essa dúvida?» perguntei.
«Não era suposto estarem à minha espera na gare do Oriente? É que não me recordo de os ter avisado...»
«Não venhas com tretas. Recebi um SMS teu, Mário!»
«Mas se nem eu próprio tenho comigo o telemóvel!»
«Também o ofereceste?»
«Não venhas com mais graças que me ofendes. Confesso que não sei o que aconteceu ao telemóvel.»
Tirei o meu telemóvel do bolso traseiro das calças.
«Queres ler a mensagem?»
«Acredito em ti, mas continuo com a minha dúvida. Talvez o telemóvel tenha ficado no Porto. É tudo muito nebuloso.»
«Estiveste com a Maria?»
«Não tenho certezas quanto a isso. Só me recordo do maldito Alfa Pendular que tantas perturbações me trouxe.»
«Depois falamos sobre mais esse mistério. Agora, conta-nos como foi. Tudo parece estar relacionado com o anel que tem gravado o escaravelho.»
«Sim. Mas há lacunas no início e no fim. Não imagino como cheguei ao deserto e fui parar a Tebas e porque tive um acolhimento carinhoso da mulher-faraó Hat..., desculpem, Hatshepsut. Lembro-me de todo o tempo que passei no seu palácio e fora. Outra lacuna: como voltei à nossa época. Foi um salto de mais de três mil anos. Além do mais, muito estranho foi o que aconteceu naquele comboio, por duas ou três vezes. Talvez aí se abrisse um portal. Não sei. É um grande mistério.»
«Não percebo patavina do que estás a dizer, mas tudo bem. Aguardo, ansioso, pelo teu relato, Mário! Conta lá então o que te aconteceu.»
«E eu estou muito interessada.» Disse a Mónica, mas de forma menos efusiva.
«Então lá vai. Oiçam e por favor não interrompam.»

O regresso que não foi explicado 


«E foi assim.» Concluiu.
Eu e a minha companheira ficámos em silêncio, tentando digerir talvez a história mais insólita e surreal contada por Mário.
Não sei o que leu nos nossos rostos, mas expressões de dúvida tenho a certeza que não. Digamos que não sabíamos qual era a melhor forma de pegar o touro. De caras ou de cernelha.
«E o que dizem? Vá lá, também eu tenho muitas incertezas e já disse, aliás, onde estavam algumas.»
«Pois disseste.»
«E que pensas?»
«Bom» olhei de relance para a Mónica. «Não sei se é que ela pensa também. Os portais têm sido peças fundamentais em umas tantas histórias que me contaste e eu julgo que há um pouco de fantasia nelas. Um pouco é favor. Mas esta é diferente. Completamente surreal. Concordas comigo, Mónica?»
«Em absoluto. Nos outros casos ninguém te perguntou se as histórias eram fruto da tua imaginação, ou tinham também um pouco de real. Esta é diferente. Tu voltaste do nada. Contas-nos então o que te aconteceu e esperas pela nossa aprovação. Na realidade queres saber o que pensamos sobre a viabilidade de teres sido projetado para o passado, para uma época que dista de nós mais de três mil anos. Eu cá por mim digo que não. Não consigo acreditar, amigo. Não há suportes que agarrem essa tua vivência curta no Egito dos faraós, principalmente como chegaste ao deserto e como saíste de cena no preciso momento em que o sobrinho e enteado da mulher-faraó te ia matar. Tanto um como outro só podem explicar-se por truques de magia.»
«Não existe um mágico capaz de criar tanta ilusão.»
«Exato, Mário» concordou a Mónica. «Mas há mais e não sei se tu, António, já pensaste no mesmo que acabei de pensar.»
«Também não sou mágico para adivinhar o que acabaste de pensar. Se nem sequer sei fazer truques elementares de cartas...»
«Relaciona-se com o momento em que o Mário está perdido no deserto.»
«Sim, já admitimos a existência dessa lacuna.»
Não sabia onde ela queria chegar e optei por fazer-lhe um sinal para prosseguir.
«Ora bem... o Mário seguia no comboio vestido normalmente, tal como se veste todos os dias. Pelo que estou a ver, calças de ganga azul, camisa com o botão do colarinho desabotoado e um blusão preto, de couro. Calçava sapatos, claro. Concordas, Mário?»
«Sim. Continua.»
«Já percebi!» exclamei. «No deserto estavas de calções até aos joelhos e em tronco nu. Provavelmente calçado, mas não com os mesmos sapatos. Completamente exausto, faminto e desidratado. Como se explica? A existirem os tais portais, a indumentária da partida é sempre a mesma da chegada. E os acontecimentos da partida e da chegada são quase simultâneos. Ou estou enganado?»
«Tens toda a razão. Os ditos portais das minhas histórias, verdadeiras ou fantasiosas, não interessa para o caso, não dão azo a mudanças de roupa. Ao mesmo tempo não podem ser aplicados aqui. Eles permitem a passagem de um mundo para outro. É a chamada teoria dos mundos paralelos e até explicam que eu ou vocês talvez estejamos a ter vivências diferentes, isto é, futuros diferentes. Neste futuro, tu e a Mónica encontraram-se e noutro o vosso o destino nunca os aproximou.»
«Eu sei disso.»
«Como é?» perguntou a Mónica.
«Depois conto-te. Mas aviso-te desde já que é uma teoria científica que, por enquanto, não tem pernas para andar. Talvez num futuro longínquo.»
«Isso é o que é o que imaginas, António.»
«Lá estás tu com as fantasias do costume...»
«Queres ouvir...?»
«É melhor não me contares mais sobre o que julgas saber. Tenho os pés e a cabeça bem assentes na terra. Mas tu, que lidas com as histórias... Adiante. Portanto, para este teu caso, em virtude do problema das roupas, não há portal para se passar ao passado ou ao futuro nesta bela Terra em que estamos de passagem. Mas pode acontecer outra via e temos que encontrar um outro nome. Uma máquina, talvez.»
«H. G. Wells já a encontrou.»
«Pois, Mário. Aí entramos no mundo da ficção científica.»
«Olhem» tentou concluir a Mónica. «Acreditando que o caso contado pelo Mário é credível, quem ler as suas histórias não pode pensar nestes pequenos obstáculos que surgem.  Mário viaja de comboio e está vestido mais ou menos como se veste todos os dias. A seguir, como que por magia surge no deserto, quase sem roupa. E volta a estar vestido decentemente logo a seguir ao momento em que Tutmósis vai trespassar-lhe o peito com a ponta da espada. É o fim da história no país em que a ambiciosa Senhora de duas terras trocou o amor pela ganância do poder.»
«Não é bem assim, mas vá lá. Ainda há outra coisa...»
«Mais complicação do que a que já existe? Então o que é, Mário? Já estou por tudo.»
«A história não acaba aqui.»
«Não?» perguntei, incrédulo. «Mais, não! Não me digas, Mário, que... É o que estou a pensar?»
«Tal e qual, António.»
Inacreditável! O seu regresso não tinha sido naquele momento em que o sobrinho e enteado de Hatshepsut se preparava para trespassar Mário com a espada.
«Então, evocaste Amon e o Tutmósis não conseguiu dar seguimento ao seu ato duma baixeza que não era admitida no antigo Egito. Amon ordenou que lutassem com armas iguais. Mas já usaste alguma vez na vida uma espada, Mário?»
«De facto não foi isso que aconteceu.»
«Então?»
«Estás a enganar-nos. Assim não vale.» Comentou a minha companheira.
«Conta-nos como foi.»
«A espada de Tutmósis não se deteve e fui ferido de morte.»
«Ah! E agora estás aqui, vivinho da costa, conversando connosco como se nada de grave tivesse acontecido contigo. Como se diz vulgarmente, numa boa. Isto está a tornar-se complicado, Mário!»
«Sim, ficou complicado para mim. Estar morto, ver a rainha e o meu assassino por perto e não poder contactar com eles.»
«Como assim?»
«Logo após o ataque cobarde do faraó que governava o Egito a meias com Hatshepsut, aparentemente, diga-se, porque quem mandava era ela, a minha alma desprendeu-se do corpo e ficou a pairar acima de nós. A ver o meu corpo esvaído em sangue, a assustada Hatshepsut e o violento e sanguinário Tutmósis. E a ouvi-los.

«Este ato foi vil e cobarde, meu sobrinho! Ele estava indefeso e tu mataste-o sem dó nem piedade. Nem eu, nem a minha filha te vamos perdoar.»
«E o teu amante. Aliás de nada serve a sua hipótese de perdão.»
«Mataste-o também?»
«Matei Neferuré e não matei Senenmut. E queres saber porquê?»
«Onde está o corpo da minha querida filha? Ao menos permite-me a dignidade de lhe prestar a última homenagem.»
«Escuta bem, Hatshepsut. Sei da teia com que tentaste manietar-me. Antes de possuir a tua filha pela força, ela confessou-me que estava a violar uma futura rainha e ia ser castigado por tal afronta. Ela seria a sucessora da mãe. Perante tal afronta, porque afinal quem é o rei sou eu, que devia fazer para cortar o mal pela raiz?»
«Que fizeste, maldito? Manchaste as tuas mãos com sangue real! Tu, um reles bastardo...»
«Bem me importa de ser bastardo, se tenho o poder em absoluto. Se queres saber mais, separei-lhe a cabeça do resto do corpo com um só golpe.»
«Oh!»
«Não desfaleças que ainda tens que ouvir o resto. O teu amante, esse verme, não perde pela demora. O verdadeiro rei sou eu, como bem sabes. Acabaram as manipulações. Não te mato porque ainda preciso de ti. Mas o teu reinado acabou.»
«Não vais conseguir tirar-me as duas coroas! Guardas!»
«Onde estão eles?» perguntou Tutmósis, com um sorriso cínico.
Estava concretizado o golpe palaciano e eu não podia fazer nada. Invisível, lá do alto, seguia tudo o que se estava a passar sem qualquer hipótese de intervenção. Era terrível sentir-me impotente.
Foi então que fui levado pelos ares de Amon.
A primeira coisa que detetei foi um atropelo de vozes que pareciam declamar hinos à sua pureza, bondade, espírito de sacrifício, honestidade. Todas essas vozes que não ouvia, mas que vibravam cá dentro, defendiam a sua inocência num mundo em que, afinal, não podia haver inocentes, sabíamo-lo muito bem. Donos de vozes invisíveis mas que sentia existirem.
Algures devia estar a respeitada balança de Osíris, pronta a receber num dos seus pratos o coração do falecido julgado, já que no outro estava a levíssima pena de avestruz.
Quem teria a veleidade dos seus pecados serem mais leves que uma pena de avestruz?
Certamente um faraó que começava a construir o seu templo funerário desde o princípio do seu reinado. Enviado pelos deuses, dado como certo o endeusamento após a morte, tinha garantida a viagem para o outro mundo, recheado de todos os bens essenciais que o tinham acompanhado quando em vida. Sem pecado que manchasse a sua alma.
Não estava propriamente em fila de espera, mas sentia a presença de muitas almas ansiosas que aguardavam o momento de serem encaminhadas por Anúbis ao tribunal para julgamento pelo infalível e implacável Osíris.
«Que tens para dizer em tua defesa?»
«Não roubei, não matei, não cometi adultério, nunca menti, não causei confusões, não mantive relações homossexuais. O meu coração é mais leve que a pena que tens na balança, ó Osíris, deus poderoso e com um coração que guarda toda a bondade do mundo.»
«Tens a certeza? Não estás a esquecer-te de nada?»
«Penso que não.»
«Pensas?»
Então Osíris pesava o coração do falecido na balança da verdade.
«Traz o seguinte, Anúbis.»
«Marió!»
Não era eu quem estava a ser chamado para o julgamento.
Quem me chamava?
Aquele odor a um misto de rosas e jasmim era inconfundível.
«Nétis?»
«Meu amado Marió!»
«Também vais ser julgada, tu, uma alma mais pura que a mais pura e límpida água de um ribeiro imaculado?»
«Todos somos julgados e aferidos na balança do infalível deus Osíris. Ninguém pode escapar para ele decidir que destino dar.»
«Treta, Nétis. E os faraós? Por exemplo, Tutmósis vai passar impune apesar dos seus crimes horrendos?»
«Não sei.»
«Olha, Tutmósis matou, sem dó nem piedade, a filha da rainha. Eu próprio fui trespassado pela sua espada sem poder defender-me.»
«Sim, meu amor, eu sei. Mas ele é o rei. Quando chegar a sua hora...»
«Mesmo assim?»
«Há vozes que estão a perturbar o julgamento.»
Ignorei o aviso.
«Que vai ser de ti, Nétis?»
«O que for será, meu amor. Sem ti, já nada importa...»
«O teu coração é mais leve que a pena de avestruz. Tens uma vida futura à tua frente. Encontrarás outro amor.»
«Não.»
Anúbis já estava na nossa frente.
«Agora és tu, Nétis.»
Imaginei vê-la em todo o esplendor da sua beleza. Uma alma levíssima como ela não devia ser julgada. Por outro lado, queria-a para mim.
«Estás a mais, intruso.»
«Ops!»
A situação complicava-se.
«Vai para as profundezas do inferno, chacal!»
«Ousas enfrentar-me?»
«Vamos fugir os dois para longe desta farsa, Nétis!»
«Não posso fugir ao meu destino. Nem mesmo se souber que vou ser devorada por Ammit...»
«Osíris não pode esperar mais, intruso.»
«Isso é o que vamos ver. Nétis, meu amor, o mundo que nos espera é bem melhor do que este que te aguarda. Vem comigo.»
Anúbis levantou um braço.
«Desiste, intruso do futuro!»
Afinal Anúbis também sabia...?
«Tenta levá-la, chacal empedernido. Nem sabes a força que tenho.»
«É o que estou agora a fazer. Anda comigo, pecadora!»
«Não! Primeiro eu!»
«Tu não és daqui...» Disse, simplesmente.
A luta era desigual e senti, de imediato, estar a ser afastado daquele cenário surrealista. Ao mesmo tempo, perdi o contacto com Nétis e nem sequer tive oportunidade de me despedir.
«Chacal maldito! Traz de volta a minha Nétis!»
«Tua? Ah ah ah!»
«Então leva-me também.»
«Vai-te daqui...»
Que fazer?, senão voltar ao meu mundo?
Mas como?, se o meu corpo ensanguentado e frio já não podia albergar-me?
Desenrasca-te, Mário!, que há sempre solução para tudo, exceto para a morte.
Morte?
Bree!!! Mas não foi o que se passou comigo?

