Um dia aventurou-se mais um pouco e teve uma experiência traumática quando espreitou lá para baixo, onde era o corredor que comunicava com a rua, e viu um monstro cabeçudo a espreitar pelo portão, para dentro, na sua direção. Apanhou um susto tremendo e não mais quis comer a sopa na varanda. Disseram-lhe que era o papão, figura abstrata que perturbou aquela criança de apenas quatro anos. Melhor teria sido explicarem que a figura grotesca que viu não passava de um inofensivo cabeçudo que passava no momento junto ao portão e espreitou sabe-se lá porquê. Certamente que era Carnaval e talvez domingo, o primeiro dia, porque o Marinho ainda não tinha interiorizado tais figuras de forma a não as identificar com o medo, uma emoção muito negativa na sua tenra idade.
Antes deste incidente gostava de almoçar na varanda e a mãe fazia-lhe a vontade quando o tempo estava bom. Mas tinha sempre que haver uma história pelo meio, senão fazia birra, teimando em manter a boca fechada. A mãe desesperava, o berreiro ecoava pelas traseiras do prédio e vinham as vizinhas do lado tentar convencê-lo a comer.
«Já sei o queres, Marinho. Hoje vou contar-te a história da bruxa do bosque. Uma bruxa ruim. Mas tens que comer o peixinho todo, está bem?»
«Sim, eu como...»
«Então, vá... A Laurinda dá-te a comida e eu vou contando a história. Hoje é uma história de que vais gostar muito.»
«Tem que ser da bruxa!»
«Posso começar?»
«Sim. Conta lá...»
«Era uma vez uma bruxa muito feia, como todas as bruxas, que morava numa casa escondida num bosque onde a luz do sol nunca entrava. E isso não era bom. A própria luz não se atrevia a entrar naquele antro. A bruxa do bosque era uma criatura tão feia, tão feia que até metia medo ao susto.»
«Não entendo. Começaste com a história da bruxa e já estás a falar no susto. Quem é esse tal susto, Alcina?»
«Deixa... Pode ser o homem do saco. Já ouviste falar dele.»
«O Zé Grulha. Anda na rua com um saco muito grande para levar consigo todos os meninos que se portam mal e eu assusto-me muito quando o vejo. Agora já sei para onde os leva. Para o tal bosque.»
«Pois. Mas abre lá essa boca para entrar o “avião” da Laurinda carregado de peixe e batata. Isso. A bruxa só tinha dois dentes na boca. À frente. Um em baixo e outro em cima. A falta dos outros dentes fazia com que a sua voz fosse medonha, cavernosa, como se viesse de muito longe imitando o sibilar do vento em tempo de tempestade.
Quanto ao queixo era muito saliente e curvo, semeado de pelos. Os cabelos, compridos e sempre despenteados. Os olhos, esses eram muito pequeninos, como os teus quando já estás à espera do “João Pestana”. Era mesmo feia, essa bruxa. E malvada. Não lavava as orelhas para já não falar nos dois dentes muito escuros e no banho, que nunca tomava. Tu lavas-te e tomas banho sempre, não é, Marinho?»
«E também as mãos. O pai diz que as mãos devem ser lavadas muitas vezes ao dia e que não se gastam por causa disso.»
«Muito bem.»
«Têm muitos bichinhos pequeninos, tão pequeninos que não se veem. E são muito maus. Só não entendo uma coisa. Se eles não se veem como é que o pai sabe...?» «Ora, se o diz é porque sabe.»
«Bem, continua.»
«Menino bonito. Estás a comer muito bem. Ora vamos lá... a bruxa do bosque tinha muita inveja de uma bela princesa que vivia num castelo altaneiro, rodeado de casebres onde moravam camponeses pobrezinhos que o rei protegia quando a seca ou o fogo destruíam as suas culturas. Havia no castelo duas coisas muito importantes: uma cisterna enorme sempre cheia de água, alimentada por uma nascente mágica e um celeiro também enorme abastecido de trigo. Coisas boas da fada-madrinha. Um simples gesto com a varinha de condão e logo o celeiro ficava cheio de trigo. Portanto, o pão nunca faltava.»
«Ai! Picaste-me com o garfo, Laurinda. Mas afinal o celeiro tinha lá dentro trigo ou pão?»
«Pão no celeiro, Marinho? O trigo é levado para o moinho e os seus grãos são moídos até ficarem num pó fino que se chama farinha. E é da farinha que se faz o pão.»
A criança enfadou-se.
«Deixa-te de rodeios. E o resto da história?»
A Alcina olhou para a irmã, pasmada.
«Onde ouviste dizer essa palavra, Marinho?!...»
«Ora... foi o tio Sadio que disse para a tia Clarinha: "... deixa-te de rodeios e diz lá o que é o almoço."»
«Ah!, mesmo assim...»
«Então a história?»
Voltou a olhar para a Laurinda e encolheu os ombros.
«Nas despensas havia de tudo o que era bom para comer. Ficavam junto à grande cozinha onde trabalhava a cozinheira-chefe e as suas ajudantes.»
«Mas a cozinheira fazia comida para toda essa gente?»
«Claro que não. Só para o rei, para a princesa e para os residentes no castelo. E também para os convidados, na ocasião de grandes festas. A comida dos súbditos, essa era pobrezinha. Mas nunca passavam fome, compreendes?»
«E a rainha? Ainda não falaste nela! Se há um rei tem que haver uma rainha, não é?»
«Olha, infelizmente a rainha morreu quando deu à luz a princesa.»
Marinho abanou a cabeça.
«Coitadinha da princesa que já não tinha mãe!»
«Pois. Mas a princesa tinha uma ama que cuidou muito bem dela desde pequenina, tratando-a como se ela fosse uma filha sua. E foi sempre acarinhada pela sua fada-madrinha.»
«Ah! Também queria ter uma fada-madrinha...»
Marinho levantou o indicador.
«Lembraste-te de alguma coisa?»
«A princesa brincava com os outros meninos pobres que viviam fora do castelo?»
Alcina acariciou os cabelos fartos da criança.
«Claro que brincava com os outros meninos e meninas.»
«Que bom!»
«Entretanto cresceu e fez-se uma mulher muito bonita.»
«Eu também vou crescer até ser um homem, não vou, Alcina?»
«Sim, meu querido. Para ela ser feliz só faltava encontrar o príncipe com que sonhava. Até podia não ser um príncipe. Um homem bom, bonito e valente para a proteger e que gostasse muito dela.»
«O Sérgio é muito valente, Alcina! Anda sempre à tareia com os outros rapazes. Tenho a certeza que a princesa vai gostar muito dele quando o vir...»
«Sim, até podia ser o Sérgio, mas ele ainda é muito novo para casar com a princesa. Além disso esta história passou-se há muito tempo, sabes? E também muito longe daqui. Ora a nossa bruxa...»
«Tens uma bruxa? Mas nunca a vi. Conseguiste transformá-la num gato amestrado? Há tantos gatos na tua casa!»
Uma doçura, a sua ingenuidade. Tinha um sonho. Dominar os gatos da dona Francisca que era a mãe do seu amigo Sérgio, da Alcina e da Laurinda. Chamá-los a si. Depois, fazer-lhes muitas festas até os convencer que podiam confiar nele. E ainda depois, atirá-los da varanda abaixo, imaginando que ia fazer deles planadores hábeis, ou coisa parecida que estivesse na sua mente.
«Que ideia, Marinho! Sabes o que é que ela gostava de fazer?»
«De bater nos meninos que se portavam mal, está-se mesmo a ver, não está?»
«Para que saibas, as bruxas só batem nos meninos que se portam bem. Aos maus dão rebuçados para os terem do seu lado e assim eles fazerem mais maldades.»
«Então vou portar-me mal.»
«Porquê?»
«Porque gosto muito de rebuçados.»
«Ah sim.»
Os olhos castanhos da criança cresceram a bem crescer.
«Nem penses nisso. Acredita que esses tais rebuçados têm uma magia terrível e fazem os meninos ainda mais ruins e assim ninguém gosta deles.»
Mário ficou baralhado. Os rebuçados eram doces e sentia-se deliciado enquanto os chupava. Mas aqueles... Bom, o melhor era dizer que sim com a cabeça e fazer de conta que tinha percebido.
«Que foi, Marinho?»
A Alcina percebia o que ele estava a pensar. Tal qual como o seu amigo Ernesto.
«Nada. E depois?»
«Olha, Marinho, lembra-te que isto é uma história. São coisas que eu e a Laurinda contamos. Estão só nas nossas cabeças e as histórias acontecem como nós queremos que aconteçam, percebes?»
«Já sei, escusas de dizer mais. É a mesma coisa que diz o Ernesto. Mas gostava muito de saber o que está dentro da tua cabeça. Às vezes ele diz que sou uma cabeça de vento. Se pudesse soltar o vento cá para fora, ficava melhor não ficava?»
«O quê?!...»
«É que descobriste que eu não tinha percebido nada do caso dos rebuçados mágicos. Conseguiste ver o que estava dentro da minha cabeça de vento. Acontece sempre o mesmo com o Ernesto.»
«Quem é esse Ernesto?»
«Um amigo. Aparece sempre que o chamo e conversa muito comigo à noite. Um dia chamo-o para conhecer-te e também à Laurinda. Quando a mãe apaga a luz e vai arrumar a cozinha, eu fico a olhar para o teto para ver se há moscas grandes ou aranhas. Está muito escuro e tenho medo. Às vezes, o “João Pestana” chega. Mas quando demora, fico com muito medo e a ver mais moscas e aranhas. Muito grandes! Então chamo por ele e aparece logo. O Ernesto é um grande amigo. Como o Sérgio, percebes?»
Olharam uma para a outra, perplexas. Aquela criança saía-se com cada uma!
«Dá-me mais batata e peixe, Laurinda. Não estejas a olhar para mim com essa cara de parva!»
«Está bem, Marinho. Mas vê lá não te engasgues.»
«Julgas que tenho dois anos? Então espera... Se estou muito tempo a olhar para o teto, ele aparece logo.»
«Pois, o “João Pestana”» disse a Laurinda, levando a colher com a batata esmagada e o peixe à boca da criança. Mas ficou a meio do gesto. «Que foi?»
«Qual “João Pestana”, qual carapuça! Também és como o meu tio Sadio que só sabe perguntar-me se gosto mais de “carrnuça” ou de ir à missa. O meu pai diz que ele carrega nos erres. Não percebe nada do que se diz porque está sempre na lua e responde tudo ao contrário. Às vezes até adormece à mesa.»
«Ah!, o teu tio não gosta de missas...»
Marinho confirmou com um aceno de cabeça.
«Sabes que devemos ir à igreja?»
A Alcina estava horrorizada com as influências negativas daquele tio herege no Marinho.
«Porquê?»
Levou as mãos à testa, procurando uma explicação para uma criança como o Marinho. Não encontrou, claro.
«Olha, é que Jesus não gosta dos meninos que não vão à igreja.»
«O Jesus! Sempre o Jesus! É mais chatinho que o Ernesto. Deve estar sempre a ralhar porque não gosta disto, não gosta daquilo, não se pode fazer assim, não se pode fazer assado. Ao menos, o Ernesto não me ralha e conta histórias muito bonitas. Fala baixinho, quase ao ouvido, mas oiço-as muito bem. Se vocês falarem como ele fala, não oiço nada.»
«Então... esse teu amigo...»
«Então, o quê?»
«Esse teu amigo, como é?»
«Não sei. Nunca o vi porque o quarto está sempre às escuras quando ele chega.»
«Agora és tu que estás a contar-me uma história muito misteriosa, Marinho, contador de histórias. E tens muito jeito, sabes? Um dia, quando fores crescido, serás tu a contá-las, acredita.»
«Gostava de ver o Ernesto. Pode ser que ele seja o príncipe que a princesa procura, não acham?»
A Alcina achou por bem voltar à história.
«Ora acontece que a tal bruxa há muito magicava numa grande maldade a fazer à bela princesa que tanto invejava. E aquele era o dia ideal para ela consumar o encantamento pois que a fada-madrinha estava ausente em mais uma missão de bondade. Então, dito e feito. Começou a preparar uma mistela mágica.»
«O que é uma mistela?»
«Uma coisa horrível, com tão mau sabor que não se consegue comer.»
«Uma sopa de cozido?»
Detestava. Batia o pé, fazia trinta por uma linha e acabava por ter que comer a sopa. A tática resultou só a princípio. O pai começou a mostrar-lhe o cinto e foi remédio santo. O gesto era tudo.
«Pior ainda. Nem se compara. Ela tinha um caldeirão muito escuro sobre o lume. E ia mexendo, sem parar. Já pusera água barrenta, vários produtos escuros e ervas muito, mesmo muito azedas. Depois, agarrou num punhado de pó de enxofre e lançou tudo sobre o caldeirão, continuando a mexer bem.»
Marinho ignorou os produtos escuros e o pó de enxofre.
«Gosto muito de azedas!»
«Pois, mas não eram essas azedas que conheces. Eram outras ervas que faziam muitas dores de barriga. A seguir, mexia, mexia e voltava a mexer, mostrando sempre um sorriso maldoso para as paredes enegrecidas.»
«Para as paredes?»
«Vivia só.»
«Ah...»
«Foi então que pegou num frasco de conta-gotas e deitou no caldeirão uma, duas... cinco gotas...»
«Não sabes contar?»
«Claro que sei. Foi só para não perder mais tempo. Vê lá se fossem mil gotas, o tempo que demorava a contá-las! Entretanto já tinhas adormecido. Mas, continuando...»
«Mil é muito, não é?»
«É, sim, mas há números maiores, sempre maiores. Um milhão, um bilião. Um dia vais aprender que podes estar uma vida inteira a contar e nunca consegues chegar ao fim. A seguir a um número vem sempre outro.»
Marinho acenou com a cabeça, dando a entender à amiga que tinha compreendido. Ou melhor: fez de conta.
«Depois de deitar as gotas começou a sair do caldeirão um rolo de fumo negro. Quando o fumo desapareceu considerou que a mistela mágica já estava pronta.»
«E provou?»
«Claro que não. Como a bruxa era muito má, conforme disse ela vivia sozinha naquela casa medonha que ninguém se atrevia a visitar. Ou melhor: vivia com um abutre.»
«Um abutre? É muito feio e mau. Até está certo ela viver com o abutre. Os maus dão-se bem com os maus, não é, Alcina?»
«Tens razão. Mas onde aprendeste isso? E já viste um abutre?»
«Deixa... Disse-me o Ernesto.»
«Sim... esse teu amigo. A bruxa queria vingar-se da princesa que era muito boazinha e, claro, bem mais bonita que ela. E o que é que a bruxa má ia fazer? Olha, vais comer a banana sozinho. Já está descascada.»
«Uhm... gosto muito de bananas!»
«Já sei que és o papa-bananas. Bom, mas o resto da história fica para amanhã. Está na hora do meu almoço e da Laurinda e temos que pôr a mesa, senão a nossa mãe ralha. Combinado?»
Desolado, acenou que sim com a cabeça.
«Olha, tenho uma ideia.»
«Então diz.»
«Podes pedir logo à noite ao Ernesto para acabar a história.»
As duas irmãs sorriram uma para outra.
«Ah!»
«O quê?» perguntou a Laurinda.
«Não é nada.»
Nem uma nem outra se lembrava do resto da história, pensou.
«Está certo. Amanhã contas-nos o resto da história, e muito bem contada. Fica combinado?»
«Sim!»
História interrompida. As amiguinhas iam almoçar e o Marinho tinha que dormir a sesta senão ficava rabugento para o resto do dia. Criança sofria!
Além de tentar atirar os gatos pela varanda abaixo, também era um potencial cantor. Para o ter debaixo de olho, a mãe dava-lhe, às vezes, o funil de alumínio que tanto apreciava. Era um microfone inocentemente improvisado, cujo bico, bastante amolgado pelo bater frequente no sobrado, à procura do ritmo ideal, levava à boca para fazer sair as melodias de sempre e do momento que ele aprendera ou criara e que tanto eram do apreço da embebecida mãe pelo menino-prodígio que era. Mas desde esse dia do papão (ou seria o Zé Grulha do saco?), o seu raio de ação encurtou um pouco. Para o caso também servia. Era ali, junto ao gradeamento e ao portão vermelho que dava para a escada, e esta para o quintal ou patamar superior, que consumava os seus atos criados por uma premeditação inocente e dirigidos para uma intrigante atração-repulsão, influenciada algumas vezes por um inesperado arranhão.
«Pinóquio, vem cá...»
Chamava por um dos gatos, com doçura, esfregando com o dedo médio no polegar, como quem enrolava um “macaco” tirado do nariz. E o Pinóquio vinha sempre, esquecido das consequências habituais.
Os gatos da dona Francisca, além de muitos, eram ainda mais inocentes do que ele e acreditavam no melhor deste mundo que eram as festas no pelo sedoso, no focinho e no lombo, especialmente vindas de uma criança tão meiga e bondosa como o Marinho.
Primeiro, o gato aproximava-se um pouco, ainda a medo.
Déjà vu.
Mas ele sorria com doçura, não desistia e chamava-o de novo, e o gato vinha, de cauda erguida, para receber a festa prometida. Já à distância desejada, e depois das carícias, recebia mais um prémio. O Marinho esticava o bracinho que tropeçava no obstáculo certo e zás, o parvo do animal caía da varanda abaixo. Não era só o Pinóquio. Eram também o Tareco, a Boneca e a Josefina. E ele ficava a olhar, a vê-los fugir pelo quintal fora até ao muro que dava para a quinta do doutor Bandeira, onde se refugiavam por umas boas duas horas, ou então até que a dona Francisca os chamasse.
«Vê lá que o gato pode atingir-te a vista. Fizeste alguma coisa para ele te arranhar. Se a dona Francisca vê, fica muita zangada contigo e não te deixa mais entrar lá em casa.»
Ficava muito sério, parecendo medir as consequências do seu ato. Se fosse verdade, nunca mais comeria aquele delicioso arroz doce que ela tinha lá em casa.
Não sabia explicar. O Tareco era mau. Ele só estava a brincar e de repente arranhou-o.
«O gatinho fugiu. Porquê, mãe?» perguntou, ao mesmo tempo que olhava para o arranhão no braço e para os pelos pretos que tinha entre os deditos.
«Que foi que lhe fizeste, Marinho?»
Mais um sorriso inocente da criança que gostava de gatos, ou de atirar gatos pela varanda abaixo.
«Só sei que o gatinho fugiu...»
«Pois. Fizeste das boas e o gato arranhou-te. Olha lá esse braço. Ora vem cá para casa. Espera na cozinha que vou buscar o álcool.»
«Arde no dói-dói...»
«Não esqueças... se arde, é porque faz bem.»
Aquilo era um castigo e ele não gostava. Tinha que aprender a não ter castigos. Mas ele gostava tanto dos gatos da dona Francisca! Especialmente quando os via planar, num instante, para depois caírem no quintal, como uma pedra, sempre de patas para baixo. Ficava na expectativa de os ver ficar imóveis, mas parecia que eram feitos de borracha. Mal embatiam com as patas no empedrado do quintal escapuliam-se para os fundos e trepavam o muro que dava para a quinta. Se um dia pudesse subir até ao patamar, suportado por duas colunas esguias, talvez que daí os visse cair durante mais tempo, ou então eles fizessem como os pardais e as andorinhas e não caíssem.
E se os convencesse a usarem asas?
Mas as asas dos pardais eram pequenas. Talvez conseguisse convencer o papagaio da dona Francisca a emprestar as suas. Não lhe deviam fazer falta porque estava sempre preso na gaiola. Ele não ia dizer que não. Eram amigos. Falavam muito um com o outro embora as suas respostas não fossem muito certas. Devia ter um parafuso a menos como o Leandro maluco que andava sempre aos saltos na rua. A princípio, olhava-o com receio. Quando viu que ele era inofensivo, até achava graça.
Olhou para o patamar e viu a Josefina estendida no cimento, a gozar os prazeres da exposição ao sol.
«Onde julgas que vais, Marinho? Tu não vês que podes cair lá de cima? Ora vem já para casa!»
Choro convulsivo. Em situação alguma gostava de ser contrariado. Agora que ia pensar melhor na experiência das asas é que a mãe o proibia de subir as escadas até ao patamar. Para a outra vez teria mais cuidado e esperava que a mãe estivesse na zona dos quartos para pôr em ação o seu projeto.
«Vá lá, não chores. Queres o funil? Podes cantar a “Cantiga da rua”, aquela música de que gostas muito.»
Não respondeu. Só deixou de chorar. A mãe deu-lhe o funil e ele atirou-o, de imediato, para o quintal, com ar de muito zangado.
«Agora é que ficas de castigo. Vem cá para dentro. E é para já!»
«O Marinho não sai da varanda.»
«Não sejas burro teimoso. Já te disse que vens cá para dentro e vens mesmo porque quem manda sou eu!»
Resignou-se, antes que o caldo se entornasse mais. De nada valia bater o pé. Entrou na cozinha e ficou a olhar para a mãe. No momento descascava batatas e a sua atenção virou-se para o modo como ela usava a faca. Remédio santo: esqueceu-se logo dos gatos planadores nas alturas e tentou aprender como era a técnica de descascar batatas de uma só vez, sem que a casca se quebrasse. O tio Sadio fazia-o muito bem com as laranjas.
O dia correu de uma forma normal. Jantou à hora do costume e deitou-se também no momento em que a mãe lhe fez a sugestão, depois das habituais “torturas” de escovar os dentes e outras coisas tais. Não ofereceu resistência: ou sentia-se cansado, ou tinha uma fisgada.
Quarto às escuras. Silêncio em casa. Sons de vozes distantes. Os sinais habituais, rotineiros. Naquela noite não existiam sequer os problemas com as moscas grandes e as aranhas peçonhentas que julgava ver andarem no teto. Nada disso. Apenas estava à espera, com ansiedade, que chegasse o momento. Mas o tempo passava e nada acontecia.
Não conseguiu esperar mais.
«Estás aí?»
«Estou sim, Marinho. Julgava que as emoções do dia te tinham cansado a ponto de adormeceres logo. Pelos vistos, não. Sinto que estás muito excitado. É por causa da história da bruxa má que a Alcina te contou, ou da maldade que fizeste ao Tareco?»
«Como sabes se não estiveste na varanda?»
«Ora, sei.»
«Está bem. Olha, fiquei sem saber o que a bruxa fez à princesa.»
«Bem sabes que é apenas uma história. Um dia vais aprender que as histórias têm o fim que os contadores de histórias desejarem. E tu?, queres um final feliz para a história, ou então que a bruxa consiga encantar a princesinha para todo o sempre?»
«Conheces esta história, Ernesto?»
«Não é esse o meu nome, mas está bem.»
«Tu nunca me disseste como te chamavas e eu dei-te este nome. Gostas?, não gostas?»
«Muito. Quanto à história não conheço eu outra coisa. Histórias de princesas encantadas e bruxas ruins, há muitas. Vamos lá então...»
«Sim, vamos!»
«A tal bruxa, que se chamava Tomásia, depois de deitar no caldeirão fumegante as gotas do encantamento, voltou a mexer muito bem a mistela e soltou-se um fumo negro. Faltava só uma coisa: coração moído de sapo.»
«Coração de sapo?!...»
Afinal aquela mistela ainda não estava pronta. A Alcina tinha-se esquecido do mais importante! O resultado final. A transformação.
«Pois, coração de sapo. O feitiço era dado pelos pingos. E a princesa ficava transformada num sapo se bebesse a poção.»
«Breee...! E as ervas, para que serviam?»
«Só para fazer a sopa. Depois de mexer o caldeirão durante mais uma hora, encheu uma pequena marmita com a mistela que tinha preparado.»
«E como é que a princesa ia comer essa porcaria?»
Não respondeu.
«A bruxa agarrou na marmita e pô-la debaixo do braço. De seguida, foi até ao canto da cozinha buscar a vassoura, montou-a, deu um assobio agudo para o abutre e saíram, de imediato, por uma janela que se abriu por magia, num voo estranho em volta da casa do bosque, para logo regressarem.»
«Ah!, Ernesto. Tu contas melhor as histórias que a Alcina.»
«Chiu! É só uma questão de prática. Deixa que continue. Ela tinha-se esquecido de uma coisa. Do chapéu em bico que lhe dava mais poderes especiais. Repetiu-se a situação e desta vez estava tudo certo. Então ela, a vassoura e o abutre ganharam altura de imediato e desapareceram. Estava uma noite sem luar, muito propícia para as suas atividades ruins. Sempre invisível...»
«Invisível? O que é isso?»
«Uma pessoa invisível não é vista por ninguém.»
«Mas está lá...»
Ernesto deve ter esboçado um sorriso no rosto que o Marinho não via.
«Sim. Olha, é como eu. Tu não me vês, pois não?»
«Mas gostava muito de ver-te!»
«Não me vês porque estou invisível.»
«Ah!»
«Sempre invisível, desceu numa zona perto das escadas que davam acesso à cozinha que servia a princesa. Tirou o chapéu em bico e voltou a colocá-lo sobre a cabeça.»
Marinho sentiu o momento de pausa feito de propósito pelo seu amigo.
«Splut!»
«O quê?»
«Foi uma palavra mágica que a bruxa disse. Num instante a bruxa horrenda transformou-se numa serviçal que levava a sopa para a princesa numa terrina de prata. Foi tudo muito rápido. Sabia que não podia perder tempo. Havia também o outro lado da magia, o das fadas e das suas varinhas de condão. A fada-madrinha estava ausente, mas podia ter deixado uma substituta e lá tinha que a enfrentar. A magia negra travava uma luta constante com pureza da magia branca. »
«Não fales assim, que não percebo nada.»
«Mas a tua memória está a guardar tudo isto e, um dia, quando cresceres e te tornares num homem, vais então compreender.»
«E o que fez ela?»
«Transpôs a porta da cozinha, levando consigo a terrina onde estava a sopa para a princesa, e atravessou um longo corredor, entre paredes rasgadas por muitas portas, dum e doutro lado, tentando descobrir qual era a porta do quarto onde devia bater.»
«Para entrar no quarto da princesa. E o que foi feito do abutre?»
«Boa pergunta, Marinho! O abutre ficou num recanto muito escuro a guardar a vassoura. Mas continuemos a seguir a caminhada da bruxa má. Andou, andou pelo corredor até que encontrou os aposentos da princesa. Acho que não vou dizer o que existia no quarto porque não há palavras que descrevam a riqueza dos móveis, a cor dos tapetes, os desenhos da colcha que cobria a cama, o brilho e o feitio das jóias. Bateu ao de leve à porta e pouco depois entrou, com o ar mais humilde deste mundo. A princesa penteava-se ao espelho, com uns gestos lentos e graciosos.»
«Ela era bonita?»
«Um sonho de mulher!»
«Não percebo.»
«Desculpa. Muito bonita.»
«Ah!»
«A princesa viu a serviçal refletida no espelho e disse que não a conhecia. A bruxa feita serviçal coçou a cabeça. Não contava com aquela contrariedade. Mas foi a própria princesa quem lhe colocou na boca as palavras que procurava. Ou melhor: um nome.»
«Estás a substituir a Matilde?»
«Pois... Princesa, trouxe-lhe esta sopinha que vai gostar muito. Está uma delícia. Com muitos vegetais como Vossa Princesa Real gosta, para manter a linha.» Explicou-se a bruxa feita serviçal.
«Deixa ficar em cima da mesa. Como te chamas?»
«Tomásia.» Disse a bruxa feita serviçal.
«A princesa fez uma careta.»
«Não gostou da sopa?» perguntou o Marinho.
«Não gostou foi do nome.»
«Tens um nome muito feio! Vou chamar-te Amélia. Amélia, não. Esperança. Ficas com este nome.»
«A bruxa feita serviçal riu baixinho de escárnio.»
Esperança. Já vais ver o que é perder a esperança...
«E saiu. Logo entrou outra mulher. Trazia um vestido rodado e flores a enfeitarem o cabelo que lhe caía pelos ombros como fios de ouro. Sem saber porquê, a princesa gostou dela logo ao primeiro segundo.»
«Não comas essa sopa horrível, princesa!»
«Porquê? E quem és tu?»
«Sou a fada-substituta.»
«Ah!, que coisa engraçada! Julgava que as fadas só existiam nas histórias que se contam às crianças. Mas que tem a sopa de mal? Cheira muito bem!»
«Aí está. A sopa tem uma magia má para quem a provar. Se não acreditas, chama o cão que está a dormir em cima da cama, todo enroscado.»
«Mas eu não tenho cão!»
«Olha...»
«É verdade! Está um cão na minha cama!
«E tem muita fome. Deita a sopa num prato e dá-lhe de comer. Não percas tempo.»
«Porquê tanta pressa?»
«Ela pode voltar.»
«Ela...?»
«A bruxa que vive no bosque onde até a luz do Sol tem receio de chegar. E eu não tenho poder para a enfrentar. A fada-madrinha está longe. Só ela pode derrotar a bruxa do bosque!»
«Mas as bruxas existem?» perguntou a princesa.
«Existiram sempre e continuarão a existir por todos os tempos. É pura ilusão as pessoas pensarem que elas são apenas fruto da sua imaginação. Seria bom que todos dessem atenção ao que se passa à sua volta.»
«Achas que...?»
«Se não acreditas, prova a sopa que a nova serviçal te trouxe.»
«Mas...»
«Ela era a bruxa disfarçada. Usou a magia do chapéu em bico. Sabes como fez, princesa?»
«Não.»
«Tirou e pôs de novo o chapéu. Depois, disse a palavra "splut".»
«E que aconteceu?»
«Ou se tornava invisível, ou se transformava noutra pessoa.»
«Então transformou-se na serviçal. Pareces ser sincera. E que estranho! O cão acordou e começou a farejar...»
«Foi atraído pelo cheiro da sopa. Esse era o perigo. Não só o cheiro como também o sabor. Olha para o cão. Atirou-se à sopa como se já não comesse há muito, mesmo muito tempo. E...»
«Ah!...»
«O cão já não é um cão.»
«É um sapo horrendo!»
Marinho já não conseguiu resistir ao resto da história da bruxa má. Provavelmente à transformação do sapo num jovem formoso que se apaixonou pela princesa. E ela apaixonou-se pelo jovem. Foram muito felizes e acabou a história.
O “João Pestana” tinha chegado, como de costume, quase no fim da história.
Vendo-o adormecido, Ernesto deslizou para fora do seu mundo invisível, aconchegou a roupa da cama do seu amiguinho e saiu do quarto em bicos dos pés que não tinha, e por uma porta que não existia.
AS "ALMAS" DAS MOSCAS CARBONIZADAS
Dedicava-se com afano a apanhar as moscas em pleno voo. Era tarefa difícil, mas quase nunca falhava.
E depois, que fazer dos pequenos insetos?
Regava-os com álcool, utilizando para o efeito, e às escondidas da mãe, o frasco que descobrira na casa de banho. De seguida, depositava-as numa pequena caixa de cartão que flutuava já em águas calmas imaginárias que, num instante, se tornavam alterosas. Na sua imaginação fértil surgia o barco fantasma que navegava, sem rumo, nas águas da eternidade. O capitão das mil cicatrizes ia ao leme. As barbas hirsutas desciam-lhe pelo peito e o semblante toldava-se.
Tinha pena do capitão e dos seus dedicados marinheiros. Era forçoso trazê-los de regresso.
Fantasmas? Seria possível chamá-los à vida?
Para ele tudo era possível. Bastava desejar. Desejar fortemente. Acendia um fósforo e pegava fogo ao álcool. A chama surgia de imediato, crepitante, devorando, num ápice, as pequenas carcaças revestidas de quitina dos insetos. Sentia-se o senhor absoluto do seu mundo limitado e, ao mesmo tempo, um vingador. Ao queimar os pérfidos insetos, praticava também uma boa ação libertando os espíritos dos caminheiros errantes pelos mares da eternidade. O fogo devorava tudo. A caixa, a própria sede justiceira da criança que, muito séria, não deixava de apreciar o espetáculo que acontecia sua frente. O seu semblante tornava-se agora mais carregado e o cenário mudava, dando lugar ao arrependimento. De repente, caía em si. Não podia ressuscitar fantasmas. Limitara-se a sacrificar seres vivos inocentes, treinando-se para a incerteza de um novo amanhã que o esperava de braços abertos. Um treino perfeito daquela criança que gostava muito de gatos e que, um dia, teve um sonho mau.
Os olhos toldavam-se de lágrimas e tomava a caixa nas mãos. Descia as escadas que davam para o quintal e cavava um buraco na terra. Bem fundo. Talvez para esconder o desprezo por si próprio ao ser tão ruim para as pobres moscas. Talvez sim ou talvez não, pois todos diziam que ele tinha bom fundo. Depois entoava um hino feito de propósito para o momento e disparava os tiros de canhão da praxe. Seguia-se um momento de silêncio. Só então enterrava os pedaços carbonizados das vítimas. Seguia-se o derramar de uma última lágrima de crocodilo e também um último olhar para o local onde tinha sepultado, com todas as honras, os seus mortos que afinal não podiam voltar à vida. Depois subia as escadas. Era tempo. Já ouvia gritos vindos lá de cima, da cozinha. A mãe chamava-o para o almoço. Era tempo de almoçar e de esquecer para poder encarar o resto do dia e continuar a dar largas à sua imaginação fértil. O Zorro. Pois. O herói preferido dos filmes de capa e espada. Gostava de ser como ele. Poder desbaratar os maus com golpes de espada, defender os pobres e oprimidos e, finalmente, enamorar-se, tal como nos filmes, da filha do seu maior inimigo que, por sinal, tinha bons sentimentos.
