O nó cego
O intruso
Tenho um desejo estranho de seguir, invisível, uma pessoa desconhecida no seu regresso a casa e entrar com ela para ver como vive, com quem vive, o que come, o que bebe, o que vê na televisão, a que horas se deita e, também, conseguir ler-lhe os pensamentos. Em suma, invadi-la, apropriar-me da sua vida, não como fiz com o Mário, virtual ou talvez não, em que quase fomos dois num só, desta vez sem haver a mínima interferência no viver do dia a dia. Sei que é um projeto quase impossível, partindo da ideia que não há impossíveis, pois o impossível de hoje é uma realidade amanhã.«Troca a sua vida pela minha?»
Gostava de fazer a experiência. Talvez um dia.
Desde que esta ideia obsessiva começou a bailar na minha mente, se é que as ideias deixam alguma vez de ter o estatuto de abstração e podem materializar-se em elegantes passes de dança, não me lembro de ter andado tanto a pé pelas ruas de Lisboa como nestes últimos tempos.
Assim, em sintonia com a Mariana (1), vou andando por aqui.
Hoje é mais um dia da rotina dos últimos dias. Vou andando ao acaso pelas ruas de Lisboa.
Desta vez entrei no metropolitano. Após ter utilizado o interface para a linha azul, saí na estação do Alto dos Moinhos e desci a rua dos Soeiros ao encontro da Estrada de Benfica. Mais uma vez numa decisão aparente de moeda ao ar corto à direita e continuo no passeio a minha caminhada, aparentemente sem rumo. Digo aparentemente porque vou parar cerca de duzentos metros adiante do objetivo. Do outro lado, mais adiante, avisto o Califa e torço o nariz. Por mais estranho que pareça, para poente não há futuro.
«Volta para trás.» Diz-me uma voz.
Claro que não ouvi qualquer voz. A ordem veio cá de dentro. Chamemos instinto e isso. As pessoas adensam-se nos passeios, tanto naquele onde estou a passar como no outro que talvez me espere. É um sinal que estamos em hora de ponta. Todos começam a regressar a casa. Trabalhadores e não trabalhadores. Olho com mais atenção para as pessoas que se cruzam comigo, mas não me decido. Qualquer uma delas, homem ou mulher têm o mesmo interesse para mim. Ou seja: nenhum. Se a curiosidade é zero, então devo rodar cento e oitenta graus e obedecer à hipotética voz que me aconselhou a voltar atrás.
Preciso de atravessar a rua para o outro lado. A densidade do trânsito diz-me que devo procurar uma passagem para peões. E ali está uma. É só esperar que o verde caia.
Pronto, já estou neste passeio e agora dirijo-me para nascente e procuro uma referência. Aqui o Mário não teria problemas. Estava no seu ambiente. Aquela zona era querida para ele. Para mim, não. Caminho ao sabor do instinto e de algumas referências que guardo na memória, fruto das histórias do contador de histórias no tempo da Maria que soltou os cabelos ao vento.
Aí está. Uma agência de jogos de euromilhões e raspadinhas. Não vou entregar boletins nem comprar uma raspadinha. Se o fizesse estava a intrometer-me em tarefas do Mário que tinha na escola várias sociedades no totoloto. Paciência não lhe faltava para preencher mais de oitenta dezenas de boletins. Sistemas de apostas era com ele. Contudo a sorte não quis nada com as sociedades. Passou sempre ao lado. E aconteceram momentos caricatos, como aquele em que um dia resolveu acabar com uma sociedade numa maldita semana em que saiu um segundo prémio e não valeu. Lamentou veementemente, com alhos e bugalhos, ter-se esquecido de retirar da base de dados os números das apostas dessa sociedade, mas o que estava feito estava feito. E o escrutínio em Clipper não deixou dúvidas.
Durante meses a fio manteve as sociedades e o preenchimento doloroso e infindável dos malditos boletins que lhe provocavam cansaço redobrado nos olhos e na atenção. Até que um dia soltou o grito do Ipiranga e decretou drasticamente o fim de todas as sociedades. A saturação chegou ao ponto de nem sequer fazer uma aposta. Foi uma viragem de oitenta para zero que só podia ser obra de um homem como Mário.
«Como conseguiste, Mário?» perguntei-lhe quando me confessou a decisão que teve. «Sabes muito bem que o jogo é uma droga...»
«Nunca fui viciado no jogo. Olha, neste caso apenas apostei no cavalo errado.»
«Como sempre.»
«Desta vez foi diferente. O sistema que inventei tinha poucas fraquezas. Contudo, falhou. O tempo foi passando e ia sempre atribuindo o fracasso ao azar. Até que...»
«Caíste em ti.»
«Isso.»
Era um homem de grandes paixões e, como em todas as paixões, esta também se consumiu.
A casa dos jogos ficou para trás. Andei mais uns vinte, trinta metros e cortei à direita. Olhei para a placa do prédio em frente e confirmei que estava na rua certa. Estava então muito próximo do objetivo.
«Ali está. A pequena varanda no primeiro andar...»
Andei mais uns metros e atravessei a rua na perpendicular.
«Há quanto tempo não a vês, Mário (2)?»
Não obtive resposta. Um dos segredos bem guardados do Mário estava agora à distância de estender o braço e não ia desistia. Nunca me convenci da versão que deu em relação à ingratidão da mulher tímida que soltou os cabelos longos ao vento. Só me preocupava uma coisa. Como ia conseguir violar a privacidade de uma pessoa, neste caso uma das mulheres da vida deste meu meio irmão?
Toquei à campainha e aguardei.
«Boa tarde.»
Virei-me. Uma mulher sorria.
«O senhor está a tocar para o meu andar. Deseja falar com quem?»
Arrisquei.
«É a Maria?»
Voltou a sorrir. Sempre gostei de mistérios.
«Dá-me licença?»
«Pois não...»
Introduziu a chave na fechadura e rodou-a para a direita.
«Quer subir?»
A amiga da Maria
Há coincidências que dão para pensar. Podia enumerar muitas que já aconteceram comigo, mas não é esse o meu objetivo de momento. Voltando às coincidências, esta é muito estranha. Parece que foi encomendada. No mesmo momento em que toco à campainha da casa da Maria, eis que surge alguém que mora também no primeiro esquerdo. Mas não é ela e explico já porquê. Primeiro só conheço a Maria por fotografia. Depois, tal como dizia o Mário, "a mulher quer-se como a sardinha". E ainda por cima esta não é morena e tem olhos cor do mel. Uma mulher interessante, para o bom gosto do Mário e não só, mas não é ela.
«Claro que não é a Maria! Há pouco, perguntei por perguntar.»
«Porquê?»
«Nunca a conheci pessoalmente, mas um amigo descreveu-a com todos os pormenores e mais alguns. Não desfazendo, deve ser uma mulher muito interessante.»
«Ah sim.»
Subimos as escadas.
«Tenho horror aos elevadores. Sufoco lá dentro. Só em última instância os utilizo.»
«Há muitas pessoas que sofrem de claustrofobia.»
«E no entanto não tenho qualquer problema em andar de avião. Não acha estranho?»
«Tendo em conta que num avião se está num espaço fechado em que não há hipótese de fuga em caso de alarme, que incomoda com a possibilidade de acontecerem os desagradáveis poços de ar, e havendo muitas mais condicionantes, concordo consigo. Mas acredite que não é caso único.» Tentei convencê-la.
Afinal ela morava no primeiro direito e não no esquerdo.
«Mas...»
«Já sei o que vai dizer. Os dois fogos comunicam um com o outro. Entre, por favor.»
«Primeiro a senhora.»
«Deixe-se de etiquetas. É só seguir em frente e entrar na primeira porta à direita. Eu já vou ter consigo.»
«Obrigado.»
«Foi fazer um xixi...» Pensei.
Obedeci e abri a porta que me indicou. Procurei o interruptor.
«Agora está melhor.»
Sempre tive dificuldade em ver com pouca luz. Penso que é típico das pessoas do signo leão. Opostamente suporto bem a luz direta do sol. Coisas da vida.
Fiquei de pé, à entrada, à espera que ela aparecesse. A sala era pequena e acolhedora. O piano encostado à parede adjacente à entrada chamou-me a atenção.
Ao entrar na sala deve ter dado pelo meu ar intrigado.
«Eu é que toco piano.»
«Bem me parecia. O Mário nunca me contou que a Maria tocava piano.»
Olhei de relance para uma mesa repleta de molduras. Não lhe passou despercebido.
«Não há cá em casa qualquer fotografia dele.»
Não perguntei nem porque não nem porque sim. Ignorava até onde tinha ido a relação entre os dois. O Mário e a Maria. E também desconhecia a ligação que tinham com aquela mulher que agora estava na minha frente.
«Jurou que ia ficar de castigo?»
«Como?»
«Por favor, sente-se! Não fique aí especado como um pau de fio...»
Não era assim tão alto como isso.
Afinal quem era aquela mulher?
«Quer acompanhar-me com uma bebida. Whisky?»
«Obrigado. Prefiro uma cerveja. Se tiver, claro.»
Sorri ao evocar um momento incrível quando uma amiga que não percebia nada de bebidas me ofereceu um absinto. O tal apocalipse que foi referido pelo Mário numa das suas inúmeras e incríveis histórias.
«Desculpe o sorriso. Lembrei-me de uma coisa que nada tem a ver connosco.»
«Olhe, senhor...»
«António Ildefonso. Desculpe não me ter apresentado.»
«O senhor António...»
«Só António, por favor.»
«Pronto, António. Deixemo-nos de salamaleques. Chamo-me Mónica e sou amiga íntima da Maria. Para o pôr à vontade, se não se importa vai ao frigorífico da cozinha tirar uma cerveja. Siga pelo corredor até ao fundo e logo vê a cozinha. A porta está aberta.»
Pelo caminho fui pensando em tudo o que estava a acontecer, principalmente na dúvida que me assaltava.
Afinal quem era a Mónica e que relação tinha com a Maria?
Não tive dificuldade em encontrar a cozinha. A contar com os dois fogos, aquele andar tinha, no máximo, seis assoalhadas.
E a outra cozinha quase de certeza fora transformada em mais uma divisão utilizável, não como cozinha.
«Cá estou de regresso. Desculpe a indiscrição. Viviam só as duas?»
«E com a cerveja, pelo que vejo. Vivíamos, sim. A casa é de um familiar da Maria.»
Fez-se um compasso de espera. Eu não sabia como começar e ela também devia estar a ter os seus problemas.
Resolvi romper o silêncio.
«A Mónica já deve ter percebido que vim à procura da Maria.»
«Fomos colegas de curso e morámos aqui desde que nos inscrevemos em Farmácia, isto em oitenta e seis. Conforme deve saber, a Maria conheceu o Mário quando começou a dar aulas aqui em Lisboa. Ela tinha uma atração especial pelo seu amigo, pois falava com frequência dele.»
Interrompi-a.
«Só atração?»
«Bom, não sei. Mas diga-me uma coisa: é o António que escreve aquelas coisas sobre as histórias do Mário?»
«Sim. E tem lido?»
«Principalmente a história que diz respeito aos dois.»