Mário levantou-se e foi até à janela que dava para poente. O relato da sua fantástica aventura nas terras do Antigo Egito tinha chegado ao fim.
«Ainda não estou dentro de mim. Falta-me qualquer coisa.» disse, fixando, aparentemente, o olhar na rua. «Não imaginam, meus bons amigos, tudo o que estou a sentir neste momento. Sabem o que me parece?»
«Diz, Mário.»
«Tenho a sensação que ainda não voltei de todo.»
Era natural sentir o que sentia. Depois de uma envolvimento tão forte naquele ambiente fantástico e ao mesmo tempo real, das relações com Nétis, Hat e tudo mais. E acrescentando os momentos de stress ligados ao atentado e ao que se seguiu, destacando-se a sobrecarga que resultou do assassinato de Nétis, era natural que sentisse que pertencia mais à corte da rainha, que tão bem o recebera, do que à esfera dos seus amigos.
«Compreendo a tua preocupação. O que mais desejavas neste momento era estares em Tebas. Tudo bem. Isso há de passar.»
A morte de Nétis não tinha sido o fim da sua luta a favor de uma rainha a quem muito devia e que ficou só e entregue a um destino, quiçá ruim. Hat era uma mulher fantástica que até sacrificou o amor em prol da sua determinação em ocupar, a qualquer preço, o lugar mais alto na hierarquia egípcia, não se conformando, por ser mulher, com as normas do seu tempo, negociando com o poder religioso, desafiando toda uma nação para defender o bem comum e também os seus próprios interesses, diga-se. Inteligente e engenhosa, aproveitando a tenra idade de Tutmósis, seu sobrinho e enteado, fazendo-se filha divina do deus dos deuses, conseguiu coroar-se rainha de duas terras e fazer do seu país o que muitos faraós homens não tinham conseguido. Um país próspero e respeitado pelos países vizinhos, onde se destacava Punt, a misteriosa e próspera "terra dos deuses".
Admiradora do templo de Mentuhotep II e seguindo o principal dever de qualquer faraó que era construir monumentos grandiosos para honrar os deuses, sentindo a necessidade de deixar obra para a posteridade, convocou o seu fiel servidor e talvez amante, Senenmut, para basear-se no design desse monumento e projetar um outro mais grandioso, não hesitando em ordenar que o seu templo mortuário fosse construído, para comparação no futuro, ao lado do grande monarca fundador da XI Dinastia. Nessa obra trabalharam milhares de camponeses, qualificados ou não, durante cerca de quinze anos. Ao contrário do que se pensava, não foram escravos. De facto, os operários "convocados" eram camponeses, alimentados e remunerados pela rainha.
«Na altura em que se deu a intentona de Tutmósis, o templo já estava em fase de acabamento.»
«Meu amigo, compreendemos tudo o que sentes. Decerto ficou muito por resolver em Tebas. Mas não te esqueças que é passado. Já aconteceu tudo. A morte de Hatshepsut, do seu sobrinho, de todos os faraós e também do seu povo. Entretanto passaram-se milhares de anos. Tu apareceste lá e viveste a vida daquele povo maravilhoso. Mas, como dizer-te...»
«Compreendo. De certa forma estive e não estive lá. Foi muito estranho o que me aconteceu. E de facto agora não posso fazer nada.» Concluiu.
«É verdade.»
«Mas que pensam do relato que acabaram de ouvir há momentos?»
«Incrível!» exclamou a Mónica, emocionada.
«Que posso dizer, Mário? O melhor cumprimento que faço, e acho que devo fazer, é afirmar que gostava muito de ter estado contigo nesses dias fantásticos que passaste.»
«Obrigado, amigo do peito. E sabes uma coisa? Tenho saudades de Nétis e Hatshepsut. Se fosse possível, voltava. Mas não mando no acaso. As coisas acontecem quando menos espero e não quando eu quero.»
 «A Nétis era uma mulher bonita?»
Pergunta de uma mulher, claro.
O semblante de Mário toldou-se. Por momentos não conseguiu responder.
«É uma pergunta que tem sempre a mesma resposta. Nunca a vi, mas acredito que era bonita, senão o nosso amigo Mário não se teria apaixonado.»
«Bonita por dentro e por fora.» Foi a sua resposta.
«Morena?»
«Bonita.»
«Compreendo a tua mágoa. Aconteceu num passado remoto. Não te digo que deves esquecer. Mas convence-te que a tua vida está aqui. Nesta casa. Em Lisboa. Uma cidade cada vez mais bela e a chamar mais e mais turistas. Mais consumo. Estamos a sair da crise. Ou melhor, já saímos da crise. É certo que, tendo disparado o consumo, as importações subiram, e de que maneira. Aliás...»
«Sei disso, António. Sei também que não me ia preocupar com os efeitos na minha pessoa se a crise, provocada sabemos bem por quem, ainda não tivesse acabado.  Felizmente tenho muito dinheiro. Para mim e para os meus amigos. E estou a pensar numa forma de minorar os efeitos nos menos favorecidos.»
«Que pensas fazer?»
«Não vou criar uma fundação para tubarões intermediários. O dinheiro vai chegar ao seu destino sem quaisquer intermediários. É a única forma da ajuda chegar inteirinha.»
Tinha razão. Carradas de razão.
«Fundações só para a construção civil.»
«Mas há exceções, Mário.»
«Poucas. Entretanto o que tem acontecido ultimamente neste cantinho à beira-mar plantado?»
«Nada de especial. Apenas...»
«Deixa, António. Depois inteiro-me. Agora outra pergunta, e esta mais interessante. Que vamos fazer neste fim de tarde?»
O que ele quisesse. E tinha quase a certeza de qual era o seu principal desejo.
«Posso adivinhar?» perguntei.
«Diz lá.»
«É ao casino que queres ir?»
Sorriu.
«Também tens dons?»
«Se os tenho são Fracos. Aonde querias ir senão ao casino?»
«Por exemplo, ver a minha antiga casa. Não olhes para mim dessa maneira. Bem sei que ainda é perigoso.»
«Ou podias ir ter com a Alexandra. Sabes onde está. Já lá estiveste.»
«Meu amigo, a Alexandra não quer saber de mim. Deve ter alguém por lá, porque, uma vez, ouvi da sua boca que "só se ama quem não nos ama". Qualquer coisa parecida com isto. Mas vamos lá então ao casino.»
«E não tens receio de seres descoberto?» 
«Vou disfarçado.» 
«Tu é que sabes.»
«Bom, então, vamos. Estás preparada, Mónica?»
Fez um gesto de enjoada. Jogo não era com ela.
«Vão vocês. Cá me entretenho com um filme ou assim. Depois, vou dormir descansada.»
«Nós não demoramos.» Ironizou Mário.
«Pois pois. Tem cuidado, António.»
«Não há de ser nada. Esta barba que deixei crescer vem mesmo a jeito. O cabelo curto, cada vez mais branco, também é um bom disfarce.»
«Uns óculos escuros e uma bengala não iam mal. Até parecias outro. Já és feio e agora com essa barba...»
«Não gozes.»
Despedi-me da Mónica com um beijo na testa. De propósito, claro. Só queria arreliá-la.
«Ai é assim?»
Logicamente emendei a mão. Tudo feito sob o olhar irónico do nosso amigo.
«É bom ver-te sorrir, Mário.» Disse a minha companheira.
«Vamos lá a ver se o casino está no mesmo sítio e se nada mudou.»
«Referes-te a quê?»
«Àquilo que nós sabemos. Mais do mesmo.»
Pouco depois estávamos na rua, sob um céu a perder o azul e a tingir-se de vermelho para ocidente. «Apanhamos um táxi?» perguntei. 
«Claro.» 
«Aí vem um.» 
«Olha, segue para casa.»
 «Mas...»  
«Deseja-me boa sorte. Quem sabe se nunca mais voltarei...»
«Se tiveres cuidado. Mas que cara é essa?»
«Dá-me um abraço, amigo.» 
«Oh!» 
Afinal não fomos ao casino. O Mário desapareceu.

Tinha várias opções, mas não conseguia ainda dominar o espaço-tempo a meu belo prazer. Achei que era sorte. 
Ter chegado ao sítio onde queria chegar, era destino ou sorte?
«Que tens a dizer deste templo, Marió?» perguntou a rainha. «Viste alguma coisa parecida?»


Dèjá vu.
«Sim. Igual.» Pensei.
«Não, Hat. É sumptuoso. Se nas minhas terras do futuro o vissem assim, na sua grandiosidade.»
«Então?»
«No meu tempo está muito maltratado. Afinal foram muitos anos que passaram. Mas continua a mostrar a grandiosidade da sua construção. Honra seja feita ao seu criador. Já o mesmo não se passa com os palácios que foram construídos com materiais perecíveis.»
«Disseste perecíveis?»
«Sim. Danificou-se muito com o passar dos anos. Vocês construíram os templos mortuários a pensar na sua conservação através dos tempos. Já o mesmo critério não seguiram na construção dos palácios. Compreendo porquê. Pesa aí o fator eternidade. Foi o embalsamamento. Foram os bens alimentares necessários para acompanharem o faraó na eternidade da sua grande viagem. E não me esqueço do barco, essencial para a grande viagem. Os animais de estimação. Os amuletos. Também as joias e os perfumes.»
«Ah sim.»
«Mas acho estranha uma coisa. Não tenho ideia que a esposa dos faraós e os próprios filhos acompanhassem o senhor supremo. Os processos eram iguais após o falecimento, mas não obedeciam à lógica da proximidade que era natural acontecer. Porquê, Hat? Dá-me a ideia que a vida futura do então defunto era uma espécie de começar de novo longe dos seus entes queridos.»
«Neste meu templo há um espaço destinado à pessoa que amo.»
«Eu sei. Já falámos disso. Mas não na tua câmara mortuária.»
«Não. Não falámos. O projeto de construção é secreto. Estou a dizer-te pela primeira vez.»
«Desculpa, de facto não disseste. Estudei nos livros do futuro.»
Mas estava a pensar…
«Já vi este templo da outra vez que cá estive.»
«Disseste alguma coisa?»
«Nada, nada. De qualquer forma os entes queridos vão encontrar-se.»
«Isso isso. Quanto aos palácios, não me interessa ter recordações da minha vida material. Na grande viagem as vivências deixam de ter importância.»
«É uma viagem, como dizer... até à eternidade. E só Amon sabe dos termos em que é feita. Quanto à ideia dos alimentos e dos pertences mais queridos tem sido transmitida de geração em geração. Estou certo, Hat?»
«Penso que sim.»
Por momentos quebrou-se o diálogo.
Dizia a Hatshepsut que, depois de morrer, o seu nome tinha sido, à ordem de Tutmósis III, apagado e substituído em todas as inscrições pelo do seu pai Tutmósis I?
E assim era Deir-el-Bahari. Um complexo de templos situado a oeste do Nilo, em oposição a Luxor.
«É tudo obra de Senenmut!»
Não conseguiu disfarçar um estranho brilho nos olhos.
«Os pátios. O templo sumptuoso que dediquei em primeiro lugar a Amon. A seguir a Hathor e a Anúbis.»
Porquê Anúbis?
Os pátios, de grandes dimensões, estavam-me atravessados.
Dizia? Não dizia?
Via-se nitidamente que eram uma cópia fiel dos do primeiro templo mortuário a ser construído ali para o faraó Mentuhotep II, há seiscentos anos.
Não resisti a fazer uma pequena provocação.
«São parecidos com os de Menthuotep II.»
«Tens razão. Gostei muito do templo e disse-o a Senenmut. Ele fez-me a vontade. Os terraços são maiores. As capelas dedicadas a Hathor e a Anúbis são grandiosas. Bem como a capela dedicada a Amon que está quase acabada. E o pórtico do segundo pátio com relevos da expedição que enviei a Punt. E olha também, Marió, para estas esfinges maravilhosas...»
Sumptuosidade a mais.
«E o teu povo, como vive?» pensei.
«Tão altas! Demoraram muitos dias a serem esculpidas.»
«Sim.»
«Quantos escravos trabalharam sobre as ordens de Senenmut?»
Outra provocação que não consegui evitar.
«Enganas-te» sorriu com ironia. «Quem trabalhou nas obras de todo o templo foram os camponeses, pagos e alimentados.»
«Na época em que não podiam trabalhar nos campos inundados.»
«Isso.»
E assim não tinham oportunidade de conspirarem contra o faraó. Muito bem pensado.
Estávamos no momento na avenida que dava acesso ao monumento.
«E a fila de árvores à frente» comentou Nétis. «As árvores vieram enraizadas de Punt, não foi, minha rainha?»
Nétis. A formosa mulher por quem me apaixonei e que também me amava. Mas não podia perdoar-lhe a sua total dedicação à rainha, dedicação essa que ia, em breve, custar-lhe a vida.
Não resisti à tentação de a enlaçar.
«Vou ter saudades tuas, doce Nétis...» Pensei.
«Marió! A minha senhora e rainha pode não gostar.» Disse ela, quase a sufocar.
«Aceita a prova de amor do teu amante! Respondendo à tua pergunta, sim, vieram de Punt. São mirra e incenso. Foram oferecidas como prova de admiração pelo nosso povo. Os meus jardineiros cuidaram delas para que resistissem durante a viagem. Olhem como elas estão viçosas como se tivessem sido plantadas aqui há muito. Tenho a certeza que Amon ficou feliz com este jardim que a sua filha lhe ofereceu.»
Sabia. Tinham sido transportadas com raízes e estas envoltas em terra. Como sabia do resto. Muitas oferendas, e valiosas, da parte do rei de Punt e uma insignificante compensação dos egípcios. Admiração, uma ova. Submissão, isso sim. Havia homens armados na expedição dos cinco barcos. Muitos. Para o que desse e viesse. Assim, não se podia esconder o desejo imperialista dos faraós do antigo Egito. Conquistas concretizadas à custa de muitas mortes e escravidão.
«E também ouro e animais exóticos?»
«O que é que tu não sabes, Marió, meu amigo?»
«Muita coisa. Por exemplo, estas colunas e outras que tenho visto, são quadrangulares. Mas os vossos artífices já as sabem fazer redondas. Não seriam mais grandiosas?»
«Grandioso é o templo que tem a câmara escavada na rocha com as suas capela!»
Certo. Senenmut conseguiu unir de uma forma harmoniosa o envolvimento natural rochoso ao edifício erigido, inserido na verticalidade da montanha. A culminar, o santuário dedicado a Amon foi cortado do próprio penhasco. Bem imaginado.
Este templo, bem conservado, agora falando em termos de futuro, recebeu o nome de Djeser-djeseru, ou seja, "o sublime dos sublimes", o palácio da eternidade de Hatshepsut.
E as colunatas de Punt e do Nascimento?
Estava desejoso de as ver.
Quanto às pirâmides, foram definitivamente abandonadas e substituídas por sepulturas integradas em túmulos escavados na rocha, no vale dos Reis, nas falésias de Tebas.
«Onde está Senenmut?» perguntei.
«Foi ver o andamento das obras na capela de Amon. Ele é o mentor deste magnífico "palácio de milhões de anos".»
«Não se compara com as pirâmides, mas também é uma obra grandiosa. Quero felicitá-lo.»
«Começamos a visita? Estamos no fim do primeiro pátio. O segundo espera-nos.»
De facto era só subir a rampa.
«Vamos ver as imagens da expedição a Punt e...»
Não me deu saída, talvez porque já estava a afastar-se de nós na direção do fundo do pátio. Provavelmente queria fazer-nos uma surpresa ou encontrar-se com o seu fiel servidor e amante que se chamava Senenmut.
«Não gosto nada que se afaste.» Disse Nétis.
«Não te preocupes que tem a sua guarda pessoal nas proximidades.» Tentei acalmá-la, embora soubesse que um desfecho terrível infelizmente estava para breve.