Mas onde ia ele desencantar uma capa preta e uma espada reluzente como a prata e rija como o aço?
Para facilitar, dispensava a capa. Quanto à espada, era coisa muito fácil de conseguir. Convencia o tio Mourinho, um marceneiro paciente e de alto gabarito, a fazer uma. Em madeira, claro. O tio Mourinho era uma pessoa muito curiosa, a atirar talvez para o controverso. Homem calmo e, ao mesmo tempo, facilmente irritável. Quando as coisas corriam dentro dos parâmetros, tudo bem. Lago de bonança. Mas também já o vira atirar o martelo para o ar e dizer “raios e coriscos” porque falhou o prego e acertou onde não devia. Mar alteroso.
E quem era o inimigo que mais receava?
Talvez o Zé Grulha. Um dos grandes medos ainda existentes no seu imaginário, embora nunca o tivesse visto em carne e osso.
«Olha que se não te portas bem, o Zé Grulha leva-te no saco!»
Assim não valia. Se os inimigos eram imaginários, então não existiam. Verdade, verdadinha. Tinha que encontrar outro inimigo, esse de carne e osso. Talvez o Pedrinho. Roubou-lhe a namorada. Mentira. Não era namorada. Ela é que não o largava. Numa noite de baile no Clube teve que fugir para a casa de banho dos homens, pois já estava farto de a ter pegada a ele, como uma carraça. Aquela sem vergonha fê-lo corar. Os homens estavam a sorrir, em ar de gozo, para os dois.
«Não vês que esta é a casa de banho dos homens e tu não podes estar aqui, Virgínia?»
Sentia-se deveras irritado.
«E que mal faz, meu parvalhão? Anda mas é brincar comigo para as galerias! Está lá o Pedrinho. Se não vens é pior para ti.»
«Isso é que não vou!»
Sentença lida. Não lhe ligou mais e ela cumpriu a promessa. Foi ter com o Pedrinho que passou a ser de imediato o seu namorado.
«Não se deixa de um momento para o outro uma rapariga que gosta de nós, Marinho! Hoje é hoje. Amanhã, quando cresceres, deves ter muito cuidado com as decisões que tomares, pois com um ato impensado podes perder uma grande oportunidade na vida.»
«Por vezes não te percebo, Ernesto!»
«Desculpa. Adiantei-me no tempo.»
Desistiu também de pedir ao tio Mourinho para lhe fazer a espada. E depois, as moscas preocupavam-no. Era melhor voltar depois do almoço para o quintal e ver se alguma mosca tinha ressuscitado.
Aquele menino, que gostava de gatos e fazia funerais piedosos a heróis do seu imaginário, desejou muito e muito que pelo menos uma mosca voltasse a viver. Acreditava que era possível. Só precisava de desejar muito.
Desceu as escadas e dirigiu-se ao local onde enterrara os restos carbonizados das moscas inocentes. Ou melhor: dos marinheiros errantes que queria resgatar. Escavou no terreno e encontrou facilmente a caixa. De seguida abriu-a.
E que viu, depois de revolver a terra?
Mais nada senão terra. Não podia ser! Tinha a certeza que os restos carbonizados das moscas estavam dentro da caixa. E, sendo assim, as almas dos marinheiros ficavam condenadas a errar eternamente naquele mar imenso tornado sólido e subterrâneo.
Naquele fim de tarde, quando o verão se impunha já na máxima força e os morcegos atravessavam o espaço em voos silenciosos, atraídos pelo calor proveniente da luz forte dos candeeiros, traçando voos cíclicos e calculados em segurança porque se desviavam dos obstáculos quando o impacto parecia inevitável, e também os simpáticos pirilampos emitiam fogachos de uma luz intermitente, Marinho (quase Mário) não teve medo dos morcegos repelentes, nem pensou sequer que um único pirilampo representava, na manhã seguinte, dinheiro em caixa. Não entendia o que levava uma escura moeda de tostão a aparecer sempre, miraculosamente, dentro do copo virado com a boca para baixo, colocado sobre a mesa-de-cabeceira, juntamente com o quase invisível pirilampo que já não cagava luz nem se mexia.
Nesse tempo recuado, muito influenciado pelos atos do seu amigo que tanto admirava, ainda não colecionava selos, a sua grande paixão futura e para toda a vida, os tostões mais recentes datavam de mil novecentos e quarenta e seis, ou talvez quarenta e sete, mas valiam o mesmo para ele: moeda de troca por um pacote de papel pardo com rebuçados ou com castanhas piladas, já que nunca achou graça aos mealheiros de barro que se partiam em cacos e cujas moedas existentes no seu interior se destinavam, invariavelmente, para uma peça de vestuário, porque, segundo a mãe, os tempos que então corriam não estavam para fantasias. Uma expectativa vivida, dia a dia, e que se traduzia em nada para uma criança. Vendo bem, nunca satisfazia um desejo que podia ser, por exemplo, convertido em três ou quatro viagens, de cinco tostões cada, no famoso carrossel A Selva, ou numa entrada no teatro dos robertos que tanto o deliciavam e criavam na sua mente em formação novos imaginários que desceriam à praça no momento oportuno. Minimamente era para desencorajar fazer poupanças. Ia-se o mealheiro de barro, iam-se os tostões e começava tudo de novo.
Naquele fim de tarde nem sequer o grilar repetido dos grilos era o seu fito. Aliás, já lá ia o Santo António, bem como os últimos dias de Junho e o fim da feira que era o prenúncio da busca de caricas e de berlindes na zona da várzea onde tinham sido erguidas as tendas de comes e bebes. Nada disso lhe interessava. O julho ia a meio, o calor apertava e ele só pensava nas aventuras emocionantes que o esperavam nesse anoitecer especial em que o Sérgio condescendera em levá-lo consigo às cavalitas, embora já começasse a ficar um pouco pesado. A vista do alto era outra coisa. Sempre tinha a impressão de estar acima de tudo e de todos e de ser um observador seguro, pronto a dar o sinal de alarme ao amigo.
«Olha o Marco... no passeio em frente!»
«Já o vi. Não te excites...»
Pareciam dois galos que se defrontavam à distância.
Coisa grave. O outro tinha chamado um nome ao Sérgio:
«Maricas pé-de-salsa!»
Devia ser coisa má porque o amigo acusou logo o toque. Estavam no cimo da rua, ainda no passeio. Por trás, o gradeamento que limitava a propriedade do doutor Bandeira, homem com fama de ocioso e de boémio, já riscado da lista dos vivos, que nunca dava os bons dias a ninguém pela simples razão de não se levantar da cama antes do meio-dia.
Após a morte, constou que o seu fantasma rondava, vigilante, o gradeamento da quinta.
Mau, Maria!
Com um movimento seco retirou o pequeno amigo dos ombros e depositou-o bruscamente no chão, como se fazia a um fardo.
«Podias ter mais cuidado.» Queixou-se.
Virou-se para o outro e disse, algo agastado:
«Repete lá o que disseste?»
Estava demasiado nervoso para poder confirmar se o agressor das palavras tinha repetido a provocação. Foi tudo muito rápido. Só viu o amigo baixar-se e pegar numa pedra nada pequena que atirou, sem demora, na direção do outro passeio. A pedra seguiu uma trajetória de acaso mas irreversível. Acertar ou não acertar e não havia nada a fazer.
Marinho (quase Mário) pediu aos santinhos para nada de mau acontecer, mas saiu tudo ao contrário. Separava-os mais de cinco metros, o que não foi obstáculo para a pedra acertar em cheio nas têmporas do outro. Uns segundos de expectativa e logo a vítima irrompeu num berreiro convulsivo e numa algaraviada de ofensas a que o Sérgio já não respondeu.
«Meu grande sacana! Vou queixar-me ao meu pai! Vais ver se vou ou não vou...»
«Agora quem é o maricas pé-de-salsa?»
«Partiste a cabeça ao Marco!» exclamou, muito aflito, o Marinho (quase Mário).
O amigo mediu a situação e achou por bem cavar para longe do palco onde a representação acontecia.
«Vamos, vamos...!»
Agarrou-o com força pelo braço e fugiram, sempre junto ao gradeamento e, logo chegados ao cruzamento, cortaram para baixo.
«Voltamos já para casa, Sérgio?» perguntou com voz ofegante, enquanto corriam a bom correr.
«O pai dele é da polícia, Marinho! Temos que nos esconder...»
A situação ficou mais complicada.
«Ah! E onde?»
Não respondeu e levou-o a reboque até ao fundo da rua. De seguida, atravessaram a rua na perpendicular em direção à várzea. A escuridão da noite protegia-os.
«Vamos para o rio. Lá ninguém nos descobre.»
«Eu não sei nadar, Sérgio!»
«Não sejas parvo. O rio não leva água. É verão. Nesta altura está sempre seco. Bem sabes, meu palerma, que não chove há muito tempo.»
Estavam parados a meio da várzea, a ganhar fôlego.
«Mas pode chover de noite. Se nós estamos a dormir, não sabemos se chove, não achas?»
Ninguém lhe tirava da cabeça a ideia de serem apanhados pelas águas. Aliás tinha muito medo da água. Da água em toda a aceção da palavra. Mal se afoitava no mar. Se molhasse uma canela já era para ele um grande feito. De certeza que noutra encarnação fora um flibusteiro que o mar tragou. Ele, o barco e os tesouros saqueados. Se os tesouros não eram para ele, então também não seriam para mais ninguém.
O Sérgio interrompeu-lhe os pensamentos.
«Não és tu quem gosta de levantar-se cedo? E por acaso vês, de manhã, poças de água na rua?»
Contra factos não havia argumentos.
«Já descansaste? Então, ala almoço que se faz tarde.»
Finalmente chegaram à margem do rio. Marinho (quase Mário) espreitou para baixo. Não era fundo. Podia ver o leito do rio. Seco. Conforme afirmara o amigo. Por isso, e por mais nada, é que tinha confiança no Sérgio. Ele era o máximo e podiam ir até ao fim do mundo que não tinha medo. Nunca lhe mentia e era um valentão. Resolvia tudo à pedrada, ao soco e ao pontapé. E escondidos ali, ninguém os via.
«Partiste-lhe a cabeça.» Lembrou.
«Viste o sangue a escorrer pela cabeça dele?»
«Vi muito bem. Não fales nisso que já estou a ficar agoniado!»
«O gajo chateou-me.» Justificou-se o amigo. «Não consegui suster-me, entendes? Fica de exemplo para os outros da sua laia. Vais ver que nunca mais me chamam nomes destes.»
«Aquele nome era muito feio, não era? Ficaste muito zangado!»
Guerreiro de muitas lutas. Herói de muitas vitórias. Brigão ao mais pequeno sinal de provocação. Só não compreendia porque motivo os heróis também fugiam.
Julgava que nunca viravam as costas ao perigo mas a realidade parecia ser outra. Vá lá entender os mais velhos!
Inconscientemente não queria crescer depressa para continuar a ser o eterno mágico da valentia e nunca, nos sonhos acordados, virar as costas ao inimigo.
Mas o tempo corria, implacável. Em breve iria também ter que decidir e sem a presença protetora do seu amigo Sérgio que tanto admirava.
«A estas horas a polícia já anda à minha procura.»
«E também à minha, Sérgio!»
«Tu não fizeste nada.»
Pois não. Mas ia ajudar o amigo e dizer ao polícia que o outro chamou-lhe um nome feio. Muito feio. Não sabia o que queria dizer, mas era muito feio. Bem feito ficar com a cabeça partida!
«E eu estou metido num grande molho de brócolos.»
«O que é isso?»
«Bico calado! Não ouviste um barulho? Vamos lá mais para o fundo. Pelo sim pelo não...»
«Mas não dizes que aqui estamos seguros? Espera por mim. Não vejo nada. E se há água?»
«Tu e a porra da água! Para a outra vez não te trago. Quem me manda a mim...»
Não se lembrava de quantas horas tinham passado desde a chegada ao rio. Naturalmente nem duas horas. Quando voltasse para casa, trabalhava o cinto. Não se livrava duma valente sova. O pai já o tinha ameaçado mais que uma vez, levando a mão ao cinto. Com a mãe era diferente. O chinelo no rabo, ou onde quer que fosse, não passava de uma brincadeira. Era mais a humilhação do que a dor.
«Quando chegarmos a casa vais dizer ao meu pai que não tive culpa, não vais?»
«Fica descansado.»
«És um grande amigo! Quem me dera poder ajudar-te, mas não sei como. Ainda sou pequeno e ainda não tenho músculos nos braços. Olha, mas podia ser mágico: o Mandrake do Mundo de Aventuras. Levantava um braço e logo conseguia hipnotizar o pai do Marco. Ele esquecia-se de tudo e ficava o assunto arrumado.»
«Como conheces as histórias do Mandrake se ainda não aprendeste a ler?»
«Não te lembras que já me contaste uma história aos quadradinhos? Vi os bonecos muitas vezes e já percebo as outras histórias. E sei contá-las. Quando for grande...»
«Quando fores grande...?»
«Deixa. Olha, não achas o Cuto muito novo para dar tiros aos malvados dos japoneses? O meu tio Pedro diz que é muito perigoso para os meninos com a minha idade pegarem em armas. Sei onde guarda a arma de caça. Um dia, quando brincava às escondidas com o meu primo, vi-o trazer a espingarda da arrecadação.»
«Nem te atrevas! Dá antes tiros com a espingarda de madeira que te deu o senhor Ruivo.»
«Essa não dá tiros!»
«Mas dás tu em lugar dela. Se quiseres, acertas sempre. Onde podias encontrar melhor espingarda que nunca falha?»
«Também é bom fingirmos, mas deve ser diferente. Gostava de crescer depressa para ir à caça com o meu tio.»
«Pois. Deve ser muito bom, mas contenta-te em levar uma fisga.»
«Vai servir de muito. O meu tio Pedro não caça pardais, mas sim coelhos e perdizes.»
De repente o Marinho (quase Mário) chegou-se mais ao amigo. Tinha-lhe vindo à cabeça uma lembrança nada agradável.
«Que foi?»
«Há cobras aqui?»
«E lagartos. Acordaram de propósito para te fazerem uma visita. Um deles até tem um discurso feito para ti, como pessoa importante que és. Que achas?»
«Não brinques com coisas sérias, Sérgio!»
«Tenho uma solução ótima, sabes? Se aparecer um lagarto acendo um cigarro e ponho-o a fumar num cagagésimo de segundo. Ou eu não me chame Sérgio.»
«Tu não fumas!»
«Pois não. Nem o lagarto. Mas juro que posso por o bicho a fumar de um momento para o outro. Acreditas?»
Ficou a pensar. Nunca tinha ouvido dizer que era possível pôr um lagarto a fumar. Mas se o amigo dizia, então era verdade. Ele não costumava mentir. Nem tinha ar de quem estava brincando.
«Então como fazes isso?»
«Acende-se um cigarro...»
Marinho (quase Mário) interrompeu-o, ainda não muito convencido. Tinha outro argumento a apresentar, e de peso.
«E se o teu pai vê? Dá-te logo uma sova e obriga-te a vestir o fato de macaco e depois vais trabalhar de novo para a garagem do Pereira. Lembras-te do que aconteceu da outra vez? Não gostaste lá muito. Parece que queres repetir a dose.»
«Isso já são águas passadas.»
«Não percebo essa...»
«Não me lembres o que já lá vai. Mas o meu pai não vê. Tenho um local seguro que fica para os lados do cemitério. Está longe das vistas. A não ser que dês com a língua nos dentes.»
«Podes contar com o meu silêncio. Mas como encontras por aí um lagarto?»
«Claro que não vou para o cemitério pôr-me a assobiar para um lagarto como quem chama por um cão. Nem é aí que encontro os lagartos.»
«Então?»
«No caminho para os túneis há muito campo aberto e pedras sob as quais se escondem os lagartos.»
«Mas chamas por eles?»
Imaginava o Sérgio a gritar:
«Lagarto, lagarto!, vem cá, amigo lagarto...»
«Tu a dares-lhe e a burra a fugir, meu parvo. Os lagartos aparecem à tarde, logo a seguir ao almoço, com a força do calor.»
«Sim.» Concordou. «Depois do almoço vejo muitas lagartixas ao Sol. Elas levantam muito a cabeça, porquê?»
«Fazes cada pergunta! Ora... é para verem mais à distância. Devem levantar a cabeça para estarem mais atentas aos sinais de perigo. Pisgam-se logo quando dão conta de um movimento. Voltando ao assunto do lagarto, ato-o pelo pescoço e depois...»
Marinho (quase Mário) franziu o sobrolho.
«Mas como o apanhas?»
«Ora, apanho-o. Descansa que não te vou explicar o truque. Depois ato um cordel ao pescoço do bicho. Então puxo de um cigarro e acendo-o.»
«Engoles o fumo? E não te engasgas?»
O Sérgio começou a ficar agastado.
«Deixa-te de interrupções que já me estás a chatear a carola. Ele é que engole o fumo, meu grande burro!»
«O quê?!...»
Conta-lhe histórias que ele acredita...
«Muito simples: abro-lhe a boca e meto-lhe dentro o cigarro aceso. Ele engole o fumo, engole, engole sempre. Não desiste porque vicia-se logo à primeira. É uma coisa inexplicável.»
Estava incrédulo. Nunca ouvira falar em coisas tão incríveis como essa.
Por que é que aquele bicho não cuspia fora o cigarro?
Quando mastigava fruta azeda, era logo o que fazia: uma escarreta e caso arrumado.
«E não lhe falta o ar?»
«Pois falta. Acaba por morrer asfixiado.»
«O lagarto é estúpido. Não percebe que vai morrer com falta de ar? Já suspendi muitas vezes a respiração mas desisto logo quando começo a ficar aflito. Até fazemos campeonatos na escola para ver quem aguenta mais.»
«Vocês não deviam fazer essas coisas porque são muito perigosas. Não passam duns inconscientes. Vê se te lembras para sempre das palavras que vou dizer: se queres viver não voltes a fazer o disparate de suspender a respiração. Só se vive uma vez.»
«Então e o estúpido do lagarto? Gosta de fumar e não sabe que o tabaco faz mal à saúde, ou também é um inconsciente?»
O amigo deu uma gargalhada.
«Olha que te ouvem!»
«Claro que os lagartos não pensam, Marinho. Não são animais racionais, como nós. No caso do cigarro fumam até ao fim porque são obrigados a engolir o ar.»
«Já vi uma lagartixa abocanhar uma varejeira que passou na sua frente!»
«Foi só por instinto.»
«O que é isso?»
«Para sobreviver.»
«Sobre...?»
«Se não comer, morre.»
Marinho (quase Mário) concordou.
«Por isso como sempre a sopa. Ou quase sempre. Não gosto lá muito da sopa de cozido por causa das hortaliças. Breee...! Só de pensar fico enjoado. Mas eu sei que posso morrer se não comer. E as lagartixas, não sabem?»
«Claro que não sabem.»
«Fogem mal me aproximo. Como adivinham que lhes quero fazer mal? Dizes que elas não pensam, mas estás errado. Já lhes atirei com pedras e elas transmitiram umas às outras o que queria fazer e é por isso que nunca apanhei uma até hoje.»
«Não se pode falar contigo. És mais teimoso que os asnos, mas esses não têm culpa porque são asnos. Mais tarde vais compreender.»
«Mais tarde... Sempre mais tarde!»
Percebia mais dessas coisas do que o Sérgio pensava. O seu gato entendia-o muito bem. Jogavam os dois com uma bola de pingue-pongue e sem qualquer problema. Punha o Tarzan entre os pés de uma cadeira, depois atirava a bola na direção da cadeira e ele defendia. De madrugada vinha ter à sua cama e acordava-o, com marradinhas suaves. Depois, saltava para cima da cama e metia-se lá dentro, entre os lençóis.
Primeiro, defendia as bolas porque era um grande guarda-redes. Acordava-o de madrugada e ia logo para dentro da cama porque sabia que ali estava no quentinho. Não ia agora o Sérgio dizer que ele não pensava! Pensava e muito. Fugia sempre que a mãe ralhava, sobretudo depois de rapinar um bife de cima da mesa da cozinha. As próprias moscas que queimou já sabiam a sua sorte.
Quem lhes mandou não fugirem?
Aí, tinha ele razão. Não pensaram em sobreviver e depois aconteceu o que aconteceu. Só não entendia por que tinham desaparecido. Tinha revolvido a terra e nem sinal dos seus restos.
Raciocínio certo, o dele. Ao mesmo tempo, limpava-se da sujeira que tinha feito com as moscas.
«Queimaste as moscas, com quê?»
Disparate, pensar em voz alta. Mais esperto era o Tarzan, o seu gato preto e branco, filho da Fanny, que não pensava em voz alta.
«Ora, como é que havia de ser? Com álcool...»
«E onde foste tu arranjar o álcool? Não sabes que ainda não tens idade para lidar com essas coisas que são muito perigosas? Podes queimar-te ou então deitar fogo à casa. E eu a julgar-te mais responsável. Bem me enganei. Vê se cresces, Marinho!»
Ah!, se queria! Tudo tinha o seu tempo.
«Fiz a experiência no quintal. Não aconteceu nada de grave. Ou melhor: aconteceu às moscas que ficaram esturricadas. Até tive pena.»
«Foste cruel!»
«Não ouviste dizer que as moscas podem causar doenças graves às pessoas?»
«Mas não era com essa crueldade. Penso que és ajuizado, mas há dias em que sais fora dos carretos.»
«Tu também foste cruel. Partiste a cabeça ao Marco só porque te chamou um nome feio. Davas-lhe um pero, o assunto ficava logo arrumado e não tínhamos fugido para o rio...»
O amigo desviou a conversa.
«É melhor irmos andando.»
«Para mais longe?»
«Para casa. A estas horas já os polícias voltaram à esquadra.»
«E a tua mãe?»
«Preocupa-te mas é com o que vais dizer em casa. Silêncio absoluto sobre o que aconteceu. Fomos dar uma volta pela vila e depois vimos um cão esfomeado na rua e demos-lhe de comer. Mais nada.»
«Mas não vimos nenhum cão!»
«Fazemos de conta. Fomos à procura de comida. Se as coisas começarem a correr mal e não acreditarem, dizes que te dói muito a cabeça e queres ir para a cama. Percebeste?»
«Sim. E tu?, que vais contar?»
A sua história ia ser outra.
«Tenho que contar tudo o que aconteceu. É inevitável como me chamar Sérgio.»
«O que é isso de inevitável?»
Inevitável. Quando saíram de casa, deviam ter descido a rua em vez de subir. Só assim não teriam encontrado o agressor das palavras, nem acontecia o que aconteceu naquele mau fim de dia para o Sérgio, só por ter acertado em cheio com a pedra na cabeça do Marco como resposta a um insulto deste. O Marinho (quase Mário) bem tentou desviar a pedra da sua trajetória fatal, mas o seu poder mental não funcionou. A palavra "inevitável" dizia tudo. Foi o seu primeiro encontro a sério com os meandros do destino, embora ainda não soubesse o que ele era e todo o mal ou bem que viria logo a seguir a um encontro fortuito como aquele que tiveram...
Andou ansioso no dia da apresentação que só veio a verificar-se quando o nervosismo começava a atingir o clímax. Não sabia o que o esperava e a dúvida funcionava como se fosse “um bicho-de-sete-cabeças” que tinha de enfrentar. As coisas não aconteciam logo como com uma bola chutada para a baliza num jogo de futebol: ou era golo, ou o guarda-redes defendia, ou a bola batia na trave ou num dos postes, ou ia para fora. Naquele caso estava numa situação muito diferente, de tortura, ansioso por saber o que ia encontrar quando entrasse com a mãe na escola da mestra.
Fim de tarde. Marinho (quase Mário) entrou com a mãe numa sala com uma mesa muito grande, a meio. Olhou, olhou. Ficou indeciso. Viu muitos rapazes sentados, viu a mestra e o seu sorriso rasgado, não viu solução para ele.
«Onde me sento, mãe?»
Naquele momento o poder ainda estava centrado na mãe. De facto tinha razão em fazer a pergunta. Não via uma cadeira disponível para se sentar.
«Como te chamas, meu menino?»
«A filha de uma magana a tratar-me por menino!»
«Deixa-te de comentários e está mas é atento. Vais começar a dar os passos mais importantes da tua vida...»
«Mas ainda agora cheguei, Ernesto!»
Olhou para a mãe e hesitou antes de responder. Lembrou-se da recomendação feita em casa.
«Mário.»
Marinho (quase Mário) chegava ao fim de um ciclo.
A mestra baixou-se e puxou de um banco que estava debaixo da mesa.
«Não viste o coelho porque estava dentro da cartola, Mário. Numa mesa, grande como esta, há sempre lugar para mais um. Não te esqueças.»
«E tu não me avisaste!»
A expectativa foi ultrapassada. Gostou mesmo de verdade da nova experiência. Adaptou-se bem a escrever com a pena a sequência de números na ardósia com caixilho de madeira.
Seguiram-se as palavras simples que copiava, desajeitadamente, do quadro. Nos primeiros tempos ainda apagava a pedra com um pequeno pano humedecido, na totalidade ou na zona onde fizera um erro. Com o decorrer do tempo achou muito mais prático apagar com a mão, depois de uma cuspidela oportuna, uma ou outra palavra e números, também. Isto quando a mestra não estava a ver.
Aprendeu a concentrar-se enquanto a mestra falava, ou quando fazia os trabalhos. A ganhar autoestima por acertar muitas vezes nas respostas e conseguir antecipar-se aos colegas, também nas respostas ou nos trabalhos que fazia em competição aberta com eles. Era o começo de uma longa caminhada.
Ficaram poucas recordações dos colegas. Dum só, e por razões muito especiais. É que o parvalhão escrevia de uma forma peculiar a sequência dos números naturais. Nem mais nem menos, da direita para a esquerda.
Estava ao seu lado e deu conta e transmitiu de imediato a descoberta aos colegas. O resultado foi um burburinho na sala. A mestra indagou o que se passava e que tinha causado tanta excitação. Claro que repreendeu o Marinho (quase Mário) que ficou logo muito sério, a ponto de choramingar.
Então ela não queria que estivéssemos atentos?
O colega demorou alguns dias a corrigir o erro e foi muito gozado, em surdina, por ele e pelos outros. Talvez por causa disso, querendo vingar-se do vexame que os colegas amigos da onça lhe tinham imposto, um dia apareceu na sala da mesa grande com um bruto relógio de pulso que logo mostrou a todos, com ar superior. Fez-se uma assembleia em sua volta com todos a admirarem o relógio e a querer mexer, coisa que ele não deixou. Bem gostavam de ter um igual. Ó se gostavam!
«O meu pai trouxe este relógio da América. Calculem que custou um conto e quinhentos!»
«Um conto e quinhentos?!...»
Olharam espantados uns para os outros, mas logo desataram a rir. Um conto e quinhentos era muito dinheiro. Como se acreditassem numa patranha daquelas! Ainda por cima, um burro como ele que nem sequer sabia escrever o seu nome como devia ser. Com toda a certeza o pai ainda era mais burro.
Lógica a alcunha encontrada para tão grande aldrabão:
«Ó “Conto e Quinhentos”! Mostra lá o relógio...»
Mas que era bonito o danado do relógio, lá isso era!
Saudades desses tempos em que, quando acabaram as aulas na mestra, passou a ser o Mário (só Mário). Uma mudança resultante da abertura das primeiras janelas para horizontes mais alargados.
Tinha lembranças nubladas do tempo em que esteve na mestra. Não se recordava se ela ensinava bem, se mal. Se batia muito, pouco, ou nada. Se castigava os burros. Também já não se lembrava das brincadeiras que faziam no recreio e lá fora, junto ao chafariz que, diziam, ser muito antigo e que estava há muito a necessitar de restauro. Nem sequer se lembrava da última aula na mestra e também da primeira quando entrou para a escola primária.
Tempo de mudança.
Chamando a recordação…
No primeiro andar era a casa da mestra. Em baixo, se bem me lembro, um ferrador que "calçava" cavalos, machos, burros e afins. Hoje, todas as janelas e portas estão feitas paredes. Nem os fantasmas têm direito a espreitar lá dentro o que se passa na vila que se tornou cidade e que já teve o seu tempo áureo. Hoje tudo mudou. A cidade parece moribunda. Precisa de "vitaminas" para voltar à vida. E as ditas cujas tardam em ser receitadas.
Muitos dos amigos e colegas de Mário já morreram. Outros estão a caminho. Todos vão morrer, incluindo o Mário e também o seu mentor...
Marinho (quase Mário) aprendeu nesta casa da mestra, hoje em ruínas, as primeiras letras. Nada mais vai ficar para memória futura a não ser esta história verídica, porque na net nada se perde. Só será difícil encontrar com o passar das engrenagens impiedosas do tempo…
O OLHO-DE-BOI NA PELE DO DIABO
Aconteceu tudo de uma forma muito rápida. Estavam os três a brincar no quintal: ele, o Sérgio e a irmã deste, a Laurinda. Além da parte comum, em empedrado, o quintal tinha mais quatro talhões destinados a cada um dos inquilinos do prédio.
Nenhum deles estava cultivado. Apenas sobressaíam uma ou duas árvores de fruto por talhão. Uma nogueira centenária, enraizada para lá do muro que separava os talhões dos inquilinos da quinta do doutor Bandeira, debruçava-se, altaneira, sobre o quintal e as nozes que caíam, ainda envoltas numa casca verde, destinavam-se a quem as apanhasse, benesse que acabava quando o caseiro fazia o varejo da árvore na época crítica da maturação. Todo o resto era apenas um amontoado caótico de ervas onde predominavam as urtigas que picavam as pernas dos incautos, como o Mário, que usavam ainda calções.
A atracão pelas borboletas vencia a dor das picadas. Gostava mais das coloridas, algumas com uma combinação fantástica de cores, mas estas eram mais sensitivas do que as branco-amareladas e escapavam com relativa facilidade às tentativas que fazia para as apanhar à mão.
A grande oportunidade surgia quando alguma pousava numa flor. Com uma paciência só vinda dele, ia-se aproximando, aproximando, até que se agachava junto da borboleta e esperava que fechasse as asas. Tinha que ser rápido. Um golpe de dedos (indicador e polegar) e ficava à sua mercê. Por vezes, usava a boina e tornava-se mais fácil a captura das borboletas. Ficava por momentos a olhar para a boina, caída sobre as ervas, tentando adivinhar de que lado podia estar a sua borboleta. De seguida, levantava, com cuidado, uma ponta da boina até ver o inseto a debater-se, agitando as asas. Quando estas se fechavam, segurava-as entre os dedos e um pó amarelado soltava-se de imediato. Não queria outra coisa senão admirar a beleza da mariposa, sobretudo quando era colorida. A observação era rápida, culminando sempre com um levantar vigoroso de braço e a devolução do inseto à liberdade. Ficava a vê-la afastar-se, num voo livre e belo, invejando o modo como podia alargar os seus horizontes, subir nos ares até a perder de vista e vê-la de novo aparecer, em queda livre, quem sabe se num ato de gratidão por a ter libertado.
Os insetos tinham sido os primeiros seres vivos a conquistar os ares e na atualidade ainda estavam em larga maioria, apesar do aparecimento de novos conquistadores dos ares e seus principais predadores. Mesmo assim, deram a volta por cima como a maior parte dos insetos não voadores.
Voltando à brincadeira no quintal, naquela tarde soalheira, o Sérgio procurava agarrar o amigo que fizera uma traquinice. O miúdo escapava-se sempre, como uma enguia. Era magro e veloz. Na escola ninguém lhe ganhava em velocidade. Diziam até que, se treinasse, poderia via a ser um grande atleta de velocidade pura.
«Não perdes pela demora!»
Mais uma esquiva e de novo o Sérgio longe dele. Uma fosquinha. Nova tentativa falhada. Fugiu e a brincadeira continuou. Era mesmo difícil agarrá-lo.
De súbito pararam e o olhar dos três dirigiu-se quase em simultâneo para poente, surpreendidos pelo aparecimento no quintal de um estranho. Era mais velho que o amigo. Camisa preta de mangas arregaçadas, baixo e corpulento como um touro. Mário viu-o de frente e surpreendeu-se: o intruso tinha um olho de vidro muito baço e amarelado que achou repelente.
«Breee...! Já viste aquele olho, Laurinda?»
Sem responder, fez-lhe um sinal para se calar. Mário continuou a achar o intruso muito estranho. Além do mais, usava uma boina à espanhola muito larga e que tinha ainda os três vinténs, ou seja, a borla que crescia a meio do tecido. O olho de vidro e aquela boina bizarra eram dois pormenores que em nada abonavam o seu visual.
«Vamos acertar contas e é para já!»
Aproximou-se deles, muito agitado. Para o Mário não havia dúvidas. O fulano tinha um ar reles que não trazia bom augúrio.
Coisa muito grave.
«Está atento!»
Um aviso do Ernesto...
«Mas o que é que aconteceu?» perguntou o Sérgio, imperturbável. A calma era a qualidade que o Mário mais apreciava no amigo.
«Adivinha...»
«É que entras aqui, sem mais nem menos, como se tudo isto fosse nosso. Ora sabes muito bem que não é assim que se deve proceder. Em primeiro lugar pede-se licença para entrar, como mandam as regras da boa educação.»
«Deixa-te de conversas fiadas. Sabes muito bem ao que venho. Bateste no meu irmão que é mais novo do que tu. Sempre quero ver agora o que fazes comigo.»
«Então foi por isso. Vamos ter briga das grandes.» Pensou o Mário.
«Está muito bem. Se queres “conversar” vamos para a várzea. Aqui não...»