Começava a compreender o motivo que levou a Mónica a convidar-me a subir. Quando perguntei pela Maria deduziu logo que a minha presença à porta do prédio estava relacionada com a ligação que houve entre os dois.
«Sabe mais alguma coisa que eu não saiba?»
Demorou a responder.
«A Maria é muito reservada. Ainda insinuei várias vezes que ela tinha mais que amizade pelo Mário, mas limitou-se sempre a sorrir e a dizer que estava a meter-me na sua vida. Entretanto só esteve mais um ano em Lisboa. Eu continuei a morar nesta casa.»
«Foi mais ou menos o que ela disse uma vez ao Mário. Ele ficou para morrer. É que o Mário era um livro aberto para ela e ficou chocado com a sua reação. Chegou a falar de ingratidão. E disse ainda que foi mais do que um pai para ela.»
«O que lá vai, lá vai. Já não a vejo desde que voltou para Setúbal. Falámos umas tantas vezes pelo telemóvel e mais nada. A culpa não foi minha. Quem fazia as chamadas era eu e acabei por convencer-me que ela queria fazer uma vida subterrânea. Isto é...»
«Não diga mais, Mónica. Acho que ela seguiu as previsões quirológicas do Mário.»
«Sim. Bem sei. Não se esqueça que li a história. Mas queria saber uma coisa antes de aprofundarmos a conversa sobre a Maria e o Mário...»
«Diga então, Mónica.»
«Foi o Mário que lhe pediu para vir cá?»
«É natural que faça essa pergunta. Não. Não foi o Mário. Aliás, não sei do seu paradeiro há mais de um mês.»
«Então o que o levou a vir aqui?»
«Talvez encontrasse uma resposta. Sabe?, estou preocupado.»
«Que faz na vida, António?»
«Neste momento, nada. Fui professor de Matemática. Dava aulas na mesma escola que o meu amigo.»
«E não conheceu a Maria?»
«Parece ilógico, mas tem uma explicação. Um dava aulas de dia e o outro à noite.»
«Entendo. Olhe, quer comer alguma coisa? Antes de vir para casa comprei no Califa rissóis e bolos secos.»
«Não estou a ser inoportuno?»
«De modo algum. Se quer saber moro sozinha e não estou à espera de ninguém. Temos todo o tempo do mundo para falarmos sobre os nossos amigos.»
Era só para falarmos sobre eles?
Desconfiado como de costume, António.
«Aceito o seu convite. Também não tenho qualquer compromisso e ninguém está à minha espera em casa.»
Fui longe de mais?
A pergunta era pertinente face ao ar sério que mostrou.
«Não está a insinuar?»
«Não estou a insinuar nada, Mónica.»
Claro que estas duas frases estão a mais.
«E que bebe?»
«O que a Mónica beber.»
«Pode ser chá de cidreira?»
Acenei afirmativamente.
«Então é só um momento.»
«Mulher interessante.» Pensei.
(Uma advertência: nunca digam "não faz o meu género" que podem engolir mais tarde as palavras que disseram)
Aproveitei a oportunidade para esticar as pernas e também dar uma volta pelas fotografias que estavam sobre a consola. Nem uma única da Maria e do Mário. Achei estranho.
Dei mais uns passos e assomei à janela. Dali via-se o passeio onde tinha estado há alguns minutos. Tantas vezes o Mário passara por ali sempre com o pensamento na morena que soltou os cabelos ao vento!
Reparei numa porta encravada na parede à minha direita. Achei curioso. Provavelmente fazia ligação com o outro fogo.
Olhei para a entrada da outra porta. Talvez a Mónica ainda demorasse e me desse oportunidade para espreitar o que estava do outro lado.
Rodei em vão o manípulo da porta. Nada feito porque nem sequer havia chave.
«Aqui está o chá. Não queime a língua. Foi feito ao lume» disse, sorrindo mais uma vez. «A propósito, os rissóis ainda estão mornos. Coma um. Posso servir-lhe o chá?»
«Obrigado.»
Enquanto a Mónica deitava o chá na chávena, peguei num guardanapo de papel para tirar um rissol. Esperei que começasse a comer para dar a primeira dentada no rissol.
«São bons.»
«Pelo menos têm camarão.»
«No Califa é tudo bom. A começar pelos bolos.»
«Costuma frequentar o Califa?»
«Não. Sei pelo Mário. Quando esteve destacado no Ministério falou-me de uma colega que dizia maravilhas do Califa.»
A minha interlocutora manteve-se em silêncio. Estava esclarecida a sua dúvida.
«O Mário gostava muito da Maria.»
Sorriu.
«Ela falava-me do seu amigo com frequência. Porque foi que...?»
Sorri.
«Porquê esse sorriso irónico?»
«Não se zangue pois não é nada de si. Lembrei-me simplesmente de uma coisa. O Mário escreveu muitos poemas dedicados à Maria. Um deles tinha o título "porque foi...?".»
«Porque foi?»
«Que não me amaste.»
«Mas a Maria gostava dele.»
Levou a chávena à boca. Tive a sensação que não bebeu.
«Não o suficiente para dar-lhe um sinal forte. Até porque era muito mais nova do que ele e penso que esse foi o principal obstáculo.»
«Quando há amor, a cegueira da paixão não admite obstáculos. Mas estamos a tecer considerações como se a relação entre os dois não tivesse ido para a frente. Pode não ter sido assim, António. Bom... Quer mais chá, António?»
Demorei a responder. Lembrei-me que ela só tinha levado uma vez a chávena à boca e parecera-me que pouco ou nada tinha bebido.
«António?»
Palermice a minha.
«Desculpe. Pode ser, muito obrigado. Este chá está a fazer-me um efeito relaxante tal que nem imagina, Mónica. É mesmo agradável.»
«Acha?»
A voz da Mónica pareceu-me longínquo. Ou era impressão minha ou estava com uma grande pedrada como se tivesse bebido dois ou três copos de whisky.
De repente fez-se noite antes que chegasse a noite...
Encostada ao muro da igreja, à esquina, devia estar a bicicleta que tinha deixado ainda de dia para entrar no hospital onde estava internada uma aluna que fora atropelada por um camião.
Vinha satisfeito da visita porque, quase por milagre, ela recuperara do traumatismo craniano.
Ficou feliz quando me viu. Pensando melhor, ela estava à minha espera junto à igreja. As sequelas tinham desaparecido depressa e já tivera alta.
Estranhei ter andado mais de cinquenta metros sem encontrar a igreja. Parei. O ruído do silêncio incomodava.
«Enganei-me na rua?» perguntei a mim próprio.
O melhor era parar. Não. Suspeitava que era seguido por alguém. E a igreja devia estar perto. Um lugar que me dava segurança. Depois tinha a bicicleta encostada à parede da igreja. E a minha aluna à espera.
Como que por milagre a rua iluminou-se e pude ver a igreja. E ela. Não a bicicleta. Nem a aluna. Ela. A Maria. Vinha do lado nascente, pela rua que se cruzava com a minha. Dirigia-se para o ocaso. Sem pressa.
«Maria!» chamei-a.
Não me ouviu. Continuava em direção a poente, mantendo a passada lenta.
Não me conformei. Logo tudo se modificou e pude ficar frente a frente com ela. De novo o silêncio a imperar.
Foi então que me lembrei que a Maria não me conhecia nem eu a ela. Mas era ela. A Maria do Mário.
Reparei que envelhecera e tinha o rosto mais pálido que o de um cadáver. Os cabelos brancos, mal penteados, não estavam apanhados em rabo de cavalo. Nem soltos, como costumava dizer o Mário. Soltos ao vento.
Como podia estar a acontecer um fragmento do mesmo sonho que o Mário teve?
Via-lhe a aura. Não ia viver muito tempo!
Guardei o segredo. Continuávamos frente a frente.
«Sou o António. O Mário falou-me de ti...»
Mexeu os lábios. Não consegui ouvir o que dizia. Só sabia que ela ia morrer.
Afastou-se de vez para o sítio onde o sol se escondia todos os dias. Seria talvez a primeira e a última vez que a via.
«Maria» murmurei mais baixo que o silêncio da noite. «O Mário gostava muito de ti...»
Como resposta, a noite tragou-a.
Fui acordando aos poucos, talvez porque me sentia algo confuso. Tentei abrir os olhos. Obviamente a forte claridade da manhã que despontava não era conselheira. Teria que esperar mais alguns minutos.
Fiz nova tentativa e consegui. Então soergui-me, apoiado com os dois cotovelos no sofá e olhei em volta. Do que vi nada me era familiar. Não sabia onde estava.
Ainda um pouco estonteado, sentei-me no sofá. Olhei para o chão, para o sítio dos pés. Estava calçado. Com a pedrada que me assaltou de súbito, ela não perdeu tempo comigo. Deitou-me no sofá e foi à sua vida. Mas, vendo melhor, aquela não era a sala onde tínhamos estado a conversar na véspera até ao momento em que perdi a consciência.
«Mónica!»
A minha última memória. O resto não passara de um sonho quase tirado a papel químico de outro que o Mário me contou. Os seus sonhos tinham mais sequência e lógica, se é que podia haver esses dois predicados nos sonhos.
Desta vez ouvi a minha voz. Pelo menos, foi um dado positivo. E uma certeza. Tinha abandonado o mundo dos sonhos e preparava-me para enfrentar o mundo real, por vezes mais inóspito que o mundo dos sonhos. E falando de mundo real, a Mónica devia estar algures, na casa. Provavelmente na cozinha a preparar-me um café forte para acordar de vez.
Mas para quê a porra do soporífero que pôs no chá?
Se usou uma espécie de soro da verdade, que verdade queria tirar de mim se sempre fui um livro aberto?
Isso acontecia entre espiões e eu nada tinha a ver com essas coisas que desejava ver bem longe.
«Bom, a Mónica não respondeu» pensei. «Provavelmente estou na outra casa.»
Levantei-me e dei uma volta de reconhecimento pelas divisões da casa. Faltavam muitos móveis. Dava ideia que já ninguém morava ali, naquele primeiro esquerdo. E acertara no palpite.
A cozinha tinha sido transformada noutra sala.
Outra coisa dada quase como certa. As duas amigas tinham compartilhado todas aquelas divisões, a não ser que as obras de modificações fossem posteriores à saída da Maria.
De repente passou-me uma coisa ruim pela cabeça e procurei a porta de ligação com o primeiro direito, o que não foi difícil.
«Bonito! Nada de chave...»
Não me deu uma fúria porque rodei o manípulo e a porta abriu-se de imediato.
«Vejamos o que temos do lado de lá. Certamente a Mónica, que vai ouvir das boas. Ou não me chame António!»
Agora até já falava em voz alta. Que se lixasse. O importante era encontrar a Mónica e fazer-lhe algumas perguntas, uma delas a daquele maldito soporífero que pôs no chá.
Procurei-a por todas as salas. A amiga da Maria tinha-se evaporado. Ou então fora às compras, o que era o mais natural.
Consultei o relógio. Passava já das onze. Afinal não era tão cedo como julgava. O melhor era esperar na sala. Mas antes, talvez fosse boa ideia ir à cozinha, porque na sala já não havia vestígios das chávenas de chá, do bule e dos rissóis. Estava tudo no seu lugar.