«Mesmo assim. Vamos segui-la…» 
«Nunca vi coisa semelhante! Por nada deste mundo quero perder a colunata de Punt. Esqueci-me de perguntar se a rainha de Punt era anã ou tinha uma doença grave. Lembra-me mais tarde, Nétis.»
Peguei-a pela cintura, chegando-a mais junto de mim. Ela olhou docemente para cima porque a diferença de alturas era notória. 
«Não me esqueço, meu amor. Mas como sabes isso dessa rainha?» 
Como resposta, limitei-me a sorrir. 
«Meu amor, queria viver eternamente contigo, mas pressinto que não vamos estar muito tempo juntos.»
«Porque dizes isso, Nétis? Hoje já é a segunda vez!»
Tudo a desenrolar-se como da outra vez.
«Nem posso estar contigo na outra vida que nos espera. Já deves ter uma preferida nas terras longínquas donde vieste...»
Não lhe respondi porque num instante tudo muda!
«Oh!, por Hórus...»
Vi Nétis olhar para os lados onde estava a Senhora de duas Terras e começar a correr. Compreendi logo a razão da sua angústia. Dois homens, armados de lanças, vinham correndo do lado nascente na direção de Hat e, estranhamente, não vi sinais dos guardas da rainha.
«Onde se meteram?»

Um desfecho terrível estava suspenso por segundos e pouco ou nada podia fazer senão correr no seu encalce. Decisão acertada. Se não reagisse correndo atrás de Nétis, esta tão veloz quanto uma gazela, na direção da sua amada rainha teria acontecido o pior.
Eram dois os homens que ameaçavam a vida de Hat. Empunhavam lanças ameaçadoras e o alvo estava a poucos metros.
Cheguei antes que Nétis se interpusesse entre a lança do homem mais avançado e Hat. Algo se estava a alterar, o que parecia ser um bom sinal. Ia evitar que a minha amada fosse trespassada pela lança mortífera, já que o ataque estava iminente?
Entretanto o guerreiro preparava-se para estender o braço para o lançamento fatal.
«Por Amon, detém-te!»
Foi só o que consegui dizer, já que não estava armado e mesmo que estivesse de nada servia, em virtude da minha péssima preparação guerreira. Entretanto Nétis passara a espetadora angustiada e esta cena era nova. Nada tinha a ver com a outra em que a sua vida foi sacrificada para defender a sua dona e senhora, Hat.
O que ia acontecer?
Nem queria acreditar. O homem parou e o alvo mudou num segundo. Passei a ser eu. Já estava entre Hat e o homem que empunhava a lança e tinha o braço esquerdo levantado com a palma da mão virada para ele. Como o homem não era quirólogo, bem lhe interessava ver as linhas da palma da minha mão, as cruzes, as estrelas e tudo mais. Os sinais que desenhavam o destino. E perante a situação do momento, um destino muito pessimista.
Naquele instante pensei no paradoxo do neto que foi ao passado matar o avô.
De facto eu não podia morrer! Era mais que lógico.
Mas que se passava entretanto?
O assaltante ficara imobilizado, como se de repente se tivesse transformado numa estátua.
«Detém-te! Detém-te! É Amon quem te ordena...»
Parecia estar a resultar, mas até quando?
Felizmente os guardas de Hat já tinham aparecido e passaram logo pelas armas o criminoso. Do outro já não vi sinais. Tinha fugido.
«Obrigada, Marió! Salvaste-me a vida.»
Não respondi. Entretanto Nétis ficara muito agarrada a mim. E eu, perplexo, não queria acreditar que, com a idade que tinha, correra mais veloz que um gamo para salvar a rainha. Tinham sido momentos impróprios para cardíacos.
«É tudo obra de Tutmósis.» Disse a rainha.
«Talvez seja. Mais tarde falamos desta cruel tentativa de assassínio.»
Reconheci o lapso. Devia ficar calado.
«Não percebo o queres dizer.»
Foi o primeiro sinal forte que estava num universo paralelo onde o decorrer dos acontecimentos nada tinham a ver com o que se passara no outro. Aí a bela Nétis era atingida mortalmente por uma lança. Preço do seu ato de salvar a rainha.
«Seria bom contar-lhes...?»
«Em boa verdade és um deus-vivo que Amon enviou para salvar-me. Não o negues. Ajoelho-me a teus pés.»
«Nada disso. Levanta-te, Hat. Lembra-te que és a filha divina de Amon. Provavelmente foi o seu poder que chegou até nós e paralisou o guerreiro. Aconteceu, pronto.» Admiti.
«Meu amor, estás vivo!» exclamou Nétis.
Abracei-a com força.
«E tu também. Sei que estavas disposta a dar a tua vida pela rainha. Felizmente o destino mudou.»
Com a emoção do momento não deram pela minha gafe ao falar da mudança do destino.
Hat não se cansava de me elogiar.
«Por todo o meu reino vai correr a notícia do teu feito. Perante os meus súbditos serás considerado e venerado como o deus-vivo que és. Podes ter a certeza, Marió!»
«Não mereço tanto, Hat, admite.»
«Sou eu quem ordena. Mandarei inscrever a tua boa ação nas paredes do templo e o meu escriba preferido registará a mesma nos papiros reais.»

Então ia ficar para a eternidade?
Se acaso alguma vez aparecessem os registos não queria estar na pele dos egiptólogos perante este paradoxo mais paradoxal que o do neto que foi ao passado e matou o avô.
Entretanto chegou Senenmut. Visivelmente emocionado escutou a descrição feita pela filha de Amon-Rá sobre a tentativa de assassinato que podia ter dado em tragédia.
Aproveitei o momento para me afastar com Nétis e poder pensar, sem intromissões, na porra desta vida que sempre me deu tudo com uma mão e quase me ia tirando com a outra.
«Meu amor, isto ainda não acabou.»
«Porquê, Marió?»
«Temos que estar atentos. Este atentado deve ser obra de Tutmósis. Tudo leva a crer. Eu sei que vão ocorrer grandes complicações. Ele não desiste, acredita, Nétis. Vai irromper no palácio. Prevejo um banho de sangue.»
«Mas ele está longe!»
«Não te iludas.»
Procurei a rainha com o olhar. Não estava longe.

«Vamos preparar uma guarda fiel, Hat. Passou-se qualquer coisa estranha com estes.»
«Mas mataram o assassino. De qualquer forma, penso que sim. Temos tempo suficiente porque o meu sobrinho está em campanha.»
«Não é bem assim. Amanhã pode acontecer uma tragédia. Nesta altura o teu sobrinho e enteado já deve saber do atentado que fracassou.»
«Como assim?»
«Já está em Tebas e prepara-se para invadir o palácio.»
A rainha olhou, intrigada, para mim.
«Tens a certeza?»
«Absoluta. Não sou eu, como dizes, um deus-vivo?»
Acenou afirmativamente com a cabeça.
«Então regressemos ao palácio.»
Mais uma vez a visita ao templo foi interrompida. Era mais importante cuidar da segurança da mulher-faraó.
«Senenmut...»
«Minha senhora?»
«Fica de olho nos guardas.»

À noite, quando me fui deitar, tive uma agradável visão.
«Nétis!»
«Meu amo e senhor, amo-te cada vez mais.»
«Prova essa tua afirmação.»
«Simmmm!»
Este universo nada tinha a ver com o outro.

Vamos por aí…
Fomos encontrar Hat e Neferuré tomando a habitual suculenta refeição da manhã no enorme salão. A primeira atirava-se, quase com sofreguidão a um naco de carne que acompanhava com verduras. Na frente tinha um copo de uma cerâmica grosseira meio cheio de um líquido que devia ser cerveja. Quanto à segunda, parecia deliciar-se com frutas diversas.
«Bom dia, minha amiga. E também para ti, filha da divina Hatshepsut.»
«Descansaste, Marió?»
«Por acaso não.»
«É natural» sorriu com ar malicioso. «Deixa-me ver essas olheiras. E tu também, Nétis.»
«Não é preciso» passei uma mão pela cintura esguia de Nétis. «Ora, minha amiga. Já passaste pelo mesmo. Mas o que se passa com a tua filha?» 
«Nada.» Disse a visada. «Já sabes como é. Embriagou-se outra vez ontem.» 
A filha da rainha, visivelmente indisposta, abandonou a mesa.
«Vou vomitar.»
«Isso. Limpa o corpo. E talvez essa indisposição da alma também te passe.»
Já com a filha ausente, esclareceu.
«Ela tem razão. Não quer casar-se com Tutmósis. Mas seria para seu bem no futuro. Adiante, que muitas águas do Nilo ainda estão para passar.»
«Talvez te enganes, Hat.» Pensei.
Levantou um braço num deixa para lá.
«Mas voltando à vossa noite, pombinhos, não tive a mesma sorte. Um casamento real nunca resulta de amor recíproco, Marió. É sempre um casamento de interesses. A conservação da dinastia está primeiro. E casamentos assim combinados dão quase sempre no que dão. Muitas vezes não há amor, nem ele floresce com passar dos tempos. Depois, há outra coisa que contribui para cavar um grande fosso. Eles têm as suas concubinas e nós também fazemos pela vida.»
«Um deboche.» Disse para mim.
«Agora convosco é diferente. Trata-a bem porque ela merece. Tem linhagem de realeza. A única mancha é que veio para cá como escrava depois de uma invasão para o norte. Não tem culpa. E depois, a tua amada é uma alma pura, Marió.»
«Eu sei.»
Os meus olhos encontraram-se com os seus e não resisti à tentação de os beijar.
«Marió!»
A seguir, passei um braço pelos seus ombros. Chegou-se mais a mim e olhou, de cima para baixo, com a serenidade dos seus olhos doces.