«O teu amigo tem fibra de campeão!» exclamou Ernesto. «Isto vai aquecer. Ai vai, vai.»
O olho-de-boi não se intimidou nem respondeu com palavras. Vinha determinado a vingar o irmão da sova e com pressa. Com uma corrida curta atirou-se sobre o Sérgio e logo rolaram os dois pelo chão, levantando uma pequena nuvem de pó no talhão situado mais a nascente, onde até as urtigas não vingavam pois era a zona do quintal em que os raios solares incidiam com mais intensidade. A luta estava ainda no início e nenhum parecia em vantagem.
Não perdendo pitada, mas muito cauteloso, Mário deixou-se ficar num sítio recatado e com boa visibilidade, atrás da escada com varões a todo o comprimento, uns tantos verticais e dois horizontais, estes mais longos, além do corrimão (tudo em ferro).
Houve então qualquer coisa que passou à margem da compreensão do Mário que fez a Laurinda entrar também em cena, atacando com gana o inimigo a pontapés. Os dois antagonistas suspenderam a luta, surpreendidos.
«Isto é connosco, Laurinda» lembrou o irmão, nada satisfeito com a sua intervenção. «Vê se te afastas porque ainda te magoas.»
Obedeceu e eles levantaram-se. A sua intervenção tinha refreado a luta. Já de pé, enfrentaram-se como dois touros, mas imóveis. De repente, parecia que tinham perdido toda a vontade de continuarem uma luta que prometia.
«Mais parece que estão a hipnotizar-se um ao outro. Isto ainda não acabou, ai não. Cautela!»
Decorreu um minuto. Não mais que do isso. Então o olho-de-boi apanhou a boina, sacudiu-a e pô-la na cabeça, inclinando-a um pouco para a frente e para a direita. Confiante, o Sérgio baixou-se a sacudir o pó das calças e depois virou as costas ao inimigo. Fim de refrega. Nem vencedor, nem vencido. Assim era melhor.
Começou a encaminhar-se para os lados da escada, ao mesmo tempo que sorria para o amigo, como que dizendo:
«Como vês, foi canja.»
Traição!
Não viu o maldito olho-de-boi baixar-se e erguer-se, de imediato, já com um paralelepípedo em gabro na mão direita. Dois ou três passos dados e...
«Cuidado, Sérgio! Ele tem uma pedra na mão!»
Aviso providencial da irmã. O Sérgio só teve tempo de virar-se e ver já a pedra em rota de colisão com ele. Desviou-se por instinto. A pedra continuou a trajetória, mas o alvo passou a ser a cabeça do Mário. De segundo a segundo, o futuro mudava. Felizmente que mudou para bem e a pedra foi parada por um dos varões compridos da escada, num impacto muito violento. O varão soltou-se de imediato da coluna esguia e ficou a vibrar. Sorte a sua por a pedra ter sido travada pelo varão.
Mudança radical no semblante do olho-de-boi, que levou as mãos à cabeça, visivelmente perturbado.
Que ia fazendo!
«Criminoso! Quase acertaste no miúdo! Vou dar cabo de ti...»
Uma cabeça dura que não dava para mais. Afastou-se para poente, como um autómato, ignorando a ameaça que não foi concretizada pelo amigo de Mário.
Depois, encaminhou-se para o corredor que dava para o portão poente e ficou fora da visão de todos.
Então o Sérgio aproximou-se do varão e agarrou-o, soltando um assobio prolongado e abanando a cabeça.
«Porra! O varão soltou-se. Tal não foi a força daquela besta! Olha que tiveste muita sorte, Mário!»
O rapaz que gostava de gatos soltou um suspiro de alívio, não tendo, no entanto, plena consciência do que lhe podia ter acontecido naquele dia soalheiro em que o famigerado olho-de-boi, que usava uma boina à espanhola de diâmetro avantajado que dava para armazenar mais de dois quilos de batatas, a qual ainda tinha os três vinténs, foi tocado pela mão do diabo. Valeu-lhe a pedra ter sido travada no último instante por outra mão.
Obra de Alguém que morava lá em cima e que gostava muito dele…
Era um momento de magia. Fazia-se o silêncio indispensável e lá ia, atirado pela mão hábil do pequeno jogador experiente, o berlinde matizado de esperanças que corria, corria, até que chocava com o outro berlinde. Ganhar. Queria ganhar sempre. Só pelo prazer de ganhar, porque Mário considerava-se um vencedor e nunca gostou de perder. A época do pião já lá ia. Felizmente para ele. Nunca teve jeito ou paciência para enrolar corretamente a corda no bojo do pião e depois lançá-lo e vê-lo dançar com elegância, rodopiar até à última força de rotação. Muito menos fazê-lo saltar para a palma da mão com um simples toque de dedo. Preferia assistir aos diversos lançamentos de três ou mais participantes que introduziam com frequência variantes no chamado jogo básico. A roda era o jogo que mais o emocionava. Um dos jogadores traçava uma linha circular usando um prego grande, daqueles que as raparigas usavam na praia nos seus jogos incipientes, uma corda e um pião. Os extremos da corda ligavam-se ao prego e à excrescência superior do pião. Fixava-se o prego, esticava-se a corda e o bico do pião riscava a terra deixando um sulco circular perfeito. Piões velhos, já de pouca utilidade, eram lançados para o interior da roda e logo de seguida, obedecendo a uma sequência já definida, eram também lançados os piões de bicos especiais. O objetivo era acertar nos piões que serviam de isco ou nos outros que já estavam a rodar, de maneira a fazê-los sair da roda. Era frequente saltarem lascas de madeira dos piões atingidos, tal a violência do embate. Por vezes a estratégia mudava. Lançado o pião com êxito, passava para a palma da mão do jogador, sempre em rotação. Depois era atirado contra um dos piões existentes na roda, em rotação ou não, com o objetivo de o expulsar da roda.
Os falhanços eram frequentes. Primeiro, porque podiam cair na areia solta em excesso e tombavam logo. Segundo, porque eram passados para a palma da mão numa fase tardia e já não rodavam por muito tempo. Terceiro, porque o atirador falhava o alvo ou o pião batia com força insuficiente para expulsar da roda o pião-alvo.
Um dia, Mário viu um pião rachar de alto a baixo depois de um bico poderoso de outro embater em cheio no seu bojo. Até se arrepiou com aquele momento inesperado.
Além disso, havia as punições, normalmente executadas nos piões mais massacrados. Vinte, trinta ou mais bicadas e aí é que era ver as lascas de madeira saltarem. Havia também uma parte, esta fora do jogo, a que gostava muito de assistir: as exibições dos artistas que lançavam o pião e não deixavam que caísse no chão, aparecendo, por magia, a rodopiar na palma da mão.
Nunca foi o seu jogo de eleição. Preferia a simplicidade do jogo do berlinde, por exemplo na versão das três covinhas. Era um jogo solitário. Dois jogadores bastavam para perderem uma manhã inteira, de cócoras, fazendo o circuito monótono das três covas, suficientemente afastadas para o atirador errar o seu alvo. Que o dissessem ele e o Armando, o colega de carteira da escola e morador na mesma rua. O tempo passava rápido sem darem conta.
Se havia jogadores nas proximidades então aumentava o perigo de se perderem berlindes, principalmente os extraídos dos populares pirolitos. Assim determinava a lei a favor dos implacáveis donos dos abafadores, mundo, contra mundo, caracol e coração, berlindes maiores e mais sofisticados, com belos desenhos coloridos no seu interior. Zás!, eram abafados sem apelo nem agravo. Num momento único e trágico, os berlindes ordinários, bem como o olho-de-boi, iam, sem hipótese de retorno (como acontecia na vida real na eterna luta entre os grandes e os pequenos), para os bolsos dos grandes. Inevitavelmente abafados tinham como destino os bolsos dos ladrões legais. Às vezes surgia alguém com o contra mundo e lá se iam também o caracol e o coração neste estranho jogo de vencedores e vencidos.
Por vezes a cena não acabava assim. Podia surgir uma discussão acesa acerca da hierarquia dos abafadores. E como nem sempre havia consenso então surgia a inevitável cena de pancadaria em que se envolviam as diferentes fações.
O jogo entre os dois amigos era mais simples. Atirar o berlinde e acertar no outro. Jogava-se com os dedos quando os berlindes ficavam a menos de três palmos de distância. O prémio para quem acertava era apenas o ganho de um simples berlinde de pirolito. Ou então um olho-de-boi que correspondia a x berlindes simples.
Mas vamos ao jogo...
Pelo sim pelo não o Mário e o Armando jogavam sempre com abafadores de alto coturno, não fosse aparecer de surpresa um ladrão legal. Mário segurava o berlinde entre os dedos e rodava-o, em mil preces. O amigo esperava, um pouco afastado, de pés fincados no chão, fazendo figas. Quando o berlinde partia, com o seu destino já traçado na superfície colorida, nada o podia desviar do rumo certo. O choque estava à vista. Um som desagradável de vidro contra vidro, às vezes um lascar fatal, uma lágrima rebelde e logo a seguir a revolta, à procura de uma possível irregularidade.
«Deste um passo a mais. Eu vi!»
A última tentativa. Segurava de novo o berlinde entre os dedos e rodava-o, rodava-o. Sentia crescer o desejo de acertar. Ia mesmo acertar. Tinha a certeza.
O outro dizia:
«Joga. Não demores...»
«Pronto, aí vai!»
Respiração suspensa. A resposta, essa vinha segundos depois. Boa para um, má para o outro. Danava-o a expectativa. Os prémios em jogo eram insignificantes. Não passavam de berlindes libertados de um pirolito que rebentou no momento do enchimento, ou da queda acidental da garrafa. Insignificante, mas um bem muito precioso para eles, mestres quase infalíveis naquele jogo simples, mas de vida ou de morte. Quem acertasse tinha um berlinde de pirolito a mais na coleção.
Ai dos vencidos!
«Oh!»
Falhou. Sem apelo, nem agravo. As figas deram resultado.
«Bruxo!»
«O quê?»
«Bem vi que estavas a fazer figas!»
O outro limitou-se a sorrir.
Novo posicionamento do berlinde de Mário, desta vez em situação bem mais favorável para o outro acertar, se não existisse um monte de areia a funcionar como obstáculo. Mas, pronto. Agora era a vez do amigo ir tentar a sua sorte. No caso do jogo ele beneficiava sempre com o facto de ser trapalhão. Antes de um deles jogar havia sempre uma hipótese de melhorar o terreno arenoso ou então manter a acessibilidade ao berlinde do adversário. Era tudo uma questão de antecipação e de se ouvir uma destas palavras mágicas: “sujas” ou “limpas”. A primeira significava que não se podia limpar a zona onde se situava o berlinde a acertar. Se um dos dois dissesse a segunda, a zona ficaria mais acessível. Ora, como o Armando era um grandessíssimo trapalhão a falar, dizia, invariavelmente em primeiro lugar, a palavra-chave:
«Suj... Slimpas!»
Desta forma, resultava sempre para grande desespero de Mário.
«Joga, Slimpas...»
Assim nasceu uma nova alcunha para o Armando. Não bastava ser o Velhadas porque imitava com perfeição a cara da velha
«Então?»
«Preciso de me concentrar.»
«Mas não precisas de te bufar...»
«Cheira bem? Gosto tanto deste cheiro...»
«Porco nojento!»
O desejo de lascar o berlinde ia crescendo, crescendo, a caminho do chamado ponto crítico: um toque certeiro no berlinde a atingir. Faltava o berlinde partir, impulsionado pelo dedo médio com a unha invariavelmente encardida. Ao mesmo tempo havia que contar com a força bloqueadora de Mário para evitar o êxito fatal do impacto do berlinde vencedor. Julgava-se possuidor de dons especiais. Talvez. Mas neste caso não conseguiu impedir o êxito do amigo.
«Vou concentrar-me mais para a próxima.
«Que disseste, Mário?»
«Nada.»
Mas havia também momentos imprevisíveis. Jogo suspenso. Perigo à vista.
«O orelhudo!, vem aí o orelhudo!»
Era a altura de entrar em cena a figura emblemática do terror. Mais velho e avantajado no físico que os dois amigos, infelizmente para eles, gostava dos berlindes alheios e contra a lógica da força não podiam fazer outra coisa senão fugir. As orelhas, grotescas e salientes como abanos, eram o seu cartão de visita e único escape para a revolta dos miúdos espoliados dos seus bens preciosos.
O orelhudo, ciente do seu poder físico, corria para eles, ameaçador. Largavam logo os berlindes e fugiam a bom fugir com o pavor estampado nos rostos, sem tempo sequer para olharem para trás, não fossem desacelerar a corrida. Já comodamente distantes, depois de tomarem fôlego, gritavam:
«Orelhudo, orelhudo! Nã, nã, nã, nã, nã... nã!»
E os seus gritos eram acompanhados de fosquinhas. Davam pulos e faziam caretas de escárnio. Junto aos abafadores abandonados, o mau da fita ria entre dentes. Eles deixavam de gritar, passando a seguir, com atenção, todos os seus movimentos. Então, vinha o desânimo. Viam as suas mãos grosseiras pegarem nos berlindes e, ato contínuo, enfiá-los nos bolsos. Queriam correr até ele para recuperarem os queridos berlindes. Em vão. O rapaz das orelhas grandes olhava-os, gargalhando alarvemente, motivo suficiente para refrearem os seus instintos de revolta.
Aquele olhar era mais um aviso a terem em conta. Tinham ainda bem presente a última sova infringida por aquele malvado.
Era um roubo cobarde. Valia-se do físico para os despojar dos berlindes. Nem sequer precisava de um abafador, o que era ilegal.
«Assim não vale! Não estás a seguir as regras. És um ladrão!»
Regras? Ele tinha as suas. Ninguém lhe chamava orelhudo sem se sujeitar às consequências.
«Venham cá buscá-los. Estão no meu bolso. Vejam bem que é a última vez que lhes põem os olhos em cima.» Disse, tirando os berlindes do bolso e pondo-os de novo no chão, ao mesmo tempo apontando, ameaçador, com o indicador direito encardido.
«Orelhudo, porco nojento! Vais ver logo como elas te mordem. Vou fazer queixa ao Sérgio, acredita que vou...»
O Sérgio era mais velho e forte que o orelhudo. Mas o guarda-costas estava ausente.
Um dia, passeavam os dois na várzea quando o viram passar com uma bilha às costas. Os olhos de Mário brilharam, cheios de malícia.
«De certeza que a bilha vai cheia de água. Queres ver, Sérgio, como acerto na bilha com esta pedra?»
«Vê lá, não lhe partas a cabeça. Da outra vez andámos fugidos no rio porque parti a cabeça de um gajo que me chamou nomes. Mas este não te fez mal.»
«Tu não o conheces!»
«Vais pagá-las, grande cabrão! Um dia apanho-te, juro!»
«Achas que sim?» perguntou, escudado pela presença do amigo.
«Pode ser mesmo agora. Estou aqui à tua espera, orelhudo...»
Mas naquele dia do roubo dos berlindes o Sérgio não estava presente e eles ficaram a ver o ladrão, sempre à distância, até que se afastou de vez, com o seu andar desengonçado de boneco articulado.
Orelhudo, orelhudo contrastava com: vem aí o orelhudo. A raiva e o terror. Duas facetas diferentes que ficavam já no esquecimento, perdidas nas entranhas do tempo que tudo engolia para não mais devolver.
Naquela manhã aziaga o Mondego estava de guarda ao portão e confundiu o leiteiro com o Jau, um perdigueiro que não lhe dava tréguas, e zás!, toca de lhe morder a perna. O leiteiro ficou com um rasgão nas calças. Quanto ao Mário, teve um grande desgosto. Perdeu para sempre o seu valente companheiro. Um adeus também, ao ferro-velho-à-porta e ao tradicional pregoeiro das peles-de-coelho. Eram tempos de economias domésticas mais apertadas, bem diferentes dos que viriam no futuro, já orientados para o extremo oposto, para uma sociedade de consumo cada vez mais perdulária. E adeus, também, fogueiras de Santo António que se faziam no talhão da vizinha Leonor onde nem sequer as urtigas medravam. Foi aí que se desenrolou a briga entre o Sérgio e o olho-de-boi e que podia ter ditado o fim do destino de Mário, não fosse o varão da escada.
E um adeus também ao padeiro-à-porta e ao jornaleiro que atirava, com destreza, O Século, para as sacadas de alguns prédios da sua rua, depois de ser habilmente dobrado, espalmado e reduzido a um simples disco voador.
Estas foram algumas das tradições que a infância de Mário viu serem engolidas pelo apetite voraz do correr do tempo e da evolução.
Também o Mondego evoluiu em força e valentia e o Jau, que lhe dava coças das grandes, viu-se a contas com a chegada implacável da velhice. Foi o tempo da vingança. Até metia dó quando ele se atirava ao desgraçado do animal sempre que este entrava no quintal à procura de um osso que a dona Francisca guardara para ele. Mas havia as cadelas e o Mondego não admitia intrusos caninos nos seus domínios.
Ai dos vencidos! Aquele nobre animal que Mário adotou, depois de ser atacado da esgana e abandonado cruelmente pelos donos, era finalmente rei e senhor do quintal. Mas foi sol de pouca dura, depois que atacou o leiteiro.
Estava projetado um outro jardim. Diferente. Moderno. Geométrico. De linhas frias. Sem as árvores quase seculares que ofereciam sombras acolhedoras a quem as procurava. Sem o coreto. Enfim, estava a chegar o futuro. O tal futuro que não tinha rosto.
Premonição naquele campo esventrado dum projeto morto à nascença?
O livro negro do progresso desenfreado aproximava-se de braço dado com a poluição, a sua dama implacável. Era a fatura do desejo de mudança numa vila em franco crescimento. Não mais haveria um jardim acolhedor, igual ao que o viu dar os primeiros passitos desequilibrados.
O passar dos anos dar-lhe-ia razão.
Estavam em cima do tronco de uma árvore que não teve oportunidade de morrer de pé. Agonizava, agora deitada por força da vontade dos homens.
O tempo parava quando Mário começava a contar ao Armando as histórias das aventuras e desventuras do jardineiro mandrião que cuidava do que restava do velho jardim. Algumas eram inventadas; outras, inspiradas em acontecimentos reais que o tinham feito rir a bom rir no momento em que ocorreram. Podia dizer-se que fora um repórter muito atento às desgraças do jardineiro manhoso e mandrião. Tudo do mais incrível acontecia ao pobre do Comico. Não sabia o seu nome e batizara-o assim, porque era cómico, melhor dizendo, ridículo, o que, da mesma maneira, o tornava cómico e era motivo de inspiração para uma história mais rica, claro que ainda com a supervisão do Ernesto, o seu amigo invisível que nunca apresentou a ninguém, por razões óbvias.
Um certo dia, ainda no tempo do velho jardim, agora esburacado, irreconhecível e com mais de metade das árvores arrancadas pela base à força de serras e machadadas, viu o Comico a dirigir-se para o sítio onde fora o coreto. No momento deslocava-se levando uma pequena escada ao ombro e um ancinho na outra mão. Ficou a vê-lo seguir o seu caminho, de olhos ao longo da escada em posição quase horizontal. Era inevitável acontecer porque não estava a ver o chão que pisava e mesmo que estivesse a ver o chão acontecia sempre qualquer coisa ao desgraçado que não era só azarento mas também irresponsavelmente descuidado.
Dito e feito. Mais uns passos e de imediato o Comico, a escada e o ancinho desapareceram na bocarra de um buraco e ele desatou a rir a bom rir. As pessoas só riam do ridículo das situações criadas. E continuavam a rir ainda com mais vontade quando viam que nada de mal acontecia.
Mas a cena não acabava ali. É que o Comico olhou para um e outro lado, receoso.
Que magicava?
Como não viu ninguém a observá-lo, teve a ideia de se erguer e começar a tirar restos de relva enraizada nas bordas do buraco. Ideia genial. Grande solitário do improviso. Artista cem por cento mestre da nobre arte de representar. Que bem trabalhava agora o jardineiro mais preguiçoso que, segundo Mário, existia à superfície da Terra! E ele não exagerava. Apetecia-lhe dizer: «Bravo!», mas era um repórter de ocasião que podia dar seguimento a uma outra. Quis felicitá-lo pela ideia mas não o fez. O instinto dizia-lhe que o caso não acabara ali. Ficou-se pelo ato de rir a bandeiras despregadas daquele momento cómico, tão cómico que nem o próprio Cantinflas teria criado com mais graça. Era o momento que dava a graça e não a sua construção.
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Não decorreu muito que se cansasse de tirar bocados de relva. Tentou, de um salto, sair do buraco, ao mesmo tempo com a escada e o ancinho.
Muita fruta para o cabaz. Resultado: voltou a cair e levou com o ancinho em cima. Contrariado, coçou a cabeça. Ou era piolho, ou fizera um galo. Inclinava-se mais para a última hipótese. Decididamente as coisas não estavam a correr nada bem.
Que rica história! Imaginava-se já a contá-la aos amigos, acrescentando outras passagens. Era tão cheia de imprevistos que iam pensar ser mais uma invenção sua. Mas não. No essencial tinha acontecido tudo. Apenas dera um ou outro retoque, e sem uma única ajuda do Ernesto com quem não contactava há uns tempos.
Bem lhe disse um dia:
«Já vais ficando crescido e eu tenho que partir para outros sítios onde precisam mais de mim do que tu.»
«Não me vais fazer isso, Ernesto!»
«Desculpa, mas vou. Cresceste em segurança e já não sou útil para ti...»
Era uma despedida para sempre?
Tinha crescido e já não precisava da proteção do seu amigo invisível. Ia ter muitas saudades dele. Para o eternizar até já sabia contar as suas histórias. Tinha chegado o momento de se libertar daquela espécie de cordão umbilical. De ganhar confiança. Mas, por efeito psicológico ou não, o Ernesto estaria sempre presente, nas boas e nas más horas.
Nova tentativa do Comico se desembaraçar do malfadado buraco e dessa vez tudo correu bem. Só que se esqueceu do ancinho lá em baixo, o que significava que ainda havia muito pano para mangas. Se quisesse, claro. Conforme lhe disse mais que uma vez o seu amigo Ernesto, as histórias só acabavam quando o narrador queria. E ele achava que ainda havia uns restinhos para aproveitar.
«E o tal ancinho?, picou-lhe o cu quando voltou a cair no buraco, não foi?»
«Não exageremos, Armando. Tudo o que te contei é mesmo verdadeiro. Juro. Vi-o com estes dois olhos que a terra há de comer. O jardineiro não voltou a cair no buraco, mas a história não acaba aqui. De facto aconteceu ainda outra coisa muito gira.»
«Conta, conta.»
«Agora não me apetece.»
«Espírito de contradição!»
«Só se fizeres a cara da velha.»
O Armando dispôs-se então a fazer a cara da velha. Tirou um lenço do bolso, todo enrodilhado e ranhoso. Mário não conseguiu evitar um esgar de nojo. Pior era quando estavam juntos na última carteira da sala de aulas e ele espirrava para o tampo da carteira que se transformava de imediato num mar de ranho.
Esticou o lenço e pô-lo em cima da cabeça, fazendo um nó nas pontas. Seguiu-se uma careta grotesca, de fazer arrepios. Pronto. Imitava assim uma velha. E muito bem imitada. Mas Mário gostara tanto ou tão pouco que até pediu bis.
«Olha, está escuro aqui e afinal de contas eu não vi nada. Repete lá, ó velhadas.»
E se contasse aquela história em que o Comico ficou entalado nos troncos duma árvore que os homens estavam a arrancar no jardim?
«Ajudas-me, Ernesto?»
Registou como resposta o silêncio.
«Então, Mário, estavas a falar para quem? E por que não contas a história? Já fiz a minha parte. A cara da velha. Agora é a tua vez.»
Lá contou a história. Até ao fim.
«E o Comico que disse depois aos outros?»
Mário ia a responder-lhe, mas ficou mudo. Havia qualquer coisa que o fazia olhar por entre a folhagem, receoso. Um homem fardado que gesticulava para eles.
O polícia do bigode farfalhudo parecia estar furioso. Havia sarilho na costa e do grande.
«Que fazem aí?» perguntou, aparentemente agastado. «Ora venham já cá para baixo, seus malandrecos!»
Não tinham feito nada de mal. A árvore já estava tombada. Passaram por ali e subiram o tronco inclinado. Um para contar histórias e o outro para as ouvir. Mais nada.
O homem franziu o sobrolho. Visto de cima pareceu a Mário mais medonho que o ciclópico orelhudo.
«Que coincidência, rapazes! E eu também passei por aqui. Ontem. E a árvore ainda estava de pé.»
O bigodes tinha razão. Ontem, a árvore ainda estava de pé. Mas não tinham sido eles. Era impossível deitarem abaixo uma árvore daquele porte. Só se fosse em sonhos. O polícia enlouquecera ou então gozava com eles. Além disso abominavam quem tivera a maldita ideia de destruir o jardim para a seguir pôr no meio o mamarracho de um obelisco para recordar o fracasso das invasões francesas. Para o diabo tal ideia. Que fossem pôr o obelisco no Parque, mesmo ao lado do rio mal cheiroso. Gostavam muito daquela árvore. De todas as árvores, aliás. Dos pardais que fugiram porque o jardim deixou de ser um refúgio. De todo o jardim. Dos velhos que dormitavam nos bancos, a retemperar as poucas forças que ainda tinham. Aquilo que fora o jardim estava agora esventrado. Já não havia mais nada senão ruínas. E a redação sobre as “árvores nossas amigas e amigas do ambiente” que o professor de Português mandou fazer?
Ele, bigodes, sabia disso?
Tiveram a melhor nota e nem foi preciso falar das aventuras do Comico.
Que mal fazia conversarem em cima do tronco?
Dali, escondidos entre a folhagem, viam o mundo e podiam sonhar. Não estavam a fazer nada de mal. Pior tinham feito os iluminados que mandaram derrubar o vetusto coreto. Acabou-se a música dos domingos e feriados. Já não podiam correr à sua volta enquanto a banda tocava. Nem subir para primeiro plano. O Mário até cantava bem. Quando fosse mais velho queria ser cantor. Daqueles que cantavam muito alto. Sim. Um tenor tão bom ou melhor que o Mario Lanza.
«Mas e essa árvore...?»
E as outras?
Falavam de um novo jardim que ainda estava no projeto ou lá como lhe chamavam. Quando estivesse acabado, se é que alguma vez estaria em definitivo, as profecias escritas no livro negro já teriam deixado crateras no lugar das árvores. O novo jardim estava morto à nascença e afastaria todos os amantes do ar livre e das belas sonecas. Falavam também de construir um pombal para os meninos darem milho aos pombos e assim aprenderem a cuidar dos animais. Essa dos pombos era uma boa ideia. Só que se esqueciam das cagadelas certeiras dos mesmos que fariam insónias aos velhos reformados, frequentadores habituais do jardim.
A árvore tombada, que agora agonizava, era uma testemunha muda de sonhos que viravam de página em cada dia. Não. Não estavam a fazer nada de mal. Um sonho de criança não se desfazia com um grito, com ameaças. Continuaria latente. À espera. Um sonho de criança era o avançar confiante no amanhã.
«Não me ouviram? Toca já a descer daí, seus malandrecos!»
E gesticulava, ainda mais ameaçador. Aumentava de tamanho, crescendo até aos píncaros da folhagem. Não havia possibilidade de fuga.
«Só o voo...» Pensou.
Se quisesse, Mário podia erguer-se no ar e fugir daquela presença ruim. Bastava levantar os braços, concentrar-se e transformava-se logo num deus alado todo-poderoso, a ponto de esquecer a presença do amigo e concentrar-se no poder que emanava do seu interior.
Fechou os olhos e sentiu a magia do momento. Lá ia, entre as nuvens invisíveis, levado pelas asas do sonho. Em baixo ficavam as ruínas do jardim. Entretanto o polícia continuava a crescer, insuflado por uma força desconhecida, mas não conseguia alcançá-lo. Fugia cada vez para mais longe, braços estendidos e cabeça erguida, banhando-se no fresco da noite. Era bom voar. Seguir o rumo desejado. Ninguém o obrigava a nada. Naquele momento só queria voar. Voar alto, como as aves, lá em cima. Voar no alto do mundo, no mar invisível da fantasia, sentindo no rosto o frio do ar que aspirava sofregamente. Lá em baixo tudo era minúsculo. Avistava as luzes trémulas da vila que pareciam tão insignificantes do alto onde ele era agora dono e senhor. Podia apagá-las com um só um sopro. Se quisesse, deitava por terra o polícia incómodo que agora não passava de um boneco de papelão. Ele, Mário, até tinha mais força que o próprio super-homem.
«Que estavam a fazer ali em cima?»
O seu ar já não era aterrador. Tinha-os reconhecido.
«Já dissemos, senhor guarda. Nada de mal. O Mário estava a contar-me as histórias do Comico.»
«Uhm! Quem é esse Comico?»
«É um jardineiro. Rimos muito das suas trafulhices. Além de calão, é muito desajeitado. Estão sempre a acontecer-lhe coisas anedóticas. Se ele não existisse tinha que ser inventado. Imagine o senhor guarda que há dias caiu num buraco. Levava consigo uma escada de madeira e um ancinho. Nem mais nem menos. Caiu mesmo, mas disfarçou bem. Pôs-se logo, lá no fundo do buraco, a cavar com o ancinho. O Mário é que viu. Pode perguntar-lhe. Que cena das antigas!»
«Não percebo patavina, mas adiante. Estava só a brincar convosco. Conheço muito bem os vossos pais. Subam outra vez para o cimo do tronco, mas com cuidado. E continuem com essas histórias que não fazem mal a ninguém. Antes pelo contrário. Enquanto estão distraídos não se lembram de fazer disparates.»
Que estupidez a deles! Como podiam ter acreditado na encenação do bigodes que os acusou de terem deitado abaixo uma árvore daquela envergadura?
Era bem verdade o que dizia o professor de canto coral, pensou Mário. O medo de falhar ofuscava o brilho. Ele ia longe nas cantorias quando deixasse de recear o confronto com as multidões.
«Quer ouvir mais uma? Quando ele estava a fingir que fazia força para arrancar uma árvore, só dizia: «Ó vai... ó vai...». Com tantos ó vais, os outros entusiasmaram-se, deixaram de fingir e fizeram muita força. Resultado: ele ficou com a cabeça entalada entre dois troncos da árvore. Só queria que visse a sua aflição, senhor guarda.»
«Imagino, imagino. E depois?, o que aconteceu?» perguntou o bigodes, aparentemente interessado. «A cabeça desprendeu-se do tronco?»
«Cruzes canhoto!»
«Então?»
«Mudou a ordem para «Alto!, alto!, alto!» e quanto mais ele dizia "alto" mais os companheiros se esforçavam em tentar que a danada da árvore tombasse de vez. Até que ficou branco como a cal da parede. E mudo. Mudo mesmo, senhor guarda. O homem estava muito aflito.»
O rapaz tinha mesmo jeito para inventar histórias. Aquilo era invenção pura. Mas que pintava bem os quadros e dava vida às imagens, isso ninguém podia negar.
«E não se queixou mais?»
«Não, senhor guarda. Começou a faltar-lhe o ar e quase sufocou. Os outros não deram conta e continuaram no seu entusiasmo a tentar arrancar a árvore. Foi bem feito. É que é muito preguiçoso. E além disso é um grande bêbado. Até tem uma garrafa de tinto escondida na casa das ferramentas. Quando sai de lá vem sempre a limpar os beiços com a manga da camisa. Sabe que ele passa a maior parte do tempo a fingir que trabalha? O senhor devia confirmar a verdade do que estou a dizer-lhe. Mas, por favor, não o prenda, nem faça queixa dele ao jardineiro-chefe. Se o prender, é o fim.»
«Porquê?»
«Acabam-se as histórias. É que lhe acontece cada coisa mais incrível e com tanta graça!»
«Essa é mesmo engraçada, mas agora não posso ouvir mais nada. Ando a fazer o giro. Fica para a próxima. Comico. Até o nome que lhe deram é muito cómico. Sim, senhor.»
«Não vai prendê-lo, pois não? Ralhe só um bocadinho com ele. Pode ser que se emende.»
«Vou pensar nisso. Adeus, rapares. Muito juízo e cabeça fresca.»
Prepararam-se para subir pelo tronco. Do topo do tronco, entre a ramagem, havia uma outra verdade que era só deles. No seu mundo fantástico eram invencíveis e não precisavam da magia do Mandrake.
«Ena! São quase sete horas!»
Mário consultou o relógio que nada tinha a ver com a maravilha que era o do Conto e Quinhentos.
«Tens razão. Amanhã encontramo-nos de novo aqui?»
«É melhor ser no pátio. Já falei com o Tozé. Ficou de trazer a bola.»
«Ótimo. Não te esqueças de falar aos outros. Vai ser uma tarde em cheio!
O fio de magia tornou-se invisível. Com sensação de culpa estampada no pensamento, corria a bom correr pela calçada abaixo. As ruas escuras estavam cheias de fantasmas imaginários e um deles suplantava todos os outros. Lembrava-se. O doutor Bandeira morrera há meses atrás e tinha que passar de novo perto da quinta dele. Por certo que o seu espectro amaldiçoado espreitava entre o gradeamento esverdeado. Só de pensar nisso acelerou a corrida até ao limite. Entretanto uma mão podia saltar, a todo o instante, do gradeamento para fora e agarrá-lo, o que o fazia arrepiar dos pés à cabeça. Era terrível. Apesar da velocidade da corrida, mas sentia que o perseguiam de perto. Cada vez mais perto, cada vez mais perto. Não devia olhar para o lado nem tão pouco para trás. Um arrepio gelado percorria-lhe todo o corpo de alto a baixo. Não conseguia correr mais depressa.