Já na cozinha passava-se o mesmo. Tudo arrumado. Lava-loiças seco. Chão limpo. Nada em cima da bancada em granito.
«Vive-se bem.» Comentei. «Uma bancada em granito e chão em mármore não é para qualquer um!»
Antes de sair da cozinha procurei um copo nos armários. Sentia a garganta seca. Que raio!, não havia motivo para ela fazer o que fez...
«Ah!»
A exclamação tinha sentido. A torneira não deitava água.
«Afinal de contas, o que se passa aqui?»
Resolvi não perder tempo em procurar a torneira de segurança e voltei à sala.
«Naturalmente não vale a pena esperar por ela.»
Não sabia como, mas a Mónica tinha sacado de mim o que queria e pôs-se na alheta. Talvez a mando da Maria. Ou talvez não.
Mas como sabiam elas que eu tivera a triste ideia de tentar saber se a Maria ainda morava naquela casa?
Sentei-me no sofá e fiquei a pensar se não estava a viver um segundo sonho do qual já não ia acordar. Ou então o sonho começara quando entrei com a tal Mónica naquela casa e agora enfrentava a vida real.
Aquela mulher não era nada de se deitar fora. Não pequenina como a sardinha, mas bonita e com formas equilibradas. Não fazia parar o trânsito, mas havia qualquer coisa nela que me excitava.
Olhei na direção do aparador que tinha em frente.
«Cerejeira. De facto vive-se muito bem por aqui!»
Mas não era a qualidade do mobiliário que me interessava investigar. Os palpites do Mário batiam sempre certo. Que o dissessem as colegas do Projeto.
Como era que acontecia?
«Mário!»
«Diz lá, Milu.»
«Perdi um papel. Por favor, ajuda-me a procurar esse maldito! Já atei um lenço à cadeira mas o diabo não quer ajudar-me...»
Era o momento do Mário pôr em prática os seus poderes paranormais mascarados por uma manobra de diversão que consistia em estender os braços e caminhar, aparentemente guiado por eles, tal como os vedores fazem com uma varinha especial à procura de veios de água.
«Não gozes, Mário. Preciso desse papel com urgência. Tem o cabeçalho impresso a vermelho.»
«Não digas mais, rapariga. Espera e vê. Aprende que amanhã posso não estar cá.»
«Vais bater com a porta?»
«Quem te disse?»
«A chefe ainda não mandou pagar o trabalho que fizeste pelo outro quando adoeceu.»
Passados poucos minutos:
«É este?»
«Caramba, Mário! Como conseguiste?»
Infelizmente para ele não passou muito tempo que perdesse o dom. Nunca soube a causa da chegada do dom e da partida do mesmo.
«Se eu fosse o Mário nos tempos dourados!»
O aparador em cerejeira tinha gavetas em cima e três portas abaixo. Oxalá não estivessem fechadas.
Mas por que carga de água a minha atenção se virara para aquele aparador?
Comecei a procurar nas gavetas, esvaziando-as uma a uma. Nada de especial encontrei senão toalhas de mesa e guardanapos, além de um faqueiro na última gaveta. Restava saber o que estava no interior da parte de baixo do aparador. Provavelmente vidros e loiça. Se nem sequer sabia o que procurava, que estava ali a fazer senão perdendo o meu preciso tempo?
«Calma, António.»
Abri a primeira porta e fechei-a logo.
«Loiça.»
Passei ao segundo compartimento. Nada. Depois ao terceiro, onde me detive. Tinha documentos. Essencialmente dossiers. Fui abrindo e pondo de parte. Ocupação monótona. Apontamentos e folhas de estudo. Da Maria ou da Mónica. Busca inconcludente. Deixei ficar tudo como estava e dispus-me a abandonar a casa.
Antes de sair da sala olhei de relance para a mesa repleta de fotografias.
«Oh!»
Acabava de descobrir uma moldura com uma fotografia de Mário e um par de chaves sobre um pequeno papel que tinha escrito:
"Leva-as, António!"
Havia também um caderno.
Abri-o e folheei as folhas datilografadas, quedando-me por mais tempo numa ou noutra.
«Sorte!» exclamei, excitado.
A fonte não secara. Coisas do destino. Ainda não era desta que ia dedicar-me às histórias para crianças. O Mário contador de histórias tinha desaparecido sem deixar rasto, mas ficara um caderno manuscrito. Tudo levava a crer que, antes de desaparecer, passara por ali.
Mais histórias?
Se assim fosse, tratava-se de uma herança inesperada. Só tinha que lhes dar o meu cunho pessoal.
Mas que sorte a minha!
Como não vira na véspera?
Lógico. As chaves e o caderno não estavam lá.
Não pensei duas vezes e as chaves desapareceram num dos bolsos das calças. Quanto ao resto, uma fotografia era sempre uma fotografia. Pouco ou nada significava na hipotética relação entre o Mário e a Maria. A não ser que…
Desmontei a moldura e fiquei com a fotografia nas mãos. Virei-a instintivamente. Numa dedicatória curta li:
"Com amor..."
Mas havia mais. Uma folha azul dobrada em dois, manuscrita dos dois lados. Li a primeira frase e julguei que tinha acertado na mouche:
«É a primeira carta que te escrevo...»
Sugestivo. Então talvez houvesse ou tivesse havido entre eles mais que amizade. Tudo levava a crer que ele tinha conseguido montar finalmente o cavalo da coragem.
Voltei a colocar a fotografia na moldura, mas a folha teve outro destino. Depois, encaminhei-me para a porta de saída, não me esquecendo do caderno.
Era importante encontrar a Mónica. De certeza que ela sabia mais do que aparentara. Aquela de ele dizer que não ter voltado a ver a Maria não jogava certo.
Segundos volvidos estava na rua. Como o Mário fazia, caminhando na noite ao longo da marginal de F..., aspirei longamente o ar aquecido de Lisboa e dispus-me a descobrir o primeiro restaurante onde constasse no menu o prato preferido dele que, por sinal, também era o meu. Lulas guisadas com batatas fritas, acompanhadas de um bom vinho tinto, claro.
Et... chercher la femme!
O caderno de Mário
(do caderno do Mário contador de histórias para o António Ildefonso, fiel depositário, e para ficar como memória futura...)
Passava já das sete quando entrei no casino. Foram chapeladas do porteiro e outras mais deferências, vénias no bengaleiro, o principal dos principais chefes de sala a receber-me nos limites da passagem para as máquinas do vício, eu sei lá...
Não sou o Cristiano nem, tão pouco, o George Clooney do Ocean's Eleven, nem, agora descendo a outra galáxia, mais discreta, um conhecido fadista da nossa praça que, por obra e graça do Espírito Santo, costuma surgir do nada e lançar-se sobre uma máquina abandonada recentemente por um utente, com a certeza de que vai conquistar um bom prémio, oferecido, com grandes dúvidas, pelo aleatório.
Voltando ao George e ao filme que me veio à cabeça, às vezes penso que a melhor forma de me libertar da lei da morte é fazer uma sociedade anónima com o artista e o seu bando (no filme, entenda-se).
Imagine-se. Imagine-se só. Claro que não vou assaltar o casino. O povo é sereno e é só fumaça, como dizia o falecido Pinheiro de Azevedo. E eu sou mais sereno que o povo que ouviu, certa tarde, o militar e político fazer semelhante afirmação na Praça do Comércio, se bem me lembro em pleno verão quente.
Normalmente costumo chegar à hora da abertura, mas desta vez optei por uma hora mais tardia. Depois do aparato em honra das grandes personalidades que estavam ausentes, decidi-me subir as escadas rolantes com o fim de visitar o "deserto". O Fort Knox e a sua clientela do costume viriam a seguir.
Era uma pena ver aquelas mais que dez dezenas de máquinas desocupadas. Nem trinta pessoas havia naquele andar.
A que se devia?
Má gestão. Sem prémios não havia utentes.
Dispunha-me a descer ao piso inferior quando encontrei um amigo que fiz recentemente.
«Amigo Mário! Há muito que não o via. Esteve doente?»
«Viva, Francisco. Sinto-me mais são que um pero. Está tudo bem consigo?»
«Quero sair deste antro que me agarra com força. De resto, tudo bem.»
«Ótimo.»
Expliquei-lhe a razão da minha ausência prolongada.
«Sabe, Francisco, depois daquele caso passado com a inspetora, mais a mais com uma reclamação que tinha pernas para andar, até perdi o interesse como observador, já que jogar só o faço não pelo jogo mas pelo prazer de ganhar. Quanto àquele maldito caso, ainda não desisti. Só estou à procura do momento certo para agir. Pode demorar muito tempo mas vai acontecer, acredite!»
«Oxalá. Nem calcula o ódio que tenho a esta gente. Ainda bem que o vício não entra no meu amigo. Eu é que não consigo. O pouco dinheiro que arranjo vai todo para este sorvedouro maldito. E o filme é sempre o mesmo. Começo a ganhar e depois os cabrões tiram-me tudo.»
«Tem que controlar-se mais, meu amigo.»
«É revoltante. Tenho a vida destruída. A minha família, os amigos do antigo emprego. É que não sou um qualquer. Estudei, empreguei-me bem, cultivei-me. Agora ando por aqui. Desculpe estar a importuná-lo, amigo Mário.»
«Pelo amor de Deus. Fale à vontade.»
«E como está a correr o jogo?»
«Ainda não comecei. Cheguei nem há cinco minutos. Agora vou lá abaixo. Isto aqui é Marrocos. Não se aprende nada.»
«Depois mostro-lhe uma máquina das Cleopatras.»
«De vinte cêntimos?»
«Exato. Então vá lá...»
Desci as escadas rolantes e dirigi-me para a zona do Fort Knox. Encontrei dois ou três amigos que estavam à espera de máquina. Aliás o ambiente estava mais concorrido do que o habitual. Não era fim de semana e o motivo de tanta concorrência devia ser outro. Evidente. Não precisava de mais. A platina rondava os três mil e quatrocentos euros, quase o dobro do ponto de partida. A única máquina era uma dos Unicorn Enchanted (mais conhecidas por máquinas dos cavalos). Uma ou duas notas não faziam diferença e, aliás, naquela noite não queria ficar só como observador de factos que estavam mais que comprovados.
Instalei-me o melhor que pude numa daquelas horríveis cadeiras rotativas, puxei de duas notas de vinte e comecei a jogar 25x2, o que equivalia a vinte e cinco linhas e dois créditos por linha. Um euro por jogada.
Rapidamente a minha cave de quarenta chegou a meio e optei por jogar só um crédito por linha. Então fui ao cofre quase de seguida. E espante-se quem quiser espantar-se. Consegui chegar ao ouro. Cerca de quatrocentos e quarenta euros. Nada mau para começar.
«Enganaram-se.» Disse ao Vítor.
«É capaz de ter razão. Esta máquina estava destinada a outro que não a quis.»
«Ainda bem.» Pensei.
Segui o seu olhar e adivinhei para quem estava a olhar. Pois era. O Palrador. Bem feito!
«O fulano vai ficar pior que uma barata.»
Ainda bem que não quis esta máquina. Guardado estava o bocado para quem o ia comer. Aquele homem jogava baixo e tirava bons prémios. A sua estratégia chorona tinha um objetivo baseado na máxima popular "quem não chora, não mama".