«És o meu dono e senhor e tens todo o amor do meu coração e eu sei que o mesmo se passa contigo em relação a mim.»
«Minha filha, não o deixes partir.»
«Oh, não. Não quero que parta. É tudo para mim. Mas é inevitável. Ele veio do futuro…»
«Queres ir comigo para o meu país, meu amor?»

«Sim. De todo o coração. Mas como? No pássaro de ferro, não. Dizem que um se desfez em pedaços ao cair no solo.» 
«Não vim num pássaro de ferro, Nétis. Como explicar-te? É melhor não. Acredita em mim.»
«Sim.»
A rainha interrompeu o nosso idílio.
«Mudando de assunto, amigo. Marcou-me muito o que aconteceu ontem e agora estou em dívida contigo. Que posso fazer por ti?»
«Já fizeste tudo. Também me salvaste a vida, não me posso esquecer. O que fiz foi por ti e pela Nétis. Voltaria a expor-me hoje como me expus, acredita.»
«Acredito.»
Ainda julgava que era mentira. Não sabia onde tinha ido buscar tanta força anímica para enfrentar o guerreiro.
«Como te sentes?»
«Bem. A tempestade já passou. Aliás, estou habituada, embora este atentado tenha sido diferente dos outros. Em todos esses a minha guarda foi sempre fiel. Totalmente fiel. Agora acredito que tenho traidores escondidos no meu corpo de guarda.»
Admiti que, um dia, seria o último dia se ela não desse mais atenção ao comportamento da guarda pessoal. Não entendia o motivo porque a guarda estava distante naquele momento tão crucial.
«Mas queria falar-te de algumas coisas.»
«Está bem. Antes bebe um sumo de melancia e come estas apetitosas tâmaras. Ou leite. Já sei que a cerveja não é do teu agrado antes de um almoço substancial. Gostos não se discutem. E tu, Nétis, senta-te também connosco.»

«Mas...» 
«Agora é diferente, minha filha. És a companheira de Marió, o nosso herói que veio lá do futuro num pássaro de ferro. Quer queira quer não queira desmentir, veio até nós num pássaro de fogo. E em boa hora. Se não fosse ele, agora não estávamos aqui à mesa.»
«Ouve uma coisa, ainda não tive oportunidade de conhecer o teu sobrinho. Vou dizer-lhe das boas. Afinal o que pretende?»
«O poder total.» 
«Ah sim.»
«Não vais vê-lo tão cedo e ainda bem porque ele não é flor que se cheire. A meu pedido foi para o norte numa expedição guerreira e também de negócios. Ainda bem que o fiz. Não regressa tão depressa. Se estás a pensar nele como alguém comprometido com o atentado, então esquece. Não temos provas. Um dos seus lacaios foi morto e o outro desapareceu. Que podemos fazer?»
«Tens razão. Nada. Mas acredita que vou conhecê-lo e mais cedo do que julgas. Pressinto que já está em Tebas.»
«Impossível. Esquece. Está longe.»
«Porque permitiste que a tua guarda pessoal estivesse tão afastada?»
«Dei instruções nesse sentido. Precisava de privacidade, percebes? Por vezes preciso de estar livre.»
«Senenmut.» Pensei.
«Vives com o perigo. Não sabes viver de outra maneira. No fio da navalha...»
«Que queres dizer?»
«Das terras donde vim, esta expressão quer dizer que correste um perigo enorme porque não sabes viver de outra maneira. Um dia...»
«A outra vida que nos espera é bem melhor e devemos aproveitar da melhor forma esta curta passagem vivendo a vida à nossa maneira. Sempre gostei, como dizes... de viver na navalha.»
«No fio da navalha» emendei. «Mas tens assim tanta certeza do que te espera na suposta segunda vida? Isso faz-me lembrar os jogos de computadores que oferecem várias vidas aos jogadores antes que o jogo termine prematuramente.»
«Disseste computador?»
«Esquece. São coisas importantes do meu mundo e nem imaginas o alcance que podem ter.»

«Alcance?»
«Digamos que no futuro… esquece. Não consigo explicar-te. Mas voltando ao assunto do amor, por acaso negas que essa tua sede desmedida de alcançares o poder te roubou a hipótese de viveres a vida com o amor da tua vida? Não me enganas com o casamento que foi engendrado pelo teu pai. Tutmósis II foi só uma fachada. Era bruto e ignorante. Talvez impotente, até. Tu sempre amaste Senenmut!»
A profundidade dos seus olhos escuros esbateu-se. Uma lágrima rebelde soltou-se. Depois outra. Afinal Hat não era de vidro, como eu imaginava.
«O meu pai nunca iria permitir que casasse com um plebeu.»
«Certo. Mas a verdade é diferente. Hoje em dia não será o fantasmas do teu pai que vai ser o obstáculo. É outra coisa mais poderoso. A sede do poder. Bem sei.»
«Mas...»
A rainha estava a perder o combate aos pontos.
«Ainda não é tarde. Casa com ele! Vocês amam-se...»
Fez-se um silêncio perturbador entre nós. Agora era eu quem estava no fio da navalha.
«Não sabes com quem estás a falar!»
«Sei. Acredita que sei. Se estou a faltar-te ao respeito peço perdão. Mas não posso evitar de dizer aquilo que penso. Acho que te comportas como uma mulher que vendeu o amor. É isso.»
«Não entendes. Tenho um objetivo bem mais forte que o amor por Senenmut. Neferuré...»
«E?»
«Quero que seja a minha sucessora nas duas coroas que simbolizam o poder sobre as terras do norte e do sul. Estou a trabalhar nesse sentido.»
«Como estás enganada! A tua filha...»
Ainda fui a tempo de travar as ordens do pensamento. Não lhe podia dizer que a filha podia morrer em breve. Felizmente que Hat levou a conversa para outro azimute.
«Não quero que case com o meu sobrinho. Farei todos os possíveis para que tal não aconteça.»
Tinha que dizer-lhe!
«Mas já aconteceu. Eles têm um caso.»
«Como sabes?»
«Bom, sei.»
«É verdade. E entretanto ela descobriu que o meu sobrinho tem um harém e não admite que ele faça amor com outras mulheres, quer sejam concubinas ou não. É vulgar acontecer. Mas a minha filha é assim e pronto.»
«Oxalá se afaste desse monstro. E tu tem cuidado. Ele um dia vai exigir o seu lugar.»
«Tu sabes mais e não queres dizer.»
Se sabia!
A nossa conversa foi interrompida pela chegada de uma jovem que lhe falou ao ouvido.
Coisa grave, pensei. Mas mais grave do que imaginava.
«Não pode ser!»
Não podia ser, o quê?
Hat fitou-me com a profundidade dos seus olhos escuros. Estava deveras aterrorizada.

«Tutmósis!» 
«Não percebo. Explica-te.» 
Disse que não percebia, mas estava a faltar à verdade. 
«Mas não estava longe?»
«Impossível! Devia estar em Punt. E afinal já entrou no palácio. Em pouco tempo estará aqui. Tinhas razão.»
«Então...?»
«Qualquer coisa estranha está a acontecer. Os meus guardas foram mortos a sangue frio. Esconde-te, que ele vai matar-te também!»
De facto qualquer coisa estranha tinha acontecido.
«Vou enfrentar o teu sobrinho. Não te esqueças que tenho poderes. Consegui paralisar aquele homem que ia matar-te.»

«O anel!»
«Talvez.»
«Não o conheces, Marió!» 
Ia conhecê-lo no momento.
«Pois não. Aqui temos o cagão do nosso deus-vivo! E onde está esse pássaro de ferro de que todos falam?»
Fiquei paralisado. Tutmósis já estava na minha frente e tinha desembainhado a espada. A sua compleição física já metia respeito. Agora de espada em punho...
«Não, Tutmósis!»
«O que este intruso fez é um sacrilégio. Quer apropriar-se do poder que eu e tu dividimos. É um homem perigoso. Por isso tem que morrer.»
«Tutmósis, meu sobrinho, ele salvou-me quando ia morrer às mãos de um dos teus guerreiros.»
«Meus guerreiros?» insinuou. «Não o podes provar, tia. Bem sabes. Mas vamos ao que importa. Este homem é um intruso e um impostor! Não é nenhum enviado de Amon. Tem que morrer, repito!»
«Tenta e logo vês.» Disse, sem a mínima convicção.
«Neferuré não te vai perdoar!»
«Vamos a ver se ela não terá o mesmo destino deste farsante. Orquestraste tudo muito bem, como de costume, tia. Nega-se a fazer amor comigo porque tenho concubinas. E bem sabes que é da tradição. Assim, se ela não me quer, este casamento já não se fará!» disse, com um sorriso cínico entre dentes. «Mas faço-te uma proposta.»
«Fico à espera.»
«É muito simples. Dá-me mãos livres para reinar.»
«Tutmósis... mas já reinamos os dois!»
«Não é o que está a acontecer, sabes muito bem. Eu ponho e tu dispões, querida tia. Tem sido sempre assim.»

Empurrou-a para o lado e avançou para mim, de espada em punho, mais raivoso que um cão com raiva. 
«Nada te pode valer. Prepara-te para morrer, estrangeiro maldito.»
«Por Amon, detém-te!»
E o que fizeram Amon e o anel que Hatshepsut lhe tinha oferecido?
Aparentemente, nada. Tutmósis, este sim. Baixou a espada e sorriu, deixando-me a pensar.
Seria que a ordem que pretensamente dei para ele suspender o ataque fatal dera resultado?
«Tens aqui um bom aliado, tia» disse, entre dentes. «E a propósito, acabo de ter uma ideia.»
Que ia sair da boca daquele monstro?
Com apreensão, vi-o voltar-se para trás e rodar a cabeça, parecendo procurar alguém.
«Ah!, estás aí, escrava!»
A visada era a doce mulher dos meus sonhos.
«Como te chamas?»
«Nétis, senhor.»
«Tu e o maldito intruso fazem uma boa parelha, sabes? Vou ter pena de a desfazer. Estou a brincar, claro. Terei muito prazer.»

E virou-se para mim. Pressenti a aproximação do vento sul de mim e da minha amada.
«Adivinhaste o meu pensamento. És um deus vivo, segundo dizem. Sei do que aconteceu junto ao templo da minha tia e madrasta. Também vi que há pouco foste valente e mostraste uma força mental que tive em conta. Vejamos agora como te portas.»
Pressenti que Nétis estava em perigo e juntei-me a ela, passado um braço à volta do pescoço.
«Será mesmo que tens poder? Ora vamos a ver como reages. Tu, vem cá.»
Nétis olhou para mim, ansiosa.
«Fica comigo, amor. Ele não te pode fazer nada.»
Claro que podia. Eu só estava a fazer bluff e ele sabia. Ao mesmo tempo, queria descobrir o que ia naquela cabeça doentia.
«Que vais fazer, sobrinho?» 
«Já vês. Com que então propões dividir o poder! Mas sabes muito bem que eu sou o legítimo rei. E aquele jovem que controlavas a teu belo prazer e manipulavas, entretanto cresceu e já não tem os olhos fechados. Mandavas-me para expedições a seguir a expedições para poderes, à vontade, manobrar e governar a teu belo prazer. O teu tempo já acabou, tia querida. Era bom mas acabou. Agora sou eu quem manda, fica sabendo.»
Ao enviar Tutmósis à conquista de novas possessões, ao mesmo tempo estava a dar-lhe de mãos beijadas o reino, pois comandava um poderoso exército.
«Já compreendeste que não tens força para impor-me seja o que for? O legítimo rei sou eu. Só há um pequeno problema que quero contornar. Pelo sim, pelo não...»
E virou-se para mim. Com alívio vi que tinha embainhado a espada.
«Vou fazer-te uma proposta, estrangeiro.»

«Nada de bom vem de ti.» 
Pareceu ignorar o meu comentário.
«É muito simples» afirmou, olhando para Nétis. «Pelos vistos, vocês entendem-se. A proposta é boa para os dois. E melhor ainda se concordares comigo.»
«E que tens para me propor?»
«Muito simples. Junta-te a mim. Esquece a minha tia.»
Então era isso! Na minha terra chamava-se pedir que fosse um vira casacas.
«E se eu disser que não?»

Num gesto repentino puxou Nétis para si e sacou de um punhal que encostou à sua garganta. Vi a jovem empalidecer. O gume do punhal pressionava agora o seu pescoço esguio e frágil. 
«Aceitas ou não?» 
Senti-me impotente, mas não desisti de o enfrentar com o olhar. Mas não sei o que viu em mim. 
«Osil, chama mais guerreiros. Pelo sim pelo não, é mais seguro.»
Foi uma oportunidade para mostrar a sua fraqueza. Quase de certeza que me considerava um enviado de Amon e fingia o contrário.
O seu acólito afastou-se a correr.
«Deixa Nétis em paz! Senão...»
«Marió, amo-te muito!»
A rainha mantinha-se prudentemente calada.
«Senão o que?»