E se olhasse para trás?
Não! Perdia velocidade e a mão cadavérica ia logo agarrá-lo. Mais um esforço. Estava quase a chegar. Eram só mais uns metros...
Finalmente a porta da casa. Tinha escapado mais uma vez. Por pouco. Ainda estava arrepiado da cabeça aos pés. Um dia o fantasma do doutor Bandeira ia mesmo agarrá-lo e levava-o consigo.
Mas por que passava no passeio do lado direito da rua quase a roçar as grades que escondiam as mãos tenebrosas que o queriam agarrar e não escolhia o outro passeio mais afastado e onde já não tinha à sua espera o fantasma?
Mistérios indecifráveis. Talvez que desde muito novo, sem saber, ele gostasse de chamar os fantasmas.
Gostando ou não de fantasmas, Mário só deixou de ter medo quando os dias se tornaram mais longos.
A MENINA DO CIRCO
«Quando tiveres cem anos, eu terei noventa e nove!»
Era de todo impossível esquecer a menina do circo que andava com ele no baloiço. A emoção de andarem os dois no mesmo baloiço (ela sentada e ele de pé) e de ouvi-la pedir para voarem mais alto.
Marinho (quase Mário) nunca faria no futuro grandes voos, senão os alicerçados no sonho...
«Mas...»
«Tens medo?»
Se tinha! Mas vencia o medo na sua presença e fletia ainda mais as pernas para voarem, juntos, até ao céu.
«Força, Marinho, mais alto, mais alto!»
«Não posso dizer-lhe que sinto medo...» Pensou.
Felizmente que avistou ao longe o homem dos chupa-chupas.
«Vem aí o estica-larica!»
«Que bom! Mas dá mais balanço...»
Nem mesmo assim conseguia desviá-la dos seus intentos. Voar mais alto até se estatelarem nas areias de sílica e com consequências imprevisíveis.
Deliciavam-se com os chupa-chupas verdes, vermelhos ou amarelos, tão saborosos quanto suspeitos no que dizia respeito à qualidade da higiene na sua confeção, e que esticavam, esticavam sempre até ao limite da elasticidade.
«Estica-larica... estica-estica!»
Era esse o pregão do vendedor que usava um bigode fininho e que parecia estar tuberculoso devido aos frequentes e fortes acessos de tosse cavernosa que culminavam em escarretas amarelas nojentas expelidas para o chão, bem mais amarelentas que o ranho que o Armando deixava no tampo da carteira depois de uma série de espirros. Mas mesmo assim eles gostavam dos danados daqueles chupa-chupas.
Os amigos sabiam do seu namoro com a menina do circo e sentia-se vaidoso. É que ela era gira de verdade. Acompanhava-o sempre para onde quer que fosse.
Lembrava-se só de umas tranças loiras, compridas e duns olhos grandes a sobressaírem num rosto delicado. Os olhos talvez fossem esverdeados. Achava-a bonita. Mas havia um senão. Por vezes, a sua linguagem rude feria a sensibilidade daquele menino bem educado. Questão de berço. Ela não tinha culpa.
Gostava muito do seu sorriso, da voz cristalina. Gostava tanto ou pouco que foi a primeira paixão dos seus verdes anos. Mas, como todas as paixões, durou pouco tempo.
Um dia, não apareceu no jardim. Nem no dia seguinte. Nem nunca mais. A vida errante dos artistas de circo era assim. Um dia numa terra, outro dia noutra.
A menina do circo partiu sem um adeus, ou sem poder dizer adeus.
E o seu sorriso, para onde foi?, e que ventos a levaram?
Agora já não brincava porque trocou o baloiço pela pirueta ou pelo trapézio. Nunca mais representou para ele, nem ouviu, como prémio, as suas palmas tímidas, de muito agrado. Sim, outras palmas. Outras emoções. Mais e mais êxitos. Até que um dia ficasse estendida na pista, obrigada a desistir de viver. Tal como aconteceu com o equilibrista que, do alto de um escadote com uns bons quatro metros de altura, fazia o pino sobre duas colunas de barras de sabão azul que iam formando uma pilha, sempre a crescer. Não assistiu à tragédia. Contaram-lhe tudo e devia ter sido muito emotivo. Teve pena. Muita pena de não estar presente para assistir.
Passou pelo largo da feira e não viu o circo. Olhou em volta, desolado. Nem o eco das palmas, nem a voz do apresentador. Só o vazio.
«Senhoras e senhores: tenho a grande honra de vos apresentar... a fantástica, a talentosa trapezista da nossa companhia... LE...NI...TA! Muitas palmas, por favor! Hoje ela vai dedicar a sua corajosa atuação a um amigo muito especial. Ao Mário... Palmas também para ele! Peço a vossa atenção e silêncio para este trabalho altamente emotivo.»
Que era feito da pequena amazona de tranças desfeitas, cabelos longos e soltos, que volteava na pista com o seu corcel vaidoso e sonhava já com a perigosa arte no trapézio que tanto admirava nos pais e para onde voaram os sonhos que aquele campo deserto deixou fugir?
Nem sequer sabia como se chamava.
Lenita?
Nome inventado. Assim, para ele seria sempre a menina do circo. Tinha que voltar, para partilhar com ele as mesmas aventuras que lhes trariam experiências acrescidas e para crescerem juntos num sonho belo e todo ele cheio de cumplicidade. Para continuarem a voar num dos desafiadores baloiços pintados de verde. E continuarem a ser dois bons amigos, para sempre inseparáveis, apesar dos ditos maldizentes dos outros rapazes que não conseguiam entender a força daquela amizade precocemente amadurecida.
Mas nem o jardim existia, nem ele estava com ela. Caíra por terra o sonho.
Como poderia chegar aos cem anos se nunca mais a veria?
«Parece que não vou contar esta história aos meus amigos.»
«Porquê?»
«É só minha! Vou guardá-la para quando tiver cem anos.»
(Promessas não cumpridas, Marinho, quando te tornaste num contador de histórias...)
«Acho bem. Como aquela em que andavas em cima do muro que dava para o prédio das finanças e foste picado pelas abelhas duas vezes no mesmo braço. Essa não vais contar, pois não?»
«Lembro-me desse dia como se fosse ontem. Tive dores muito fortes, sabes? Saltei logo para o chão e calquei as zonas das duas picadas com uma moeda de alpaca de cinco tostões, o que me aliviou um pouco a dor. Depois, encaminhei-me para o campo que dava para as traseiras do prédio e...»
«Deste logo com uma cena caricata. O Casimiro estava deitado nas ervas, com as calças para baixo. O Luís, em cima dele, esforçava-se, em vão. Ao ver-te chegar, esboçou um sorriso amarelo.»
«Pois foi. Apanhei-os com a boca na botija...»
«E tu, que fizeste?»
«Nada. Ou melhor: voltei para trás.»
«Não ficaste a ver? Entendo esse silêncio. Mas sabes uma coisa?»
«Sim?»
«Nunca deste por mim, mas acredita que eu tenho estado contigo.»
Por algum motivo as coisas más só aconteciam aos outros. A presença invisível do Ernesto era uma hipótese muito forte a considerar.
Talvez o amigo invisível fosse o seu lado clarividente. Pressentia muitas vezes certas coisas que aconteciam depois. Quando o perigo estava iminente recebia avisos que nem sempre seguia.
Lembrava-se daquela vez em que espetou um ferro no joelho esquerdo. Teve uma sorte incrível. Era noite e já ia atrasado para casa. Para atalhar caminho atravessou a correr o antigo parque infantil já quase desmantelado. Com a escuridão tropeçou em qualquer coisa e caiu. Azar o seu, pois espetou um ferro no joelho. Sentiu de imediato uma grande dor mas nem sequer ficou a coxear. Pôs um lenço à volta do joelho e tentou esconder a ferida dos pais, o que foi um grande disparate que podia ter tido consequências dramáticas. Por milagre a ferida não infetou. E se era uma senhora ferida!
O que o levou a tomar aquela atitude, apesar de ter ouvido uma voz interior a aconselhá-lo para contar aos pais?
Receou apanhar uma surra do pai. E bem a merecia. Mas correu tudo bem. A ferida sarou e, para recordação, ficou uma marca indelével.
«Sei muito bem que não me vais responder, mas queria saber o que te levou a ensinar-me a contar histórias?»
«...»
Era um facto. Tinha que se habituar à ideia de que estava só. O seu amigo Ernesto tinha partido para ajudar outros que precisavam mais do que ele.
Quanto à sua menina do circo já tinha ficado muito para trás. Era inevitável desaparecer dos seus sonhos de criança sem sequer ter tempo de dizer adeus.
«Ele está a fazer de propósito.»
Quem atirava a bola para a fazenda tinha que a ir buscar. Não havia hipótese. Regra de ouro. Desta vez coube ao Vítor.
«Porquê? Não entendo. As maçãs ainda estão verdes. As nêsperas já lá vão, pois demos a última razia há três semanas...»
Mário tinha razão. Havia um motivo forte.
«Já sei» disse o Armando. «Há uma cerejeira lá para o fundo. É isso, aquele sacana foi às cerejas.»
Mas desta última vez estava a abusar no tempo que demorava.
«Olha, Mário... e se nos contasses uma história? Com o calor que está já não apetece jogar. Podíamos ir para o sítio do costume, que é muito mais fresco. O sol nunca chega ali...»
Dito e feito. Subiram os degraus que davam para um corredor e sentaram-se ao fundo, junto à entrada para o primeiro andar. De facto estava-se bem sentado naquele chão coberto por cimento avermelhado, a atirar para o escuro.
Entretanto o Vítor tardava em aparecer. Mal eles sabiam que ficou a contas com uma senhora dor de barriga, de se lhe tirar o chapéu. Baixou os calções, acocorou-se, gemeu e deitou merda muito amarela. Primeiro sólida. Depois, até esguichava.
Quem lhe mandou ter comido à bruta cerejas aquecidas pelo sol?
«Então qual é a história para hoje?» perguntou o Farinha.
Mário resolveu fazer-se caro e fingiu não ouvir.
«Vem aí o Vítor. Traz uma mão na barriga. Ali anda coisa ruim. Aposto que está com dores de barriga.»
«Bruxo!» exclamaram em uníssono.
«É um gajo mesmo estúpido. Não vem com a bola. Sempre quero ver a desculpa que tem para dar.» Disse o Tozé, verdadeiramente agastado. E não admirava. Era o dono da bola.
Prognóstico certo. Vinha com o rosto esverdeado, denunciando uma tremenda dor de barriga.
«A bola?» perguntou o Tozé.
«Quero lá saber da porra da bola! Só sei é que estou cheio de cólicas.»
«Não disfarces que pagas uma nova.» Avisou.
«Está certo. Tudo bem. Mas agora vou para casa. Não me sinto nada bem.»
«Vê lá não te borres pelo caminho. Breee! Que cheiro. Ainda estás pior que o Farinha.»
Pior não podia ser. Nas aulas de desenho, logo às oito da manhã, quando menos se esperava, e debaixo de um frio intenso, o professor abria as janelas da sala de par em par, num gesto claro de represália. A sala não era muito grande e suportava dificilmente quatro filas de carteiras. Duas para os rapazes e duas para as meninas. As dos rapazes ficavam mais próximo da porta. O Farinha e o Armando estavam na segunda fila, à frente. De súbito, o Armando virava-se para trás e dava o sinal de alarme para os colegas da fila.
«Talim! Talim! Talim!»
Seguia-se uma risada de bom humor, mas o pior estava para chegar. Um cheiro pestilento que se propagava de frente para trás, tal nuvem ardente sulfídrica proveniente de uma erupção vulcânica, a ponto de chegar à última carteira da fila, onde se sentavam o Mário e o Vítor. E, com o decorrer do tempo, em virtude das sucessivas vagas de bufas mal cheirosas, a sala ficava irrespirável. Surgiam logo os protestos e então o professor, que desenhava no quadro “o rebatimento de não sei o quê”, virava-se para os alunos, deveras intrigado com as queixas das meninas. Quando entendia a causa dos protestos, então ficava sério e muito vermelho, semelhante à cor de um pimento maduro.
«Aposto que daqui a pouco ele vai rebentar de raiva.» Dizia baixinho o Vítor. «Não vês como a cara do professor está tão vermelha?»
Seguia-se o habitual. Janelas abertas de par em par e a aula continuava na normalidade no meio dos protestos aumentados das colegas que estavam mais próximas das janelas.
Ninguém sabia onde o Farinha ia buscar tanto gás!
«Então, Mário, há história ou não há?»
Baixou o rosto e fixou os olhos no cimento vermelho.
«Cala-te, Farinha! Já está a concentrar-se...» Disse um dos amigos.
«Conta a dos dois dedos no cu. Essa história é muito fixe!»
«Contou-me a minha avó. Já estou farto de contar essa. Deixem ver se me lembro doutra...»
Dois mistérios: de facto ninguém sabia onde o Farinha ia buscar tanto gás e também ninguém sabia onde o inspirado Mário ia desencantar as suas histórias...
«Parece que ele tinha uma magana por conta e estava endividado até à raiz dos cabelos. Pobre do homem que nunca fez mal a ninguém! Logo aquela puta deu volta à cabeça do desgraçado.»
Ainda outra opinião de um popular:
«Nada disso. Depois da morte do filho nunca mais foi o mesmo.»
Os amigos olharam um para o outro.
«Não ouviste o que disseram? Cada cabeça sua sentença. Vendo bem, talvez ele se matasse por causa de uma mulher.»
«Valeu mesmo a pena ele ter feito o que fez. Ainda por cima, estúpidas como são as mulheres.»
Mário dirigiu-lhe um olhar de censura.
«Quem te disse isso?»
«Foi o Tozé. Ouviu o pai dizer à mãe que as empregadas eram muito obtusas.»
«Obtusas?»
«Sei muito bem. Era só uma crítica velada à besta do pai do Tozé.»
«Velada?»
«Deixa...»
«A mulher portava-se mal?» perguntou o Armando.
«Ouviste o mesmo que eu, não ouviste?»
«Mas chamaram-lhe magana, percebes?»
As suas raízes alentejanas punham-no em vantagem.
«É como se diz no Alentejo, sabes? Magana quer dizer namoradeira, mas também outras coisas estranhas...»
«Lá está. Vai dar ao mesmo.»
Mário não concordou. Para ele, uma mulher namoradeira não era sinónimo de mulher que se portava mal, embora alguns conservadores a considerassem comparável ao automóvel usado que se adquiria em segunda ou terceira mão. E acrescia que nesse tempo era a mulher que saía sempre magoada depois de um rompimento de namoro. Sobre a hipotética magana nada podia acrescentar, até porque nem sequer a conhecia.
«Ele bebia demasiado. Naturalmente tens razão. A magana metia-lhe os palitos e ele não gostava. Começou a empreender e pronto. Paz à sua alma.»
«Matou-se só por causa disso? Valeu bem a pena! Tão depressa não terá paz, sabes? Acontece com todas as pessoas que se matam. Para seu castigo, o espírito anda a penar por aí, durante séculos e séculos. Eternamente. Lembras-te da história do fantasma dum timoneiro holandês que saiu no Cavaleiro Andante? Até me arrepio todo quando começo a falar dele. Ainda hoje anda errando no mar, sempre ao leme do barco, sem descanso e sem porto onde chegar. Pobrezinho! Foi um castigo muito grande que Deus lhe deu.»
«Mas que mal fez o timoneiro? O homem do leme não andava em combates.»
«E eu estava lá para saber?»
«Onde?»
«Olha... na casa da gaga!»
«Que mora na rua de Santo André, já sei essa...»
Esqueceram o holandês.
«Dizem que o homem esperou pelo comboio no meio do túnel e atirou-se para a frente. Foi trucidado. Nada se aproveitou. Os miolos ficaram espalhados pela linha. Já imaginaste?»
«Cala-te. Mas afinal quem era ele?»
Mário ficou a pensar. Um desgraçado qualquer, mas muito importante porque se transformou, depois de morto, num centro de atenção por um ou dois dias.
Na missa do sétimo dia quem estaria presente para lhe prestar a última homenagem?
Olharam-se em ar de desafio.
«Vamos ver quem chega primeiro.»
«O último a chegar é maricas.»
Mário era quase tão veloz como um gamo. Ganhou a corrida com grande vantagem.
«Não vais chamar-me nomes, pois não?»
«Bem merecias porque foste tu quem teve a ideia. Claro que não. Somos amigos e tu não és o maricas do cinco atores um quarto de hora. Amigos para sempre?»
«Amigos para sempre.»
«Desengana-te, Mário. Vais aprender com o passar do tempo que não há amigos para sempre. Ou melhor: é muito raro acontecer...»
Intromissão do Ernesto.
«O que é que disseste?»
«Nada. Foi impressão tua.»
«Pareceu-me ouvir dizeres qualquer coisa tal como “era muito raro acontecer”.»
«Talvez tenhas razão, Armando. Às vezes falo sozinho. Não te trates que ainda vais ter com o Fogaça!» avisou Mário, solenemente.
O amigo encolheu os ombros.
«Ora...»
«Sabes quem é essa personagem?»
«Claro que sei, porra! O coveiro.» Resmungou o Armando. «Mas que horas são?»
«Quatro e um quarto.»
«Não vale a pena esperar, Mário, que encontramo-lo pelo caminho, antes de entrarmos no túnel. Temos tempo de sobra. Os comboios andam sempre atrasados. Até dá para uma mija...»
«E se já saiu da última estação?»
Como de costume o Armando denunciava ser o mais afoito dos dois. Também não era de admirar que as desgraças caíssem com mais frequência em cima dele.
«Estamos é a perder um tempo precioso. Anda daí. De repente fiquei ansioso.»
Sempre a correr, seguiram pela linha, saltando travessa sim, travessa não. Ao fundo, avistava-se a abertura do túnel que, aos poucos, ia ficando mais próxima. Pararam à entrada. Um receio mútuo envolvia os dois amigos.
«Vamos, Mário!»
«Vai tu à frente. Vejo mal no escuro.»
«É melhor ires tu...»
«Pronto, nem um nem outro. Vamos os dois, e lado a lado.» Sentenciou o Armando.
Resolvido o diferendo entraram no túnel.
«Está escuro como breu. Parece que há água na linha. Sempre te disse que o túnel metia água.»
«Tu é que estás a meter água. Deixa-te de imaginações parvas e segue mas é em frente. Tu e os teus medos da água. Na última encarnação deves ter sido um flibusteiro que se afogou. Olha, talvez o timoneiro holandês. Quem sabe?»
«Tens razão. Quem sabe! Mas olha uma coisa? Gostava mais de ter sido o comandante e de andar à espadeirada com os piratas. Devo ter liquidado muitos.»
«Sim. Até que levaste uma das grandes e foste logo para os anjinhos. Depois, atiraram-te pela borda fora.»
«Talvez ainda moribundo. É muito possível ter morrido afogado na última encarnação.»
Se a princípio não era fácil, à medida que se aproximavam do meio do túnel tudo se complicava. Havia cada vez menos luz e mais hesitações.
«Parece mesmo que há poços aqui dentro.»
«Continua, grande parvo. Foste tu que disseste que era cedo. Agora não podemos parar.»
O sítio do desastre era mais à frente.
«Dizem que as almas se soltam dos mortos e ficam a pairar, próximo, com pena de deixarem os corpos. O melhor é voltarmos para trás. Pressinto que nos vai acontecer alguma coisa má.»
«Curioso...»
«Curioso, o quê?»
«Parece que tens uma alma atrás de ti, Armando. Não te mexas!»
O Armando sentiu um arrepio na espinha. Ficou de imediato cem por cento apanhado.
«Tenho frio. Bem podias estar calado que ainda me metes mais medo do que tenho.»
«Não te armes agora em menina Aninhas. Anda mas é mais depressa que o comboio está quase a chegar...»
Estavam para lá do meio do túnel e já havia mais claridade.
«Olha.»
«Que foi?»
O Armando apontou para o chão.
«Uma coisa a brilhar. Parece um vidro. Não vês?»
«Tens olhos de lince!»
O safado do padre Luís é que tinha olhos de lince. E mais outra coisa: diziam que à noite, depois dos serviços religiosos, ele despia a batina, tirava o colarinho engomado, montava na BMW e metia-se a caminho do Bairro Alto, para as putas. Que Deus lhe perdoasse, mas não se livrava da fama. Os julgamentos na praça pública tinham quase força de lei.
Baixaram-se ao mesmo tempo. Fantástico! Era um vidro de relógio intacto. Como podia ser possível? O embate do corpo do suicida contra o comboio decerto que fora violento. Mais que violento. Era quase um milagre terem encontrado aquele vidro sem a mínima mazela. Não. Milagre, não. O desgraçado atentara contra a própria vida e não se podia falar de milagre. Teve bilhete direto para o Inferno.
Foi a vez do Mário fazer a sua descoberta.
«Miolos, Armando! Miolos e restos de sangue. Brre! Bem te disse que havia miolos espalhados na linha.»
«Bruxo! Deixa ver melhor... Que nojo! Estou já a ficar mal disposto. Parece que vou vomitar.»
«Maricas!»
«Vamos embora!»
«Espera. Só queria encontrar uma mão. Dava vinte e cinco tostões por uma mão do morto. Decepada, claro. Com um pouco de sorte ainda vou encontrar uma.»
«E a minha avó também. Para que queres tu a mão?»
«Ora, para levar para a escola e meter cagufa às raparigas. De certeza que ficavam todas histéricas. Já imaginaste o espetáculo?»
«Não te faz impressão?»
«Já vi um morto na morgue do cemitério, esticado como um carapau.»
«Está-se mesmo a ver! Então quando aconteceu essa coisa estranha?»
«Foi neste Inverno. Era noite quando saí da escola. Estive a falar com o Renatão dos carolos por causa de uma bola que foi para o telhado, mas não resultou. Era tarde. A bola já estava no gabinete do Caça-Aviões. À saída do portão vi o Matias com a Micá.»
«O Matias e a Micá? Estou a adivinhar a cena...»
«Iam para os lados da avenida dos cotovelos. Resolvi segui-los porque cheirou-me a engate.»
«Nem sequer são namorados...»
«E que importa não serem namorados? Sabes muito bem que a Micá alinha sempre nos nossos programas.»
«E ias atrás deles para tentares também molhar a sopa, a ver se te calhava também algum brinde. Na pior das hipóteses, uma pívia.»
Mário sorriu.
Infelizmente perdeu-os de vista e voltou para trás. Os fulanos deviam estar escondidos no meio das ervas, que eram altas naquela época do ano.
«Adeus, pívia!»
«Pois.»
No regresso, aproximou-se da morgue do cemitério porque viu luz.
«Uma mentira perfeita de valentão das dúzias. És o herói de muitas histórias, mas tens um fraco. Quando a noite cai, pensas muito em fantasmas e tudo fica estragado. Ele não vai acreditar.»
«Não sejas impertinente, Ernesto.»
«E então entraste.»
«Estava um morto em cima duma mesa de pedra. Ganhei coragem e aproximei-me para ver melhor...»
«Se ele estava morto?»
«Cala-te, estúpido. Tinha cor de cera. Até senti um arrepio dos pés à cabeça. Quando recuperei do choque cheguei-me ainda mais à mesa.»
Suspendeu o relato de propósito.
«E depois?»
«Mais nada. Ouvi passos e raspei-me logo para não ser visto.»
«O morto estava nu?»
«Sim. E tinha uma faca na algibeira.»
«Sacana! Vê-se mesmo que mentes com todos os dentes que tens. Bem sei que tu nunca viste um morto na morgue do cemitério. Borravas-te todo. Certo como eu me chamar Armando e saber representar com grande classe a velha.»
Mário fez uma vénia.
«Muito prazer...»
«Borravas-te todo. Mais certo que errado. A Alice, essa é que não deve ter medo dos mortos. Morreu-lhe o pai aos seis anos.»
«Pois foi...»
«Tu gostas dela, não gostas? E ela também de ti. Acha muita graça a tudo o que dizes e tu não tens graça nenhuma.»
«Não tenho graça... E então as minhas histórias?»
«As tuas...?»
«Ernesto!»
Falso alarme.
«Isso é outra coisa. Quando te pões a contar histórias até pareces outro. Se dizes baboseiras, aí perdes a graça toda. Mas voltando à Alice, bem me saíste um sonso! Fazes tudo pela calada. Eu bem vejo os vossos sorrisos de carneiro mal morto...»
«Deixa-te de parvoíces. A Alice não é para aqui chamada. Sabes bem que ela é só uma amiga. E se não sabes, põe isso na tua cabeça de atum!»
«Pois, mas estás sempre encostado ao muro a vê-la fazer ginástica no ringue de patinagem e não tiras a mão direita do bolso das calças.»
«Então?»
O amigo deixou soltar um riso escarninho.
«Mão malandra!»
Tinha razão em relação ao que disse sobre a mão no bolso, mas era apenas por uma questão erótica. O modo como a Alice ondulava o corpo na aula ginástica mexia muito com ele. Depois, era só uma questão de coreografia: a saia curta que mal escondia o calção; a blusa branca com decote em bico; o sorriso provocador. Quanto ao resto, talvez até gostasse dela. De uma forma secreta de que era responsável a timidez para tomar uma decisão. Tinha mais coragem para procurar no túnel mãos decepadas do que para se declarar a uma rapariga. Quando falava com a Alice era verdade que sentia qualquer coisa estranha. Não sabia explicar. Ficava com as mãos húmidas e as pernas todas tremeliques.
«Não ouves nada?» perguntou o Armando.
«Não.»
«Vou pôr uma orelha em cima do carril. O Caça-Aviões disse que o som se propaga melhor através dos sólidos.»
Chegou o momento de Mário fazer uma objeção.
«O Caça-Aviões, não. O livro de Física. Bem sabes que ele dá sempre a matéria a ler o livro. Ou és cegueta?»
O Caça-Aviões era o professor de Física. Militar de carreira, arranjara um gancho como diretor e professor da escola. Dava as aulas teóricas de uma forma pouco legal: limitava-se a ler o livro, o que significava grande falta de conhecimentos ou então pouca segurança. Um bom diretor e, ao mesmo tempo, um péssimo professor. Isto para não falar das muitas faltas que dava. Era um espetáculo ver o Prudente aparecer na escola, todo ele braços levantados, a gritar que o professor não vinha no comboio. Bem lhe perguntavam se tinha a certeza. A resposta era sempre a mesma. Esperara na estação até o comboio partir para a Figueira. De certeza que ele tinha ficado em Lisboa.
«Ah!, grande Caça-Aviões! Nem sabes a alegria que nos deste...»
Grande, não. Pequeno a tal ponto que ficou com a alcunha de Caça-Aviões. Olhava para cima ao falar com os colegas ou até com os alunos mais espigados. Era baixote mas tinha cá uma força a dar estaladões!
Que o dissesse o Armando. Já comera pela medida grande por causa de uma brincadeira no recreio. Foi apanhado pelo Renatão a apalpar as mamas à "Graça que lavava a coisa com potassa".
O Renatão era o contínuo da escola. Aos miúdos dava uns carolos paternalistas, nada meigos. Aos mais velhos, talvez por uma questão de segurança ou integridade do seu corpo grosseiro, preferia usar outra estratégia. Levava-os ao diretor. Ponto final.
Mas antes disso acontecer, um dia quebrou o ponteiro nas cabeças do Nini e do José.
De que estavam à espera depois de gozarem indecentemente com ele na aula de Química?
O homenzinho queria dar um sinónimo de base e não se lembrava. Todo ele era esforço.
«Base... base...»
Tinha o nome debaixo da língua e o ponteiro debaixo do queixo. Muitos sabiam mas preferiram ficar calados, pressentindo que ia haver espetáculo. Mesmo ao seu lado estavam sentados os dois inocentes, por sinal os minorca da turma.
Maliciosamente desejosos de auxiliarem, disseram, com o ar mais maroto do mundo e arredores:
«Base ou sopé!»
Um fenómeno telepático digno de investigação. Não tinham combinado a resposta. Saiu, de forma espontânea aquela confusão da Geografia com a Química. O mais curioso de tudo é que o Caça a princípio não entendeu a piada. Homem de fracos meios a nível da associação de ideias, coçou o queixo, ainda apoiado no ponteiro, e ficou a olhar para eles, intrigado. Dava pena a expressão dele, bem obscurecida. Foi o riso do Nini que denunciou a marosca. E pronto: zás! Trabalhou o ponteiro na cabeça do Nini e depois acabou por se partir na do José. O silêncio era de ouro na sala e ninguém parecia disposto a quebrar o protocolo.
Virou-se para eles, visivelmente irritado.
«Venham ao gabinete. Já!»
Saiu da sala, logo seguido pelos dois que ainda conseguiam exibir um sorriso, mas o número dois. Foi uma galhofa. Naturalmente ficou um aluno à porta da sala. Era preciso dar o alarme quando os três se aproximassem da sala de aulas.
O Nini e o José voltaram pouco depois com as orelhas vermelhas e já exibindo o sorriso número três. Foi uma paródia geral. Queriam gozar e saiu-lhes o tiro pela culatra. A chegada quase imediata do Caça pôs outra vez a turma no mais profundo silêncio. Em termos de disciplina não havia melhor. Mas a dar aulas era uma desgraça. Nem sequer sabia que uma expressão equivalente a base era uma solução alcalina.
Com tantas faltas que o professor dava, Mário não se enganava na hipótese deste acumular outros cargos em Lisboa, não falando na verdadeira profissão, causa das exigências de tanta disciplina: um militarão de carreira.
Quando a boa nova chegava logo alguém fazia a inevitável pergunta:
«Quem tem uma bola?»
«Eu.» Dizia sempre o Tozé, o mais entusiasta do jogo da bola. Por assim dizer, o eterno dono da bola.
Formaram as equipas em pouco tempo e entregaram-se ao jogo com entusiasmo.
Quando a bola ia parar à vinha que confinava a sul com o telheiro tinham que ir dois ou três à procura da mesma. Era vê-los a saltar o muro e a subir o terreno íngreme que dava acesso à vinha. Mesmo ao lado situava-se a avenida dos cotovelos que ligava com a fonte. Davam-lhe esse nome pois, duas pessoas que se cruzassem, quase que se tocavam. A avenida era muito utilizada pelos pares de namorados como alternativa ao caminho que ia dar ao cemitério.
Mais complicada ficava a situação quando a bola caía no pátio do edifício onde costumavam fazer ginástica. Era privado e tinha um guarda vesgo e bruto como as casas. O Aníbal não perdia uma oportunidade para arrear forte e feio na miudagem. A operação de resgate da bola tinha que ser rápida antes que ficassem sem ela. O seu defeito de visão não impedia que estivesse atento às manobras dos viciados da bola, como lhes chamava o professor de ginástica.
Deu certo. O som propagava-se melhor através dos sólidos. Pelo menos uma vez na vida o Caça acertara uma para a caixa.
«É o comboio!»
Valeu-lhes já estarem perto da saída. Pernas para que vos quero. Em poucos segundos puseram-se fora do túnel. Sentiram a passagem do comboio que estremeceu tudo em volta.
«Ena pai, que monstro! Foi por pouco, Mário!»
Ficaram apardalados. As pernas, trémulas, não queriam responder às ordens do cérebro.
«Isto esteve mau!» exclamou Mário.
«E agora?»
Mas os sustos passavam depressa no tempo dos seus verdes anos. Um tempo de magia em que o acaso era a coisa mais bonita que podia acontecer. Nada tinham programado e, mesmo que estivesse, um minuto era o bastante para alterar o minuto seguinte. As histórias fantásticas de Mário e o seu dia a dia corriam em estradas paralelas que tinham constantes cruzamentos.
Em breve esqueceram-se da aventura no túnel, do homenzinho que se suicidou e também da sua amante, uma tal magana que eles suspeitavam ter-lhe metido desalmadamente os palitos.
Mário e o seu amigo Armando já estavam noutra. A dúvida punha-se: iam às pirites ou ao açude?
«Nem pirites, nem açude. Vamos mas é à gruta nova. Tenho cá um palpite que desta vez descobrimos um tesouro.» Opinou o Mário.
Olharam em frente e viram, lá longe, a abertura do segundo túnel. No monte à direita havia as pedreiras que tinham pirites, mas naquele dia iam subir o monte, até à gruta nova. Ficara a descoberto depois de uma derrocada. Nunca ninguém tinha entrado nela. A abertura era muito apertada e estava muito escuro lá dentro.
Começaram a escalar o monte. Era muito difícil subir aquela vertente, quase a pique, mas para eles não havia dificuldades intransponíveis. Habituados que estavam a subir às grutas, faziam-no com grande à-vontade.
O Armando foi à frente. Era o mais afoito a subir. Mário, como sempre cauteloso, tomava atenção às pedras a que se agarrava, não fosse uma qualquer delas estar solta. Preocupou-se pouco por ser ultrapassado pelo amigo.
Já no cimo, o outro voltou-se para ele.
«Cheguei primeiro!» exclamou ele, levantando os braços num gesto fanfarrão de vitória.
«Fizeste bem em ser cauteloso.» Disse Ernesto.
Mário gritou para o Armando, aterrorizado.
«Cuidado!»
Um milhafre enorme saiu da gruta, batendo forte as asas. O amigo desequilibrou-se e os pés resvalaram no chão pedregoso. A queda parecia inevitável.
«Aguenta-te! Eu vou ajudar-te...»
Felizmente que conseguiu agarrar-se a uma pedra firme.
«Foi por pouco! Donde veio aquele bicho?»
Das profundezas do inferno.
«O milhafre estava dentro da gruta.»