«A máquina não dá dois cavalos. Não vou ao cofre. Não há caixotes. Sei muito bem o que devia fazer.»
Pois era. Jogava com treze, catorze, quinze linhas e não mais.
Uma noite abanou com força a máquina, parecendo estar zangado. Eu estava na máquina à esquerda e olhei. Não para ele mas para a máquina. O "fingidor" acabava de ganhar mais de trezentos euros a jogar a catorze créditos!
O homem devia estar fulo até dizer basta. Opções eram opções e quem o mandava não gostar de jogar entre duas máquinas e preferir as pontas?
E constava que emprestava dinheiro a juros. Um dia disse-me que o agressor das palavras (3) pediu-lhe dinheiro emprestado.
Passava já das sete quando entrei no casino. Foram chapeladas do porteiro e outras mais deferências, vénias no bengaleiro, o principal dos principais chefes de sala a receber-me nos limites da passagem para as máquinas do vício, eu sei lá...
Não sou o Cristiano nem, tão pouco, o George Clooney do Ocean's Eleven, nem, agora descendo a outra galáxia, mais discreta, um conhecido fadista da nossa praça que, por obra e graça do Espírito Santo, costuma surgir do nada e lançar-se sobre uma máquina abandonada recentemente por um utente, com a certeza de que vai conquistar um bom prémio, oferecido, com grandes dúvidas, pelo aleatório.
Voltando ao George e ao filme que me veio à cabeça, às vezes penso que a melhor forma de me libertar da lei da morte é fazer uma sociedade anónima com o artista e o seu bando (no filme, entenda-se).
Imagine-se. Imagine-se só. Claro que não vou assaltar o casino. O povo é sereno e é só fumaça, como dizia o falecido Pinheiro de Azevedo. E eu sou mais sereno que o povo que ouviu, certa tarde, o militar e político fazer semelhante afirmação na Praça do Comércio, se bem me lembro em pleno verão quente.
Normalmente costumo chegar à hora da abertura, mas desta vez optei por uma hora mais tardia. Depois do aparato em honra das grandes personalidades que estavam ausentes, decidi-me subir as escadas rolantes com o fim de visitar o "deserto". O Fort Knox e a sua clientela do costume viriam a seguir.
Era uma pena ver aquelas mais que dez dezenas de máquinas desocupadas. Nem trinta pessoas havia naquele andar.
A que se devia?
Má gestão. Sem prémios não havia utentes.
Dispunha-me a descer ao piso inferior quando encontrei um amigo que fiz recentemente.
«Amigo Mário! Há muito que não o via. Esteve doente?»
«Viva, Francisco. Sinto-me mais são que um pero. Está tudo bem consigo?»
«Quero sair deste antro que me agarra com força. De resto, tudo bem.»
«Ótimo.»
Expliquei-lhe a razão da minha ausência prolongada.
«Sabe, Francisco, depois daquele caso passado com a inspetora, mais a mais com uma reclamação que tinha pernas para andar, até perdi o interesse como observador, já que jogar só o faço não pelo jogo mas pelo prazer de ganhar. Quanto àquele maldito caso, ainda não desisti. Só estou à procura do momento certo para agir. Pode demorar muito tempo mas vai acontecer, acredite!»
«Oxalá. Nem calcula o ódio que tenho a esta gente. Ainda bem que o vício não entra no meu amigo. Eu é que não consigo. O pouco dinheiro que arranjo vai todo para este sorvedouro maldito. E o filme é sempre o mesmo. Começo a ganhar e depois os cabrões tiram-me tudo.»
«Tem que controlar-se mais, meu amigo.»
«É revoltante. Tenho a vida destruída. A minha família, os amigos do antigo emprego. É que não sou um qualquer. Estudei, empreguei-me bem, cultivei-me. Agora ando por aqui. Desculpe estar a importuná-lo, amigo Mário.»
«Pelo amor de Deus. Fale à vontade.»
«E como está a correr o jogo?»
«Ainda não comecei. Cheguei nem há cinco minutos. Agora vou lá abaixo. Isto aqui é Marrocos. Não se aprende nada.»
«Depois mostro-lhe uma máquina das Cleopatras.»
«De vinte cêntimos?»
«Exato. Então vá lá...»
Desci as escadas rolantes e dirigi-me para a zona do Fort Knox. Encontrei dois ou três amigos que estavam à espera de máquina. Aliás o ambiente estava mais concorrido do que o habitual. Não era fim de semana e o motivo de tanta concorrência devia ser outro. Evidente. Não precisava de mais. A platina rondava os três mil e quatrocentos euros, quase o dobro do ponto de partida. A única máquina era uma dos Unicorn Enchanted (mais conhecidas por máquinas dos cavalos). Uma ou duas notas não faziam diferença e, aliás, naquela noite não queria ficar só como observador de factos que estavam mais que comprovados.
Instalei-me o melhor que pude numa daquelas horríveis cadeiras rotativas, puxei de duas notas de vinte e comecei a jogar 25x2, o que equivalia a vinte e cinco linhas e dois créditos por linha. Um euro por jogada.
Rapidamente a minha cave de quarenta chegou a meio e optei por jogar só um crédito por linha. Então fui ao cofre quase de seguida. E espante-se quem quiser espantar-se. Consegui chegar ao ouro. Cerca de quatrocentos e quarenta euros. Nada mau para começar.
«Enganaram-se.» Disse ao Vítor.
«É capaz de ter razão. Esta máquina estava destinada a outro que não a quis.»
«Ainda bem.» Pensei.
Segui o seu olhar e adivinhei para quem estava a olhar. Pois era. O Palrador. Bem feito!
«O fulano vai ficar pior que uma barata.»
Ainda bem que não quis esta máquina. Guardado estava o bocado para quem o ia comer. Aquele homem jogava baixo e tirava bons prémios. A sua estratégia chorona tinha um objetivo baseado na máxima popular "quem não chora, não mama".
«A máquina não dá dois cavalos. Não vou ao cofre. Não há caixotes. Sei muito bem o que devia fazer.»
Pois era. Jogava com treze, catorze, quinze linhas e não mais.
Uma noite abanou com força a máquina, parecendo estar zangado. Eu estava na máquina à esquerda e olhei. Não para ele mas para a máquina. O "fingidor" acabava de ganhar mais de trezentos euros a jogar a catorze créditos!
O homem devia estar fulo até dizer basta. Opções eram opções e quem o mandava não gostar de jogar entre duas máquinas e preferir as pontas?
E constava que emprestava dinheiro a juros. Um dia disse-me que o agressor das palavras (3) pediu-lhe dinheiro emprestado.
E não disse que não?
Tomei a direção das máquinas dos cifrões e reparei que estavam mais duas de jogos variados, entre os quais as bananas e os aviões. Todas de nove linhas e a dez cêntimos a linha.
«Jogue na primeira máquina, amigo Mário. Essa máquina já levou mais de dois milhares de euros sem dar retorno.»
Virei-me. Era o Francisco.
«E acha que não vai continuar a tirar, fechando-se como uma ostra?»
«É só um palpite. Jogue uma notinha...»
Aceitei o desafio do Francisco, talvez o homem que mais sabia dos podres do casino, não esquecendo o Vítor, e que revelava uma animosidade crescente contra os responsáveis, a começar nos fiscais e mecânicos, passando pelos chefes de sala e acabando na administração. Acrescento os inspetores, que não saíam da sua sala privativa para o palco da verdade porque, pasme-se, estavam afogados em burocracia.
«Tenha cautela, amigo Mário, que há nestas salas informadores pagos pelo casino que vigiam quem joga. Outros que barafustam contra o casino e provocam a revolta e a desorientação dos utentes que estão a perder.»
Como lhes pagavam?
Se era verdade o que me contava, o pagamento seria provavelmente com tickets.
«Que acha do jogo, Mário?»
Já estava a jogar na segunda máquina dos cifrões e usava o modo automático.
«Por enquanto a máquina está equilibrada. Tem uma coisa boa. Dá cifrões. Se for ao bónus, pode repetir.»
«Oxalá.»
Infelizmente o crédito esgotou-se.
«Tente outra vez com uma notinha de dez.»
Contrariando a habitual regra que aconselhava a cuidados e caldos de galinha... segui o pedido do Francisco. Em boa hora. Ganhei quase duzentos euros. O meu amigo ficou duplamente feliz porque gratifiquei-o.
«Quer ir lá acima comer qualquer coisa, Francisco?»
«Obrigado. Para mim ainda é cedo. Já o procuro.»
Subi as escadas rolantes e fui direto ao balcão onde encomendei um prego em pão de baguete. Por sinal os pregos eram deliciosos. Macios e quase sem um nervo.
«E para beber?»
«Uma imperial das pequenas. Quanto tempo demora?»
«Cinco a dez minutos.»
«Ok.»
«Quer a imperial já?»
«Só quando vier o prego.»
Perto havia um conjunto de três máquinas Saloon onde joguei e ganhei, porque fui ao bónus e apareceram bailarinas até dizer chega. Ganhei cento e noventa e oito euros.
Que se passava com aquele dia de sorte?
Comi com prazer o prego no pão acompanhado de batatas fritas que molhei gulosamente em maionese e depois voltei para baixo.
O início
O caderno de Mário passou a ser uma caixa de surpresas a partir do momento em que descobri uma história algo insólita supostamente passada no casino.
Na introdução alertava o leitor para essa história, a que dei o nome de "O nó cego", ser fictícia. Daí fazer uma introdução.
Convém desde já esclarecer mais uma vez que a existência deste casino onde se desenrolam as histórias, localizado algures, é pura ficção, mas enquadra-se na realidade oportunista e desumana do modo de agir dos responsáveis por qualquer casino.
Mais ainda, nada tenho a ver com o real e o fictício do meu amigo contador de história e assim, vou limitar-me a transcrever, sem tirar uma linha, tal como tenho feito sempre, esta história que, a ser verdadeira, está muito para além dos envolvimentos duvidosos de alguns jogadores (os que ganham normalmente) com indeterminadas pessoas que trabalham no caso, peixe miúdo e graúdo.
Uma vez, Mário afirmou a um chefe de sala que era melhor para o casino ele jogar do que estar em segunda fila a registar o que se passava à sua volta, isto em ralação aos casos nebulosos que ocorriam no Fort Knox. Isto aconteceu antes dele saber da existência, por intermédio do seu amigo (ex-vampiro) Francisco, de informadores ao serviço do casino que estudavam o modo de jogar de alguns utentes considerados financeiramente importantes para virem mais tarde a ser depenados. A técnica usada era sempre a mesma. Dar corda ao papagaio para subir alto e depois tirar-lhe a corda, tendo-o sempre controlado e muitas vezes deixá-lo cair no solo. O sonho dourado de voar alto era substituído pelo pesadelo de um voo rasante que acabava sempre em desastre. Por outras palavras, certos jogadores que jogavam forte e pensavam ter descoberto o filão de uma mina de ouro, quando caíam na triste realidade de verificarem que o filão era imaginário e o que tinham na mina era só ganga, já era tarde. O dinheiro ganho nas primeiras extrações não compensava a despesa feita para seguir o filão que afinal não passava de pura ilusão.