«Sabes muito bem que Amon está em todo o lado. Os sacerdotes não se cansam de o dizer. Cometes esse ato cruel e serás julgado logo a seguir à tua morte.» 
«Sou um faraó e sabes muito bem que os faraós não são julgados depois de morrerem.»
«É o que dizem. Mas tu tens alguma certeza acerca disso?»
«Estás a tentar confundir-me.»
Entretanto tinham chegado mais soldados de Tutmósis.
«Eu abdico, Tutmósis. Dou-te todo o poder. Mas deixa a pobre Nétis em paz!»
«Minha rainha ele vai matar-nos todos! Não ceda. Por Amon não ceda.» 
Mais confiante, Tutmósis gargalhou. Ao mesmo tempo largou Nétis que correu logo para junto de mim. 
«E vais para o teu templo?»
«Só te peço que poupes também Senenmut. Dou-te o poder e dedico-me com o meu arquiteto ao acabamento do templo.»
«É só o teu arquiteto, meretriz? Mas tanto faz faz. Está bem, poupo a vida de Senenmut.»
Já sabia o que o futuro traria. O nome de Hatshepsut seria apagado onde quer que estivesse gravado no seu templo. Em seu lugar ficaria o nome do seu pai, Tutmósis I.
«Amor, está tudo resolvido.» Disse para a minha amada.
A palidez do seu belo rosto acentuou-se. Não augurava nada de bom. Tudo continuava em aberto.
«Não, Marió. Não podes deixar que este monstro te subjugue!»
Confirmação. O pior estava a chegar.
«Cala-te!»

Avancei para Tutmósis. 
És louco, Mário!
«Ora vamos a ver.»
E levantei o braço esquerdo com a palma de mão virada para ele.
«Não digas as palavras!» exclamou, recuando.
Entretanto fez um sinal para o dito Osil, mas não dei a devida importância. Aquela simulação era mais perigosa do que imaginava porque, de imediato, os soldados avançaram, de armas em punho, esperando uma ordem do rei tirano. Na verdade ele queria antecipar-se às palavras mágicas.
«Por Amon detém-te!»

Demasiado tarde.
«Fiquem alerta onde estão, soldados. Eu próprio resolvo a questão.»
Hatshepsut foi a primeira a ser atacada. Horrorizado, vi a sua cabeça rolar pelo chão. Nétis agarrou-se muito a mim, mas parecia que de nada lhe valer. O fim estava próximo. Sentia-me impotente. O meu bluff tinha falhado. Afinal o anel para nada servia.

Aproximou-se com um sorriso sinistro.
«E agora nós, estrangeiro!»
Ainda tive força anímica para, de braço levantado e a palma da mão bem firme virada para ele, dizer: 
«Agora o quê, assassino?» 
Ignorou a injúria. 
«Sempre vens para o meu lado?» 
«Nunca! Amon não vai deixar que cometas mais crimes. Eu vim do futuro. É impossível morrer no passado, sabes? É que eu tenho que existir no futuro!»
«Bem pensado. Mas isso é o que vamos tirar a limpo já!» 
«Agarra-te com força a mim, amor!» 
Foi um momento.
«Onde estás, maldito estrangeiro?»
Ainda consegui ouvir as palavra daquele faraó facínora. Depois, fui-me afastando, pouco apressado, com a minha Nétis. 
«Para onde me levas, Marió?» 
«Não sei, meu amor. Vamos por aí...»
Ou sabia?

«Não sei se tive a ajuda de Amon naquele momento decisivo, mas o certo é que eu e a Nétis conseguimos fugir de Tutmósis. Quanto à Senhora de Duas Terras, conforme já te disse, foi degolada de um só golpe. Não quero rever aquela imagem grotesca da sua cabeça separada do resto do corpo a rolar no chão.»
«Mas a História não fala disso, Mário. Aliás, foi encontrada a sua múmia. Um corpo intacto, pelo que julgo saber.»
«Tens razão. E por acaso sabes como foi identificada a múmia da mulher-faraó?»
«Não. Conta-me.»
Fiz uma breve pausa, como que tentando espicaçar a curiosidade do António.
«E como vai a tua relação com a Mónica?»
«Bem. Saiu-me a sorte grande. Ela é uma mulher excecional.»
Ia para dizer:
«Gaba-te e logo verás um dia...»
Claro que não tinha razão. A Mónica era uma mulher às direitas.
«Bom, meu amigo, tudo se tornou fácil depois dos arqueólogos encontrarem um dente no interior de uma caixa de relíquia com o nome gravado de Hatshepsut. Entre várias múmias desconhecidas de faraós, o dente encaixava perfeitamente no maxilar de uma delas. Uma amostra de DNA fez o resto.»
«Que descoberta fantástica! E a múmia não tinha sinais da cabeça separada do resto do corpo. A tua história não joga bem.»
«António! Eu estive num universo paralelo. Aí a história de Hatshepsut desenrolou-se de forma diferente. O sobrinho e enteado degolou-a, tal era o ódio que nutria pela rainha.»
E não deixava de ter razão. A rainha, alegando origem divina, deu um golpe e peras e tomou o poder destinado ao enteado Tutmósis III, apesar de ser filho bastardo de Tutmósis II. Não se sabe muito bem se acabaram por reinar em conjunto. Mas sabe-se que, após a morte de Hatshepsut, com cerca de cinquenta anos e atormentada por artroses, diabetes e cancro do fígado, vingando-se. O faraó apagou todos os vestígios que revelassem a sua identidade. Isto é: riscou a sua memória da História. Tudo leva a crer que a morte de Hatshepsut foi natural. E não morreu antes assassinada, já que o sobrinho detinha o poder militar, por motivo que acho ser óbvio. Acreditou que a rainha sua tia era filha de Amon. Filha de um deus. Assim, receou ser punido pelo seu deus caso matasse ou ordenasse a morte de Hatshepsut. Mas, contra toda a lógica não hesitou, no outro mundo paralelo, em degolar a rainha sua tia e madrasta.»
«Se assim aconteceu de facto não tem lógica. Concordo contigo. Mas não me disseste nada sobre a tua amada. Como é que ela se chamava?»
«Nétis.»
«Que lhe aconteceu? Quando voltaste do Egito da outra vez, ela tinha sido assassinada.»
«Pois. No nosso universo aconteceu essa tragédia. Mas no outro, ela sobreviveu.»

Gostava de acreditar.
«Ficou no seu país?»
«Não» sorri. «Anda por aí. Olha, soubeste mais alguma coisa da Alexandra?»
«Não. Deve estar no futuro. Numa Terra em agonia.»
Não comentei.

«E tens alguma novidade destes meses em que estive ausente?»
«Meses?»
«Sim.»
O meu amigo ia dizer o quê?
«Sejam, meses. A corrupção cada vez está mais na moda e quando os julgamentos e recursos dos megaprocessos chegarem ao fim provavelmente os condenados já estarão mortos ou senis.»
«Muito me contas.»
«Há cada vez novos casos a aparecer. Então no futebol nem se fala!» 
«Bom, afinal já sabia. Não te esqueças que se passou pouco tempo aqui, apesar da minha permanência prolongada em Tebas.» 
Era difícil de admitir.
«Mudando de assunto, ficas a morar na nossa casa de Benfica, não ficas?»
«Não, obrigado. Aliás, já estou a viver no apartamento da Almirante Reis.»
«E os tais mafiosos que quase nos iam limpando o sebo?»
«Já passou muito tempo. E, como vês, o meu visual mudou. É o regresso à casa onde tenho as minhas coleções e tudo mais que me faz sentir feliz.»
«Surpresa das surpresas. Mas vais passar o resto do dia connosco, não vais?»
«Vocês é que vão lá. Encomendei a uma empresa de catering uma espantosa refeição de marisco.»
Admirou-se.
«Não posso acreditar! Julgava que continuavas amante de lulas guisadas.»
«Claro que sim. Mas nem sempre galinha nem sempre rainha.»
«Sei que essa frase é atribuída a D. João V, mas não conheço muito bem a história.»
«D. João V teve um romance muito incendiado com uma freira do Mosteiro de S. Dinis, em Odivelas. A rainha, que por sinal era muito feia, sentindo-se rejeitada, queixou-se ao padre seu confessor. Tendo este chamado o rei à razão, o nosso rei "magnânimo" ou "freirático" ordenou ao cozinheiro que servisse ao padre todos os dias galinha, algo que o enjoou e fez emagrecer, a ponto de se queixar ao rei. A resposta foi imediata e esclarecedora:"Pois é, senhor padre. Nem sempre galinha, nem sempre rainha..."»
«Boa!»
«Então fica combinado. Até logo à noite.»
«Achas mesmo que é seguro?»
«Seguríssimo.»
«Que queres que leve?»
«Venham com apetite e preparem-se para uma surpresa.»


O convite estava feito. Mais dia menos dia impunha-se uma resposta à frase enigmática de Mário.
«E preparem-se para uma surpresa.»
Quando a porta do elevador se abriu para subirmos ao seu andar, segurei-o por um braço.
«Tens a certeza que não corremos perigo aqui?»
«Absoluta.» Afirmou, convicto.
«Apesar de um génio da ciência nosso conhecido ter revolucionado o mundo científico com a sua teoria da relatividade?»
Como resposta, Mário foi o primeiro a entrar no elevador, contrariando todas as regras de boa educação.
«Desculpa, Mónica, mas esta atitude que tomei é só um sinal de firmeza. Acreditem em mim. O problema que nos preocupava já está resolvido.»
Eu e a Mónica entreolhámo-nos.
«Como assim?»
Mário esboçou um gesto de contrariedade. Bem sabia que não gostava que desconfiassem das suas certezas.
«Se quiserem acaba aqui a vossa visita.»
«Não queria desacreditar-te.»
«Nem admito. Sei muito bem o que estou a dizer. Então, vou dar-lhes um dado. Soube recentemente que a rede mafiosa que controlava os prémios de jogo no casino foi desmantelada.»
«Pronto. Já cá não está quem falou. Carrega então nesse botão para subirmos ao teu apartamento.»
«Mas o teu santuário é um espanto!» exclamou a Mónica, verdadeiramente entusiasmada.
Não comentou. Apenas um sorriso discreto indiciou um sinal de satisfação. Foi mostrando as divisões da casa. Especialmente à Mónica já que era a primeira vez que tinha o privilégio de conhecer um dos segredos mais bem guardados pelo amigo.
«Mónica, ainda não viste tudo.»
«O que há mais para ver?»
«Tudo o que está à vista e não está.»
Já conhecia a existência da passagem secreta.
«Hum, aqui há coisa. Se tens fantasmas em casa, desde já te digo que não estou nada virada para aí. Nem hoje, nem nunca. Passo muito bem sem os mistérios do oculto. Fenómenos insólitos, paranormal e essa coisa que nos queres impingir dos mundos paralelos…»
«Alto lá, Mónica!» interpus. «Aí não concordo contigo. Acredito plenamente na existência de mundos paralelos e as aventuras do Mário comprovam essa teoria. Já os buracos de verme não me convencem muito. Qualquer corpo que ultrapasse o horizonte de eventos de certeza que se esparguetiza e não há nada a fazer. Nem há notícias de algum veículo espacial ter-se aproximado de um buraco negro. Teoricamente sabemos o que acontece.»
«Boa dissertação, António. Um dia, quem sabe… mas deixemo-nos de teorias e voltemos ao concreto. Repito, Mónica, que ainda não viste tudo. Nem tu, António.»
«Eu não vi tudo?»
«Aposto que é a confeção de uma nova receita de lulas.»
«Não, Mónica. Já te disse e ao teu querido António que o nosso almoço vai ser todo de marisco. Só marisco, repito.»
«Bem hajas por seres rico, Mário, e nós ganhamos com tal» disse com a simplicidade de alguém que não era invejoso. «Mas afinal de contas a tua surpresa é para os dois ou só para mim?»
Sorriu.
«Na verdade são duas surpresas.»
«Logo duas!» comentou a Mónica. «A propósito, também tenho uma para ti e vou já revelá-la. A Alexandra vai regressar de vez. Como sabes, no futuro é impossível viver na Terra.. Com ela vem uma grande comunidade de sobreviventes.»
«E isso é bom para nós?»
«Não há perigo para a Terra. Aliás, estão no seu legítimo direito de regressar ao passado. Os próprios descendentes como é o caso da Alexandra. Aliás, apenas aprenderam a viajar no tempo e claro que não vêm com intenções bélicas. Para ficares a saber, as armas foram abolidas embora haja ainda escaramuças. Num futuro breve viverão discretamente e em paz entre nós. Alguns já vieram para tratar de assuntos de logística.»
«Muito me contas.»
«Uma coisa de que já me esquecia...»
«Sim?» perguntou, confrontando-se com o sorriso malicioso da Mónica.
«A Alexandra envia-te cumprimentos e lamenta todas as suas desconfianças.»
«Registei.»
Pressenti que havia feridas ainda não curadas. Ou então já estava na linha de partida para outra que não a Nétis. Dele havia tudo a esperar.
«Magoou-te assim tanto?»
«Já esqueci os amuos. Mas a situação agora é outra.»
«Não me digas que encontraste mais uma alma gémea!» ironizei.
A vida é um jogo e os parceiros mudam conforme ocorrem as circunstâncias. 
«Talvez.»
Foi a resposta. Agora, voltando-me para o que estava a acontecer na realidade, já conhecia os espaços secretos do Mário, mas a Mónica não.
«Bom, preparem-se.»
Ficámos suspensos. De Mário tudo era possível vir.
«Parte da primeira surpresa já é do teu conhecimento, António. Reparem, meus amigos…»
Um aparente gesto mágico seu e eis que a parede em frente rasgou-se e deixou ver uma sala ampla.
«É aqui que guardo agora todas as minhas coleções. Os selos e a banda desenhada, bem como os livros, os CDs e DVDs. O meu mundo.»
«O teu mundo real?» 
Acenou que sim com a cabeça.
Logo a seguir entraram no quarto. Nada tinha a ver com o pequeno espaço que me mostrou da outra vez.
Onde foi encontrar mais volume?
«Isto é mais misterioso que a multiplicação dos pães e do vinho. Fizeste melhor que Jesus, meu amigo!»
«Não blasfemes.» Avisou a Mónica.
«Acham que ficamos por aqui?»
«Que temos mais?»
«Preparem-se.» Disse simplesmente.
Outro gesto de magia e novo rasgão na parede, agora do quarto.
«Deixem que entre primeiro para preparar a segunda surpresa.»
«À vontade. Mas não demores que estou em pulgas.» Pedi.
Olhei para a Mónica, muda e deslumbrada com o que estava a ver. Mas não conseguiu continuar calada.
«Incrível, meu amor! Nunca pensei assistir a uma cena como esta. Coisas do famoso mágico Mandrake do "Mundo de Aventuras" e de mais mil mágicos ou mais outro tanto.»
«O nosso amigo aplicou bem o dinheiro que caçou aos mafiosos do casino que tinham montado todo aquele esquema tenebroso.»
«Aquele caso do Nó cego, não é?»
«Sim. Além de extorquirem prémios por intermédio do Mário, queriam, segundo ele, liquidar o casino para depois o adquirirem por tuta e meia. Como em movimentos similares, também havia tubarões em ação, estes mais que escondidos. E foi por causa deste esquema mafioso a roçar a perfeição que a coisa se complicou naquele dia em que o Mário me convidou para conhecer o seu apartamento novo. Este mesmo, claro. Quase nos apanharam.»
«Mas não achas que o Mário está a demorar?»
Não fazia ideia do que se passava no espaço que existia para lá do quarto. O que ele estava a engendrar. Quanto ao mistério do incompreensível aumento volumétrico já tinha uma resposta. Não havia outra maneira para explicar o que parecia não ser explicável senão pela compra do apartamento contíguo.
«Finalmente, Mário! Que se passa?»
Havia um misto de tristeza e angústia no seu semblante, talvez um motivo para demorar a esclarecer-nos. Provavelmente aquele hábil contador de histórias preparava-se para engendrar mais uma. Era especialista em mascarar o que parecia evidente. Quanto à surpresa que preparava para nós já não ia ver a luz do dia. Tinha a certeza. Ou não me chamasse António. Ali havia coisa.
«Desculpem.»
Só um pedido de desculpa?
«Bom. Surgiu um contratempo. Mas de momento não posso dizer mais nada.»
«Que tinhas para nos mostrar e agora já não podes?»
Fez um gesto a pedir escusa e entrou de novo na misteriosa divisão.
Mário ficou tão perturbado que nem sequer chegou a acontecer o prometedor almoço de marisco e só marisco que encomendou. Achou por bem que levássemos o marisco, o vinho branco gelado e as frutas e doces. Tudo.
«Por amor de Deus, não acho bem.» Disse a Mónica, preocupada com o estado de espírito do amigo.
«Levem, levem. Assim como me sinto não sou boa companhia.»
«Não vais contar-nos o que aconteceu?»
«Mais tarde. Quando acertar as ideias contacto com vocês. Peço muita desculpa, mas hoje não dá.»
«Queres ajuda?»
Acenou negativamente.
«Obrigado, António. A melhor ajuda que me podem dar é deixarem-me só. Isto há de passar.»
«Acredito porque conheço-te muito bem. Mas podemos saber o que aconteceu? É a tal surpresa?»
«Acompanho-os até à porta. Não se esqueçam de nada, meus amigos. Mais uma vez, desculpem-me.»
«Ok. Se queres assim, assim será. Sabes que somos teus amigos e estamos sempre ao dispor.»
«Eu sei, António.»