«Já não me apetece continuar aqui.» Admitiu o Armando, ainda em estado de choque por causa do susto.
«Então voltamos para trás. Por hoje basta de emoções. Dizem os entendidos que não se deve desafiar a sorte muitas vezes.»
«Quem são esses?»
«Aquelas pessoas que acreditam... deixa. Tenho a ideia mas não sei explicar.»
Se os entendidos soubessem o que tinha acontecido ao Armando uns dias antes, mais razão teriam no aviso que davam às pessoas que desafiavam a sorte vezes sem conta. A sorte de cada um era uma caixa de surpresas. Com pouco risco se morria; com muito se escapava. Era mesmo assim a sorte.
Mas dessa vez foram imprevidentes ao sentarem-se, só com o apoio dos braços, em cima da grade da varanda da dona Francisca, em frente ao quarto do Sérgio. Queriam saber se ele estava no quarto, mas o reflexo dos vidros da janela não deixava ver muito bem o que se passava no interior. Ideia estúpida, a que tiveram. Havia, de facto, horas de sorte e do diabo. Provavelmente o Armando debruçou-se mais para anular o reflexo que não deixava ver para dentro do quarto e descurou o apoio na grade. Mário ouviu de súbito o estrondo de um impacto e, quando olhou para o lado, já não viu o amigo. Pensou no pior e empalideceu.
Caído lá em baixo, no empedrado do quintal, o Armando gemia de dores. Felizmente foi só o susto, uma cabeça partida e uma esfoladela no cotovelo. Uma daquelas horas de sorte em que a morte rondava noutras paragens. Nunca mais esqueceria.
Apareceu a mãe, muito preocupada, olhando para Mário com ar reprovador. Desceu logo as escadas e foi socorrer o Armando.
«Eu não fiz nada, mãe!» balbuciou o Mário, ainda muito nervoso e com lágrimas rebeldes a escorrerem pela face.
E se o amigo tivesse morrido?
«Tenho um palpite.»
«Diz, Mário.»
«Hoje vamos apanhar uma perdiz!»
«Deves estar com febre...»
«Nunca gostei de atirar aos pardais. Não admira que a pontaria seja fraca. Mas tenho a certeza que vamos mesmo apanhar uma perdiz! Não me perguntes como, que não te sei responder. É cá uma fé. Das grandes, sabes?»
«Pois.» Gozou.
Tinham ultrapassado os limites da vila e a Fonte já ficara para trás. Iniciavam a subida íngreme que se seguia às duas torres de prospeção do petróleo. Um enigma, esta prospeção de que foi testemunha. Nunca se soube verdadeiramente se foi encontrado petróleo. E, em caso favorável, se a sua rendibilidade era satisfatória de modo a processar-se a extração.
«Há tempos atrás havia nesta zona mais torres. Disse-me um amigo alemão, o Otto, que selaram alguns furos o ano passado. O seu pai era engenheiro na empresa que fazia a pesquisa. Havia muito petróleo, mesmo muito, e não só aqui.»
«Então por que é que não começaram a extraí-lo?»
«Ficou de reserva.»
«E tu acreditaste na peta, meu cara de parvo.» Disse o Sérgio, em ar de gozo. «Se houvesse petróleo em quantidades razoáveis, não penses que ficava para reserva. Julgas que os nossos governantes iam mesmo perder a oportunidade de cobrarem direitos?»
«O Otto não era mentiroso. Ouviu o pai dizer.»
«O teu amigo já morreu?»
«Não, cruzes canhoto, que eu saiba, não! Porquê?»
«Falas dele como se tivesse morrido.»
«Voltou para a Alemanha com os pais e o irmão mais velho.»
«Ah! Assim já é outra conversa...»
Mais uma prova que não havia petróleo. Aliás, só tinha visto um homem na zona das torres. Devia ser o guarda.
A subida era íngreme. Pararam para ganhar fôlego. Os cães, demasiado gordos e luzidios pela boa comida que a dona Francisca lhes dava, que só iam ao quintal para correrem atrás de um gato que não era da casa, ou fazerem as suas necessidades, já traziam a língua de fora.
«Olha, estamos quase a chegar às pirites. São do outro lado do monte, a seguir ao túnel. Já não se encontra nada de jeito. Fala-se muito das pirites na escola, mas nunca descobri coisa que valesse a pena. Os colegas mais velhos contam que, há anos, havia por lá alguns cubos grandes e espelhados. Os que se apanham agora são cubos pequenos e já muito oxidados.»
«E onde foi que encontraram o milhafre?»
Ah!, o milhafre. Que dia aquele!
«Um pouco mais para a frente» apontou com o indicador.» Foi no dia em que eu e o Armando vimos a mioleira do homem que se suicidou no primeiro túnel.»
Não conseguiu evitar uma careta de desagrado.
«Vinham do lado da estação?»
«Sim.»
Não queria lembrar-se do dia da mioleira.
«E depois foram às pirites. Ou primeiro dirigiram-se até ao açude?»
No Inverno o açude era intransponível. O caudal do rio aumentava a ponto de galgar o açude. Só a partir do fim de Fevereiro é que podiam passar para a outra margem, mesmo assim com algum risco pois a água já cobria parcialmente a parede da represa. Um salto mal calculado, ou uma escorregadela e podiam ir desta para melhor, se caíssem para o lado da represa onde havia um fundão. O Armando era mais afoito e, talvez por isso, acontecia-lhe tudo o que de mais incrível se podia imaginar.
Nem uma coisa, nem outra. Tinham descoberto uma gruta e iam certificar-se se valia a pena explorá-la. Como de costume, na ponta final, o Armando adiantou-se. Queria ser sempre o primeiro a chegar. E foi mesmo o primeiro, mas não ganhou para o susto. O milhafre apareceu de repente, medonho, de asas muito abertas...
«Voltamos para trás?»
«Agora vamos descer para poente até encontrarmos um terreno que seja plano. Chama os cães que estão lá para a frente.»
Ainda bem. Se fossem para nascente davam de caras com o vale escuro. Um dia, numa prova Mocidade Portuguesa, quase se perdeu a correr pelo vale abaixo. Procurava um indício. De repente entrou num terreno com vegetação densa que começou a arranhar-lhe as pernas. Era medonho. Teve muito medo. Valeu-lhe encontrar dois colegas que também andavam mais ou menos perdidos. Três cabeças pensavam melhor juntas que uma.
Nunca mais lá voltou.
«Estão todos.»
«Ótimo. Podemos começar a descer a encosta.»
Cinco minutos depois já estavam em terreno plano. Eles e os cães. Era uma zona arborizada, aqui e ali, e também com vegetação rasteira, quase seca. Mais para nascente havia uma vinha que se estendia por uma grande superfície.
«Não ouves vozes?»
«Devem ser caçadores.»
Ouviram disparos e ladrar de cães, logo seguidos da resposta dos três que os acompanhavam.
«Shiu, Esmeralda e Peludo. Para aqui, Pérola. Já! Parecem feras à solta. Quem der de caras com eles apanham um grande susto. Mas são só aparências. Com toda esta chinfrineira ainda apanhamos um tiro dos caçadores.»
Perdizes. Horizontes perdidos. Nem vê-las. Também já não viam nada à sua frente. Em silêncio, o Sérgio desatou o saco branco e meteu uma mão dentro e tirou um embrulho à sorte.
«Toma uma sande. É de chouriço.»
«Vem mesmo a calhar. Estou cá com uma larica!»
«A outra é de queijo. É para mim. Os cães estão a olhar. Paciência, comem quando chegarmos a casa.»
«O pão está macio, mas o chouriço, esse tem muita gordura.»
«Tinhas sempre que dizer mal. Já sei o que a casa gasta. Ora come e cala-te. Mas que estás a fazer, Mário?»
«A dar-lhes o chouriço. Eles estão a olhar para mim, coitados. A Pérola é que fica sempre à porta da cozinha na altura do almoço a ver se escorrega alguma coisa. E tem sorte. Atiro-lhe umas nicas de carne que apanha sem deixar cair no chão. Tem cá um jeito!»
«Os animais vão ficar cheios de sede.»
«Ora, bebem por aí.»
«É bom nem pensar nisso.» Disse. «Para já, para já, não sabemos onde há água. Depois, se descobríssemos, era perigoso porque podia estar inquinada.»
Tinha razão. Não pensara nisso. Se a professora de Ciências ouvisse aquela conversa, dava-lhe na corneta. Tinha falado recentemente das águas puras e também das potáveis. As primeiras não eram próprias para beber porque não tinham sais minerais dissolvidos. Quanto às segundas, essas sim. Mas tinham que ser analisadas, pois podiam conter microrganismos patogénicos ou então compostos como fezes e também blá, blá, blá, blá.
«Pronto, já comi o pão. Agora vou tirar a fisga do bolso, não vá aparecer uma perdiz.»
«Para quê?»
«Para atirar às perdizes, já disse.»
«De certeza que sonhaste. Por acaso já viste alguma? E mesmo que ela apareça, é com essa fisga que a vais caçar?»
«É uma fezada, Sérgio. Por acaso nunca tiveste pressentimentos?»
«Tive. Claro que tive. Agora até estou a ter um. Se não nos afastarmos daqui o mais rapidamente possível ainda somos atingidos por uma chumbada dos caçadores!»
«Olha para ali...»
Milagre!
«Atira! Rápido!»
Não é que uma perdiz vinha na direção deles? Ritmo “29-30”, “29-30”. Certamente que fora atingida por uma chumbada de um dos caçadores que andavam perto, pois coxeava de uma pata. Os cães, nobres animais que nem umas feras, nem sequer tinham dado sinal do aparecimento da desgraçada da perdiz.
«Grande zarolho!»
Não teve tempo de justificar-se pela falta de pontaria. Deu conta que o amigo se baixara a apanhar um torrão.
Ia acertar com aquilo na perdiz?
Seguiu a trajetória do torrão e não quis acreditar no que viu. A perdiz foi atingida em cheio e ficou atordoada com o impacto do torrão. O que se seguiu foi caricato. O amigo correu para a perdiz e deu um mergulho, ficando a olhar para as mãos, cheias de ar. A segunda tentativa foi coroada de êxito. Uma perdiz! Tinha uma perdiz entre as mãos!
Quem diria?
«Dá-me o saco. Despacha-te, minha lesma!»
Mário ficara aparvalhado com a cena. Num ápice, a perdiz desapareceu no fundo do saco do pão.
«Que sorte!»
«Que sorte, não. Bem sabes que foi pontaria.»
Sim. Da outra vez acertou em cheio na cabeça do outro.
«Não é isso. A sorte foi termos encontrado a perdiz. Veio ter connosco. Mas sabia que apanhávamos uma perdiz. Tinha cá uma destas crenças!»
«De facto passaste toda a semana a sonhar com as perdizes. Tu e os teus palpites. Mas acertas sempre, Mário. Como é? Agora segue-se o mais difícil. Matar o bicho. E tem que ser dentro do saco. Pode aparecer um guarda e vamos para a choldra direitinhos que nem um fuso. Porque não temos licença de caça, não sabias?»
«Tens razão. E há outro problema: os caçadores devem andar perto à procura da perdiz. Admira-me muito os cães deles. São de caça e não rafeiros como estes.»
«Não lhes chames rafeiros, que se ofendem. Mas sabes o que quer dizer a palavra rafeiro. Deixa. De facto, não são de raça. Contudo, têm desculpa por não se terem atirado à perdiz. Lembra-te que até já conviveram dentro de casa com um coelho.»
«O Vicente?»
«Sim.»
«Se me lembro! Mas Vicente é nome de corvo...»
«E que importa?»
«Deixa, Sérgio. Mas já agora, o que é que aconteceu ao teu coelho?»
«Desapareceu. Alguém o levou.»
«Para o tacho?»
«Mário!»
Olharam em volta. Já não ouviam vozes nem o ladrar dos cães. Era chegada a altura das grandes decisões. Aproximavam-se momentos difíceis.
«Parece que se afastaram.»
Como se matava uma perdiz?
Era mais fácil tê-la a jeito no prato. Uhm! Perdiz estufada com batatas fritas e esparregado. E pão torrado no fundo, ensopado no molho. Que coisa mais sublime!
«Vá, aperta-lhe o pescoço. É o melhor processo.» Afirmou Mário, convicto.
«Apertas tu o pescoço. Assim está melhor dito. Não contes comigo para atitudes tão bárbaras. Bem sabes que não estou mentalizado para estas coisas. Tu, sim, que queimaste barbaramente as moscas e esmagas os caracóis com a sola dos sapatos, já para não falar de outras coisas.»
«Só tens garganta, Sérgio. Onde está a tua valentia?»
«E a tua? Vê-se muito bem que também não consegues.»
Guerra subversiva.
Mário encheu-se de coragem. Matar uma perdiz era coisa fácil, embora não de todos os dias. Já tinha ajudado mais que uma vez a mãe a matar um coelho. Agarrava nas patas traseiras do coelho e deixava-o pender. Depois, dava-lhe um golpe seco e certeiro na base das orelhas com a mão aberta, usando a zona da percussão. A mãe utilizava uma escova, mas ele gostava mais dar uma pancada seca com a percussão. Assim, tinha quase a certeza de matar o coelho com um só golpe.»
«Não me digas que não és capaz, Mário!»
«Estava a pensar nisso. Já o fiz com coelhos e sem o menor problema. Deixa cá ver esse saco. Disseste que era melhor não tirar a perdiz do saco...»
«Sim. É perigoso. Pode aparecer um guarda de repente ou um qualquer dos caçadores que andavam aos tiros há pouco.»
Aliviado, passou-lhe o saco do pão para as mãos. Ou melhor: o saco da caça.
«Que raio! Não consigo encontrar-lhe a cabeça...»
«Então, temos aí uma coisa parecida com uma mula sem cabeça?»
«Não brinques com coisas sérias, Sérgio! Ainda nos aparece o diabo...»
«Que se passa?»
«Parece que está de patas para cima.»
«Quem, o diabo?»
Olharam um para o outro e desataram a rir.
«Cala-te. Preciso de concentração. Ah!, cá está...»
Apertou, apertou. Torceu, torceu muito, sempre a olhar para o lado. Não conseguia enfrentar o saco de frente. A perdiz era frágil, pensou. E estava indefesa. Os coelhos sempre davam alguma luta. Não havia outra maneira de saírem do impasse?
«Já a mataste?»
«Julgas que é só atar e pôr ao fumeiro?»
Ouviram mais tiros.
«Acho que não estão longe.»
Olharam um para o outro. Perdiz sortuda que ia ter, pelo menos, mais meia hora de vida. Era a altura de baterem heroicamente em retirada. Não podiam abusar da sorte.
«Vamos. Ainda nos apanham!»
E lá foram os dois caçadores, correndo pela encosta abaixo, seguidos pelos três perdigueiros de olfato apurado e apetência bem à vista para a caça. Foi um gosto vê-los em ação. Eficientes, rápidos.
Pararam mais abaixo e fizeram segunda tentativa para matar a perdiz. Novo fracasso.
«Deixa. Levamo-la viva para casa.»
«Também acho. A minha mãe mata-a e depois faz um estufado de trás da orelha.»
«O quê?»
«Um estufado saboroso como nunca comeste, Sérgio!»
«Falas como se já tivesses comido muitas perdizes. Mas talvez tenhas razão. Sempre devem ser melhores que os frangos. Já para não falar nos coelhos. Nem sei como consegues comê-los, depois de os matares tão barbaramente...»
«Vai falando que eu escuto.»
Casa à vista. Sinal de perigo iminente. A mãe do Sérgio, podia descobrir que traziam a perdiz dentro do saco. Tinham que entrar no quintal como todo o cuidado, não fosse ela assomar à varanda.
E os cães?
Iam fazer barulho.
«Tens que os acalmar, Sérgio.»
«Deixa que eles vêm mais mortos que vivos.»
Pois sim, abelha. Vinham mais mortos que vivos, mas excitaram-se logo que entraram no quintal. Pareciam autênticas feras a atirarem-se a algo que tinham farejado. Assim, redimiam-se às portas de casa do mau rendimento que tinham dado.
«Um gato! Logo tinha que aparecer um gato que não é do prédio. Eu bem vi. Era o danado do Russo.»
«O Russo? Vamos ter complicação. Não podem nem cheirá-lo. Muito menos, vê-lo. E com este barulho todo a minha mãe já deve estar à varanda a dar fé do que se passa.»
Criaturas iluminadas. Crânios esclarecidos. Para a missão ser coroada de êxito, o Mário devia ter entrado pela porta e não pelo portão poente.
Enfim, demasiado tarde para alterarem a estratégia.
«Marinho...»
Problema dos grandes para resolver. Encontrar uma estratégia para “salvar” a perdiz das mãos da mãe do Sérgio. Ainda sonhava com a iguaria do outro mundo que era um estufado de perdiz na fatia frita em azeite. E com batatinhas, claro.
«Era só o Russo que resolveu causar sarilho. Já sabe que os cães não podem com esse gato.»
«Bem sei que não. Mas que trazes nesse saco, Marinho?»
Olharam um para o outro. Adeus, perdiz estufada. Tanto sonho, tanto sonho, mas para nada. Ainda mais uma tentativa, já sem esperança:
«É... o saco do farnel.»
«Mostra lá, meu filho...»
A dona Francisca já estava no quintal. Qualquer coisa lhe dizia para verificar o que continha o saco.
«Oh!, é uma pobre perdiz! Onde a encontraram, seus mariolas?»
Aparecera, de repente, a coxear. Tinha levado uma chumbada dos caçadores e eles, com muita pena dela, esconderam-na no saco do lanche. Coitadinha. Estava muito assustada.
«Depois ia sendo um drama» Mário olhou para o Sérgio. «O Peludo, que é um grande caçador, quis logo abocanhá-la e foi um caso sério.»
«Uhm! Peludo! Não se faz mal à perdizinha, que ela é amiga. Temos que tratar desta pata. Fizeram muito bem, meus filhos. Pega na perdiz, Sérgio. Coitadinha! Ia morrendo. Se não fossem vocês...»
«Eu... eu vou almoçar.»
«A tua mãe já perguntou por ti, Marinho. Vai lá, meu filho...»
Subiram a escada em procissão. Primeiro, os cães de caça. Depois, a mãe do Sérgio. Finalmente, os dois. Silenciosos. Vencidos. Trazendo na mente os farrapos de um sonho destruído pela falta de clarividência por não terem descoberto o ovo de Colombo: um deles devia ter entrado pela porta principal com a perdiz.
Para Mário foi o primeiro e último dia de caça. De futuro, perdiz só se fosse no prato.
Mais tarde, tanto ele como o amigo, recordariam, com um misto de ironia e frustração, essa manhã mágica em que o Criador lhes pôs à prova a perícia de “assassinos” frustrados de uma perdiz fugitiva do chumbo fatal e que quase caiu na boca do lobo, quando, transformada em “29-30”, veio ao encontro deles. Valeu-lhe a falta de coragem que tiveram para a matar. E outra coisa: não foi por acaso que entraram com os cães pelo portão do lado poente. Quando a mãe do Sérgio descobriu o conteúdo do saco, certamente pensaram que mais teria valido a pena nessa manhã terem perdido o seu tempo à procura de pirites cúbicas ferrugentas.
Os casos dos gatos, das moscas e das histórias pitorescas do Comico, e outras mais, não foram afinal o alicerce da sublimação dos verdadeiros sentimentos de Mário, mas sim meros jogos que o prepararam para a selva que iria enfrentar no futuro, onde estavam à sua espera, por exemplo, tentáculos macios e volúveis de mulheres envolventes, que ora pegavam ora largavam conforme o lado de onde o vento caprichoso soprava, deixando sonhos pelo caminho, substituídos por novos sonhos que voltariam a ter o mesmo fim. Por muitas vezes teria consigo a perdiz, gostosa, para a comer; todos os dias, todos os meses, até que descobria não estarem os dois na mesma órbita do acontecer e daí os sinais de azia que viriam a instalar-se de uma forma crónica.
Seria sempre assim, ou não fosse um contador imperfeito de histórias.
«Sorte a minha» pensou. «Esta moeda chegou em boa altura...»
E se bem o pensou, assim o fez.
Provavelmente não tinha pensado em nada. Mas que a moeda de dez tostões deu jeito foi um facto incontestável. Vejamos porquê. Um dois três, abafador? Não. A época do berlinde ia longe quando o agosto despontava, anormalmente quente. Era o tempo das festas, dos foguetes e dos fogos no campo. Os pirómanos aproveitavam-se para satisfazer os seus desígnios doentios, os madeireiros agradeciam e o governo prometia pôr em prática a estafada crónica cruzada do ordenamento do território para ser feita "ontem" e nunca mais. Já naqueles tempos era assim (Mário, com a sua tenra idade, estava longe dessas guerras) e não haveria volta a dar nos tempos que estavam para vir.
Mário deixou de pensar nos berlindes, afastou para longe a ideia do jogo do pião e das corridas dos bichos de contas. Também não estava para fazer os estafados relatos da bola com os "bonecos" da coleção aos amigos.
Então...
«Marinho!»
Voltou-se. Acabava de contornar o passeio que ligava a sua rua com a dos bombeiros.
«Ah... És tu.»
«Quem pensavas que fosse?, o fantasma das cuecas rotas?»
«Deixa-te de graças, Slimpas. Primeiro, não sou o Marinho. Tenho quase treze anos e já nada tenho a ver com "inhos".»
«Desculpa-me, Mário. E segundo?»
«Segundo não estou para graças com essa do fantasma.»
Para fantasma já chegava o célebre doutor Bandeira, o tal senhor que nunca deu os bons dias a ninguém, muito menos depois de morto.
«Bom, parece que acordaste com os pés de fora. Adiante. Que queres fazer? A malta está à espera no jardim.»
O velho jardim completamente destruído e imaginado por uns tantos futuristas da treta.
«Achas que aquela merda tem alguma coisa onde se pode pegar?»
«Quem pode pegar na merda, Armando?»
«Tens razão, Marinho. Desculpa, Mário. De qualquer forma, merda ou coisa parecida está lá e também estão lá os nossos amigos.»
«Quem?»
«O Farinha, o Vítor e o Zeca. Estão a pensar ir à ladeira de bicicleta.»
Não era má ideia. Aliás já tinha pensado em dar umas boas pedaladas, mentiu a si próprio. De facto não sabia muito bem o que fazer antes de encontrar o Armando no cimo da rua. Sabia o que não queria, mas não sabia o que queria.
«Então, vamos, lorpa. De que estás à espera?»
«Só há um problema...»
«Diz lá.»
«Tens cacau contigo?»
Bem lhe parecia que o dinheiro que achou veio em boa altura.
«Dez tostões» mostrou-lhe a reluzente moeda de alpaca. «Achas que chega para os dois?»
«Chega e sobra. Uma hora para cada um até é de mais. Amanhã pago-te.»
«Está bem.»
De facto os amigos estavam no jardim.
«Não vais contar as tuas histórias horríveis, pois não?» perguntou o Farinha.
«Registei.»
«E o que queres dizer?»
Mário fez um gesto largo de desagrado.
«Quando um de vocês me pedir para contar outra vez a história do Comico, já estás avisado que ficas de fora. Vais dar uma volta ao bilhar redondo e desamparas-me a loja.»
«Vá lá!» disse o Vítor. «Ele só estava a gozar.»
«Ao menos ficamos livres deste bufarinheiro. Não preciso da sua animação peidística para ilustrar as minhas histórias. Mas vamos lá então a combinar o que se vai fazer.»
«Está feito. O caminho é até ao princípio da ladeira e depois ficamo-nos pelo jardim. Está muito calor.»
Eis senão quando...
«Olha o teu amiguinho Caracol!»
Mau mau, Mário...
«Ainda bem que te encontro.»
«E então?»
«Foste dizer ao Luís que andei metido com o "cinco atores" numa daquelas cenas...»
«E é mentira?»
«Não. Mas sabes muito bem que não sou só eu que molho a sopa. Tu próprio...»
Os olhares viraram-se para o Mário.
«Quem te disse?»
Os olhares viraram-se para o Caracol.
«Não posso dizer.»
«Mentes.»
Os olhares viraram-se para os dois, já engalfinhados numa luta que prometia sangue, suor e lágrimas.
«Que bom!» devem ter pensado os não intervenientes.
E de facto a luta acabou em sangue, suor e lágrimas. Os dois valentões terminaram a refrega sem chegarem a uma conclusão sobre a veracidade da acusação. E dizer que o Caracol se afastou do grupo mais rápido que um caracol não era faltar à verdade.
«É verdade, Mário?» perguntou o Farinha, depois do Caracol afastar-se.
«Que achas?»
«Não acho nada.»
Fez-se silêncio por alguns segundos. Isso significava ponto final.
«Vamos alugar as bicicletas?»
E foram.
A casa das bicicletas ficava perto da praça, logo a seguir ao Xóxa, o guardião do urinol público da vila. Mário só em última instância o utilizava porque não gostava lá muito do cheiro a potassa e creolina (ou lá o que era) que lhe entrava agudamente pelas narinas. E havia a tosse cavernosa do Xóxa de fraca figura a condizer com aquele ambiente de mau cheiro.
Em menos de dez minutos chegaram ao desvio que dava para o jardim, com a ladeira à vista. E, conforme o combinado, não a subiram e Mário aplaudiu.
A alameda foi corrida na maior das calmas em virtude das crateras que o piso mostrava. O inverno tinha sido chuvoso mas não servia de desculpa para tanta incúria de quem recebia os impostos dos cidadãos e aplicava-os em tudo menos no arranjo, por exemplo, daquela alameda.
«Que fazemos agora?» perguntou o Armando Slimpas.
«Tudo menos beber água.» Sentenciou o Mário.
Sabiam porquê. Aquela água era salobra até dizer basta.
Mas nunca digam nunca, Mário e amigos. Já não era a primeira vez nem seria a última.
«Eu vou apanhar uma folhas de amoreira.» Disse o Farinha.
«E eu vou às nêsperas.» Decidiu o Zeca.
«Nêsperas em agosto?» gozou o Slimpas. «Só se for uma nêspera daquelas que eu cá sei.»
Não foi preciso mais. Todos pensaram no Vítor (inclusive ele), na avenida dos cotovelos e nos passeios, não solitários, de uma certa menina da escola pelas margens densas, tufosas, tão convidativas às segóvias e a outras coisas afins.
«Os alemães o quê, Vítor?»
«Nego. N-e-g-o! Queres levar uma pera, Armando?»
«Dá lá...»
«Bom» desanuviou o Mário. «Vamos até ao rio. Que acham?»
Por que motivo o Vítor escondia uma verdade incontestável?
Mário não dominava muito bem a bicicleta. Fazia o que podia na cauda daqueles loucos varridos que não temiam o rio lá em baixo, sem água, é certo, mas lá em baixo.
«Então?» virou-se o Zeca. «Os outros já lá vão ao fundo.»
«Deixa-me. Gosto de ir nas calmas.»
«Sabes que sou teu amigo. Ai!»
Virado para trás não conseguiu evitar um ressalto que fez desviar a bicicleta do seu rumo, felizmente para a direita.
Mário apeou-se num relâmpago e dirigiu-se para o amigo, entretanto estatelado no chão.
«Estás bem?»
«Estou. Foi só o susto. Não contes nada aos outros para não gozarem comigo.»
«Claro que não. Fica descansado.»
E lá seguiram.
Foram encontrar os outros no jardim, dando saltos para agarrarem uns troncos de uma árvore frondosa.
«Finalmente chegaram. Que andaram a fazer?»
«Punhetas a grilos.»
«Atenção! Vem aí o guarda!»
Ala que se faz tarde antes que sejam corridos à pedrada.
«Vamos para a vila. Sigam-me. Quem chegar em último é maricas...» Disse o Slimpas, sempre o mais destemido e também mais azarado de todos.
Até parecia que a alameda não tinha buracos. Num instante chegaram à estrada e cada um seguiu à velocidade que podia.
Então aconteceu aquilo que se podia considerar um fenómeno. Mário perdeu o medo e acelerou a bem acelerar, passando com facilidade pelos outros. Afinal era mais fácil do que imaginava pedalar com força e controlar a máquina.
Já à entrada da vila havia uma passagem por baixo da ponte do caminho de ferro. Enfronhado como estava na corrida e no êxito que estava quase a alcançar, Mário não abrandou o suficiente na curva que dava acesso a uma rua de piso arenoso. Mas o pior estava para acontecer porque logo a seguir à curva havia uma pedra no meio do caminho e pumba catrapumba arroz queimado. A roda dianteira embateu na pedra, o Mário voou até à estratosfera e aterrou sem paraquedas na areia saibrosa. Quase logo a seguir, os outros passaram sem mais sobressaltos e Mário nunca mais os viu.
«Nem o sacana do Zeca parou!» pensou.
Era tal a vontade de não serem apelidados de maricas que até cegaram a ver uma cena claramente vista.
A contas com um joelho deitado abaixo e uma ou outra mazela, Mário preocupou-se mais com estado da bicicleta. Um pedal partido e a roda da frente empenada. Era o que estava à vista.
«Porra!, tenho que ir a pé.»
Felizmente que a casa das bicicletas não era longe.
Mas que ia dizer na oficina ao dono das bicicletas?
Nada. Não era preciso dizer nada, decidiu.
E assim foi. Não foi preciso dizer nada. Encostou a bicicleta adoentada às outras que se alinham conta a parede e também umas contra as outras, desceu a rua evitando a porta da oficina, passou junto à antiga casa da mestra e encaminhou-se para o centro da vila.
Era tempo de chorar sobre as mazelas, meditar que podia ter acontecido pior se, em vez do pedregulho, tivesse encontrado um carro atrevido à hora errada e no sítio errado. E mais: também era tempo de decidir que, em vez de chorar, mais valia sorrir à vida que só se vive uma vez. E ainda outra coisa como consequência: ter a certeza que o Slimpas lhe ia pagar os cinco tostões que lhe devia.
O REI DA TURMA
As manhãs muito frias de inverno davam-lhe um gozo imenso. Mergulhava as mãos gélidas nas poças das ruas esburacadas e tomava contacto com as placas delgadas de gelo. Não trocava essa sensação agradável por um berlinde. Nem que fosse por um abafador. O papa ou o caracol, por exemplo. Mas tudo tinha um preço e no caso do contra mundo já as coisas mudavam de feição. Uma peça fundamental nas consequências do jogo nunca se podia pôr de parte. Tinha que ser bem negociada.
Acariciou o gelo até não poder mais. Depois, com as botas cardadas, foi esmagando as placas de gelo, de espessura mínima, contra o solo, encontrando sempre água líquida que deixava ensopar nas botas até que repassava para as peúgas de lã. Sabia que ia ter algum desconforto, mas compensava o prazer do momento.
O tempo não se compadecia e as aulas esperavam por ele. Já com as mãos aquecidas pela reação forte que o gelo causava, despedia-se do prazer daqueles breves momentos e, de sacola às costas, corria para a escola, veloz como um gamo. Era tempo. O professor estava a chegar. Gostava das aulas mas havia nele certas atitudes que não tolerava. Tinha um prazer enorme, até dizer chega, em gozar os alunos sempre que os apanhava em falta. Não lhes batia, mas, pior ainda, massacrava-os com palavras que feriam como agulhas. Era raro acontecer com ele. Talvez por ser bom aluno, ou por o professor ser amigo do seu pai. A reforçar, defendia-se, tomando sempre o máximo de atenção nas aulas. Mas às vezes acontecia distrair-se e logo tudo se desmoronava à sua volta quando o professor o apanhava em falso. Então chorava, muito sentido porque professor chamava-lhe, causticamente, chorincas e os colegas repetiam, em coro afinado:
«Chorincas, chorincas!»
Iam todos juntos para o inferno. Ah!, se conseguisse descobrir como o Mandrake criava a magia!
Mas quando o professor começava a falar de um herói da sua preferência e dos seus feitos históricos, entusiasmava-se deveras e esquecia todos os rancores e depois o receio de ser apanhado distraído e passar pelo vexame de gozarem com ele. A história empolgava-o. O professor tinha o dom quase hipnótico de o transportar para o campo da ação. As cenas mudavam a todo o momento. Assim vinham as inevitáveis cavalgadas fantásticas e os golpes de montante, com os heróis da História de Portugal em desfile. Pouco a pouco ia-se metendo na pele do herói daquele dia. A voz do professor ficava mais distante, cada vez mais distante. Abstraía de uma vez por todas e logo os cavalos e os seus cavaleiros atravessavam o branco da parede, quadro negro, branco da parede, num galopar louco.
Lá ia ele, perseguindo o inimigo que deixava atrás de si uma cortina de pó. Não podia escapar. Estava cada vez mais próximo. Havia muitos cavalos sem cavaleiros em corrida descontrolada pela planície. O pó levantava-se ainda mais e agora não deixava ver nada em frente. O inimigo? Ia deixá-lo fugir. Sem apelo nem agravo. Não contava com a densidade do pó.
Mas que acontecera?
Não queria acreditar no que os seus olhos estavam a ver! Inevitável. De perseguidor transformava-se em perseguido. O adversário tinha companheiros. Eram pelo menos cinco no seu encalce. E o Mário soluçava ainda mais sentido, desejando com força que tudo acabasse de repente. Por exemplo, o telhado podia desabar de imediato. Era mágico e nada lhe ia suceder. Bastava encarnar no Mandrake, um herói da banda desenhada, plasmado no "Mundo de Aventuras", e estender um braço para acontecer magia e escolher o castigo para todos que gozavam com os seus sentimentos. Talvez um tremor de terra. Um tremor de terra era o fenómeno mais eficaz de resolver o seu problema. Ia o professor. Iam os colegas.