Dos arruinados, uns poucos ficaram no casino arrastando-se penosamente como vampiros esfaimados e maldizendo a sua triste sina e outros desapareceram da circulação regressando às suas vidas que nunca seriam como dantes e, finalmente, outros escolhiam dramaticamente voar para o azul constelado do céu.
Mas vamos à história que descobri no caderno de Mário e que me causou uma grande perplexidade. Uma teia tenebrosamente engendrada por alguém que era mestre ou talvez especializado na arte de executar na perfeição aquilo que chama um nó cego.
Não começava pelo Fort Knox, nem sequer ia cumprimentar os prisioneiros-voluntários vidrados no jogo, nem ouvir as suas queixas, nem os fortes murros de revolta nos vidros das máquinas, ou as manobras misteriosas do Vítor a jogar a cinco e a nove e a ir ao cofre enquanto o diabo esfregava um olho, o Zé dedilhador nos seus êxitos rotineiros, o fracasso constante do agressor das palavras a jogar a aposta máxima, os forasteiros a terem êxito, acreditando que era fácil ganhar se voltassem ao casino, enfim... etc e tal.
Tomei a direção das máquinas dos cifrões e reparei que estavam mais duas de jogos variados, entre os quais as bananas e os aviões. Todas de nove linhas e a dez cêntimos a linha.
«Jogue na primeira máquina, amigo Mário. Essa máquina já levou mais de dois milhares de euros sem dar retorno.»
Virei-me. Era o Francisco.
«E acha que não vai continuar a tirar, fechando-se como uma ostra?»
«É só um palpite. Jogue uma notinha...»
Aceitei o desafio do Francisco, talvez o homem que mais sabia dos podres do casino, não esquecendo o Vítor, e que revelava uma animosidade crescente contra os responsáveis, a começar nos fiscais e mecânicos, passando pelos chefes de sala e acabando na administração. Acrescento os inspetores, que não saíam da sua sala privativa para o palco da verdade porque, pasme-se, estavam afogados em burocracia.
«Tenha cautela, amigo Mário, que há nestas salas informadores pagos pelo casino que vigiam quem joga. Outros que barafustam contra o casino e provocam a revolta e a desorientação dos utentes que estão a perder.»
Como lhes pagavam?
Se era verdade o que me contava, o pagamento seria provavelmente com tickets.
«Que acha do jogo, Mário?»
Já estava a jogar na segunda máquina dos cifrões e usava o modo automático.
«Por enquanto a máquina está equilibrada. Tem uma coisa boa. Dá cifrões. Se for ao bónus, pode repetir.»
«Oxalá.»
Infelizmente o crédito esgotou-se.
«Tente outra vez com uma notinha de dez.»
Contrariando a habitual regra que aconselhava a cuidados e caldos de galinha... segui o pedido do Francisco. Em boa hora. Ganhei quase duzentos euros. O meu amigo ficou duplamente feliz porque gratifiquei-o.
«Quer ir lá acima comer qualquer coisa, Francisco?»
«Obrigado. Para mim ainda é cedo. Já o procuro.»
Subi as escadas rolantes e fui direto ao balcão onde encomendei um prego em pão de baguete. Por sinal os pregos eram deliciosos. Macios e quase sem um nervo.
«E para beber?»
«Uma imperial das pequenas. Quanto tempo demora?»
«Cinco a dez minutos.»
«Ok.»
«Quer a imperial já?»
«Só quando vier o prego.»
Perto havia um conjunto de três máquinas Saloon onde joguei e ganhei, porque fui ao bónus e apareceram bailarinas até dizer chega. Ganhei cento e noventa e oito euros.
Que se passava com aquele dia de sorte?
Comi com prazer o prego no pão acompanhado de batatas fritas que molhei gulosamente em maionese e depois voltei para baixo.
O início
O caderno de Mário passou a ser uma caixa de surpresas a partir do momento em que descobri uma história algo insólita supostamente passada no casino.
Na introdução alertava o leitor para essa história, a que dei o nome de "O nó cego", ser fictícia. Daí fazer uma introdução.
Convém desde já esclarecer mais uma vez que a existência deste casino onde se desenrolam as histórias, localizado algures, é pura ficção, mas enquadra-se na realidade oportunista e desumana do modo de agir dos responsáveis por qualquer casino.
Mais ainda, nada tenho a ver com o real e o fictício do meu amigo contador de história e assim, vou limitar-me a transcrever, sem tirar uma linha, tal como tenho feito sempre, esta história que, a ser verdadeira, está muito para além dos envolvimentos duvidosos de alguns jogadores (os que ganham normalmente) com indeterminadas pessoas que trabalham no caso, peixe miúdo e graúdo.
Uma vez, Mário afirmou a um chefe de sala que era melhor para o casino ele jogar do que estar em segunda fila a registar o que se passava à sua volta, isto em ralação aos casos nebulosos que ocorriam no Fort Knox. Isto aconteceu antes dele saber da existência, por intermédio do seu amigo (ex-vampiro) Francisco, de informadores ao serviço do casino que estudavam o modo de jogar de alguns utentes considerados financeiramente importantes para virem mais tarde a ser depenados. A técnica usada era sempre a mesma. Dar corda ao papagaio para subir alto e depois tirar-lhe a corda, tendo-o sempre controlado e muitas vezes deixá-lo cair no solo. O sonho dourado de voar alto era substituído pelo pesadelo de um voo rasante que acabava sempre em desastre. Por outras palavras, certos jogadores que jogavam forte e pensavam ter descoberto o filão de uma mina de ouro, quando caíam na triste realidade de verificarem que o filão era imaginário e o que tinham na mina era só ganga, já era tarde. O dinheiro ganho nas primeiras extrações não compensava a despesa feita para seguir o filão que afinal não passava de pura ilusão.
Dos arruinados, uns poucos ficaram no casino arrastando-se penosamente como vampiros esfaimados e maldizendo a sua triste sina e outros desapareceram da circulação regressando às suas vidas que nunca seriam como dantes e, finalmente, outros escolhiam dramaticamente voar para o azul constelado do céu.
Mas vamos à história que descobri no caderno de Mário e que me causou uma grande perplexidade. Uma teia tenebrosamente engendrada por alguém que era mestre ou talvez especializado na arte de executar na perfeição aquilo que chama um nó cego.
Não começava pelo Fort Knox, nem sequer ia cumprimentar os prisioneiros-voluntários vidrados no jogo, nem ouvir as suas queixas, nem os fortes murros de revolta nos vidros das máquinas, ou as manobras misteriosas do Vítor a jogar a cinco e a nove e a ir ao cofre enquanto o diabo esfregava um olho, o Zé dedilhador nos seus êxitos rotineiros, o fracasso constante do agressor das palavras a jogar a aposta máxima, os forasteiros a terem êxito, acreditando que era fácil ganhar se voltassem ao casino, enfim... etc e tal.
Fui direito às máquinas de fundo verde dos cifrões. Confesso que são máquinas de grande potencial, se não forem manipuladas, claro. Gosto de jogar nestas máquinas, mas não posso passar das noves linhas a singelo (o máximo de linhas é nove, embora o número de apostas por linhas possa chegar a cinco).
Paciência. Estão todas ocupadas. Contudo, posso jogar se quiser. Há três jogadores de volta delas e estas são mais que três.
Alarme! Jogam todos a aposta máxima menos uma mulher loura que está a jogar a nove linhas com uma aposta por linha. Neste momento foi ao bónus.
«Olá, amigo Mário.»
Paciência. Estão todas ocupadas. Contudo, posso jogar se quiser. Há três jogadores de volta delas e estas são mais que três.
Alarme! Jogam todos a aposta máxima menos uma mulher loura que está a jogar a nove linhas com uma aposta por linha. Neste momento foi ao bónus.
«Olá, amigo Mário.»
Viro-me.
Quem havia de ser?
«Viva, Francisco. Está tudo bem?»
O Sombra diria:
«Tudo!»
«E quanto à fiscalização, há novidades?»
«Nada a dizer de especial.»
Deixemos em paz o homem de barriga proeminente e de passada larga que tem sempre pressa em chegar a um destino que não é sair do casino. Há uns anos atrás, o Jacinto dormia nas instalações do Aeroporto. Agora tem um cantinho guardado pela sua amiga Maria, bem mais perto do casino. Quanto ao resto, não perdeu a fortuna porque a sua fortuna é o casino. Joga quando lhe dão. Se lhe tirarem o casino, de certeza que morre. Quanto à Maria, esta continua a dizer que procura emprego e vai de recaída em recaída.
«Sim, meu amigo. Apenas uma coisa...»
«Diga, Francisco.»
«Estou revoltado comigo. Calcule que já gastei a minha pensão! Não é grande coisa, mas, como compreende, faz-me muita falta.»
Lamentei o facto, mas não lhe disse que tinha de se controlar. Ele já sabia isso e não conseguia. Havia teias e teias.
«Calcule que comecei a ganhar. Em vez de parar, continuei.»
«Pois.»
«E agora, Francisco, que fazes à vida até à próxima pensão?» pensei.
«Olhe, a primeira máquina comeu muito dinheiro ontem. Quando vagar ponha lá uma notinha. Pode ser que tenha sorte.»
Isso era se vagasse.
«Aquela dos aviões e a das malas e de mais dois jogos?»
«Não. A dos cifrões.»
«Ah!»
O jogo do bónus acabou. Pouco mais de quarenta euros no bónus. A máquina estava a pagar mal.
Entretanto foi a vez do homem que jogava em duas máquinas a 9X5 ir ao bónus numa delas.
Tinha recordações agradáveis de há uma semana precisamente na máquina em que o homem jogava o bónus. Os cinco cifrões surgiram de repente, não como os quatro de duas ou três jogadas anteriores que não apareceram em simultâneo. Um sinal de programação que afastava para longe a verdade burlesca do jogo aleatório que os fiscais e os chefes de sala, juntamente com os inspetores, queriam impingir aos utentes.
Tive na altura uma sensação estranha que não sei explicar. Coisa de outro mundo. Não fiquei nervoso. Apenas parecia que estava nesse outro mundo depois de um jackpot de mais de três mil euros. No momento, jogava a 9x2, portanto, um euro e oitenta cêntimos por jogada. O que não era habitual para um jogador como eu. O caso é curioso e dá para pensar. Um chinês acabara de deixar a máquina. Quando introduzi uma nota de vinte euros na ranhura, só depois descobri que a máquina tinha créditos. Poucos. Mas tinha.
«São seus?» perguntei ao chinês que jogava na máquina à minha direita.
«Não faz mal.»
«Obrigado.»
E foi assim que ganhei os quase quatro mil euros. Uma lança em África!
Quem havia de ser?
«Viva, Francisco. Está tudo bem?»
O Sombra diria:
«Tudo!»
«E quanto à fiscalização, há novidades?»
«Nada a dizer de especial.»
Deixemos em paz o homem de barriga proeminente e de passada larga que tem sempre pressa em chegar a um destino que não é sair do casino. Há uns anos atrás, o Jacinto dormia nas instalações do Aeroporto. Agora tem um cantinho guardado pela sua amiga Maria, bem mais perto do casino. Quanto ao resto, não perdeu a fortuna porque a sua fortuna é o casino. Joga quando lhe dão. Se lhe tirarem o casino, de certeza que morre. Quanto à Maria, esta continua a dizer que procura emprego e vai de recaída em recaída.