Ficou só. Finalmente só. Ou melhor, acompanhado dos seus pensamentos circulares, como se percorressem uma órbita muito apertada.
«Vejamos...»
A mobília do quarto resumia-se a uma cama, duas mesinhas de cabeceira, uma cadeira estofada e, claro, havia também dois roupeiros metidos na parede.
Aquele "vejamos" significava que ia vasculhar tudo o que havia nos roupeiros.
Pouco depois estava deitado em cima da cama. Nem sequer descalçara os sapatos. A busca resultou infrutífera. Nem uma simples peça de roupa feminina, ou um frasco de perfume. Ou um dos muitos colares que ela usava. Nada. Parecia que nunca tinha estado naquele quarto, naquela cama larga, agora vazia de amor e dos odores intensos dos seus óleos que o punham louco.
«Nétis, onde estás?» gritou, alucinado.
Não se sentia bem naquele quarto vazio. Faltava-lhe o ar. Precisava com urgência de respirar ar puro para depois pensar com mais clarividência no mistério que rodeava a ausência de Nétis. 
Para onde tinha ido? E porquê?
«Nétis, que foi que eu fiz de mal?»
A pergunta ressoou como um eco por toda a casa, mas trouxe como resposta ela própria, a pergunta.
Talvez fosse assim o começo de uma insanidade mental. Sim, tudo se conjugava para a descoberta de uma verdade dolorosa. E a verdade parecia agora dizer-lhe que Nétis era apenas fruto da sua imaginação fértil, doentia. Que ela nunca tinha existido. Que toda a odisseia passada no Antigo Egito de Hatshepsut não passava de uma fantasia sua. O próprio deserto, onde apareceu às portas da morte e foi salvo por dois escravos, não fora mais que o local apropriado para o começo da encenação de uma história de amor que floresceu entre ele e uma escrava-princesa feita cativa nas terras do norte e separada do seu reino destroçado pelo poderoso exército egípcio. Uma princesa que se afeiçoou à sua rainha, a ponto de sacrificar a própria vida por ela. A mesma princesa que dizia amá-lo muito e que o seguiu, sem hesitação, até ao futuro. A mesma princesa que agora estava desaparecida, como que por encanto.
Na véspera tinha-a levado a um Centro Comercial onde fez com compras só para ela. Vestidos, calças, blusas, roupa íntima, sapatos. Tudo o que era preciso para a Nétia, depois daquele salto enorme entre épocas.
Não conseguiu evitar um sorriso quando se lembrou dos sapatos com saltos de mais de dez centímetros onde ela se sentiu pouco à vontade em virtude do desequilíbrio que lhe provocaram e que os fez rir a bom rir.
«Mário, agarra-me que vou cair!»
«Não tenhas receio, querida Nétis. Vais ver que te adaptas a eles.»
«Estou quase da tua altura, meu amor.»
«Vês? É uma vantagem.»
«Depois treino. Prefiro calçar aqueles sapatos vermelhos sem salto.»
«Os do laço?»
«Sim, amor.»
«Não queres outros? Davam jeito uns ténis para fazermos caminhadas. São mais apropriados.»
«Ténis?»
«Já vais ver. Vamos a outra secção.»
«Ah sim. Estou deslumbrada com tudo o que vejo. Nem quero acreditar. Não consigo encontrar palavras...»
Lembrou-se do anel que lhe ofereceu.
«É lindo, meu amor!»
«Sim. E não cai do dedo.»
«Estas pedrinhas brilhantes…?»
«São diamantes. As vermelhas chamam-se rubis. Alguma vez viste coisa assim?»
«Não. Mas a minha rainha…»
«Eu sei. Também usava joias bonitas.»
«Não o vou tirar porque assim sinto-me ainda mais tua. Guardas-me a caixa num dos bolsos do teu blusão?»
De súbito, fez-se luz.
«O blusão!»
Em poucos segundos chegou ao roupeiro paralelo à cama.
«Aqui está. O blusão preto. Deixa-me ver...»
Sempre era verdade. Tinha nas mãos a caixa.
«Só para confirmar…»
Abriu-a. No interior estava o anel de diamantes e rubis. E não devia estar, pois lembrava-se de o pôr num dos dedos delicados de Nétis e também das suas palavras.
«Nunca mais o tiro do dedo, Mário!»
«Está justo. Portanto, não engordes, Nétis.»
«Então não me dês iguarias.»
«A propósito. Hoje vou levar-te a um sítio onde servem iguarias que nunca comeste.» 
«Não posso comer com as mãos, pois não?» 
«Em relação aos talheres, faz como eu» sorriu. «Basta olhares para as minhas mãos. É diferente a forma como se come cá, por exemplo, um pato no Egito da tua rainha.»
«Hatshepsut! Tenho saudades suas.»
Ficou a pensar, preocupado.
«Não me lembro do jantar.»
Depois da cena do anel não se lembrava de mais nada. Nem sequer de chegar a casa e, já na cama, sentir o calor do corpo nu de Nétis. De fazer amor pela madrugada, como faziam sempre todas as noites.
«O cesto da roupa suja!»
A casa das máquinas, o local para o cesto da roupa, ficava junto à varanda onde tinha a sua coleção de catos e plantas gordas.
Nem uma peça de roupa feminina!
«Escova de dentes!»
Ela tinha achado muita graça à escova de dentes.
«Colocas um pouco de pasta sobre as cerdas, deitas um pouco de água e depois escovas os dentes. De cima para baixo. Uma ou outra vez para os lados. E a língua. Não te esqueças de escovar também a língua.»
A sua escova era azul e a da Nétis, vermelha.
A dúvida aumentou. Só havia um copo com uma escova. Esta, azul.
Começou a sentir a cabeça dormente, oca, como se lhe tivessem implantado um chip inibidor do poder lógico do consciente. Era talvez o momento do subconsciente todo-poderoso agir.
Agora acreditava que o seu aparecimento súbito no deserto não resultou de um salto no tempo. O Antigo Egito de Hatshepsut, a rainha que se intitulou filha de Amon, o amor por Nétis. Bem como os "pássaros de ferro", o atentado e tudo mais. Provavelmente nada tinha acontecido. Talvez tivesse sido motivado pela revista científica de uma das mulheres que seguiam no comboio. Depois, foi tudo resultado da sua mente obsessivamente imaginativa. À viva força precisava de uma história diferente para contar ao seu amigo e que pusesse os leitores a pensar seriamente. Por outro lado, talvez tivesse acontecido uma descontinuidade brusca no espaço e no tempo que podia explicar toda a sua odisseia ocorrida na época de Hatshepsut e que continuou até ao momento em que Nétis desapareceu do apartamento de Mário.
E o amuleto que trouxe?
Marcou no telemóvel o número do amigo e aguardou que este respondesse.
«Diz, Mário.»
«Lembras-te daquele anel com o escaravelho que te mostrei e à Mónica?»
«Se me lembro! E já agora, sabes alguma coisa sobre a datação que mandaste fazer?»
«Ainda não.»
«Um abraço.»
E desligou.
«Ele não acredita que trouxe o amuleto do Antigo Egito.» Pensou. «E mesmo que a data coincida com essa época, vai duvidar sempre de mim, pois podia ter comprado esse amuleto num dos muitos bazares de antiguidades.»
Em última análise, a prova das provas residia em Nétis, talvez fruto da realidade ou da imaginação criadora de Mário.
Mas com dúvidas ou sem dúvidas a saga de Mário ir continuar. Tinha que encontrar Nétis, nem que para isso fosse preciso voltar ao reino de Hatshepsut.
Talvez precisasse da ajuda da Alexandra. A Mónica disse-lhe que ela ia voltar. Mas... tinha-lhe telefonado do futuro?
Voltou a ligar para o amigo.
«Podes chamar a Mónica?»
«Estás melhor? A Mónica saiu. Liga-te mal chegue, podes ficar descansado.»
«Tu também deves saber.»
«O quê? Não sou bruxo para adivinhar.»
«É verdade que a Alexandra vai voltar?»
A resposta foi um sorriso irónico do outro lado. Sorriso que lhe caiu mal.
«Não admito esse sorriso cínico, António!»
«Ah sim? E nós não queremos que faças mal à Alexandra.»
«Como assim?»
«Está cá desde ontem. Regressou de uma daquelas viagens no tempo que ela e muitos outros fazem. Porquê tanto interesse na Alexandra se a desprezaste? Que fique bem claro. Dou-te uma sova se lhe fazes mal. Eu e a Mónica.»
«Deixa-me rir. Mas só agora me contas?»
«Da sova?»
«Agora sou eu que lhes bato.»
«Era obrigado a contar-te? Desde quando?»
Pensava que estava tudo acabado entre os dois. Ela teve a reação que teve. Algo extemporânea. Quase irracional. E que ficasse bem claro que Nétis continuava no seu coração, apesar de ter quase a certeza que não voltaria a vê-la. Mas enquanto houvesse vida, havia esperança.
«Sabes se ela veio de todo?»
«Sim. Penso que sabes que estão a regressar de lá em massa porque a situação agravou-se. O ar tornou-se quase irrespirável. Não há alimentos que cheguem e os que restam estão todos contaminados. A segurança não existe. Aquilo está transformado numa selva. Há escaramuças por todo o lado.»
«Já me disseram. Mas ouve uma coisa: a Alexandra está disponível?»
O amigo demorou a responder. Se Mário estivesse frente a frente com ele, de certeza que veria perplexidade no semblante.
«Podes tirar o cavalinho da chuva, amigo. Se é o que estou a pensar, não contes connosco.»
De certa forma tinha razão, pensou. Daquela maneira abrupta que perguntara tudo era de admitir.
Tentou mudar a mão.
«Preciso da sua ajuda por causa de um assunto.»
«E que assunto?»
«Nétis.»
«Vais fazer-lhe ciúmes, está visto.»
«Fazes uma boa ideia do teu amigo.»
«Bom, veremos mais logo. Aparece por cá.»