Virou-se para trás e refreou um pouco o galope do cavalo. Resultou. Um a menos. Trespassou-o com a espada. Arrepiou-se ao ver o sangue espirrar do tronco do infiel depois de puxar, com um gesto brusco, a espada para trás. Recompôs-se quase de imediato. Os inimigos iam experimentar a força e a fé do cavaleiro. Olhou em volta. Só via cadáveres espalhados pelo chão. Agora a luta resumia-se a uma ou outra escaramuça. A situação era delicada. Tinha que ter cuidado. Oh! Foi por pouco. Esquivou-se a tempo e não falhou. Mais um a morder o pó do chão. Depois, outro. Trespassou-lhe o coração. As forças faltavam-lhe e ainda havia dois cavaleiros para apear. Mas para ele não havia limites. Fantástico! Mais um golpe poderoso e demolidor.
Como se tinha lembrado do truque?
Fingir que fugia e depois atacar de flanco.
Faltava um. O mais difícil. Pela armadura devia ser um poderoso senhor tribal montado num belo cavalo negro.
Ficaram frente a frente, preparando-se para o combate final. Ia ser muito difícil. Mesmo muito difícil. O comprimento da lança nunca mais acabava. Benzeu-se. Talvez não conseguisse vencer o temível sarraceno. Tinha sérias dúvidas, agora que o momento da verdade se aproximava. Mas não fugia, nem se deixava fazer prisioneiro. Nunca! Lutaria até ao fim, como fez D. Sebastião. Mas foi verdade?, aconteceu mesmo, como contaram, com o "rei desejado"?
Fez um gesto de deixa para lá com braço. Aquela crença do rei voltar numa manhã de nevoeiro para erguer o Império era mesmo estúpida. Só quando as galinhas tivessem dentes seria possível acontecer.
Apesar das suas dúvidas pensadas atrás, a ter acontecido o que aconteceu e como aconteceu, tornou-se uma lenda viva, tão viva que chegaria então numa manhã de nevoeiro. Libertou-se assim da lei da morte.
E os seus bravos soldados, que era feito deles?
Infelizmente tinham sido aprisionados ou jaziam mortos, apodrecendo nas areias escaldantes do deserto.
Voltando...
Estava só. Frente a frente com o poderoso senhor tribal. Cercado. Completamente perdido.
«Foi assim que aconteceu.» Pensou. «Os inimigos eram muitos. Tinham avançado em vagas sucessivas, vindos do lado oculto das dunas.»
Julgou que tinha chegado o último minuto. Até que...
«Olhem quem está na lua! Mário, que foi que eu disse?»
«Chorincas, chorincas!» anteciparam-se os colegas, de novo num coro perfeito.
Mas desta vez cerrou os lábios. Ficou muito sério vermelho como um pimento maduro, mas não chorou. Valente Mário! Foi pena aquela refrega com os infiéis não ter chegado ao fim.
Depois havia as malditas aulas do padre Luís. Detestava o padre Luís e as suas aulas, tão cheias de beatices e rituais de torturas psicológicas. Detestava também as beatas falsas que o cortejavam. E o homem não era de ferro, ouviu dizer o tio Sadio.
Aliás, tinha ouvido dizer que, ao fim de semana, o padre Luís montava a sua moto potente e rumava para Lisboa. O que ia fazer, não sabia. Mas desconfiava. Adiante. Não interessava.
Aquele padre era cruel quando aplicava o seu olhar de lince que nada deixava escapar. À entrada e à saída da aula todos os alunos tinham que beijar-lhe a mão, num ato de pura vassalagem. Rebelde como era e influenciado pelas ideias anticlericais do pai, quando podia tentava escapar, misturando-se com os colegas que já tinham feito o beija-mão, mas o padre Luís não o perdia de vista e sorria, cinicamente, ao mesmo tempo que lhe apontava o grupo de alunos em fila de espera para o ritual. Então ficava muito vermelho, quase a explodir para dentro. Se pudesse fugir, ou fazer mais um gesto mágico como os do Mandrake para transformar o padre Luís num rato minúsculo ou numa abóbora (isso da abóbora foi na história da “Gata Borralheira”?), e dar um valente pontapé no rato, ou pisar a abóbora, então este nunca mais o chateava.
Na primeira classe foi diferente. A professora tinha muita simpatia por ele porque era o melhor aluno da turma e quando se ausentava da aula deixava-o no quadro a tomar conta dos colegas.
«Mário, eu não me demoro. Entretanto, toma nota dos nomes de todos os alunos que se comportarem mal.»
Virou-se para os alunos.
«Meninos, quando eu voltar o Mário vai contar todos disparates que fizerem. Não se atrevam...»
Mário no quadro. Missão de alto risco. Giz na mão. De olhar penetrante e parecido com o do padre Luís, o pequeno ditador não perdoava o mínimo sussurro entre os colegas. Sentia-se o senhor da turma ao assentar no quadro o nome dos colegas que saíam das marcas. O quadro ia ficando preenchido de nomes. Seguiam-se as negociações. Um lápis de cor por um nome apagado. Um berlinde simples por uma ida à casa de banho. Quando o caso era grave, talvez que um abafador resolvesse o problema. Mas a negociação tinha que ser rápida.
Invariavelmente, quando a professora voltava, dizia que todos tinham ficado calados a fazer os trabalhos. Nunca denunciou um colega. Mas quanto às contrapartidas, era para esquecer, Mário!
«Grande diabrete! Devias devolver as coisas aos teus colegas. Alguns são muito pobres...»
«Ernesto?»
«Diz»
«Alguma vez foste criança?»
Entretanto a professora já tinha entrado na sala de aulas. Tudo bem. O quadro não tinha nomes.
«Mário, leva o Carlos e o Tomé lá para fora e trata de lhes meter na cabeça a tabuada. Faz com que esses burros aprendam alguma coisa. Canta com eles até saberem a tabuada assim a assim.»
Assim assim porque não se podia exigir mais.
«E se eles se portarem mal, já sabes o que fazer. Chamas-me logo, está bem?»
Olhava para a professora a medo e dizia que sim com a cabeça.
«Sê paciente com os desgraçados porque estão mal alimentados e não conseguem concentrar-se. Alguns talvez comam sopas de cavalo cansado. Sabes o que isso significa, não sabes?»
«Cala-te, Ernesto de um raio! Se eles não aprenderem a tabuada, a professora trata-me da saúde. Queres ir para o meu lugar?»
Saiu com os dois colegas e dirigiram-se os três para sul. Encostado à parede amarela do edifício havia um banco corrido, onde se sentaram. Pouco depois começava o treino de tabuada.
Mário apertou o mais que pôde com os desgraçados dos colegas só para ficar bem visto pela professora.
A GRANDE AVENTURA
Todos temos, de vez em quando, um dia mau. E hoje aconteceu. É mais um estado de alma que uma doença de natureza fisiológica. Estou para aqui a viver com a minha solidão, esquecido de tudo e de todos. Arrasto penosamente o meu fardo e olho para trás, triste, mas já não vejo o mínimo rasto do paraíso que perdi. Se errei ou não, pouco interessa. Não pretendo fazer o juízo final às decisões que tomei, pois já não há nada a fazer. Resta-me esperar que o tempo continue a corroer, um a um, os dias que me restam nesta imitação de vida onde sou o artista principal. Já não sei improvisar. Por mais que queira atingir o amanhã que me espera, fico pelo caminho hesitando entre os simbolismos da rosa vermelha e do cardo da flor azul, tão grande é a dúvida, tão extenso é o leque de rosas e cardos.
Mas basta de chorinho, mesmo sabendo que me encaminho, a passos largos, para a única região aonde não quero chegar, em que vivem ou deixaram de viver os esquecidos de Deus e também dos mortais. Um limbo frio, implacável e sem retorno.
Fui sempre o mesmo. Dono e senhor do azul constelado dos que nunca se desligaram do passado exemplar que não tiveram, sonhando com o que perderam, abraçando a sensação e a força de possuírem tudo e nada terem.
Agora, chamando a mim todos recursos, quiçá da fantasia, quiçá não, será que existem as tais portas que funcionam nos dois sentidos, sem chave para entrar ou para sair, mas que abrem sem aviso?
Será que estou a viver, alternadamente, num e noutro lado, onde se confundem o real e o fictício?
Os cenários onde se está desenrolar toda esta viagem fantástica serão diversos e dinâmicos e as recordações terão como principal objetivo chamar à boca de cena todos os que foram desagregados, átomo a átomo, ou melhor, aquilo que fica imutável depois da morte.
E o que é aquilo?
Chama-se alma, enteléquia que vagueia ou não em penitência. Chama-se espírito do amor ou espírito ao serviço de Satanás. Manto do fictício. O que quiserem chamar. Tanto faz. Mas haverá também o real, ou seja, a contracapa onde a verdade começa e acaba, uma espécie de serpente a morder a cauda. Um rodopiar constante. Uma busca, quem sabe, uma eterna busca.
As recordações virão em força adornar a construção das histórias que ficam sempre inacabadas, porque resultam de viagens interrompidas por outras que se seguem e dirigidas para o centro delas próprias, donde são sacadas. Basta um simples mergulho neste centro criado e acende-se uma luz fictícia, um nome sobressai e depois começa a história. A nossa história, esta com um cenário fantástico de reflexos dourados.
Mas quem é o Mário, contador de histórias desde tenta idade aos seus pequenos amigos e não só?
Apenas uma franja obscura de um outro contador de histórias, ou o próprio centro de gravidade das mesmas?
Talvez não seja tão importante descobrir a verdadeira natureza ou identidade de Mário.
Agora que, após muitos anos domiciliado fora da sua terra natal, ele regressou às origens, é fácil prever que mais histórias saltem do seu recheado baú de recordações. Dos tempos da sua infância, em que foi, sucessivamente, Marinho e Marinho (quase Mário). Dos tempos em que se tornou Mário. E dos tempos em que foi Mário, Mário, só Mário.
Obra do acaso, ou talvez não, voltou à sua antiga rua. Isto após uma passagem curta por aquela que foi a sua casa no designado "fim do mundo" que, um dia, também virá do centro das histórias. É só uma questão de deixar passar tempo.
O seu quarto tem um avançado de contorno poligonal. Daí pode ver a rua onde ele e o inseparável Slimpas se envolveram em inimagináveis jogos do berlinde e foram roubados, mais que uma vez, pelo tenebroso Orelhudo, a mesma rua onde o Sérgio rachou a cabeça a um incauto desafiador das palavras com uma pedrada certeira, baldados os esforços do pequeno Mário para desviar no último momento a trajetória já destinada, onde também se localiza o ponto de partida para o jardim do saudoso coreto e do impagável Comico que fingia trabalhar que trabalhava.
Já foi várias vezes ao avançado olhar lá para fora. Estranhamente, como um foragido, não sobe as persianas, limita-se a espreitar entre as lâminas de plástico algo empoeiradas a rua alcatroada, o cruzamento de ruas, a casa onde já não mora o Slimpas, que infelizmente, já não mora em casa alguma, bem como o Vítor, o Farinha e vários outros, o gradeamento que limitava a propriedade do doutor Bandeira, para lá do qual ele imaginava, algures, a deslocar-se o fantasma tentacular do falecido, quase em vias de o agarrar e na realidade nunca o chegando a fazer.
Mário recorda-se de muitos momentos vividos. Também sabe que há outros na calha para serem recordados. Precisa de tempo. Por enquanto só vê imagens difusas, sem sequência. Tem que ser paciente. A memória há de acabar por desenterrar outros momentos vividos. Entretanto contenta-se em recordar fragmentos. Por exemplo, vê-se a caminho da escola primária. As manhãs muito frias de inverno que lhe davam um gozo imenso.
Mergulhava as mãos gélidas nas poças das ruas esburacadas e tomava contacto com as placas delgadas de gelo. Não trocava essa sensação agradável por um berlinde. Nem que fosse por um abafador. O papa ou o caracol. No caso do contra mundo já as coisas mudavam de feição. Uma peça fundamental nas consequências do jogo nunca se podia pôr de parte.
Acariciou o gelo até não poder mais. Depois, com as botas cardadas, foi esmagando as placas de gelo, de espessura mínima, contra o solo, encontrando sempre água líquida que deixava ensopar nas botas até que repassava para as peúgas de lã. Sabia que ia ter algum desconforto, mas compensava o prazer do momento. O tempo não se compadecia e as aulas esperavam por ele. Já com as mãos aquecidas pela reação forte que o gelo causava, despedia-se do prazer daqueles breves momentos e, de sacola às costas, corria para a escola. Era tempo. O professor estava a chegar.
O outono avança pelo inverno adentro e a época das chuvas teima em não mostrar a cara. O verdadeiro verão aconteceu a meados de setembro, repetiu-se em outubro e ameaça continuar, pelo menos, nos primeiros dias de novembro. A temperatura está anormalmente alta. Mário ainda não usou os blusões de cabedal, nem tão pouco os casacos azuis-escuros de dois botões e as calças cinzentas de toque clássico. Também as gangas azuis e as pretas. As cremes, quase pôs de parte. Finalmente, as camisolas de lã, mais usadas ao aproximar da noite. É certo que é um homem encalorado e suspeito por esse motivo, mas confirma-se que o clima mudou e muito. Talvez que grande parte do ónus não caia sobre ele. Seja como for, se a mudança do clima não for detida em breve, as consequências poderão ser o caos, a desintegração e a violência. E mais. Aumentarão os conflitos locais, nacionais e internacionais.
Chuva, precisa-se urgentemente de muita chuva. Está a fazer falta à agricultura e as albufeiras estão sedentas de água.
«E eu que não me lembro de mais nada» cogitou. «Chuva, muita chuva... Há qualquer coisa que tem a ver com a chuva e não me lembro!»
Aproximou-se de novo das três janelas do avançado e desta vez subiu os estores da que estava virada para a parte poente. O sol já ia baixo. Nada se passava na frente dos seus olhos além do movimento habitual de automóveis e peões.
Chuva, muita chuva. Como está a fazer falta a chuva! Vai haver descida de temperatura amanhã. Um sustentáculo bom para a propagação da virulenta gripe A. Esta pandemia vai prolongar-se por três meses. Pelo menos. Espera safar-se. A última vez que teve uma gripe a sério, que o reteve na cama durante uma semana, aconteceu quando tinha catorze anos. Foi quando escreveu a primeira e última história, baseada no romance "As minas de Salomão". Não gostou do que escrevi e rasgou em pedaços as folhas da sebenta. A escrita das suas histórias estava destinada ao seu amigo de sempre.
Mas vamos à história onde Mário teve oportunidade de conhece um dos heróis da banda desenhada.
Mário acordou sobressaltado. Acabava de sair de um pesadelo horrível, daqueles que costumava ter de vez em quando. Duras refregas na rua com os inimigos. Dominava-os sempre com facilidade, pegando neles como se fossem bonecos e projetando-os à distância. O curioso é que nunca morriam nem sequer apresentavam feridas perigosas. Levantavam-se de imediato e desapareciam de cena. Raramente voltavam à luta. Ele era o maior. Ninguém lhe fazia sombra.
Mas... quem era aquele homem que crescia para ele?Pera doce não ia ser de certeza. Crescia a olhos vistos e aproximava-se lentamente, mostrando o semblante duro, monstruoso. Não. Não era igual aos outros. Aos bonecos de trapo a quem dava o devido tratamento com uma eficácia surpreendente.
Foi forçado a recuar.
Que estratégia a seguir?
Nenhuma lhe ocorria e o monstro estava quase a alcançá-lo. Iam inverter-se os papéis. Enquanto o monstro se aproximava, Mário recuava. Não tinha outra hipótese senão fugir. Mas para onde? Ia ser agarrado como se fosse uma pena e esborrachado contra a parece. E isso não queria. Então...? Já sabia. Era o costume. Só podia fugir, voando. Tinha esse dom. Já o fizera num fim de tarde quando estava com o Armando em cima de uma árvore tombada, agonizante, condenada a desaparecer do velho jardim da vila que já nem coreto tinha. Contava nessa altura ao amigo as desventuras de um jardineiro chamado Comico quando viu o polícia lá em baixo, olhando com ar ameaçador para eles. Então, esqueceu momentaneamente o próprio amigo e voou. Voou livre. Como livre era o pensamento.
Recuou mais dois passos e não viu outra hipótese para fugir ao monstro senão abrir os braços e subir no espaço escurecido pela noite. Subir cada vez mais alto até ficar longe do monstro.
«Espuma de raiva, monstro horrendo. Já não me podes alcançar! Se te apanho, se te agarro ficas do tamanho de um cigarro...»
Subiu mais no espaço a perder de vista e deixou-se ficar lá no alto, mais próximo da morada das estrelas. Tantas! Cada vez maiores aos seus olhos deslumbrados. Ah!, Mário... como é bom sonhar!
«Sinto muito calor. Pobre de mim que vou ficar que nem um torresmo. Pior ainda. Feito em nada.»
Certo, Mário. Neste momento és nada porque tudo o que te está a acontecer não passa de um sonho. Vem! Volta à Terra. Assenta bem nela os teus pés. Sabes? O monstro não existe senão na tua imaginação inconsciente. Por isso, desce. Desce e volta para a realidade!
Como fazer? Muito simples. Neste momento flutua na horizontal como uma gaivota, de cabeça voltada para baixo e costas para cima. Só precisa de rodar noventa graus. Depois, une os braços ao tronco e começa a descer. É só isso. Mas... negativo. Voltou à posição horizontal. O seu querido planeta azul continua distante.
Segunda tentativa. Deve ter feito qualquer coisa mal. A rotação de noventa graus sai impecável. Agora os braços. Em baixo, a Terra está distante, mas vai ficar cada vez mais perto.
Mas o que é aquilo?
Um asteroide em rota de colisão com a Terra. Vai passar muito perto. Agora já não é uma estrela que poderá esturricá-lo.
Oh!, Mário! Nunca mais vais poder contar histórias...
Enfrentou os inimigos feitos bonecos de trapo. Fugiu do monstro horrendo. Voou até perto das estrelas (seria que alguma tinha escrito nela o seu nome?). Sentiu o perigo ao aproximar-se mais um pouco e fugiu outra vez, agora de regresso à Terra, o seu planeta de passagem, mas de qualquer forma o seu planeta. Fugiu até que, inexplicavelmente, começou a flutuar. Depois, viu o asteroide. Enorme. Potencialmente destruidor. Uma arma final.
Então, que mais podia fazer senão acordar?
Ergueu-se na cama e espreguiçou-se com desusado prazer. Tudo não passou de um pesadelo horrível. Já não flutuava no espaço sideral nem havia asteroides em colisão com a Terra. Nem monstros que o podiam desmembrar num ápice.
Sorri para a vida, Mário. Se não fossem os pesadelos diria que navegas num mar de rosas. Os teus projetos vão ser concretizados. Tens uma vida longa à tua frente cheia de altos e baixos como todas as vidas normais. Querias só altos? Paciência. Sorri, Mário. Sorri para a vida que te espera. Por exemplo, agora...
«Que horas são?»
Pergunta parva. Ninguém lhe responde. Nem o seu amigo imaginário.
«Que será feito do Ernesto?»
«Não posso estar sempre contigo, Mário.»
Falso alarme. Deve estar longe a contar histórias a outros rapazes.
Ainda é noite escura como breu, mas devem ser horas para se juntar com os seus amigos.
Que arrepio de frio foi este que teve?
Os fantasmas não existem, mas, se existirem, devem ser frios como o gelo.
Lembra-se do doutor Bandeira. Morreu há pouco tempo e guarda o casarão pintado de branco que não quer deixar. Quando vai a correr junto ao gradeamento, vê braços do lado de dentro que o querem agarrar. Então, acelera a corrida até ao limite e não descansa enquanto não chega a casa. Em nenhum momento olhou para trás.
Puxou as portadas de madeira para si.
«Aquele vulto parece ser o Slimpas» pensou. «Já devia ter saído...»
Veste-se apressadamente. Nem vai ter tempo para se lavar. Pé ante pé, aproxima-se da porta. Por mais cuidado que tenha sabe que esta vai ranger. Esqueceu-se de pôr nas dobradiças óleo da máquina de costura.
«Aconteceu alguma coisa, Mário?»
Contratempo. É a voz da mãe. As mães têm sempre o sono leve.
«Nada, mãe. Vou à casa de banho.»
«Está bem, filho. Não faças barulho que acordas o pai.»
Claro que o pai acordou com a voz da mãe. Não podia ser de outra maneira.
«Dorme» ouve dizer. «O Mário foi à casa de banho.»
Silêncio absoluto. Espera uns momentos e aventura-se no hall. Mas, oh!, maldição e morte! Esqueceu-se de calçar os sapatos. Com a excitação da aventura ia deitando tudo a perder. Agora ainda tem que ter mais cuidado. Precisa de voltar ao quarto.
«Já estava a ver que não vinhas, menina Aninhas!»
«Sempre és tu. Tive que voltar atrás porque me esqueci de calçar os sapatos.»
«Ah! Ah! Deixa-me rir…»
De tanto rir, o Slimpas engasgou-se e tossiu forte, não evitando lançar uma escarreta amarelo-esverdeada para o chão térreo.
«És mesmo tu, porcalhão. Acabaste de deixar o teu selo de garantia.»
O Slimpas era o companheiro de carteira de Mário na escola primária. De vez em quando tinha acessos de tosse, acompanhados de espirros bem sonantes e molhados. De imediato um mar gelatinoso amarelado cobria o tampo do lado do colega do Mário não conseguia evitar um vómito.
«Tens um lenço?»
«Claro que tenho. E tu, porque não trouxeste lenço?» perguntou, esforçando-se para não olhar para a parte do tampo conspurcado.
«Esqueci-me, porra!»
«Porra, digo eu.»
Aproximou-se do amigo.
«Ninguém deu pela tua saída de casa?»
«Não. Mas diz-me uma coisa, afinal de contas aonde vamos a esta hora? São cinco da manhã. Isto está-me a fazer espécie.»
«Primeiro que tudo, vamos direitinhos que nem uma flecha até ao jardim. Aí apanhamos o Farinha...»
«Ah... o Farinha também vai. E quem mais, pode saber-se?»
«O Vítor.»
«Mais ninguém?»
«Quem mais querias que fosse? O “cinco atores o quarto de hora” só para animar a festa? Isto é uma coisa séria, põe nessa cabeça desmiolada.» Disse Mário.
Fez um gesto largo de deixa para lá.
«Tanto mistério para não dar em nada.»
Mário deu-lhe um empurrão. Apanhado de surpresa, o amigo estatelou-se no chão.
«Brutamontes!» queixou-se.
«Se não queres ir, não vás. Passamos bem sem ti, ave agoirenta.»
«Não disse isso.»
«Bom, então vamos ao encontro do bufarinheiro do Farinha.»
Já reunidos os quatro achou por bem levantar um pouco o véu.
«Devem estar admirados por sairmos por aí a esta hora da madrugada. Antes de partirmos quero saber uma coisa. É importante para o êxito da missão.»
«Somos todos ouvidos.» Disse o Vítor.
«Estão comigo para o que der e vier?»
«Claro que estamos» rosnou por cima e por baixo o Farinha. «Que eu saiba, não somos fantasmas. Tu és, ó Slimpas?»
«Não.»
«Vês?»
«Deixa-te de graças. Apenas quero saber se vão obedecer-me ou não.»
Silêncio absoluto que Mário interpretou como sinal de concordância.
«Primeira informação: vamos direito aos túneis.»
E lá seguiram, sem que houvesse algum pedido de esclarecimento. Conheciam de cor e salteado o feitio do amigo e sabiam que não tiravam mais nada dele enquanto não chegassem ao destino.
Estação, linha do caminho de ferro, primeiro túnel, linha do caminho de ferro. Seguiam no meio da linha, dado que era mais cómodo pisarem as travessas. Além do mais não havia comboios àquela hora.
«Paramos aqui.» Disse.
«Onde raio arranjaste esses binóculos?» perguntou o Vítor.
«Cala-te. Estou a ver uma coisa...»
Deixou de apontar os binóculos para o monte.
«Vamos já para o monte. Rápido, que está quase a amanhecer.»
«Estás muito misterioso, Mário.» Sentenciou o Farinha.
Obedeceram. Mas, à medida que se aproximavam do monte, alguém começou a sentir suores frios e ficou para trás. O Slimpas, claro. Tinha-se lembrado do caso do milhafre.
«Então, Armando?»
Mário tratava-o pelo nome próprio quando pressentia a existência de qualquer problema com ele.
«Não vou subir o monte.»
«Porquê?»
«Sabes muito bem o que aconteceu na gruta. O danado do milhafre ia-me matando.»
«Quiseste ser o primeiro a chegar ao cimo do monte e apanhaste por encomenda. Mas descansa que não vamos às grutas lá de cima.»
«Então?»
Tinham-se reunido à volta de Mário, o chefe incontestado.
«Vamos para ali» e apontou para a base do monte. «Mas primeiro tenho que fazer uma coisa...»
«Cagar?» perguntou o Farinha. «Por acaso também me apetece.»
Desapertou de imediato o cinto e os botões da braguilha. Depois, acocorou-se mesmo na frente dos amigos.
«Comes muita feijoada, grande sacana!» sentenciou o Armando.
«Com cabeça de porco. Bem bom.» Concordou o Vítor. «Mas nada de couves. As couves com o feijão fazem cá um destes efeitos!»
«Nem cerejas verdes...»
Riram-se. Sabiam porquê.
Mário levou as mãos aos bolsos e retirou do interior uma caixa de fósforos, uma torcida e algumas bombas de Santo António.
«Onde arranjaste essa merda das bombinhas numa época destas?» quis saber o Farinha.
Era outubro. O Santo António já ia longe.
«Guardei.»
«Mentes. Vi-te a comprar bombas na papelaria do Rui Fernandes.» Argumentou o Armando.
«Quando foi isso?»
«Foi ontem, Vítor.»
Mário acendeu um fósforo e chegou-o à torcida até que esta ficou incandescente. Depois, chegou-a à primeira bomba. Largou-a no momento exato e logo a sair ouviu-se um estrondo. Lançou mais duas bombas e apontou a seguir os binóculos para a base do monte.
«Deves ver muita coisa com esta escuridão toda!» ironizou o Farinha.
«Pega neles.»
«Dá cá.»
Pouco depois, exclamou:
«Vê, Vítor!»
«Ena pá!, com um caneco!»
«São binóculos militares. Vê-se com eles no escuro...»
Apontou de novo os binóculos na direção do sopé do monte e começou a varrer o terreno da esquerda para a direita. Depois, no sentido contrário. Os amigos seguiram com curiosidade a sua pesquisa e ficaram à espera que se pronunciasse sobre os resultados. Não se fez esperar a resposta, utilizando uma palavra única, pouco esclarecedora para a curiosidade dos que nada sabiam do que se estava passando no momento.
«Nada.»
Um rotundo nada. O pior dos argumentos.
«Nada, o quê?» perguntou o Vítor. «Estamos para aqui em grande expetativa e tu dás-nos essa resposta? Lembra-te bem que continuamos sem saber para onde raio nos queres levar. Que esperavas encontrar, Mário? Nada? Não acredito. Tem que ser mais do que nada.»
Optou por não responder e repetiu a manobra anterior.
«És um chato!»
«Eureka! Vamos em frente...»
Enfim, luz. Levantou o braço direito num gesto de comando e lançou-se numa corrida desenfreada em direção àquilo que devia ser o objetivo. Os outros seguiram-no de imediato, talvez receando que o manto escuro da noite os engolisse.
Deteve-se passados alguns segundos e voltou a repetir a operação anterior.
«Ainda não nos disseste aonde foste desencantar esses binóculos estranhos» disse o Vítor. «Isso é uma maravilha, mas não é coisa para os nossos tempos. Aí anda mistério grosso, com um escafandro!»
Demorou a responder. Estava mais interessado em observar o terreno ao fundo.
«Foi na casa do ferro-velho. Enquanto vasculhava um caixote com pequenas caixas que ia abrindo, encontrei no fundo estes binóculos. Estavam protegidos por um pano verde de feltro.»
«Daqueles das mesas de jogo?» perguntou o Armando.
«Sim. A princípio não dei qualquer importância ao achado. Estava mais interessado numa caixa que continha selos alemães anteriores ao nazismo, ainda do tempo dos velhos estados alemães. Perguntei-lhe por quanto os vendia por atacado, pensando que não tinha dinheiro para os levar comigo. Surpresa das surpresas! Respondeu-me que nada percebia de selos. Que eu fizesse o preço justo. Então ofereci quinze tostões e fechámos logo o negócio.»
«Grande oportunista! E os binóculos?»
«Percebes alguma coisa de selos, Vítor?»
Com aquelas papas e bolos não se enganavam os tolos...
«Quando acabei de ver todas as caixas, lembrei-me dos binóculos e retirei a proteção. De seguida cheguei-os à vista.
«Mas não vê nada!»
«Pois não» concordou o ferro-velho. «São inúteis. Podes ficar com eles. Talvez saibas de alguém que os repare.»
«E pronto, foi assim que fiquei com eles. Passados uns dias saí à noite a dar uma volta e lembrei-me de os levar comigo. Foi então que, a uma certa altura, faltou a luz. Não sei porquê, mas levei os binóculos aos olhos e consegui ver tudo o que estava escondido na escuridão. Aqui têm.»
«Mas que estamos aqui a fazer?»
Quis saber o Farinha. Aliás era a pergunta que também fariam os outros.
Não contou o mais importante. Nessa mesma noite, já quando regressava a casa, teve um encontro estranho com um indivíduo que lhe pareceu estar disfarçado. Era de baixa estatura, franzino. Usava pera e bigode e a barba muito escanhoada. Um chapéu de abas largas quase que se enterrava na cabeça. Mais parecia um agente secreto ou um criminoso em fuga. Arrepiou-se devido ao último pensamento. A primeira pergunta também lhe pareceu estranha.
«Já experimentaste os binóculos? São bons, não são?»
«Como sabe?»
«Fui eu que instruí o homem do ferro-velho para te dar os binóculos.»
«E como adivinhou que eu ia ao ferro-velho assim sem mais nem menos?»
«Muito simples: pus um escrito numa folha na sua caixa do correio.»
O anúncio dizia:
“Vendem-se selos alemães antigos por bom preço. Vá ao ferro-velho da vila...”
Mas que queria o desconhecido, além dos casos dos selos e dos binóculos?
Muito simples: como sabia que ele, Mário, era um amante das grandes aventuras então que estivesse na madrugada dia seguinte, depois das cinco, entre o primeiro e o segundo túnel, mais ou menos a meio.
«Posso levar amigos?»
«Sim. Mas avança tu primeiro. Só depois é que vamos buscá-los.»
«Porquê?»
«Por uma questão de segurança. É importante que não se desloquem um metro sequer do sítio onde os deixares.»
«Pronto, está bem. Só uma coisa...»
«Diga. Como descobriu o meu nome?»
«Foi fácil. Tão fácil que não vou dizer-te. E agora, despeço-me. Não faltes, pois vais perder uma oportunidade única. Adeus...»
«O seu nome?»
Não ouviu ou não quis ouvir.
«Não respondeste à minha pergunta.»
«Que pergunta, Farinha?»
«Estás na lua ou quê? Queremos saber o que fazemos aqui, a esta hora.»
Apontou de novo os binóculos para o sopé do monte. Desta vez demorou menos tempo na observação.
«Ah sim. Esperem por mim. Por nada deste mundo saiam daqui, demore o tempo que demorar. Prometem?»
Deu de caras com um vulto que lhe apontava uma lanterna.
«Ainda bem que aceitaste o meu convite, Mário.»
«Fiquei intrigado.»
«Não me conheces?»
«Apenas sei que é a mesma pessoa que me fez um convite irrecusável.»
«Vou passar-te a lanterna para as mãos. Pega...»
Já na posse da lanterna, Mário virou-a para o interlocutor. A admiração estampou-se-lhe no rosto.
«Não pode ser!»
«Não pode ser o quê?»
«Tu não és real! Saíste das histórias aos quadradinhos para estares aqui na minha frente e isso não pode acontecer. Tu és... és um sósia dele!»
Pôs as duas mãos sobre os ombros de Mário.
«Sou tão real, tão real que estou a tocar-te. Não sou um sósia. Sou eu!»
«Cuto! Quantas vezes li as tuas histórias de aventuras em que saíste sempre vencedor. Gosto principalmente das guerras em que nunca és atingido pelas balas dos inimigos. E agora estás aqui em pessoa. Em carne e osso.» Riu com vontade, com a alegria da adolescência.
«Mais osso do que carne.»
«Foste ter comigo naquela noite por que carga de água? Sim, eras tu. Estavas bem disfarçado.»
Demorou a responder, entretendo-se aparentemente a mexer na grande madeixa de cabelos louros.
«Não sei bem como dizer. Sabes?, aconteceu de uma forma muito simples. Estavas a ler uma das minhas histórias de guerra com tanto entusiasmo e concentração que acabaste por entrar no meu mundo. E aqui me tens.»
Mário ficou baralhado.
«Queres dizer que neste momento estou no teu mundo?»
«De certa maneira. Depois explico-te. Se houver oportunidade para explicar. Agora vais assistir a uma daquelas coisas que só acontecem uma vez na vida. Prepara-te para grandes emoções.»
«E os meus amigos?»
Fez um estalido com os dedos.
«É verdade. Já me esquecia deles. Onde é que os deixaste?»
Mário apontou para os lados da linha do caminho de ferro.
«Uma vez que não lhes disse nada, devem estar ansiosos à minha espera.»
«Espero que não se tenham deslocado do sítio onde os deixaste.»