«Sim, meu amigo. Apenas uma coisa...»
«Diga, Francisco.»
«Estou revoltado comigo. Calcule que já gastei a minha pensão! Não é grande coisa, mas, como compreende, faz-me muita falta.»
Lamentei o facto, mas não lhe disse que tinha de se controlar. Ele já sabia isso e não conseguia. Havia teias e teias.
«Calcule que comecei a ganhar. Em vez de parar, continuei.»
«Pois.»
«E agora, Francisco, que fazes à vida até à próxima pensão?» pensei.
«Olhe, a primeira máquina comeu muito dinheiro ontem. Quando vagar ponha lá uma notinha. Pode ser que tenha sorte.»
Isso era se vagasse.
«Aquela dos aviões e a das malas e de mais dois jogos?»
«Não. A dos cifrões.»
«Ah!»
O jogo do bónus acabou. Pouco mais de quarenta euros no bónus. A máquina estava a pagar mal.
Entretanto foi a vez do homem que jogava em duas máquinas a 9X5 ir ao bónus numa delas.
Tinha recordações agradáveis de há uma semana precisamente na máquina em que o homem jogava o bónus. Os cinco cifrões surgiram de repente, não como os quatro de duas ou três jogadas anteriores que não apareceram em simultâneo. Um sinal de programação que afastava para longe a verdade burlesca do jogo aleatório que os fiscais e os chefes de sala, juntamente com os inspetores, queriam impingir aos utentes.
Tive na altura uma sensação estranha que não sei explicar. Coisa de outro mundo. Não fiquei nervoso. Apenas parecia que estava nesse outro mundo depois de um jackpot de mais de três mil euros. No momento, jogava a 9x2, portanto, um euro e oitenta cêntimos por jogada. O que não era habitual para um jogador como eu. O caso é curioso e dá para pensar. Um chinês acabara de deixar a máquina. Quando introduzi uma nota de vinte euros na ranhura, só depois descobri que a máquina tinha créditos. Poucos. Mas tinha.
«São seus?» perguntei ao chinês que jogava na máquina à minha direita.
«Não faz mal.»
«Obrigado.»
E foi assim que ganhei os quase quatro mil euros. Uma lança em África!
O bónus chegou ao fim. Resultado: jackpot!
«É já o terceiro hoje.» Comentou o Francisco. «Mas o homem gasta muito.»
«Já o vi a jogar em três máquinas ao mesmo tempo. E a loira?»
«Não se conhecem. Garanto-lhe, amigo Mário.»
Notei o olhar que o homem e a loira trocaram de máquinas.
Simples coincidência, pensei, interrogando o Francisco com um olhar.
«Este homem tem uma calma do caraças!»
«Curioso...»
«O quê, meu amigo?»
«Nada, nada.»
A mulher disse-lhe qualquer coisa que não entendi e ele respondeu com um aceno de cabeça.
«Ela não costuma jogar aqui.» Disse.
«Bem sei. Joga normalmente no Fort Knox. Ainda há pouco foi ao ouro. Mal tinha chegado. Antes disso uma outra mulher deixara lá mais de quinhentos euros.»
«Muito me conta. Já comeu alguma coisa, Francisco?»
«Por acaso não, amigo Mário.»
«Então vamos lá acima. Entretanto pode ser que uma destas máquinas vague.»
«Agradeço o convite. Há pouco pedi ao chefe de sala Fortuna se podia comer uma sandes de carne assada e o sacana disse-me logo que não podia ser hoje. Se está mal disposto, reage assim...»
Uma humilhação para um homem que teve uma vida digna e um emprego bem pago e que agora se via obrigado a esmolar disfarçadamente.
«Um indivíduo forte e baixo?»
«Sim.»
«Não posso com ele. Foi o que apanhei pela frente na passagem do ano depois de ter ido ao bónus a 125 e ganhar pouco mais de quatrocentos créditos. O que não chegou a dez euros. Não imagina o que aquela alma teve que ouvir. O homem até abanava a cabeça como um ventoinha. Vamos lá então?»
«Vamos.»
«E entretanto o Francisco conta-me alguma coisa sobre o homem que está a jogar nas duas máquinas.»
«Sim, meu bom amigo.»
O homem tranquilo e a loira cinquentona
«É já o terceiro hoje.» Comentou o Francisco. «Mas o homem gasta muito.»
«Já o vi a jogar em três máquinas ao mesmo tempo. E a loira?»
«Não se conhecem. Garanto-lhe, amigo Mário.»
Notei o olhar que o homem e a loira trocaram de máquinas.
Simples coincidência, pensei, interrogando o Francisco com um olhar.
«Este homem tem uma calma do caraças!»
«Curioso...»
«O quê, meu amigo?»
«Nada, nada.»
A mulher disse-lhe qualquer coisa que não entendi e ele respondeu com um aceno de cabeça.
«Ela não costuma jogar aqui.» Disse.
«Bem sei. Joga normalmente no Fort Knox. Ainda há pouco foi ao ouro. Mal tinha chegado. Antes disso uma outra mulher deixara lá mais de quinhentos euros.»
«Muito me conta. Já comeu alguma coisa, Francisco?»
«Por acaso não, amigo Mário.»
«Então vamos lá acima. Entretanto pode ser que uma destas máquinas vague.»
«Agradeço o convite. Há pouco pedi ao chefe de sala Fortuna se podia comer uma sandes de carne assada e o sacana disse-me logo que não podia ser hoje. Se está mal disposto, reage assim...»
Uma humilhação para um homem que teve uma vida digna e um emprego bem pago e que agora se via obrigado a esmolar disfarçadamente.
«Um indivíduo forte e baixo?»
«Sim.»
«Não posso com ele. Foi o que apanhei pela frente na passagem do ano depois de ter ido ao bónus a 125 e ganhar pouco mais de quatrocentos créditos. O que não chegou a dez euros. Não imagina o que aquela alma teve que ouvir. O homem até abanava a cabeça como um ventoinha. Vamos lá então?»
«Vamos.»
«E entretanto o Francisco conta-me alguma coisa sobre o homem que está a jogar nas duas máquinas.»
«Sim, meu bom amigo.»
O homem tranquilo e a loira cinquentona
Infelizmente o Francisco pouco tinha para acrescentar sobre a personalidade como jogador daquele indivíduo afável, calmo, quase inexpressivo. O ónus da despesa seria todo para mim. Quem era, donde vinha, que fazia na vida profissional. Aparentemente era pessoa endinheirada.
Mas de onde vinham todas aquelas notas de cinquenta euros que, paulatinamente, ia introduzindo pelo menos em duas máquinas?
«Acha que ele está a ganhar?» perguntei.
Pousou o copo no balcão e pareceu entregar-se a uns cálculos rápidos. Cheirou-me a simulação.
«Talvez que hoje esteja. Já tirou três jackpotes. Um deles de mais de três mil euros. Ao mesmo tempo está a apostar nove euros em cada jogada nas duas máquinas.»
«Então, em que ficamos?»
«Acho que está a ganhar. Há que contar também com os prémios que vai arrecadando, percebe, meu bom amigo?»
«E o que vai acontecer de futuro?»
Respondeu prontamente.
«O costume. Nos primeiros tempos, o nosso homem ganha uns bons milhares. E essa fase está a acontecer.»
«E depois?» perguntei, embora já conhecesse a resposta.
«Depois, o homem vai perder o que ganhou e também o que não ganhou. Como é hábito, diga-se.»
O Francisco tinha razão. A estratégia já era sobejamente conhecida na sua aplicação em vários casos registados e todos sempre com o mesmo fim. Êxito e glória seguido de derrota e fracasso.
«Reconheço que muito peixe graúdo desapareceu de cena e o que o peixe miúdo, o elo mais fraco, continua a tentar resistir.»
«Quer mais uma imperial, Francisco?»
«Obrigado, meu bom amigo. Estou bem assim. Agora, se não se importa, vou dar uma volta pelos jogos de mesa.»
Aquele homem percorria todo o casino.
«E eu vou continuar a ver o jogo do homem tranquilo.»
«Vá vá. E tome também atenção ao jogo da mulher. Não acha que ela está a ir muitas vezes ao bónus?»
Parecia que sim, embora não ganhasse nada de substancial de cada vez que ia ao bónus. Pelo menos dava para ficar entretida. Entretida, era isso.
Atingi o fim das escadas rolantes no momento exato em que o homem tranquilo introduzia tickets na máquina de pagamento automático. Mas não estava só. A seu lado tinha a mulher loira, com quem conversava.
«Temos jantar a dois!» deve estar a dizer. «Gostava de ser mosca...»
Plano alterado. A hora não era convidativa para jogar nos cifrões. Restava-me o Fort Knox, o que significava mais do mesmo, embora os protagonistas principais de facto já não fossem os mesmos. Queria referir-me ao cenário. Alargava-se o leque da insatisfação. Os protestos eram mais vigorosos e, curiosamente, os fiscais apareciam menos nesses momentos de grande tensão.
«Amigo Mário, como vão os cifrões?»
Nada a dizer também ao Vítor, sempre interessado com a minha participação nessas máquinas.
Quando me dispunha a abandonar aquela zona dos prisioneiros do Fort Knox, eis senão quando algo de anormal me chamou a atenção. Uma máquina tinha sido agitada até ao limite por alguém e a resposta seria pronta por parte dos fiscais. Disso tinha quase a certeza.
Localizei a máquina e aproximei-me, algo curioso. Espetáculos daqueles não se perdiam. O homem, suficientemente forte para danificar a máquina, quase que espumava de raiva.
«Esta gaja nem pia! Já engoliu novecentos euros e não dá um prémio de jeito.»
E voltou a agitar a máquina ainda com mais força.
Finalmente chegou um fiscal que ficou silencioso a olhar para ele. Por sinal um calmeirão que se intitulava "mau-mau". De alcunha, claro.
«Vai ser boa a festa!» comentei para mim.
E de facto foi. Para o lado do utente que se enfureceu ainda mais ante o ar expectante do seu interlocutor.
«Vocês fazem tudo o que querem!»
E mais do mesmo que o outro foi ouvindo, mostrando até um ar de provocação que felizmente não foi notado pelo utente que entretanto se tinha levantado. Diga-se que em nada era inferior fisicamente ao seu opositor.
«O senhor só vem cá porque quer. Ninguém o obriga. Mas se deseja ir à inspeção, tudo bem. Eu levo-o.»
«Você está a brincar comigo! Acha que nunca fui lá? E pensa que resulta alguma coisa queixar-me quando eles estão feitos com o sistema?»
«És cá dos meus» pensei. «Aqueles indivíduos da inspeção metem-se no gabinete e ninguém os tira de lá.»
Aquela discussão não levava a parte alguma. De facto ninguém obrigava o utente a jogar naquele casino ou em qualquer outro. Tudo bem. Sem tirar nem pôr. Mas os métodos que usavam para cativar os utentes quando das primeiras vezes que jogavam no casino é que eram tudo menos honestos. A máxima que dizia que um jogador tinha sempre sorte quando se estreava a jogar é que podia ser vista dentro de um outro modo de ver.