Alexandra
«Estás mais magra.»
«E tu na mesma. Não te fazes velho.»
«Velho já eu sou. Tens o cabelo mais comprido. Fica-te bem.»
«Pois. Obrigada pela parte que me toca. Só noto em ti uma diferença. Nunca foste muito alegre, é verdade. Pelo menos desde que te conheci. Para trás não sei. É impossível saber. Mas há tristeza na expressão do teu olhar. Não estás doente, pois não?»
«Felizmente.»
«E então?»
«Por cá tudo bem» olhou para os amigos. «E tu, certamente sentes-te feliz por teres abandonado aquele inferno. A tua tia Germina também veio?»
«Claro. Anda nas nuvens.»
«Bom» disse a Mónica. «Eu e o António precisamos de sair. Fiquem à vontade.»
«Pois, já me esquecia.» Reforçou o amigo.
Mal sentiram o bater da porta começaram a rir.
«São mesmo nossos amigos.» Disse Mário.
«Mas não é o que pensam. O que se passa então contigo?»
«Logo te digo.»
«Vamos sair também?» perguntou, de rompante.
Entreolharam-se. Parecia mesmo que tinham lido o pensamento um do outro.
«Pensava nisso, Alexandra.»
«Definitivamente Alexandra?»
«Se não te importas.»
«Porquê?»
«Tens mais cara de Alexandra do que de Maria. Olha, vamos para um café?»
«És bruxo?»
Mário sobressaltou-se.
«Pensavas no mesmo, Alexandra?»
Referia-se apenas à ideia do café. O resto do pensamento não conseguia adivinhar.
Alexandra levou as mãos aos cabelos e tirou o elástico que os mantinha presos atrás. Por outras palavras, soltou os cabelos. Ao vento, se estivessem já no exterior. Em tempos, a outra Maria também soltara os cabelos. Mas ao vento (1) .
«És bruxo? Como foi possível teres a mesma ideia que eu?»

Um dia, à saída da escola, e já quando se encaminhava para o carro, disse à Maria:
«Tem cuidado!»
«Porquê?» perguntou, incrédula.
A minha resposta foi repetir o aviso. A seco. Sem saber o motivo.
No dia seguinte veio ter comigo.
«És bruxo?!...»
Fitei-a, deveras admirado. Não entendia onde queria chegar. Ela sorriu. Fiquei na defensiva. Não sabia o que queria dizer com aquele “és bruxo”.
«Que aconteceu, Maria?»
«Ia no carro muito distraída a ouvir música da cassete que me deste e quase tive um acidente. Um carro dos bombeiros surgiu de repente no cruzamento. Por pouco que não chocámos. Tudo porque eu tinha o som muito alto.»
Fiquei a pensar.

«E que música ouvias nesse momento?»
«Não me lembro.»
«Que cretino fui!»
«Disseste... cretino?»
«Desculpa, Alexandra, estava a lembrar-me de uma leitura errada que fiz um dia. Nada importante.»
«Porque já passou?»
Fez uma leitura errada ou teve medo da diferença de idades. A Maria tinha menos vinte e quatro anos que ele e previa um futuro complicado para os dois.
«Sim. Mas doeu no momento.»
«Só?»
«Demorou a passar.»
«Ainda hoje pensas nela?»
«Gostava de saber o que lhe aconteceu. Que rumo tomou. Se casou.»
«E é por isso que queres a minha ajuda?»
«Não. Olha, vamos para um café.»
«Pensámos no mesmo, conforme descobri há pouco. Um café aqui do bairro ou mais distante?»
«Bom...»
«Deixa-te de rodeios. Porque não és tu a guiar-me?»
Olhou-a com tanta intensidade que a obrigou a baixar os olhos.
«Desculpa.»
«Estás desculpado. Mas insisto. O que se passa?»
«Não consigo, Alexandra. Parece que perdi poderes.»
«Tens a certeza?»
«Já tentei. Por isso é que preciso de ti. Ajudas-me?»
«Acontece, Mário. Acontece quando a força do amor eclipsa o poder da mente. Mas para onde é que vamos?»
«Para um café especial que hoje já não existe.»
Mário estava a propor irem para um café especial que já não existia.
«Já sei de que café se trata. Contaste-me uma vez. Então, dá-me a mão.»
«Pronto.»
Alexandra vacilou e Mário receou que se repetisse a cena ocorrida em tempos em Fátima.
«Não apertes tanto! As mulheres tratam-se como se cuida de uma flor.»

«Assim?»
«Fazes-me cócegas…»
Inspirou com força, aliviado. Logo a seguir, a escuridão envolveu-os.


Era inverno. Passava das oito da noite. Subiam a rua do Carmo.
Mário soltou uma exclamação e virou-se para a Alexandra.
«Olha, em tempos houve aqui um grande incêndio. Se não estou em erro foi em agosto de 1988 e ficou conhecido pela designação de "o grande incêndio do Chiado". Destruiu dezoito edifícios e estendeu-se por uma área equivalente a cerca de oito estádios de futebol. Por exemplo, ali à esquerda, é o Grandella. Majestoso, não achas?»
«Foi uma grande perca. Em que ano estamos agora, Mário?»
«1960, creio.»
Continuaram a subida até que chegaram ao Café Chiado, que ficava já na Garrett.
«É aqui.»
«Vamos entrar?»

Em tempos recuados, habitualmente estudava nos cafés. O café Chiado era um deles. Já tinha saído da pensão "Aninhas-morte-lenta" e não sabia quantas mais vezes o gato de miados roufenhos tinha caído da grade da varanda depois de um sonho agitado (2) .
Mais tarde, alugou um quarto na Cecílio de Sousa, às portas da Faculdade, e foi nesse tempo em que se sentiu mais livre do que nunca e também mais só. Não conseguia estudar no quarto, apesar de ter boas condições. Existia uma mesa redonda ampla e também o silêncio importante para uma concentração plena. Mas era um engano, pois só conseguia concentrar-se dez, quinze minutos. Jantava muitas vezes na Baixa, no "Come e Bebe", e depois tomava o caminho do café Chiado. Rua do Carmo, rua Garrett. Sentia logo à entrada o ruído de fundo das conversas, umas acaloradas, outras não. Sentia também o ruído da vozes silenciadas pela meditação em qualquer coisa que fosse. Principalmente o silêncio das vozes dos estudantes seus homónimos constituía o alimento fundamental para a concentração que procurava. E era ali, naquele café com história feita, que se sentia como um peixe na água e mais junto da imensidão das folhas de estudo que alimentavam a saída para uma nova etapa do seu futuro.
Como de costume instalou-se numa das mesas mais ao fundo. Parece que se subiam uns degraus e ficava-se num nível donde se abarcava o resto do café, sem a mínima hipótese de interposição.
Pediu uma bica e um copo de água e depois pegou nas folhas e começou a estudar, abstraindo-se do ruído de fundo e mergulhando no seu mundo. Leitura silenciosa, às vezes em sussurro. Escrita de definições na sebenta. Retorno ao ambiente morno do café. As discussões acaloradas sobre o futebol. O cochichar, receoso, sobre política. Os pares de namorados que davam as mãos e se contemplavam, bebendo, mutuamente, a paixão que deixavam transparecer. E depois o inevitável retorno às folhas.
Um indivíduo que ocupava uma mesa mais abaixo servia também de interlúdio. Quando levantava os olhos das folhas dava de caras com ele. Muito sério, com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, a palma da mão debaixo do queixo e o indicador colado à face, em que pensava? Coisa desagradável, quase de certeza. O homem, muito pálido, parecia triste. Mas logo de seguida já ria, para dentro, em silêncio. Aquele riso era estranho. Mais parecia que soluçava. E pronto. De novo o olhar triste, perdido no vazio. Assim ficava, mergulhado no seu mundo.
Pôs as folhas de parte e começou a escrever na sebenta, levado por um impulso forte.






A mesa do café. As folhas. As cadeiras ocupadas pelos outros e as vazias. O ambiente pesado com intenso odor a tabaco. Todos mergulhados em conversas acaloradas, algumas supérfluas. As palavras idealistas daqueles que queriam endireitar o mundo. Os esquecidos deles próprios. Todos estavam consigo. Acontecia, por vezes, não dar por eles e esquecer-se das folhas e dos compromissos, encher-se de tédio e tentar ler nas paredes, enegrecidas pelo fumo expelido pelos viciados, sinais de um visionário que "gostava de beber porque não tinha sede". Puro engano. Afinal esses sinais não vinham desse café. Debruçava-se de novo sobre as folhas e recomeçava a viagem pelos domínios de um mundo agreste de símbolos, sentindo, por vezes, que caminhava às escuras por um labirinto sem saída e sem retorno.
Algumas vezes olhava para fora pelas poucas vigias de que dispunha, mas logo o egoísmo da transcendência obrigava-o a mergulhar no mundo dos símbolos, tentando ultrapassar, para dentro, o reino do inconsciente num mergulho às cegas, sem pontos de contacto. Queria fugir e a destreza da noite arrastava-o para mais um inevitável beco sem saída, para o meio do caos que trazia, às vezes, à superfície, a resposta certa, sempre que os vigilantes do consciente adormeciam.
A mesa do café. As folhas. O resto. Todos voltavam a estar consigo. Ciclos e ciclos de ideias que iam e vinham. Milénios e milénios de frações de vida que se consumiam na clepsidra sobre a mesa e ele sempre só, acompanhado pelos outros de maneira a estar só. Tédio. Solidão. Utopia. Idealismo.
Até que um dia teve um sonho. Sonhou com ela. Viu-a. Atravessava as vigias do "outro mundo" e caminhava para ele. Trazia o sorriso da vida. Era o sorriso da vida. Mas não podia dizer que caía por terra o egoísmo da transcendência porque não tinha a certeza se era ela. E assim, os olhos perdiam-se noutros olhos. E depois noutros. E nunca a tinha. Para além da mesa do café, das folhas, do fumo, do homem que ria e chorava no seu mundo às escuras, do resto, estava só, muito só.
O dia ia amanhecer difuso. As pessoas passariam em torvelinho, indiferentes, rumo a destinos pessoais. Era assim que as coisas funcionavam, menos para ele que não tinha destino certo. Perdia-se entre a multidão que passava, para cá e para lá. Uma multidão anónima e ele, anónimo, deixando-se arrastar num flamante passeio de conceção. Gostava de sair ao acaso, sem pisar as pedras húmidas da calçada. Então, soltava-se o pensamento até aos níveis superiores, bem longe das leis opressoras, à procura da mulher única. Uma luta incessante. Desesperada. Sem nunca a encontrar.


Ficou a ler as palavras que acabara de escrever e concluiu que não lhe restava mais nada senão mergulhar outra vez nas folhas e esperar por um novo interlúdio.
Por volta das onze chegou o tempo de beber um Vigor frio, com pouco açúcar. Tinha um sabor especial àquela hora.
Ganhou novo alento. De novo as fórmulas, as revisões na sebenta, a repetição em sussurro.