«Avisei-os bem...»
Ali havia gato. O Mário não lhes tinha contado tudo. Provavelmente até estava a gozar com eles.
«Alguém o avisou da existência dos binóculos. Mas com que objetivo?» perguntou o Farinha.
«Vamos mas é à sua procura. Tem que esclarecer tudo “tim tim por tim tim”.»
Contra o que era hábito, desta vez o Armando foi mais cauteloso.
«Acho melhor ficarmos aqui à espera. Ele avisou-nos mais que uma vez. Pode ser perigoso.»
«Não vamos ficar armados em parvos. Eu cá por mim vou ver o que se passa. Se quiserem acompanhar-me, tudo bem. Se não quiserem, amigos como dantes.»
E se bem o disse, assim o fez. Os outros resignaram-se e acompanharam o Vítor.
«Vamos meter-nos numa alhada daquelas...» Profetizou o Slimpas.
Não tinham andado cem metros quando viram uma luz a brilhar a pouca distância.
«Que fazemos?» perguntou o Vítor. «Está na direção que o Mário seguiu. Deve ser o sacana a falar com alguém. Vamos mais depressa que ainda o apanhamos com a boca na botija. Ou eu não me chame Vítor!»
«Deviam estar nesta zona. Daqui vê-se a linha. Mais à esquerda é o túnel.»
«Afinal os teus amigos não obedeceram. Agora é complicado. Julgo que entraram inadvertidamente num portal.»
«Slimpaaas! Vítorrr!»
«É escusado. Não te podem ouvir. Já não estamos a fazer aqui nada. Vamos. É tarde. Temos que voltar para trás e depressa.»
Mário concordou. Aqueles burros não tinham emenda. Ia deixar de ser o seu chefe. Que se entendessem.
«Bem sabes que não sou deste mundo. E de um momento para o outro o portal pode ficar inativo.»
«Pois é. Para mim o teu mundo é e será sempre o dos bonecos aos quadradinhos, onde me perco. Não dou pela passagem do tempo sempre que me enfronho a ler as tuas aventuras. Quem me dera poder vivê-las! Derrotar o inimigo com uma rajada de metralhadora. Travar um corpo a corpo com um facínora e vencer. Vencer sempre. Tu és invencível, não és Cuto?»
Não respondeu.
«É aqui.» Disse o Cuto. «Estás preparado?»
«De certa forma, estou. É sempre um motivo para ter um certo nervoso miudinho. Nunca te enervas, Cuto?»
«Não. Por vezes fico enfurecido e então perco as estribeiras.»
«Gostava de ser como tu.»
«Não queiras. Quando voltar para o meu mundo fico outra vez prisioneiro da vontade do meu criador. Mas fica descansado. Garanto-te que podes regressar ao teu mundo quando quiseres. Quanto aos teus amigos...»
«Sim?»
«... nada de grave lhes vai acontecer. Vão acordar amanhã nas suas camas sem se lembrarem de nada. Este dia nunca aconteceu para eles. Acredita que não vais ouvir a mínima crítica da parte deles ou dos seus pais. Agora vais viver uma coisa inimaginável.»
«Estou impaciente.»
Fez-lhe um gesto largo como se estivesse a lançar um dado que mostrava sempre a mesma face. Depois consultou um relógio de mostrador desusadamente largo. Por momentos o mostrador iluminou-se.
«Prepara-te para mergulhar logo a seguir a mim.
Uma contrariedade com que não contava.
«Mas eu não sei nadar!»
Cuto sorriu ante o embaraço do amigo.
«Não te preocupas. Põe-te atrás de mim e imita-me quando chegar o momento.»
Tirou um objeto esquisito do bolso e apontou de imediato para a frente. De imediato surgiu uma luminosidade intensa logo acima do solo. Uma espécie de túnel com a luz concentrada à entrada e em movimento. Os contornos eram semelhantes aos limites de um polígono irregular.
«Não há tempo a perder!»
E mergulhou para o interior da luz.
«Como vou fazer? Ah!, já sei. Mergulho como se estivesse a apanhar uma bola na praia. Seja o que Deus quiser. Vamos nisso. Quando mergulhar, fecho os olhos. Mas... o que aconteceu?!...»
Coisa simples. A luz já não estava lá.
«Cuto! Cuto!»
Grita agora, Mário. Chama pelo Cuto. Revolta-te que não vale a pena. Ele bem te avisou que o seguisses logo. Agora é tarde. O portal fechou-se e não vai voltar a abrir. Estiveste tão perto do mundo do teu herói preferido e deixaste que ele fugisse! Uma coisa de cada vez, Mário. E logo te deixaste fascinar pelo nascer do sol, uma coisa bela, mas que acontece todos os dias!
Já perto do túnel mais próximo da estação, voltou-se para trás e o olhar alongou-se na direção do sopé do monte. Algures, estava perdido para sempre o portal por onde desapareceu Cuto, o adolescente de nariz arrebitado e com uma grande madeixa rebelde de cabelo louro que lutava (acompanhado da namorada, diz a biografia) contra a maldade do mundo.
«Adeus, ilusões!»
Foram as suas últimas palavras antes de entrar no túnel onde, uma vez, ele e o Armando tinham encontrado intacto um vidro de relógio e restos de sangue e massa encefálica de um suicida. Mas isso era outra história que já tinha contado.
Em relação às duas histórias, a que agora acabou sem glória e a outra, sem a mínima ligação possível com esta, apetecia-lhe ligá-las com uma máxima que não sabia se era exatamente assim:
O que parece ser, não é; o que é, não parece ser.
UMA PAIXÃO PARA SEMPRE
Primeiros tempos de uma paixão para toda a vida. Até que a morte o levasse nunca deixaria essa paixão que lhe tomava os minutos, as horas e os dias disponíveis.Começou verdadeiramente quando já era entendido no assunto. Levou muitos dias a observar, a ver como era a vastidão daquele mundo que começava no simples agrupamento dos selos por países, normalmente em classificadores, e acabava em temas e aí a diversidade era quase infinita. Passou primeiro por algumas desilusões, mas não se deixou abater. Ao mesmo tempo serviu-lhe para conhecer a verdadeira natureza de certas pessoas, perante a ingenuidade dos que ainda não sabiam separar o teor da ganga. Foi bom Mário adquirir em primeiro lugar conhecimentos sólidos, saber distinguir a “coisa boa da coisa estragada”. O papel a menos. A falta de uma serrilha. A dobra. As marcas de ferrugem. As falsificações nas cores. A imperfeição. Em boa verdade teve uma iniciação ideal e nessa matéria soube distinguir “o real do fictício”.
«Já sei que tu colecionas selos, meu rapaz. Toma lá uns tantos. Estes são estrangeiros.»
Agradeceu ao coronel André, um habitué do café Santiago que conhecia dos jogos de xadrez disputados entre os seus futuros professores de Matemática e de Francês. Seguia com atenção as partidas e já sabia movimentar as peças. Só não entendia uma coisa que lhe tinha dito um dos professores sobre o segredo do êxito no jogo do xadrez. Tinha a ver com a memória e a concentração. Mas onde ia ele buscar memória para saber toda uma sequência de jogadas, ainda por cima dependentes das respostas dadas pelos adversários que ele que adivinhar?
Mas não era esse problema que estava em causa. Os selos. Sim, os selos. Estava chateado com o cínico do coronel André. Havia uma deficiência em quase todos os selos que lhe tinha dado. Ou era a falta de uma serrilha. Ou uma dobra. Ou papel a menos. E ainda por cima teve que agradecer outra vez quando este lhe perguntou:
«Então, meu rapaz, gostaste dos selos que te dei?»
Aquela merda de selos? Cínico!
Valeu-lhe o amigo Sérgio. Além de lhe dar muitos selos em bom estado, ensinou-lhe como devia proceder um verdadeiro colecionador de selos. Regra principal: todo o selo em mau estado ia imediatamente para o lixo.
Foi o que fez aos selos do coronel André. E mais: quando o via, tratava-o mentalmente como se trata um falsário.
O Sérgio era considerado um colecionador mediano de selos, daqueles filatelistas que já tinham as folhas próprias do Eládio dos Santos. Depois, baseado nessas folhas, fazia as da segunda coleção e as das colónias. E era muito perfeito e metódico na técnica que utilizava. Sobrepunha uma folha de almaço ao original, levava as duas a um dos vidros da janela do quarto e marcava a lápis os vértices dos retângulos onde colava os selos com charneiras, obliterados ou não. Depois, traçava a cheio, por duas vezes, os lados dos retângulos. Primeiro, usando o lápis e de seguida cobrindo com tinta da China.
Foi com a sua ajuda que construiu as primeiras folhas destinadas aos selos mais recentes dado que ainda possuía poucos dos mais antigos, seguramente os de valor considerável. Quanto aos selos estrangeiros, colou-os num caderno, usando para o efeito as charneiras. Foi o seu amigo de infância quem o lançou definitivamente no mundo apaixonado e quase obsessivo da filatelia.
Conhecia alguns filatelistas importantes da vila e ficara muito entusiasmado ao assistir a uma exposição onde esses tais senhores mostraram as suas preciosas coleções de selos de Portugal, das colónias e os estrangeiros e também algumas peças raras, inclusivamente erros que nunca imaginou existirem, uma vez que julgava que os lugares de revisores de provas tinham sido criados para não deixarem passar os erros. Afinal, não era obra do acaso: ou havia negligência ou interesse que os erros passassem no crivo.
A primeira grande oportunidade de aumentar a sua coleção surgiu quando foi com o pai à vivenda de um desses grandes filatelistas que entrara na exposição, o senhor Alfredo Pontes. Claro que não foram ver a vivenda, mas os belos álbuns de selos de capas em couro vermelho-escuro, os portugueses com muitas coleções completas, não obliteradas, e as gavetas dos móveis da casa de jantar que foi abrindo, sempre cheias de selos ainda colados ao papel.
Nunca tinha visto tantos selos na sua vida e começou logo a sonhar com duas coisas: a primeira era que o senhor Pontes lhe ia dar um montinho daqueles selos; a segunda, que desejava, quando fosse homem, ter álbuns e gavetas com selos, mas as gavetas mais organizadas, com os selos repetidos classificados e guardados em sobrescritos transparentes numerados.
«Vais-te lembrar de mim sempre.»
Ficou com o olhar preso numa das gavetas. Mas não aconteceu o que estava a prever e que lhe parecia ser o mais lógico. Viu-o tirar um classificador que estava na mesma prateleira dos álbuns que começou a folhear, até que parou numa folha e daí retirou quatro selos da mesma.
«Meu rapaz, vou dar-te estes quatro selos novos da série “Atiradores Civis Portugueses”. De certeza que vão valorizar muito e tu nunca mais te vais esquecer de mim.»
Já na rua, o pai perguntou-lhe:
«Então, Mário, ficaste satisfeito?»
«É certo que ele tem uma coleção fabulosa.»
«Não pareces muito satisfeito.»
«Adorei ver os selos do senhor Pontes. Um dia também vou ter a minha coleção, mas vou ser melhor organizado do que ele.»
«E os selos que ele te deu? Não vi grande entusiasmo da tua parte.»
«Pois não. Estes selos não valem nada, nem vão valorizar futuramente. Bem podia ter agarrado num monte selos de uma das gavetas e dar-me.»
«Pudera!»
«Porquê, pai?»
«O homem tem fama de ser um grande forreta...»
Estava tudo explicado.
O tempo correu e Mário viu a sua coleção aumentar, sempre acima das previsões. Nunca deu selos estragados ou criou expectativas frustrantes a quem iniciava as suas coleções.
Anos mais tarde, já com a vila que o viu nascer transformada numa bela e florescente cidade, ficou muito surpreendido ao subir a rua onde era a vivenda do senhor Pontes e vê-la em ruínas, com os vidros das janelas partidos e o interior cheio de detritos, sinal de refúgio dos mendigos e drogados. E tinha razão. Segundo lhe disseram a cave estava transformada num antro de droga.
Quanto ao agiota, já tinha falecido há uns anos e agora havia problemas entre os herdeiros, levados a tal extremo que até parecia que o próprio fantasma andava por ali a perturbar os vivos, não deixando dividir a última memória do que fora muito seu em vida e que guardara tão avaramente. Mas se esse fantasma existia não sabia que os selos tinham tido um destino indesejável.
«Sabes uma coisa?»
«Claro que não, pai.»
«Assaltaram a casa e levaram todos os selos. Ainda o Pontes era vivo, embora já muito esclerosado.»
«Só roubaram os selos, pai?»
«Sim. Parece que foi castigo. O homem era podre de rico, mas o que mais adorava na vida foi o que lhe roubaram. Todos os selos. E tinha objetos bem valiosos. Marfins, pratas e muita loiça da Companhia das Índias.»
«Foi vingança, sim. Imagine o pai que outro filatelista como eu...»
«Também penso que sim» concordou o pai do Mário. «Talvez que um filatelista tivesse encomendado o roubo só por um motivo de vingança.»
«E não só. Com o roubo da coleção, a sua ficou muito mais valorizada.»
O pai fitou-o de olhos nos olhos e deu um tiro no escuro.
«Não me digas?»
«Acha que fui eu?»
O ESTRANHO CASO DA PEDRA FILOSOFAL
«Pois é. Mas esqueceste-te que estamos a estudar Mineralogia. Como sabes, há que ter em conta a densidade, a dureza, e também outras propriedades dos minerais. Desengana-te, desgraçado.»
«Descobriste a pólvora.»
«E logo a pólvora negra ordinária. Nitrato de potássio, carvão e enxofre. Queres saber as percentagens em que entram?»
«Obrigado. Estava só a sonhar...»
«Então sonha enquanto eu penso aonde vamos hoje. E vou pensar em voz alta. Atravessar o açude é uma aventura perigosa porque o rio ainda traz muita água. E subir até às grutas, talvez não te agrade. Pode lá estar o teu amigo milhafre.»
«Ia-me borrando todo nesse dia, pá!»
Mário deixou escapar um sorriso irónico.
«Esqueçamos o desaire e voltemos à pirite, às suas propriedades, etc.»
«Poupa-me.»
«E se houver um processo qualquer de transformar a ranhosa da pirite no ouro resplandecente de nobreza?»
«Estás a mangar comigo, Mário. A pedra filosofal não existe. Foi um sonho alquimista e estamos no século vinte.»
«E esse sonho vem da Idade Média. Tudo bem. Mas se te disser que estou quase a descobrir o segredo...?»
«Brinca, brinca, que logo mijas na cama!»
Olhou misteriosamente para o amigo. A tática estava a dar resultado. O Armando levou a mão ao queixo e Mário aproveitou a oportunidade para entrar pela fresta da porta.
«Sabes muito bem, e melhor que qualquer outro, que descubro sempre tudo o que quero descobrir. E há ainda outra coisa a meu favor. Sabes qual é?»
«E o que é que tem a ver o cu com as calças?»
«Muito. Sem calças, ficas com o cu à mostra. Mas não é disso que quero falar. Sabias que sou eterno como o ouro? Sinto-me protegido. O meu amigo Ernesto não deixa que nada de mal me aconteça. E não me esqueço também que ensinou-me muita coisa. A contar histórias, por exemplo.»
«És louco. Continuas convencido que tens um amigo invisível e que ele te protege de todos os perigos. Olha, experimenta atirar-te ao rio e de preferência quando vai cheio...»
Mário não ligou aos comentários do amigo. O seu olhar brilhou ao lembrar-se do Ernesto, o herói imaginário dos tempos de criança que o ensinou a contar histórias e a crescer.
«Só ouves se quiseres ouvir. Sabes muito bem que tenho palpites e descubro muitas coisas. Por exemplo, aquela nota de vinte que encontrei quando era puto. Antes de a ver já tinha sinais nítidos.»
«É verdade, já me contaste.»
A mãe levava-o pela mão e subiam o passeio paralelo ao da rua onde moravam. De repente viu a nota mais à frente e soltou-se da mão.
«Mário!» ralhou a mãe, aflita.
Mesmo a tempo. Mais um segundo e deixava-se antecipar pelo fulano que seguia à sua frente e que também tinha visto a nota de vinte escudos. A dita nota foi logo para o mealheiro e nunca mais viu a sua cor. Serviu, talvez, para comprar roupas.
Notou que o Armando começava a ficar intrigado. A bem dizer já tinha o pássaro na gaiola. Só precisava de lhe dar alpista.
«Diz lá então o que se passa, ó demónio em cara de gente!»
«Cruzes, canhoto!»
Foi perentório.
«Desta boca não sai nada por enquanto. Ainda preciso de fazer umas tantas experiências. Acredita. Está no segredo dos deuses. Nem que o Orelhudo me torture com os instrumentos da forja do Malaquias! A propósito, que é feito dele?»
«Ali... quê?»
«Alimárias, cretino! Animais de quatro patas. E não te lembras de ouvir o Faquir na aula de ginástica a dizer ao Canhão para se tratar no doutor Malaquias?»
Referia-se a um colega que chutava a bola com tanta força que foi alcunhado de Canhão. Era vê-lo em pleno recreio, que também servia de campo de futebol, a enfrentar, com as botas cardadas, os avançados que desistiam de o ser ao largarem a redondinha de imediato ante a ameaça fatal representada naquelas botas cardadas. Dava gosto vê-lo jogar à bola, a dar pontapés na atmosfera ou nas canelas dos incautos, ou a marcar livres com uma violência nunca vista e uma falta de pontaria inevitável.
«Xeee... bang!»
E a bola ia invariavelmente para a vinha, bem longe das traseiras do telheiro e muitas vezes até aterrava na chamada avenida dos cotovelos tal a violência do chuto. O segredo era contornar com habilidade o pesadão do Canhão. Uma finta curta, bola para um lado e adversário para o outro. Conversa fiada. Pelo sim, pelo não, escolhia-o sempre para a sua equipa.
«Ouve lá uma coisa: o Malaquias não é ferrador? Então o Faquir estava a chamar, subtilmente, animal ao nosso colega. Mas não vem para o caso. Os ferradores têm uma forja e um malho para moldarem as ferraduras aos cascos das bestas. Estava a referir-me a essa forja...»
«Ah! Tens razão.»
«Como sempre.»
«Conta lá então, que acredito em ti.»
E o Armando acreditava também nas histórias que ele contava junto à porta do José Castanheira, que tinha um armazém onde vendia foguetes e outros artigos que não se lembrava. Histórias com algum cunho de verdadeiras, pintalgadas, aqui e ali, com traços de fantasia para dar mais emoção à narrativa. Ficavam horas e horas no corredor, esquecidos do mundo real. Era nesses momentos que Mário se sentia como um peixe na água. Dava voltas à sua imaginação e eles ouviam, entusiasmados, as histórias que o Ernesto lhe tinha ensinado e as quais também já sabia modificar para as pôr ao seu jeito.
«Jura.»
«Juro, o quê?»
«O que havia de ser? Que não revelas a ninguém o segredo que te vou contar. É muito importante jurares.»
O Armando pôs-se muito sério e disse:
«Juro pelas alminhas!»
«Pelas alminhas?»
«Sim! Uma vez, ao anoitecer, vi-as elevarem-se para o céu. Iam felizes por partirem desta maldita Terra de passagem...»
«Onde é que eu já ouvi esta? Olha que tem direitos de autor. Mas... as almas...? Se nem um tal cirurgião não sei quantos viu uma alma debaixo do seu bisturi, vens tu agora com essa história esfarrapada das alminhas! Deixa que me ria com o sorriso número três, para não ser o número quatro. Conheces este sorriso, não conheces?»
«Acredita... Estava junto ao muro do cemitério a fumar um Português Suave quando vi muitas luzinhas a subirem para o céu, até se perderem de vista. Eram as almas de pessoas boas que tinham morrido há pouco.»
«Ah ah! E tu acreditaste no Fogaça! Elas iam em excursão, não?»
«Tu não gozes com coisas sérias porque vais para o inferno, Mário!»
Encolheu os ombros.
«Se não queres contar, não contes.»
«Vá lá, então. Por certo já ouviste falar no mistério da bola de cortiça. Sabes que essa bola é oca, não sabes?»
«Sei perfeitamente. Já a vi por dentro e acho que é um embuste. A bola não tem nada de especial, além de ser de cortiça e oca. Andas a aldrabar toda a gente com o mistério que dizes haver. Estou nesta maldita Terra de passagem durante o tempo que tiver que ser, mas não ando aqui por ver andar os outros.»
«Maldita Terra de passagem. Há bocado ouvi esse desabafo mas não quis dizer nada.Quem te disse isso?»
«Eu explico-te. Foi uma conversa que ouvi. Um homem falava com outro num banco do jardim ao lado do meu. Fiquei atento quando confessou que não sabia a razão de estar a ser muito castigado nesta "maldita Terra de passagem". Um vidente tinha-lhe dito que continuaria a pagar faturas até ao fim dos seus dias. Nunca fizera mal a ninguém. Só se tivesse acontecido noutra encarnação. Outra encarnação, repito. Aí fiquei arrepiado e levantei-me do banco.»
«Nós não somos imortais, Armando. De facto estamos aqui de passagem e o Inferno é cá. Pagam-se todos os males que se fizeram ao longo da vida e da outra ou outras?»
«Tudo sabes tudo, Mário. Perdoa a inocência do macaco.»
«... a forja do Malaquias os faz falar. Então, cala-te, por favor.»
«Mesmo assim, vou dar-te umas dicas. Podias ter jurado pela tua saúde em vez das alminhas. Mas acredito em ti. Somos amigos há muito tempo, não somos?»
«Despacha-te que tenho vontade de mijar.»
«É melhor mijares primeiro para não te mijares com a emoção.»
O Armando olhou em redor. Estavam na rua.
«E onde mijo?»
Mostrou-lhe as palmas das mãos juntas, em v.
«Mija aqui.»
«Deixa-te de graças e conta lá. Com a tua parvoíce até já me passou a vontade.»
A princípio, no interior da bola, cortada em duas metades, eram colocadas mensagens importantes de segredos trocados entre ele e o Lebre. Casos escabrosos relacionados com algumas raparigas da escola, principalmente. Isso aconteceu na primeira fase da utilização da bola de cortiça. Um dia encontraram um documento importante escondido na arrecadação da casa dos pais do Lebre. Estavam à procura dumas moedas de coleção que ele sabia existirem, quando deram com um documento. Explicava, nada mais, nada menos, o processo de como mudar a inclinação do eixo da Terra. Por sinal, tinham lido no Cavaleiro Andante uma aventura dum certo Capitão Audaz em que um cientista louco se preparava para deitar uma bomba potente na cratera de um vulcão localizado no Pólo Norte. Claro que não era essa a ideia exposta no documento. Pretendia-se modificar o clima para melhor, provocando uma mínima alteração na inclinação do eixo da Terra.
«E o que é que vem isso para o caso...?»
Conseguiu o que queria. O amigo escutava-o agora com muita atenção.
«Depois, tivemos que abortar o plano inspirado no tal documento. Onde arranjávamos uma bomba e como conseguíamos deslocar-nos em segredo até ao Pólo Norte? Isto para não falar no tal vulcão que até podia não existir no sítio ideal, acessível a nós e aos membros da expedição que precisávamos de contratar.»
«Pronto, já estou a ver o esquema. Mais uma história das tuas. Até amanhã, se Deus quiser. Ah!... e então as pirites?»
«Vejo que estás atento. Uma noite tive um sonho. Estava escondido atrás de uma moita, no monte das pirites...»
«Depois taparam o buraco. Certo?»
«Errado.»
«E quem o tapou?»
«Foi a gaga.»
«Lá vens tu com a gaga. Não me digas que também sonhaste com ela?»
«Aquela que mora na rua de Santo André estava também no quentinho, a dormir.»
«Lá estás tu a desconversar...»
«Claro que não fui eu. Eles afastaram-se e não hesitei um segundo. Foi muito fácil. Já sabes como é nos sonhos. Assim, em pouco tempo tinha o baú nas mãos. Era leve como o algodão. Abri-o e fiquei a olhar, aparvalhado com o que viam os meus olhos.»
«Abriste-o, sem mais nem menos, Mário? E os gajos não tinham levado a chave?»
«O baú não tinha fecho, animal!»
Fez uma pausa propositada para espicaçar ainda mais a curiosidade do amigo.»
«Do interior do baú vinha uma luz branca, tão intensa que quase me cegava. Assustado, fechei-o logo. Então, tive uma ideia. Meti a mão num dos bolsos das calças e retirei de lá um berlinde.»
«Mas o Orelhudo é do tempo em que nós éramos miúdos!»
«Nos sonhos misturam-se sempre o passado, o presente e o futuro. Acontecem coisas do mais disparatado ao mais real. Se não sabias, ficas a saber. Agora, continuando, deitei o berlinde para o interior do baú e fechei-o de novo. Logo a seguir abri-o e não vi o berlinde. Havia no interior uma pequena pedra negra e um metal dourado que identifiquei logo como sendo ouro.»
«Ainda bem!»
«Isto é um sonho, pateta... Ah!, já me esquecia de uma coisa. Quando descobri a pedra negra e a pepita de ouro já não havia qualquer luz no interior do baú. Então agarrei na pepita e meti-a dentro do bolso. A luz intensa, que quase me cegava, voltou. Fechei logo o baú. Compreendi todo o processo. Tinha descoberto uma coisa semelhante à famosa pedra filosofal!»
«A pedra negra!»
«Qualquer que fosse o material que colocasse dentro do baú, aquela pedra negra transformava-o em ouro.»
«Mas só depois de fechares o baú.»
«Tal e qual.»
«E...?»
«Morreram as vacas e ficaram os bois. Acordei. Não podia deixar de ser.»
«E que tem tudo isto a ver com a bola de cortiça?»
Continuou a narração.
«No dia seguinte, pela manhã, voltei à zona junto à saída do túnel, onde tinha ficado antes de acordar e imagina que encontrei logo o baú. Foi tiro e queda.»
«Isto quando já estavas acordado.»
«Sim. Com um senão. Quando abri o baú não fiquei ofuscado pela luz intensa pela simples razão de já não existir qualquer luz. Mais: a pedra negra tinha desaparecido e, em seu lugar, havia no interior do baú um pequeno cubo extraordinariamente perfeito e pesado para as dimensões que tinha. Era da cor da platina, mas baço.»
«O que seria?»
«Ouve. Sabes muito bem que ainda não acabei. Deduzi logo que estava na presença dum super metal. Sem saber como, tinha sido ultrapassada a barreira dos elementos radioativos muito instáveis, barreira essa já prevista pelos teóricos.»
«Lá se foi a pedra filosofal...»
«Sim. Mas agora tenho outra coisa melhor. Um super metal. Com ele posso obter todo o ouro que quiser. Basta colocar dentro da bola de cortiça uma pedra juntamente com o exemplar cúbico que descobri.»
«Da bola de cortiça? E o baú...?»
«Já me esquecia. A transmutação de um objeto em ouro não dependia da existência do baú em questão, mas sim do super metal. Bastava um espaço fechado para que a experiência tivesse êxito. Assim, decidi usar a bola de cortiça. Sempre sonhei que a bola de cortiça servia para mais que um meio de transmitir mensagens misteriosas.»
«E tens agora a confirmação. Mas não podes meter dentro do baú objetos de maiores dimensões. A não ser que arranjes uma bola de cortiça maior.»
«Pouco interessa. Vêm sempre com volumes próximos do exemplar de forma cúbica.»
«E como foi parar o super metal ao interior do baú?»
«Suponho que tenha vindo do espaço. O atrito desenvolvido pela entrada na atmosfera apenas lhe roubou o brilho. O material de que é constituído torna-o indestrutível. Em face do que deve ter acontecido, concluo que até consegue resistir à forja e ao martelo do Malaquias.»
«Fantástico! Veio do espaço e chegou à Terra sem uma beliscadura. Não sofreu o efeito do atrito nem nada. Depois, alguém o descobriu e logo guardou dentro do baú. Mas quem...? Foi suficientemente inteligente para descobrir o que tinha entre mãos?»
«Quem pode saber? Não contes ponta de um corno disto a quem quer que seja. Temos uma fortuna nas mãos.»
«Juro pelas alminhas.»
Riram-se.
«Estou ansioso por ver essa maravilha!»
«Afinal ainda não acreditas!»
«Ver para crer. Tal como S. Tomé...»
Mário levou a mão ao bolso direito das calças.
«Oh!»
«Que foi?»
«Nada!»
Procurou no outro bolso. Depois, nos bolsos do casaco. Sorriu, aliviado. A bola de cortiça surgiu à luz do dia.
«Já estava a ficar confuso.» Disse, aliviado.
«Essa descoberta que fizeste vai fazer de ti uma celebridade!»
«É nisso mesmo que estou agora a pensar. Os jornais. As conferências. O dinheiro a granel. O poder. Todas as gajas do mundo a meus pés.»
«E a Alice?»
«Que tem a Alice? Só simpatizamos um com o outro. Aliás, não é o meu género de rapariga...»
«Muito me contas...»
«É verdade!»
«Mas abre lá essa coisa que estou cheio de nervoso miudinho. Mostra-me o maravilhoso super metal!»
A bola fez-se em dois hemisférios e Mário ficou a olhar, incrédulo.
«Não me digas que só tu vês o super metal! Meu rico tempo que perdi a ouvir-te.» «Juro-te que não estou a mentir. O super metal há de estar em qualquer lado!»
Noutras alturas também lhe chamava o "caga e tosse", sobretudo quando o nosso homem usava a divisão da casa para satisfazer as suas necessidades e não só. Nesses momentos era intenso o cheiro a fumo de tabaco, além da tosse resultante do ato que, em si, nada tinha a ver com o uso normal da casa de banho. As permanências eram longas e a culpa recaía no imprescindível jornal desportivo, principalmente das páginas destinadas ao Benfica do seu coração que lia e relia com muito carinho. Nesses momentos a minha tia não se coibia de o criticar pelo excessivo tempo de permanência no “salão do vale solitário” [1].
«Teixeira, larga a casa de banho. São horas de ires para o trabalho…»
E, entre dentes, para a filha:
«Este Escarumba de um raio enche-me toda a casa de fumo, Maria Odete!»
«Ó minha mãe, não implique com o homem. Ele mata-se a trabalhar no forno que é aquela oficina. O futebol é o seu único passatempo.»
Queria dizer?
A Maria Odete era então a mulher do Escarumba e minha prima em segundo grau. Dormiam num quarto interior que era um autêntico braseiro no verão. Talvez por causa disso, anos mais tarde o Escarumba ia tendo um problema grave do coração.
Esse quarto dava para a casa de jantar por uma porta e por outra para o corredor, este coberto por uma passadeira onde predominava o vermelho, que comunicava com a zona da cozinha e da casa de banho e com a casa de jantar. Quanto ao quarto dos meus tios ligava com a dita casa de jantar e tinha uma exígua janela virada para o exterior, quase ao nível do passeio. Portanto, os meus tios e primos habitavam uma cave.
O tio Adão tinha as horas trocadas com o resto da família em certos e indeterminados dias da semana. Era chefe de mesa e levantava-se por volta das cinco da manhã para ir para o café-restaurante situado na avenida da República, já perto do Saldanha. Nunca cheguei a entender porque se levantava tão cedo. Mas a verdade é que era assim. Como compensação, chegava a casa por volta das quatro da tarde e dirigia-se, mais calado que um mudo, logo para o quarto, levando na mão o inseparável companheiro que era o jornal “O Século”[2]. Pouco depois, ouvia-se o folhear constante das páginas do jornal e começava-se a inalar o cheiro intenso do tabaco ardido, bem mais intenso do que o do genro. Se não era “Mata Ratos”, andava para aí. O tio Adão, calvo e altaneiro, não se fazia velho na cama. Por volta das seis da tarde saía de casa e ia ter com os amigos à taberna que ficava perto de casa e que estavam a jogar cartas, bisca ou sueca (não sei), bebendo copos de tinto e petiscando sardinhas fritas ou isso, só regressando a casa perto das oito que era a hora do jantar.
Entretanto, se o tio Adão ia pela tardinha para a taberna jogar as cartas com os amigos, o meu primo passava esse mesmo tempo na tabacaria que dava para a Visconde Valmor. Aí “rachava lenha" com o dono da mesma. O assunto era invariavelmente o glorioso Benfica, o último golo de cabeça do José Águas, e o Salazar e a Pide e também a fanfarronice de “eu faço e aconteço”.
As recordações mais recuadas no passado e que considero as mais ricas, remontam ao princípio do verão em que vim a Lisboa fazer o exame de admissão ao liceu e também aos dias antes do exame do segundo ano.
O exame de admissão ao liceu foi fácil. Estava bem preparado e nem precisei de frequentar as aulas (pagas) de preparação para o exame em Lisboa.
Um à parte referente às aulas com o “Machadinho”, meu professor da quarta classe. Foi há muito tempo, mas tenho bem presente aquele momento repetido em que chamava meia dúzia de alunos para se perfilarem à frente do resto da turma, ao mesmo tempo em que exibia e manipulava a célebre régua que “aquecia” as mãos de quem não tinha respondido a uma pergunta ou então se tinha portado menos bem. Não tinham respondido às perguntas e as consequências estavam à vista, porque o tempo não parava e não consta que parou desde que se deu o célebre big bang. Nem acelerou. O que aconteceu foi o aumento da velocidade de afastamento das galáxias provocado pela poderosa energia escura.
«Venha quem não soube…»
Não me lembro se ele sorria seraficamente ou não. Com bondade não era. Só me lembro da récita-resposta dos alunos nas suas carteiras, ao mesmo tempo que apontavam o indicador acusador para os potenciais "criminosos" que iam ser castigados:
«Regulamento, disciplina militar!»