Vejamos um caso curioso passado numa máquina dos cifrões...
Naquele dia ninguém conseguia fazer alguma coisa das máquinas. Não davam linhas e os bónus eram raros e fracos. Por esse motivo, pouco ou nada tinha jogado. Limitava-me a observar, procurando descobrir qual era máquina menos má. Até que me decidi por uma que entretanto tinha vagado.
No momento em que comecei a jogar, um indivíduo à minha direita foi ao bónus. Olhei de soslaio. O homem olhava para a máquina sem se decidir a premir uma tecla para dar início ao bónus.
«De que está à espera?» pensei.
Resolvi não intervir. E fiz bem. Pouco depois o homem descobria a pólvora. Entretanto a minha máquina continuava igual a si própria.
Repetiu à terceira jogada do bónus. E quase logo de seguida apareceram no monitor quatro cifrões. Pouco depois apareceram mais três cifrões. E mais três. Uma chuva de bónus.
«A máquina está avariada!» disse, voltando-se para mim.
«Não está, não. Embalou...»
O homem estava visivelmente perturbado e reagiu a mais três cifrões repetindo que "a máquina estava avariada".
«E já tem mais de quatrocentos euros.»
«Não me diga!» exclamou, excitado. «Nunca me aconteceu!»
Pois não. Certamente era a primeira vez que jogava no casino.
Entretanto o utente à minha esquerda foi ao bónus. Foi rápido. Teve de prémio cerca de trinta euros, enquanto o outro arrecadou mais de seiscentos euros.
«Isto é inconcebível!» lamentou-se. «Um forasteiro chega e é logo contemplado com seiscentos euros.»
«Acredite que o homem há de voltar para ganhar outra vez e talvez mais outra. O pior é quando começa a perder e acaba por deixar tudo o que ganhou e o que não ganhou.»
Mas de onde vinham todas aquelas notas de cinquenta euros que, paulatinamente, ia introduzindo pelo menos em duas máquinas?
«Acha que ele está a ganhar?» perguntei.
Pousou o copo no balcão e pareceu entregar-se a uns cálculos rápidos. Cheirou-me a simulação.
«Talvez que hoje esteja. Já tirou três jackpotes. Um deles de mais de três mil euros. Ao mesmo tempo está a apostar nove euros em cada jogada nas duas máquinas.»
«Então, em que ficamos?»
«Acho que está a ganhar. Há que contar também com os prémios que vai arrecadando, percebe, meu bom amigo?»
«E o que vai acontecer de futuro?»
Respondeu prontamente.
«O costume. Nos primeiros tempos, o nosso homem ganha uns bons milhares. E essa fase está a acontecer.»
«E depois?» perguntei, embora já conhecesse a resposta.
«Depois, o homem vai perder o que ganhou e também o que não ganhou. Como é hábito, diga-se.»
O Francisco tinha razão. A estratégia já era sobejamente conhecida na sua aplicação em vários casos registados e todos sempre com o mesmo fim. Êxito e glória seguido de derrota e fracasso.
«Reconheço que muito peixe graúdo desapareceu de cena e o que o peixe miúdo, o elo mais fraco, continua a tentar resistir.»
«Quer mais uma imperial, Francisco?»
«Obrigado, meu bom amigo. Estou bem assim. Agora, se não se importa, vou dar uma volta pelos jogos de mesa.»
Aquele homem percorria todo o casino.
«E eu vou continuar a ver o jogo do homem tranquilo.»
«Vá vá. E tome também atenção ao jogo da mulher. Não acha que ela está a ir muitas vezes ao bónus?»
Parecia que sim, embora não ganhasse nada de substancial de cada vez que ia ao bónus. Pelo menos dava para ficar entretida. Entretida, era isso.
Atingi o fim das escadas rolantes no momento exato em que o homem tranquilo introduzia tickets na máquina de pagamento automático. Mas não estava só. A seu lado tinha a mulher loira, com quem conversava.
«Temos jantar a dois!» deve estar a dizer. «Gostava de ser mosca...»
Plano alterado. A hora não era convidativa para jogar nos cifrões. Restava-me o Fort Knox, o que significava mais do mesmo, embora os protagonistas principais de facto já não fossem os mesmos. Queria referir-me ao cenário. Alargava-se o leque da insatisfação. Os protestos eram mais vigorosos e, curiosamente, os fiscais apareciam menos nesses momentos de grande tensão.
«Amigo Mário, como vão os cifrões?»
Nada a dizer também ao Vítor, sempre interessado com a minha participação nessas máquinas.
Quando me dispunha a abandonar aquela zona dos prisioneiros do Fort Knox, eis senão quando algo de anormal me chamou a atenção. Uma máquina tinha sido agitada até ao limite por alguém e a resposta seria pronta por parte dos fiscais. Disso tinha quase a certeza.
Localizei a máquina e aproximei-me, algo curioso. Espetáculos daqueles não se perdiam. O homem, suficientemente forte para danificar a máquina, quase que espumava de raiva.
«Esta gaja nem pia! Já engoliu novecentos euros e não dá um prémio de jeito.»
E voltou a agitar a máquina ainda com mais força.
Finalmente chegou um fiscal que ficou silencioso a olhar para ele. Por sinal um calmeirão que se intitulava "mau-mau". De alcunha, claro.
«Vai ser boa a festa!» comentei para mim.
E de facto foi. Para o lado do utente que se enfureceu ainda mais ante o ar expectante do seu interlocutor.
«Vocês fazem tudo o que querem!»
E mais do mesmo que o outro foi ouvindo, mostrando até um ar de provocação que felizmente não foi notado pelo utente que entretanto se tinha levantado. Diga-se que em nada era inferior fisicamente ao seu opositor.
«O senhor só vem cá porque quer. Ninguém o obriga. Mas se deseja ir à inspeção, tudo bem. Eu levo-o.»
«Você está a brincar comigo! Acha que nunca fui lá? E pensa que resulta alguma coisa queixar-me quando eles estão feitos com o sistema?»
«És cá dos meus» pensei. «Aqueles indivíduos da inspeção metem-se no gabinete e ninguém os tira de lá.»
Aquela discussão não levava a parte alguma. De facto ninguém obrigava o utente a jogar naquele casino ou em qualquer outro. Tudo bem. Sem tirar nem pôr. Mas os métodos que usavam para cativar os utentes quando das primeiras vezes que jogavam no casino é que eram tudo menos honestos. A máxima que dizia que um jogador tinha sempre sorte quando se estreava a jogar é que podia ser vista dentro de um outro modo de ver.
Vejamos um caso curioso passado numa máquina dos cifrões...
Naquele dia ninguém conseguia fazer alguma coisa das máquinas. Não davam linhas e os bónus eram raros e fracos. Por esse motivo, pouco ou nada tinha jogado. Limitava-me a observar, procurando descobrir qual era máquina menos má. Até que me decidi por uma que entretanto tinha vagado.
No momento em que comecei a jogar, um indivíduo à minha direita foi ao bónus. Olhei de soslaio. O homem olhava para a máquina sem se decidir a premir uma tecla para dar início ao bónus.
«De que está à espera?» pensei.
Resolvi não intervir. E fiz bem. Pouco depois o homem descobria a pólvora. Entretanto a minha máquina continuava igual a si própria.
Repetiu à terceira jogada do bónus. E quase logo de seguida apareceram no monitor quatro cifrões. Pouco depois apareceram mais três cifrões. E mais três. Uma chuva de bónus.
«A máquina está avariada!» disse, voltando-se para mim.
«Não está, não. Embalou...»
O homem estava visivelmente perturbado e reagiu a mais três cifrões repetindo que "a máquina estava avariada".
«E já tem mais de quatrocentos euros.»
«Não me diga!» exclamou, excitado. «Nunca me aconteceu!»
Pois não. Certamente era a primeira vez que jogava no casino.
Entretanto o utente à minha esquerda foi ao bónus. Foi rápido. Teve de prémio cerca de trinta euros, enquanto o outro arrecadou mais de seiscentos euros.
«Isto é inconcebível!» lamentou-se. «Um forasteiro chega e é logo contemplado com seiscentos euros.»
«Acredite que o homem há de voltar para ganhar outra vez e talvez mais outra. O pior é quando começa a perder e acaba por deixar tudo o que ganhou e o que não ganhou.»
O homem tranquilo e a loira já estavam de volta. Ela jogava numa máquina e ele em duas.
«Então como estão elas?» perguntei.
«Nada más. Já tirei um jackpot na primeira...»
A minha preferida.
«E ela?» pensei.
Ela continuava entretida com a máquina a abrir muitas vezes, mas sempre a pagar mal.
Não se fizeram velhos. Por coincidência ou não, terminaram ao mesmo tempo e encaminharam-se para a máquina de pagamento automático.
Que iam fazer a seguir?
Adivinhar era proibido. Investigar, não. Mas noutro dia. Tinha que dar tempo ao tempo.
«Nada más. Já tirei um jackpot na primeira...»
A minha preferida.
«E ela?» pensei.
Ela continuava entretida com a máquina a abrir muitas vezes, mas sempre a pagar mal.
Não se fizeram velhos. Por coincidência ou não, terminaram ao mesmo tempo e encaminharam-se para a máquina de pagamento automático.
Que iam fazer a seguir?
Adivinhar era proibido. Investigar, não. Mas noutro dia. Tinha que dar tempo ao tempo.
Mantive-me discretamente à distância. Do sítio onde estava podia vê-los sem que me vissem. Não me interessava propriamente o jogo dos dois, mas sim a atitude da mulher. E não me enganei. Ela estava mais atenta ao jogo do homem tranquilo do que propriamente ao que se passava na sua máquina, o que no mínimo era estranho.
O que esperava uma mulher, a quem a juventude já ficara para trás, perante um homem endinheirado e ainda na força da vida?
Dava para pensar. A não ser que... Não! Lá estava o meu espírito imaginativo a trabalhar a todo o vapor.
«Calma, Mário, deita menos lenha para a caldeira. É cedo ainda para conjeturas.»
As máquinas pareciam estar fechadas. Paulatinamente ele ia pondo notas, ora numa máquina ora noutra. Resultado negativo. Pelo contrário, ela ia com frequência ao bónus embora a máquina pagasse mal. Uma história que se repetia.
«Olha o nosso amigo!»
Alguém tocara no meu ombro direito. Virei-me.
«Ah... é você.»
O Palrador. Na pior altura.
«Então os cifrões?»
Mais outro interessado na minha relação com aquelas máquinas. Coisa estranha. Eu, que era mais um observador que um jogador.
«De momento estou indeciso. Pensando bem, acho que não vale a pena insistir agora.»
«Mas diga-me uma coisa. Como funcionam?»
«Agora não posso porque estão todas ocupadas, não vê? Nem sei até se está interessado. Cada linha vale dez cêntimos. Jogando as nove linhas são noventa cêntimos cada vez.»
O outro coçou a cabeça.
«Ena!, tanto dinheiro...»
«Pois é, são apostas caras para ti» pensei. «Para quem joga baixo nos cavalos do modo como tu jogas é muita grana.»