«E aquele ali és tu. Escreve numa sebenta. Não tenhas receio. Ele não pode ver-te.»
«Bem sei, Alexandra. No dia em que te conheci, se bem me lembro, intercetei a mulher de vermelho. E mais: descobri finalmente o mistério que tanto me perturbou.»
«É verdade. Essa mulher vestida de vermelho era a minha tia Germina.»
«Olha, lá está o pobre homem a rir descontroladamente.»
«E de repente ficou sério. De facto tem o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, a palma da mão debaixo do queixo e o indicador colado à face. Em que pensa?»
«Conta-me o que fazias, além de estudar, nesta noite ou noutra. Decerto vieste muitas vezes para este café.»
Atingiu o objetivo da pergunta de Alexandra. Não, não havia qualquer "rabo de saias". O café era praticamente frequentado por homens. Além do mais, nessa altura andava preocupado com uma frequência de Química Inorgânica. As férias do Natal já lá iam e fizera entretanto a frequência de má memória de Matemáticas Gerais. Uns décimos abaixo de oito foi o resultado. E tanto que tinha estudado! Agora precisava de uma boa nota para levantar a moral. Daí concentrar-se no estudo das folhas e escrever frases na sebenta para fixar melhor. E fórmulas químicas de estrutura, um dos seus pontos fortes.
«Está bem, não havia mulheres. Mas escrevias poemas. Até agora pensava que eram do António.»
«As prosas, sim. Mas como sabes dos poemas?»
«Sei.»
Aconteceu então que se levantou e dirigiu-se para a mesa onde estava Mário. Viu-a sentar-se ao lado de um Mário rejuvenescido e debruçou-se sobre a mesa. Este não viu que ela acabava de retirar uma folha solta. Pouco depois voltou.
«Idealismo. É um poema. Lembras-te desta noite?»
«O meu poema! Foi uma noite igual a outras tantas. Devo ter tido um momento de inspiração e surgiu o "Idealismo". Acho que foi publicado num jornal da Figueira da Foz. Quanto ao resto, só pensava em tirar uma boa nota a Química Inorgânica. Mas devolve-o, antes que ele dê pela sua falta.»
«Fica descansado. É para já.»
Levantou-se e voltou a dirigir-se à mesa onde estava o homónimo de Mário. Segundos depois estava outra vez com Mário.
«Pronto. Assunto resolvido. Nada de interferências, como se impõe nestas circunstâncias. Há uma coisa que me preocupa. O António não publica em livro as tuas histórias, porquê? Até podias financiá-lo. Dinheiro não te falta.»
«Já lhe falei nisso. Respondeu-me que queria ser descoberto.»
«Desta forma, quando as galinhas tiverem dentes? Ou alguém, num país distante, a apropriar-se da sua obra. Por exemplo, nos Estados Unidos. Pode acontecer...»
«Ele lá tem a sua crença. Quanto à folha do poema, estou mais descansado.»
«Uma tal professora Branca era a catedrática de Química Inorgânica.»
«Como sabes, Alexandra? És muito nova!»
«O António contou-me.»
Seria?
«Sou assim tão importante para saberes do meu passado?» pensou. «Branca trabalhou com madame Curie. Era uma cientista de renome, mas as suas aulas teóricas pecavam por falta de qualidade no que dizia respeito aos meios usados. Diga-se, em boa verdade, que à época eram escassos os recursos ao dispor de um professor. Imagina-te sentada num dos muitos lugares de um anfiteatro, lá bem no cimo à espera da chegada da professora. E que vês em baixo? Um minúsculo quadro negro cheio de fórmulas e frases. Entretanto chega a professora e não tiveste tempo para passar tudo o que está escrito no quadro. Sem mais delongas começa a sua oração de sapiência. Tentas escrever o que ela diz ou o que o ponteiro sugere? Uma grande confusão, acredita. Mesmo que tu e mais dois colegas se organizem para cada um passar o que ficou combinado, mesmo assim aparecem lacunas e não fica obra.»
«Muito complicado.»
«Era assim nesses tempos. Felizmente que apareceram as folhas com a matéria e acabou-se o pesadelo. Tive um catorze na prova escrita.»
«Bem bom. E depois?»
«Depois, fui receber a nota. Catorze valores. A própria professora Branca perguntou-me se estava satisfeito. Fazia parte da tradição.»
«E tu, que respondeste?»
«Disse que sim, claro.»
«Podias ter subido a nota.»
«Era um nabo nas orais.»
«Nabo?»
«Por uma questão nervosa que não conseguia evitar, descia sempre a nota. E a alcunha que me puseram na Escola Secundário, calcula qual foi?»
«Diz.»
«O homem tranquilo. As alcunhas eram tiradas de nomes de filmes.»
Alexandra admitiu que estava a conhecer muita coisa sobre Mário naquela noite. Mas queria saber o que o preocupava. Desconfiava que não era nada relacionado com aquele café que já não existia. 
«Diz-me a verdade, Mário. O que é que te preocupa?» 
«Vim aqui só para matar saudades...»
E começou a contar-lhe a odisseia passada no Egito dos faraós.» 

«Fantástico, Mário! Mas cometeste um erro. A tua amada Nétis não devia ter vindo contigo. Não podes ir ao passado matar o teu avô. Se assim for, nunca nascerás!»
«Bem sei. Mas explica-me como num desses passados a Nétis morre e no outro sobrevive. Ou como Hatshepsut é decapitada e acontece que foi encontrada a sua múmia intacta.»


Alexandra não replicou. Talvez lhe faltassem argumentos.
«Dizes que a Nétis veio contigo. Mas porque desapareceu de repente?»
«Se soubesse! Tinha preparado uma surpresa para os meus amigos e acabei por ficar mal visto. Não sei se te sondaram a esse respeito.»
«Cheguei ontem. Pouco falámos. Que queres fazer agora? Se aconteceu mesmo a sua vinda é difícil agora adivinhar onde está.»
«Concordo contigo.»
«Deixa-me continuar o raciocínio. Da primeira vez o teu corpo foi trespassado pela espada do filho bastardo de Tutmósis II, o sobrinho, enteado, etc, que Hatshepsut manobrou a seu belo prazer. Foi ela quem governou e bem, diga-se. Depois aconteceu toda aquela cena estranha que culminou com a tua presença no tribunal de Osíris.»
«A tua memória é fabulosa! Parece que tens no cérebro uma base de dados de memória infinita.»
«Mário, o cérebro humano esconde um segredo insondável. Não há qualquer computador que se compare. E não sei o que acontecerá se o cérebro for ativado em mais cinco por cento nas suas partes adormecidas.»
«A propósito, tens mais uns tantos por cento?»
«Não sejas visionário. Mas adiante. Passemos então à segunda opção que eu contesto. Aí salvou-se a tua Nétis, mas a rainha foi decapitada e vocês fugiram para o futuro. Só que há um contra, conforme já se sabe.»
«Sim.»
«Foi a última viagem no tempo que fizeste. O amor roubou-te todos os poderes, penso eu. E é por isso que estamos aqui os dois no café Chiado de ontem, a saborear um delicioso café Sical e a comer um daqueles queques tanto do teu agrado. Mentira, porém. Não há café nem queques. Nada, mesmo nada, para ninguém. Mas tens mesmo a certeza que a segunda viagem existiu?»
Mário tamborilou com os dedos na mesa, tal como fazia no snack. Mas não havia chávenas vazias, nem um copo rodopiando, nem, lá fora, gaivotas em voo picado para a rebentação das ondas, à procura do peixe que se aventurou mais. Nem Patrícia, a mulher que se cansou dele. A realidade era outra. Bem diferente. Tinha Alexandra na sua frente, à espera de uma resposta. 
«Agora não sei. Fiquei com muitas dúvidas. Por isso peço a tua ajuda. Achas que não devemos modificar algo ocorrido no passado?»
«Exato, Mário. Mas escuta, se é que temos hipótese de ficar aqui mais algum tempo. Olha, o desgraçado do riso convulsivo levantou-se. É sinal que o café vai fechar.»
«Não vai acontecer ainda. O nosso homem encaminha-se para a casa de banho e vai verter águas.»
«Verter águas? Ah sim. Compreendo.»
«E tens razão. O relógio de parede marca vinte e três e quinze.»
«Sim.»
«Já mataste saudades. Regressamos?»
«Acho bem.»
«E, se não te importas, vamos a tua casa. Pode ser que se encontre um vestígio da presença da Nétis. Duas pessoas veem melhor que uma.»
«E o sexto sentido de uma mulher é mais apurado que o de um homem, não achas, Alexandra?»
«Penso que sim. Já conversámos tudo o que tínhamos a conversar. E também mataste saudades. Nessa cabeça tonta fervilham muitas recordações que estão para além destas quatro paredes.»
«Disseste... cabeça tonta?»
«Não ligues» disse, passando levemente uma mão pela cabeça de Mário. «É a minha forma ternurenta de dizer que gosto de ti.»
«Sim?»
Achou que era o momento de pegar-lhe na mão.
«Gosto de ti como amigo.»
«Ah!»
«Mas continua a agarrar-me a mão porque estamos de partida.»
Adeus, Café Chiado. E estuda muito, Mário, para a professora Branca compensar o teu esforço com uma boa nota.» 
Logo a seguir, como que por encanto, a escuridão envolveu-os e foram devolvidos ao seu tempo.

O anel
«Que queres fazer agora, Mário?»
Olhou-a com intensidade tal que Alexandra, perturbada, baixou o olhar, tentando resistir ao que estava a vir sem aviso.
«Desculpa. Não fiz de propósito. És muito bonita!»
«Estás desculpado. E confesso que até gostei. Mas temos mais coisas a tratar. Por exemplo…»
Estavam na sua casa das mil e uma surpresas.
«O António e a Mónica não acreditam nesta segunda versão em que enfrentei Tutmósis e acham que a minha sanidade mental desceu muitos pontos. Eu próprio começo a duvidar que Nétis esteve nesta casa e que foi comigo fazer aquelas compras que mencionei. Não há um único vestígio aqui. Achas que se trata de alucinação? Sê franca. Não me zango.»
«Quem está de fora tem normalmente uma leitura diferente. Quero acreditar em ti. Creio mesmo que estás a ser sincero. Mas de facto, segundo dizes, não há um único vestígio na casa da presença viva de Nétis.»
«Mas foi tudo tão real! E desta vez nem sequer trouxe uma simples recordação.»
Alexandra levantou um braço, excitada.
«E o anel que lhe ofereceste?»
«Não há nele outras impressões digitais além das minhas. Nem por toda a casa.»
Ficaram por momentos em silêncio. Cada vez mais a irrealidade da segunda ida de Mário à XVIII dinastia do Antigo Egito era coisa inquestionável. 
«Mostras-me o anel?»
Já na posse do anel, soltou de imediato uma exclamação. 
«Tem uma gravação!» 
«Não me lembro. E o que diz?» 
«Deixa ver... "Para a Nétis, com amor".» 
«Como não me lembrei? E ela disse que nunca o tiraria do dedo. Mas fui dar com ele dentro do estojo.» 
Ficámos a olhar um para o outro. 
«Sei que a casa foi passada a pente fino, mas posso dar uma vista de olhos?»
«Até agradeço.»
«Prometo ser discreta.»
Mário sentiu a pressão suave dos dedos de Alexandra e sobressaltou-se.
«Que se passa, Mário?»
«Olha para mim!»
«Mas...»
«És tu!»
«Estás bem?»
«Confesso que não. Por momentos julguei ver outra pessoa. Passei-me.»
«Estás mesmo bem?»
«Agora sei que tens poderes mediúnicos.» 
«E isso é mau?» 

A inspeção feita pela Alexandra não teve qualquer resultado positivo.
«Já sete horas!»
«Tens algum compromisso urgente, Alexandra?»
«Achas que sim?»
«Quem sou eu para saber?»
«Pois.»
Hesitou, mas acabou por ir em frente.
«Posso convidar-te para jantar aqui? É informal. Uma coisa simples. Bifes com molho cervejeiro, puré de batata instantâneo e está feito. Que dizes?»
«Aceito.»
«Ah!, fruta e um bom vinho.»
«Aí vou estar atenta, pois não suporto muito bem o álcool.»
«Ótimo.»
«Ótimo?»
«Assim, bebo por mim e por ti.»
«Está melhor.»
Admitiu que era um sinal de esperança e não escondeu. Mas teve que recuar ante a pergunta da amiga.
«E a Nétis?»
«Começo a acreditar que está morta porque não existiu a segunda versão de uma Hatshepsut decapitada. Dá-me só um tempo para entrar de todo em mim.»
Ela fez um gesto de dirigir-se para a sala mais interior.
«Posso ver a tua coleção de selos? O António disse-me que é fora de série.»
«Talvez seja. Comecei em miúdo com uma dúzia de selos estrangeiros estragados que um certo coronel reformado me deu. Uma grande sacanice do velho.»
«Também sei disso.»
«Mas não sabes da última aquisição que fiz. Uma tira de três selos novos de cem réis de D. Maria II. Todos impecáveis, com margens de luxo e com goma genuína. Tenho um certificado passado por um técnico idóneo. Depois há a coleção de Santo António com selos novos e gomados e sem sinal de charneira. Segundo o autor do catálogo, pessoa muito conceituada no meio filatélico, só se conhecem selos regomados desta coleção.» 
«Disseste regomados?» 
«Sim. Sem a goma original. Vem comigo.»
Obedeceu.
«Mas tu és um homem de paixões!»
«Como assim?»
«Atenção. Estou só a falar da tua paixão pelos selos.»
«Ah...»
Colocou o álbum sobre uma mesa e encostou ao de leve o corpo ao de Alexandra.»
«Cuidado, amigo!»
«Desculpa.»
«Estava só a brincar.»
«Olha, podes ver tudo, mas quero mostrar-te primeiro os selos de D. Maria.»
«Estou ansiosa.» 
«Oh!»
«Que aconteceu?»
Sobre o frontispício estava uma folha branca com carateres esquisitos desenhados com marcador preto.
«Parecem carateres hieroglíficos.»
«E são.»
«Sabes lê-los, Mário?»
«Sim. Deixa-me ver. Mas quem foi que pôs aqui esta folha?»
«Achas que sei? A folha deve ter impressão digitais!»
«Vou buscar umas luvas.»
Pouco depois...
«Que diz?»
«Adeus, meu amor. Tua Nétis...»
«Apenas isso? Porque não levou o anel consigo?»
«Só ela podia dizer.» 
«Tens razão, Mário.» 
«Só tu me podes ajudar...» 
«Como assim?» 
«A ida ao café Chiado comprova-o.» 
«Queres então...?» 
«Sim. Fazes isso por mim?»

Mais tarde foi analisada a folha. Foram encontradas impressões digitais de uma só pessoa. E não eram de Mário. Contudo, daí a serem da dedicada princesa da Núbia à sua Senhora das Duas Terras ia um salto no desconhecido. Um grande salto.
Mário nunca conseguiu explicar aos seus amigos e a si próprio o mistério dos carateres hieroglíficos gravados naquela folha de papel. Se foi Nétis quem escreveu a mensagem de despedida, se foi ele próprio num ato inconsciente. Depois havia a gravação no anel.
Porque foi que partiu, se o amava tanto?
Partiu mesmo, ou ainda hoje anda perdida entre a multidão que viaja no tempo?
Quanto ao futuro de Alexandra na vida de Mário… que sera sera! 

(1) Até amanhã, utopia        

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