E a régua trabalhava forte, como lhe competia. Se sentia a dor, não lembro. De certeza que choraria de vergonha se fosse único a apanhar uma reguada. Assim, o sentimento diluía-se por via da meia dúzia de alunos à espera do castigo. Apesar da violência do stress, era positivo. Não isolava o aluno para o castigo.
Voltando…
Era já tempo das orais e tinha, nas andanças para o liceu, por habitual companheira a minha tia Adelaide. Tomávamos o elétrico para o Carmo, saíamos na rua da Escola Politécnica, descíamos a rua de S. Marçal e em pouco tempo tínhamos o liceu Passos Manuel à vista. Foi assim que fizemos no período das provas escritas. Não me recordo se aconteceu no exame da admissão ou já no segundo ano do liceu. Aconteceu. Está dito. Mas houve um dia em que as coisas correram mal logo à partida. Como de costume, os elétricos vinham apinhados de gente e foram passando sem termos hipótese de entrar neles. O tempo corria.Eu não podia chegar muito atrasado. Só havia uma solução. Seguirmos no próximo elétrico de qualquer maneira. E assim foi, ou teria que ser. Mas correu menos bem.
«Pendura-te!» ordenou a minha tia, à aproximação de mais um elétrico que vinha apinhado.
Consegui pendurar-me na pega traseira e a tia Adelaide também fez o mesmo com a sua mão esquerda. Mas a mão resvalou e a senhora caiu no empedrado da rua. Senti-me impotente, sem saber o que fazer. Mas ela, caída no chão, provavelmente com muitas dores, fez-me um sinal vigoroso para prosseguir viagem. E lá fui. Continuávamos a ser dois. Mas agora éramos eu e a solidão. Felizmente não entrei em pânico. Até que chegou altura de sair do elétrico e dirigir-me para a rua de S. Marçal que desci a correr pois já estava atrasado.
Senti-me desesperado. Ia chegar atrasado e não sabia o que me esperava quando entrasse na sala onde eram as orais.
Quando entrei na sala já os exames tinham começado. Tive o bom senso e coragem de dirigir-me à mesa dos exames e explicar a um dos professores o motivo do atraso. Felizmente ele disse-me para não me preocupar. Que seria chamado em breve.
«Tem calma, rapaz, não te preocupes. Queres um copo de água?»
«Obrigado, senhor.»
E tudo correu bem. Depois de ser examinado, dirigi-me para uma das carteiras. Foi então que vi a tia Adelaide à porta da sala e fui logo ter com ela.
«Correu bem o exame, Mário?»
Olhei para os seus joelhos todos esfolados.
«Correu, tia.»
«Isto não é nada. Vem tomar o pequeno almoço. Hoje queres um queque em vez do pão com manteiga?»
«Pode ser um bolo de arroz, tia?»
Ora acontece que a tia Adelaide em momentos especiais sabia temperar a sua austeridade dando um tom um pouco mais suave à voz autoritária que me impressionava bastante.
Lembro-me também que levou-me ao cinema mais que uma vez. Nunca esquecerei um filme que tinha o grande tenor Mario Lanza como principal protagonista. “Nas redes do Amor”.
A certa altura do filme, alguém disse-lhe:
«Canta-lhe a Tinalina…»
Não voltei a ver esse filme. Talvez fosse um modo de agradar a uma jovem por quem se apaixonara. Ou assim.
Nessa noite, depois do jantar, a minha tia, talvez agradada com o meu comportamento após a sua queda desastrosa, ordenou ao Escarumba para me levar à Feira Popular que se situava não muito longe da casa. Achei curiosa a expressão do seu rosto a iluminar-se.
Tempo de austeridade. Bem podia ter ido também a prima Maria Odete e nunca teria acontecido o que aconteceu.
«Estás pronto, Mário?» perguntou o Escarumba.
«É melhor ires primeiro à casa de banho.» Disse a tia Adelaide.
«Pega lá uns rebuçados para te entreteres, rapaz.» Ofereceu a prima Maria Odete.
E lá seguimos os dois. Fiquei extasiado com os carrosséis e os carrinhos de choque. Mas o Escarumba passou ao largo. Tinha outros objetivos. O pavilhão dos chocolates Regina. Não. Não ia fazer um furinho num dos vários e tentadores círculos dos dispositivos dispostos no balcão que davam direito a chocolates depois de prévio pagamento. Eu não tinha dinheiro e o meu primo por afinidade não mostrou vontade de gastar dinheiro comigo.
«Mário, vai ver o carrossel e os carrinhos ou dar uma volta pela feira. Mas não te afastes muito. Eu fico por aqui. Já sabes onde estou.»
E lá fui. Magicava no motivo de tanta generosidade do Escarumba ao deixar-me à solta sem mais nem menos. Ali havia coisa, mas não sabia que coisa era. Má para ele de certeza que não era.
Como gostava de andar no carrossel na feira de junho da minha vila! Principalmente na girafa. E das cenas dos robertos. E das exibições dos protagonistas do poço da morte nas motos com as rodas a trabalhar perigosamente sobre os rolos em movimento. Um espetáculo para encaminhar clientes para os espetáculos que estavam quase a iniciar-se. Enfim, as barracas do tiro ao alvo e também dos comes e bebes. E o fim da feira com tudo desmontado. Momentos ideais para procurar berlindes e caricas.
Saudades desses tempos…
Até que me cansei de ver o carrossel a rodar e os carrinhos de choque. A grande roda estava longe e os meus tenros anos não me davam coragem para afastar-me muito. Quanto ao poço da morte devia estar longe. Assim, voltei ao pavilhão dos chocolates Regina. Sempre queria ver se ele estava a empanturrar-se com os chocolates e nem sequer me dava uma nica de um.
«Onde está ele?» pensei.
Descobri-o rapidamente. Conversava animadamente com uma das empregadas.
Então era isso. De onde a conhecia?, perguntei aos meus botões, aliás sem esperança de ter uma resposta concreta.
«Ah… estás aí. Vai dar mais uma volta, mas não demores.»
Nem “toma lá cinco tostões e vai dar uma volta no carrossel”…
Fingi obedecer e deixei-me ficar à porta. Aquilo parecia-me conversa a mais. E depois ele estava a pegar-lhe no braço. Ia fazer-lhe mal? Qual coisa. Estava a fazer-lhe festinhas.
Ai se a minha prima sonhasse!
O Escarumba era alfaiate e tinha a oficina no último piso. Duas costureiras trabalhavam para ele.
«Mário, vai ter com o teu primo.» Sugeriu a tia Adelaide.
Aliás, já não era a primeira vez que lá ia. Entretinha-me enfiar as linhas nos buracos das agulhas e assim adiantava trabalho às costureiras. E, quando me cansava, subia dois degraus de madeira até uma janela pequena donde podia ver a rua em baixo.
Nessa manhã só estava uma costureira.
«Mário, podes subir à janela e ver o que se passa na rua. Mas tem cuidado. Não te debruces muito.»
Obedeci. E ali fiquei entretido a ver as pessoas e os carros que me pareciam muito pequenos. Senti um arrepio e um temor de morte quando imaginei que podia cair dali para a rua. De certeza que ficava feito num pudim. Portanto, todo o cuidado era pouco.
Foi então que ouvi:
«Não faça isso, senhor Teixeira. Está ali a criança…»
Intrigado, voltei-me para trás. O que vi deixou-me perplexo. O Escarumba estava a meter-lhe uma mão por debaixo da saia e ela não reagia. Antes já o tinha visto a fazer-lhe cócegas nos braços e no resto do corpo e ela ria muito.
«É uma brincadeira, Mário.» Disse na altura.
«Então está bem.» Fingi concordar.
Mas agora era diferente. Ai se a prima Maria Odete soubesse!
Aquilo já não era uma brincadeira. Era mais que isso. Filme para adultos.
Ao ver-me a olhar com uma certa curiosidade retirou a mão debaixo da saia dela. A Beatriz (assim se chamava a costureira) continuou a costurar e ele agarrou-se ao ferro com afinco e pôs-se a passar umas entretelas. Achei que era ferro a mais e entretelas a menos. Além disso, pareceu-me demasiado nervoso.
«Queres que enfie mais agulhas, Beatriz?»
«Não é preciso, menino Mário…»
Tinha dez anos e sabia muito bem o que aconteceu antes.
«Teixeira!»
A voz da tia Adelaide chegou até nós vinda do último patamar.
O meu primo abriu a porta da oficina e espreitou lá para baixo.
«É uma hora. O almoço está na mesa.»
Entretanto a costureira despediu-se.
«Até amanhã, senhor Teixeira. Adeus, menino Mário.»
Saí a seguir à Beatriz e fiquei no patamar à espera do Escarumba que, entretanto, estava a fechar a porta à chave.
«Vamos?»
«Sim.»
«Olha, Mário, não contes nada do que viste. Isto foi só uma vez. Passou-me uma coisa pela cabeça, percebes?»
Disse que sim e pensei que não.
«As pessoas e os carros lá em baixo parecem muitos pequenos.»
«Isso podes contar à prima. Quanto ao resto…»
«A Beatriz tem muitas cócegas debaixo dos braços!»
«Pois tem, Mário!»
«E também onde o primo tinha a mão.»
«Pior ainda. Mas não contes nada à tua prima. Muito menos à minha sogra.»
Cantigas, olaré, Escarumba.
«Está bem, primo Escarumba.»
«O quê?»
«Queria dizer primo Teixeira.»
«Ah. É bom que não te enganes.»
Cresce, cresce, malmequer… até seres um girassol!
Por baixo da saia a Beatriz ainda tinha mais cócegas. E a expressão do rosto era diferente. Porquê?
Isto para dizer que os filmes eram uma outra escola onde as crianças aprendiam coisas de adultos.
Descemos as escadas em silêncio.
«Então, Mário, aborreceste-te lá cima?»
«Não, tia.»
«Vêm tão calados! Aconteceu alguma coisa?»
Olhei para o Escarumba.
«Não, tia.»
«Claro que sim.» Pensei. «O Escarumba e a Beatriz divertiram-se a valer.»
«O que é o almoço?» perguntou o Escarumba.
Disfarçava nitidamente.
«Línguas de perguntador.»
«Lá está vossemecê a implicar comigo!»
«Mário, já lavaste as mãos?»
«Vou lavar, tia.»
Nem línguas de perguntador nem bifes de cebolada, que era o meu prognóstico. Arroz de pimentos com carapaus de gato, que a tia Adelaide tinha comprado na praça ao ar livre da Marquês de Tomar. A acompanhar, uma salada de tomate, nem muito verde nem excessivamente maduro (o tio Adão só comia tomate muito maduro).
Enquanto comia ao despique com o primo Teixeira, pensava no que ia fazer a seguir ao almoço. Talvez fosse para a janela fazer um horário da passagem dos autocarros que passavam, do outro lado da avenida, para a Picheleira. Mas não era boa ideia, pois já estava farto de fazer horários. Ao menos, o meu primo Justino, que tinha muita habilidade para o desenho, entretinha-se a desenhar os autocarros com grande pinta e nunca se cansava de repetir os desenhos.
«Queres ir ao jardim zoológico com a tia?»
Era uma boa ideia. Impossível haver melhor ideia.
«Mas depois do almoço ainda vais ao carvoeiro comprar um litro de vinho tinto para o teu tio, está bem? E preciso também de uma couve portuguesa. Não te esqueças de passar pelo lugar. Depois vais à leitaria do senhor Sousa comprar manteiga. Toma lá vinte escudos. Não os percas.»
«Com tanta coisa o rapaz ainda se esquece de alguma.» Criticou a prima Maria Odete.
«Ele tem boa memória. Queres ir também connosco ao zoo, Maria Odete?»
«Mãe, tenho o vestido da madame Graça Fonseca para acabar.»
Esqueci-me de dizer que a minha prima era modista, mas não tinha costureiras. Uma requintada modista que trabalhava para senhoras da alta sociedade.
«Está bem, minha filha, mas ao menos come mais alguma coisa de jeito. És uma niquenta que até mete raiva!»
«Ó mãe, não tenho apetite.»
«Queres ir para Hollywood?»
«Lá está vossemecê outra vez! Deixe a minha princesa em paz!»
«Farsante! Se eu desenrolasse o rosário…»
Então a tia Adelaide já sabia das virtudes do Escarumba.
E para si deve ter dito:
«Escarumba dum “caga e tosse”…» Ri-me do pensamento engraçado.
E continuei a rir a bom rir. Para dentro, está-se a ver.
Não gostava lá muito, mas tinha que ser. Ir à carvoaria e ao lugar. E também à leitaria do senhor Sousa que tinha sotaque beirão.
«Primeiro entram em casa os mais velhos e depois tu, entendes?»
Mas eu tinha só dez anos!
Portanto, aprendi algumas boas regras de etiqueta com a minha tia.
Perdoa-me, tia, pelos pensamentos negros que tive a teu respeito na altura. Era criança, compreendes? O que os meus pensamentos traziam cá para fora o coração não queria ver. Foi uma má avaliação a que fiz.
De facto a minha tia austera era o comandante em chefe daquela zona estrita. Só o tio Adão é que fazia o que lhe dava na real gana, mas apenas quando chegava a casa bêbado como um cacho, depois de ter servido um casamento. Só lhe dava para rir e falar sozinho. Todos já sabiam o que a casa gastava e deixavam-no falar à vontade. Por outro lado, trazia muita coisa que tinha sobrado da boda. Por sua alta recreação, ou simplesmente por oferta dos ex-nubentes. Era uma espécie de compensação para o estado em que vinha. O tio Adão não era pessoa para se abrir, nem levado ao extremo. Considerava-o um homem pouco sociável, mas nada quezilento. E também muito agarrado ao dinheiro. Isto porque, uma vez na vida, convidou-me para ir à Baixa. Para grande espanto meu fomos a pé. Era novo mas mesmo assim cansei-me. Pensava se repetíamos a dose no regresso. E os bilhetes só custavam cinco tostões!
Chegados ao Rossio, atravessámos os Telefones e seguimos pelo passeio até ao Nicola. Aí entrou no café e encontrou-se com uns amigos que deviam ser também empregados de mesa. Deduzi pelo tema da conversa. Procurei entreter-me observando as pessoas em volta. Nada interessante. Era tudo gente velha.
Nem um bolo de arroz comi. Contentei-me com um garoto claro.
«Muito claro para a criança, Onofre.» Tinha dito o meu tio ao empregado.
Não estivemos mais que meia hora no café e regressámos. Felizmente que a ideia de irmos a pé não se repetiu. Agradou-me muito a viagem num daqueles elétricos todos abertos. O calor apertava, mas havia ainda um pouco de aragem.
Foi um dos raros contactos diretos que tive com o meu tio Adão, a tal pessoa que falava menos que os mudos.
«Ah ah… Tenho outro casamento amanhã.»
«Estás bonito, Adão. Vai deitar-te quanto antes.» Ordenou a minha tia, evitando exasperar-se talvez devido à presença de um estranho na família.
E foi. Aos tombos, mas foi.
Eu não tinha quarto. Só restava naquela cave, que devia ser muito húmida no inverno, um recanto junto à casa de banho que dava à justa para um divã. Havia também uma pequena estante encostada à parede.
Cinco da manhã e eis que acordo com uma imprecação que me pareceu ser de um fantasma, já que uma luz fraca, tremelicante, vinha lá dos lados do corredor. Assustei-me deveras, mas permaneci calado, expectante. Alguma coisa ia acontecer. Sentia medo, mas não queria perder pitada.
«Porra!» ouvi. «Quem deixou aqui uma frigideira no meio do corredor?»
Afinal o fantasma era o tio Adão. Vi-o pelo canto do olho, todo vestido de branco, com uma espécie blusa de mangas compridas e para baixo vestia umas ceroulas. A completar a cena, um carapuço com borla cobria-lhe a cabeça e parte da testa. Iluminava-se com uma vela (daí o tremelicar da luz) para não perturbar o sono dos que dormiam, mas não conseguiu evitar o encontro imediato do terceiro grau com uma frigideira que continha remédio para as baratas. Uma papa que matava que se fartava. Era um espetáculo nojento ver, de manhã, no campo de batalha, dezenas de baratas viradas de patas para o ar. Apesar do morticínio, outras não deixavam de aparecer a meio da noite seguinte para se deliciarem com a maravilhosa papa que tanto as atraía. E assim sucessivamente.
Acabei por adormecer. Ao lado, à minha esquerda, como já disse, havia uma estante com poucos livros que leria nos anos seguintes, talvez porque não tinha outros para ler, ou porque sim. “John, Chauffer Russo”, de Max du Veuzit (Coleção Azul) e “As Lições do Menino Tonecas” do José de Oliveira Cosme que li e reli nos verões dos exames do segundo e quinto anos. Claro que quando cheguei ao sétimo, ocupei os meus tempos livres de outra forma durante os quase quinze dias que passei na casa da minha tia. Alguma autonomia que tinha já no quinto ano tornou-se em quase total autonomia no sétimo. Depois, entrei na Faculdade de Ciências e fui para uma pensão na rua de São Bento. Visitei esporadicamente a minha tia Adelaide, senhora austera que mandava na casa onde habitavam o marido, a filha e o manhoso do “caga e tosse”, mais alcunhado impropriamente por Escarumba, o tal alfaiate que tinha a oficina no último piso do prédio e que gostava, pelo menos, de fazer cócegas às costureiras, além de namoriscar com as empregadas dos chocolates Regina que faziam tudo para os visitantes fazerem um furinho nos dispositivos verticais que até podiam deixar soltar-se uma bola dourada que dava direito a um chocolate de dimensões superiores. O chamado jackpot dos chocolates.
O Escarumba só namoriscava a jovem dos chocolates Regina na Feira Popular, ou havia mais mar e tardar em voltar?
Escarumba, meu primo emprestado, diz-me se desse lado da porta ainda passas a ferro entretelas e namoras costureiras. Se sim, que te faça bom proveito!
[1] “Neste vale solitário, onde a vaidade se apaga… todo o fraco faz força e todo o valente se caga”
[2] A propósito do jornal “O Século” lembro-me de uma lamentável ocorrência no preciso momento em que fazia exame de Desenho do 2º ano no Passos Manual. A certa altura deflagrou um incêndio pavoroso no edifício do jornal e assisti em direto ao mesmo. A tragédia também caiu sobre mim. Valeu-me um oito e meio…
[3] Nous avons tous les jours l'habitude de voir
Cette route si simple et si souvent suivie,
Et pourtant quelque chose est changé dans la vie,
Nous n'aurons plus jamais notre âme de ce soir...
A MÁQUINA DOS JOGOS AMERICANOS
Mas um dia irá passar a fronteira...
«Isto tem que acabar!»
Desabafa, Carlice, que ganhas muito em desabafar! O melhor que tens a fazer, é acautelar-te. Ainda alguém te coça o pelo, acredita. E não ganhas nada em defender o patrão. Aumento de ordenado, nem pensar é bom.
«Para isso só há uma solução e tu sabes qual é. Desligar a máquina de vez.»
«Brincalhão!»
«Não vos convém?»
E os papalvos que perdiam?
Umas coisas davam para as outras. De certeza que o dono do café não perdia com a máquina, senão já a tinha devolvido à firma.
«Não te esqueças de trazer o troco. E já agora, um pastel de nata. Daqueles bem queimados.»
O bolo da sua eleição.
O outro ficou muito vermelho, fazendo lembrar a história da rã e do boi. Só que havia uma diferença: ele, feito rã, com o rosto a inchar de raiva e não de vaidade. A rã rebentou. Quanto ao Carlos foi estoirar de raiva para dentro do balcão e fazer queixinhas ao dono do café, que se limitou a encolher os ombros.
«Que pastel de nata tão manhoso! Leva-o…»
Mário frequentava o sétimo ano da escola secundária da vila e sentia-se já um homem feito, o que lhe dava um certo à-vontade ante o ar franzino do empregado. Nessa altura já sonhava com a ida para a Faculdade.
Ah... e a máquina?
Estavam na moda as mundialmente conhecidas máquinas de jogos americanos (Flippers). Quase todos os cafés tinham pelo menos uma máquina e o Santiago não constituía exceção. Tinha uma máquina que fazia as suas delícias e também a de outros colegas do mesmo ano, bem como dos adultos.
Dominava a máquina completamente. Na gíria, só lhe faltava levá-la para casa. Claro que é escusado dizer que ganhava muitos prémios que lhe davam dois momentos de prazer: um entre as quatro e as cinco da tarde, a que se seguia o lanche à borla, que o Carlos tanto abominava, e o outro por volta das sete, quando começava a jogar.
As regras do jogo eram simples: fazer o máximo de pontuação e tentar apagar todos os pinos luminosos até se abrir em baixo a hipótese para o máximo: dez pontos. A última ou uma das cinco últimas bolas prateadas tinha que passar pelo centro quando as luzes da máquina se apagassem devido ao impacto das bolas. Se passasse aos lados, marcava só um ponto e cada ponto valia dez tostões, o mesmo que um jogo. Quanto aos pontos acumulados, ou eram rebatidos em jogos de graça ou em vales, uma espécie de talões que eram descontados em espécie.
A máquina tinha que ser manobrada com muita perícia e sensibilidade de modo a não abanar em excesso, porque havia um pêndulo a oscilar no interior que se tocasse num anel metálico ouvia-se o som característico de tilt. Para complementar a perícia dos toques na máquina deviam ser premidos os flippers que acionavam pequenas alavancas rotativas que davam impulsos às bolas refletidos pelos toques subtis nas máquinas. Na fase final do jogo, quando a bola descia para a saída, premiam-se os flippers que acionavam as alavancas centrais para assim alargar o campo de passagem da bola. E logo se ouvia outro som: “tac, tac, tac”. Era um sinal de prémio máximo. Dez escudos pagos em géneros.
Mário dirigiu-se para o recanto, situado entre duas paredes, uma das quais comunicava por um postigo com as traseiras do balcão onde se situava a exígua cozinha em que eram confecionados as sandes, os pregos, os cachorros e tudo o resto. Era ali que a máquina estava posta em estação. Ronronante. Tentadora.
Nesta tarde os jogadores são quatro: ele, o Vítor, um argentino que joga como defesa central na equipa da terra e um barrigudo que se irrita com muita facilidade e, como tal, é especialista nato em apagar a máquina e mimoseá-la, a seguir, com barbaridades inimagináveis que culminam quase sempre com uma barrigada bestial.
O Carlos empregado polivalente, de mesa e de balcão, vestido a rigor com o seu casaquinho branco já coçado pelo uso, espreita ao postigo e repreende o especialista das barrigadas que, entretanto, continua a insultar a máquina com palavrões e pontapés à mistura. As barrigadas são só um motivo para dar início ao festival que vem a seguir.
Finalmente acalma-se e dá lugar ao próximo jogador que logo se perfila em frente à máquina, à espera que o pêndulo pare.
«O pêndulo já está bom, Vítor.»
Este volta-se para a assistência e profetiza, cem por cento convicto:
«Vai ser trigo limpo, malta! Tenham paciência. Só mais uns segundos para esta porra acalmar.»
«Despacha-te, rapaz, que o pêndulo já parou há mais que séculos.» Diz o argentino, impaciente.
«Queres jogar na minha vez, Garcez?»
«Non...»
«Bem me parecia. E tu, Carlice, meu cabrão, estás no teu posto? É melhor preparares a senha com o prémio. Podes já ir adiantando e preencher o talão.»
Dito e feito. Bola após bola a acumular pontos e as luzes a apagarem-se. Ao mesmo tempo, os flippers estão a funcionar na perfeição. Tudo quase nos trinques. A última bola já foi lançada e apagou a última luz. Só falta que esta passe pelo centro. Dito e não feito. Mas... azar nítido. O Vítor não consegue evitar que a bola prateada siga, célere, por um dos flancos.
«Querias o prémio, meu menino? Ora toma…»
E o Carlos conclui a sua intervenção com o manguito clássico do Zé Povinho.
«A culpa foi tua, ave agoirenta de bico adunco!»
«Isso é assim?» ameaça, feito galo de capoeira.
«Qualquer dia cheiras a brilhantina! Por agora, descansa o bico…»
Pelo sim pelo não, o desgraçado fecha o postigo, já sob os insultos do resto do pessoal. Todos menos o Mário, pois o espetáculo é demasiado bom para perder pitada. Portanto, não se excitou. Aproveitou para guardar a cena para memória futura.
«Agora és tu, Garcez.»
Consulta o relógio e acena negativamente com a cabeça. Já não dá. É muito tarde.
«Fica para amanhã.»
Mário toma posição para jogar e desta vez é trigo limpo. Dez escudos em espécie.
«Carlice, traz o prémio!»
O abutre abre o postigo e espreita. Danado, bate com a pequena porta. Confirmação. Aquele Mário é o diabo personificado.
Mald
«Para já, podes descontar numa imperial. E bem tirada, entendes? Descarrega-me já o prémio na máquina que o senhor Moreno está ansioso por jogar.»
Foi a vez do Moreno, o tal barrigudo nervoso e violento.
«Cuidado, senhor Moreno, que a máquina hoje está mais nervosa que uma pescada. Desconfio até o que o danado do Carlice deu uns toques no pêndulo. Até parece que recebe comissão do semítico do Piçarra quem nem sequer lhe dá dinheiro para comprar um casaco decente.»
Agradece e atira-se como um leão sobre a máquina. O aviso entrou-lhe por um ouvido e saiu logo pelo outro. Começa o jogo com pequenas barrigadas, tentando assim disfarçar a falta de jeito. Toques inusitados começam a excitar o pêndulo, sensível como um cavalo árabe. Mas tudo parece estar a correr bem. Já conseguiu apagar mais luzes do que o costume e a pontuação aproxima-se do limbo. Esfrega as mãos sapudas e faz uma breve pausa, preparando-se para a apoteose final. Só lhe falta comprar os foguetes no Castanheira.
«Rapazes, o fim está próximo. Ora vejam a apoteose…»
Tudo apagado. Última bola. Tal como no caso do Vítor, é preciso que esta passe pelo meio. Puxa a patilha atrás e larga-a. Perfeitíssimo! A bola prateada parte com a rapidez de um relâmpago e surpreende, de imediato, o desgraçado do Moreno que agita a máquina ao tentar tomar o controlo da situação. Fatal como o destino. Tilt! Ouve o maldito som que dita o fim inexorável do jogo, ao mesmo tempo que esta passa pela zona ideal. Mas já é tarde. Demasiado tarde.
«O Carlice que se cuide!» exclama, muito irritado.
«Tilt!» gritaram, em uníssono.
Já estavam à espera do desastre.
«Filha de uma putana!»
Fica muito vermelho e temem o pior. Entretanto, continua a premir os botões, à espera de um milagre. A máquina não vai trazer o jogo de volta. Muito menos o prémio.
O queixo recolhido iniciou um processo de tremeliques. Felizmente que se acalma.
«Estava tudo a correr tão bem e de repente esta cabra desligou. Afinal o que aconteceu, rapaziada?»
O empregado do casaco branco e coçado esboça um breve sorriso ao postigo e logo bate com ele e refugia-se no interior, ante a fúria do Moreno.
«Esta máquina tem andado muito sensível nos últimos dias.» Diz Mário, tentando pôr água na fervura.
Tilt também para o Moreno. Num ato de vingança desfere uma tremenda barrigada na máquina mas desequilibra-se logo para trás, estatelando-se no chão. Risada contida e ajuda solícita. O homem pesa como chumbo. Mais parece um médium em transe.
Conseguem levantar a avantesma. Primeiro, sacode o pó das calças e do casaco e só depois decide zangar-se.
O Mário e o Vítor aproveitam para confirmar que a culpa é toda do maldito Carlice que enfeitiçou o pêndulo.
«Carlice!, meu verme! Vem cá que vais pagá-las…»
Claro que o verme não apareceu. Escondido atrás do postigo devia estar a tremer como varas verdes. As imagens fugiram. Mário saltou para o futuro. Nunca mais soube o que foi feito do Moreno. Provavelmente seguiu o seu destino fatal. O pobre do Vítor já não era do mundo dos vivos. Nem o Armando. Nem o Farinha. Morreram todos. A vila transformou-se em cidade. Uma cidade fantasma.
Pensa sempre nos amigos desaparecidos quando deambula pelas ruas da zona histórica da cidade, embalado pelas recordações que lhe aquecem o coração e pelo silêncio impiedoso que marca a sua presença constante. Mesmo que as ruas da cidade fervilhem de movimento e agitação, para si continuam mortas, como o Vítor que morreu num estúpido desastre, o Farinha que perdeu a consciência da realidade e andava quase nu pelas ruas, o Armando que foi atraiçoado por um tumor agressivo, daqueles que não perdoam e o seu saudoso pai que foi corroído pelas engrenagens inevitáveis do tempo.
Que raio de terra era a sua que o viu nascer e que agora o fazia sentir um estranho numa terra estranha?
Vivia só. Desesperado por não ter uma magia que fizesse reviver num filme contínuo o passado em que foi feliz nos seus verdes anos. Não. Nunca ia voltar a amar uma terra que já nada lhe dizia. Porque era aprendiz de feiticeiro, só conseguia chamar a si fragmentos que não o deixavam mergulhar bem no fundo e no centro das histórias. E havia mais uma coisa que não se apagou do pensamento e vivia sempre com ele como um espinho bem cravado fundo. A vila que o viu nascer, e também dar os primeiros passos titubeantes no mundo das letras, foi madrasta e indiferente ao seu valor. Injustiçado e esquecido continuava a ser um vulgar homem de fato cinzento, metáfora que já não lhe assentava como uma luva porque vestia blusão azul.
«Nunca mais se vai esquecer de mim...»
Acabava de passar pelo local onde um dia foi a vivenda do tal sujeito que tinha as gavetas dos aparadores cheias de selos ainda com papel. A frase profética daquele forreta que acabou por dar-lhe quatro míseros selos que nunca valorizaram nunca mais se apagaria da memória. Quanto à vivenda, essa esteve muitos anos em ruínas, amaldiçoada ou não, e se sim, por razões óbvias. Hoje erguia-se um vistoso prédio de três andares, ainda em fase de acabamento, mas imaginava sempre o forreta no interior da vivenda, mais precisamente na casa de jantar, a abrir as gavetas dos aparadores e a ver se os selos se multiplicavam. Pensava que seria mais ou menos o castigo certo desse agiota, agora fantasma. Contar eternamente os selos e sempre a enganar-se e a voltar ao princípio.
Quase a chegar a casa, pareceu-lhe ver a fantasmagórica quinta do doutor Bandeira, os gritos dos amigos de infância a chamarem-no para a brincadeira, o jogo das três covas feito com berlindes, as aventuras com o amigo Sérgio, que nem sempre acabavam da melhor forma, o Armando e o voo rasante do milhafre que saiu da gruta que iam explorar, o Orelhudo que tanto medo lhes metia, enfim, todo o passado nebuloso que nunca mais voltou.
Meteu a chave à porta e rodou-a. A porta abriu-se e entrou em casa. Mas não chegou a dar um passo. Pareceu-lhe ouvir vozes no patamar. Não era impressão. Havia de facto gente no patamar inferior…
O Sérgio e o Garcia disputavam o "jogo da caixinha".
Não se atreveu a avançar para além do seu posto de observação por causa do Garcia que queria agarrá-lo. Era tudo brincadeira, mas pelo sim pelo não…
Também colecionava o topo ilustrado das caixas de fósforos, grandes e pequenas. Era preponderante um nome de marca: Club.
Devia ter uns sete, oito anos e eles andavam pelos quinze, dezasseis. Quanto ao jogo em si, os topos ilustrados das caixas grandes valiam mais. O que se destacava das caixas de fósforos era então a parte ilustrada. Tirava-se a espécie de gaveta onde tinham estado os fósforos e espalmava-se a caixa, destacando-se as duas lixas e a parte de baixo, também de cor mas não ilustrada. O jogo era o mais simples que se podia imaginar. De joelhos, cada um atirava uma unidade, da porta da rua até aos mosaicos encostados ao primeiro degrau. Aquela que ficasse mais perto dava prioridade ao dono do topo da caixa de fósforos. Antes disso havia uma aposta. Três, cinco, dez unidades. Quem tinha ganho a primeira parte do jogo juntava as unidades apostadas pelos dois e atirava-as à parede dos desenhos curiosos, alguns aparentemente obscenos, mas originais. As unidades que ficavam com a ilustração virada para cima pertenciam de direito ao primeiro jogador. As restantes eram atiradas outra vez e agora pelo segundo classificado. E assim sucessivamente, até novo jogo. O mais curioso é que aqueles matulões passavam horas e horas, esquecidos de tudo, e até dele, Mário, que ia ilustrando a sua cultura com os palavrões do Garcia, a jogarem aquele tipo de “batota”.
«Deixem-me jogar!» pedia, ansioso. «Também tenho caixinhas…»
«Ó “Serginho apaga o fófo”...»
«O que queres?»
«E se lhe fizéssemos uma amostra?»
Pernas para que te quero?
«Não fujas, meu medricas» disfarçou o Garcia. «Estou só a brincar contigo. Tens mesmo aí material de jogo?»
Mário voltou atrás e levou a mão ao bolso direito dos calções, exibindo um maço de caixinhas, como lhes chamavam apesar de já não o serem.
«Onde as encontraste?»
«Achei-as na rua, claro.»
«Depois jogas comigo.» Disse o Sérgio. «Deixa o nabo jogar. É um instante enquanto fica teso.»
«Já disse. Depois jogas comigo…»
«Queres é depená-lo!»
Caldo entornado.
«O que é que disseste?»
Repetia-se a pedrada na cabeça do filho do polícia?





