«Tem razão, Mário. Acho que vou para a minha máquina.»
Sua máquina?
Mais parecia. Há uns dias tinha deixado inativa uma máquina durante cerca de meia hora. Entretanto um jogador atento não teve meias medidas. Retirou o maço de cigarros que marcava a máquina e começou a jogar. Quase logo de seguida surgiu o Palrador, vindo do nada e pôs-se a discutir com o outro. Alguém o avisara que tinham ocupado a máquina.
«Chame o fiscal que eu bem me ralo. Esta máquina estava abandonada há meia hora. E o fiscal vai confirmar.»
Sem argumentos para ripostar dirigiu-se para um fiscal que estava próximo e queixou-se. Este chamou um mecânico e ambos foram na direção da máquina, seguindo também atrás deles o queixoso sem razão. O resto foi fácil de adivinhar. De facto a máquina esteve parada durante trinta e cinco minutos.
«Mas eu fui jantar!»
Foi jantar de graça e a máquina ficou reservada para sua excelência!
«Este indivíduo julga-se sócio do casino.» Comentou o outro.
O fiscal sorriu e afastou-se. Mas o Palrador seguiu-o, gesticulando. Não entendi o que dizia mas parecia estar admoestando o fiscal.
Que mundo era este?
Donos do casino. Guardadores de máquinas. Ganhadores habituais que, ainda por cima jantavam de graça. Eternos perdedores. Jogo aleatório que era tudo menos aleatório. Inspetores que se refugiavam nos gabinetes e que respondiam a seu belo prazer às justas reclamações dos utentes. Inspetores que sabiam da existência de tubarões que emprestavam dinheiro com juros à cabeça e taxas ao dia e nada faziam. Chefes de sala que mandavam fechar as máquinas que passavam a funcionar em regime de serviços mínimos. Enfim, este mundo estava virado de pernas para o ar, Mário.
Virei-me para a boca de cena mal o intruso se afastou.
«Ah!»
A exclamação estava relacionada com o simples facto de os dois já não estarem a jogar. Se me apressasse, talvez ainda os encontrasse. O mais certo era descobri-los ainda junto à máquina de pagamento próxima da saída para o parque de estacionamento.
Negativo. Só havia uma hipótese.
«Vejamos o parque de estacionamento...»
Apressei-me. Não queria perder a oportunidade soberana de os voltar a ver juntos.
Juntos? Grande mistério! Nada tinham a ver um com o outro. Ele era um jogador com dinheiro para arriscar, mas um pouco cauteloso, diga-se. Ela, uma jogadora aparentemente pouco abonada que parecia mais interessada nele do que no próprio jogo. E aí residia a dúvida. A coisa não passava por interesse carnal. Era mais lógico admitir a possibilidade da mulher querer sacar algum dinheiro do alheio.
A loira cinquentona já conhecera melhores dias. Conservava apenas traços da mulher fatal que fora na juventude. Definitivamente era outra coisa.
«Pensa bem, Mário.»
Mas não tive tempo para pensar. Ali estava estavam eles junto a um BMW preto, topo de gama. Gostava de ser mosca ou então qualquer outro inseto voador para me juntar a eles. Gostava mas não era possível. No entanto podia aproximar-me mais, passando despercebido entre as colunas espessas que suportavam o teto. Mais dois passos e talvez conseguisse ouvir o que diziam.
«Quem me dera ser ele e poder jogar como joga!»
(«Troco a tua vida pela minha!»)
Que pensamento! Um quase pobretana como eu era nunca conseguiria chegar aos calcanhares daquele homem que tratava as notas de cinquenta euros da maneira como via tratar. Era verdade. Introduzia-as nas máquinas sem sequer pestanejar.
Estava muito perto deles e já não podia aproximar-me mais. O que senti no momento não foi inveja. Foi talvez o desejo de querer controlar as máquinas, tal como fazia quando era jovem com uma certa máquina dos jogos americanos dos meus bons velhos tempos no café Santiago. E que bons tempos aqueles!
Já os podia ouvir. De momento a conversa era o mais normal deste mundo. Talvez até fossem conhecidos de uma outra situação, ao contrário do que pensava o Francisco.
Ah!, se eu pudesse!
Mas melhor que ouvi-los foi o que aconteceu a seguir...
O que esperava uma mulher, a quem a juventude já ficara para trás, perante um homem endinheirado e ainda na força da vida?
Dava para pensar. A não ser que... Não! Lá estava o meu espírito imaginativo a trabalhar a todo o vapor.
«Calma, Mário, deita menos lenha para a caldeira. É cedo ainda para conjeturas.»
As máquinas pareciam estar fechadas. Paulatinamente ele ia pondo notas, ora numa máquina ora noutra. Resultado negativo. Pelo contrário, ela ia com frequência ao bónus embora a máquina pagasse mal. Uma história que se repetia.
«Olha o nosso amigo!»
Alguém tocara no meu ombro direito. Virei-me.
«Ah... é você.»
O Palrador. Na pior altura.
«Então os cifrões?»
Mais outro interessado na minha relação com aquelas máquinas. Coisa estranha. Eu, que era mais um observador que um jogador.
«De momento estou indeciso. Pensando bem, acho que não vale a pena insistir agora.»
«Mas diga-me uma coisa. Como funcionam?»
«Agora não posso porque estão todas ocupadas, não vê? Nem sei até se está interessado. Cada linha vale dez cêntimos. Jogando as nove linhas são noventa cêntimos cada vez.»
O outro coçou a cabeça.
«Ena!, tanto dinheiro...»
«Pois é, são apostas caras para ti» pensei. «Para quem joga baixo nos cavalos do modo como tu jogas é muita grana.»
«Tem razão, Mário. Acho que vou para a minha máquina.»
Sua máquina?
Mais parecia. Há uns dias tinha deixado inativa uma máquina durante cerca de meia hora. Entretanto um jogador atento não teve meias medidas. Retirou o maço de cigarros que marcava a máquina e começou a jogar. Quase logo de seguida surgiu o Palrador, vindo do nada e pôs-se a discutir com o outro. Alguém o avisara que tinham ocupado a máquina.
«Chame o fiscal que eu bem me ralo. Esta máquina estava abandonada há meia hora. E o fiscal vai confirmar.»
Sem argumentos para ripostar dirigiu-se para um fiscal que estava próximo e queixou-se. Este chamou um mecânico e ambos foram na direção da máquina, seguindo também atrás deles o queixoso sem razão. O resto foi fácil de adivinhar. De facto a máquina esteve parada durante trinta e cinco minutos.
«Mas eu fui jantar!»
Foi jantar de graça e a máquina ficou reservada para sua excelência!
«Este indivíduo julga-se sócio do casino.» Comentou o outro.
O fiscal sorriu e afastou-se. Mas o Palrador seguiu-o, gesticulando. Não entendi o que dizia mas parecia estar admoestando o fiscal.
Que mundo era este?
Donos do casino. Guardadores de máquinas. Ganhadores habituais que, ainda por cima jantavam de graça. Eternos perdedores. Jogo aleatório que era tudo menos aleatório. Inspetores que se refugiavam nos gabinetes e que respondiam a seu belo prazer às justas reclamações dos utentes. Inspetores que sabiam da existência de tubarões que emprestavam dinheiro com juros à cabeça e taxas ao dia e nada faziam. Chefes de sala que mandavam fechar as máquinas que passavam a funcionar em regime de serviços mínimos. Enfim, este mundo estava virado de pernas para o ar, Mário.
Virei-me para a boca de cena mal o intruso se afastou.
«Ah!»
A exclamação estava relacionada com o simples facto de os dois já não estarem a jogar. Se me apressasse, talvez ainda os encontrasse. O mais certo era descobri-los ainda junto à máquina de pagamento próxima da saída para o parque de estacionamento.
Negativo. Só havia uma hipótese.
«Vejamos o parque de estacionamento...»
Apressei-me. Não queria perder a oportunidade soberana de os voltar a ver juntos.
Juntos? Grande mistério! Nada tinham a ver um com o outro. Ele era um jogador com dinheiro para arriscar, mas um pouco cauteloso, diga-se. Ela, uma jogadora aparentemente pouco abonada que parecia mais interessada nele do que no próprio jogo. E aí residia a dúvida. A coisa não passava por interesse carnal. Era mais lógico admitir a possibilidade da mulher querer sacar algum dinheiro do alheio.
A loira cinquentona já conhecera melhores dias. Conservava apenas traços da mulher fatal que fora na juventude. Definitivamente era outra coisa.
«Pensa bem, Mário.»
Mas não tive tempo para pensar. Ali estava estavam eles junto a um BMW preto, topo de gama. Gostava de ser mosca ou então qualquer outro inseto voador para me juntar a eles. Gostava mas não era possível. No entanto podia aproximar-me mais, passando despercebido entre as colunas espessas que suportavam o teto. Mais dois passos e talvez conseguisse ouvir o que diziam.
«Quem me dera ser ele e poder jogar como joga!»
(«Troco a tua vida pela minha!»)
Que pensamento! Um quase pobretana como eu era nunca conseguiria chegar aos calcanhares daquele homem que tratava as notas de cinquenta euros da maneira como via tratar. Era verdade. Introduzia-as nas máquinas sem sequer pestanejar.
Estava muito perto deles e já não podia aproximar-me mais. O que senti no momento não foi inveja. Foi talvez o desejo de querer controlar as máquinas, tal como fazia quando era jovem com uma certa máquina dos jogos americanos dos meus bons velhos tempos no café Santiago. E que bons tempos aqueles!
Já os podia ouvir. De momento a conversa era o mais normal deste mundo. Talvez até fossem conhecidos de uma outra situação, ao contrário do que pensava o Francisco.
Ah!, se eu pudesse!
Mas melhor que ouvi-los foi o que aconteceu a seguir...
«Ainda não sei como se chama...»
«Nem eu.»
«Como assim? Não sabe o seu nome?»
«Desculpe, não é o que julga. Chamo-me Helena. E o senhor?»
«Pedro. Pedro Vaz. Muito prazer em conhecê-la, Helena. É desta vez que vamos jantar?»
«Desculpe, já alguma vez me convidou?»
«Pois não. A culpa é toda minha. Ontem tinha um encontro marcado. Inadiável. Não imagina como é este mundo dos negócios.»
«Se o diz…»
«Hoje pode ser? Desculpe ser em cima do acontecimento.»
«Por acaso pode.»
«Então, vamos andando» disse, consultando o relógio. «Já passa das dez e tenho um ratinho no estômago e não imagina como ele está a roer!»
«Também eu.»
Não sei como aconteceu. Estava tão perto deles que até temi ser descoberto. Depois, ouvi um estalo seco e deixei de ver o homem tranquilo. Pareceu-me que o desejo fora concretizado.
«Não pode estar a acontecer!» exclamei, quase fora de mim.
«Como?»
«Não disse nada, Helena.» Disfarcei.
«Não pode estar a acontecer, o quê, Pedro?»
«Eu disse isso?»
Moveu afirmativamente a cabeça.
«Bom, deve ser da fraqueza. Não se esqueça de pôr o cinto.»
«Costuma acelerar?»
Compreendi a pergunta, mas não a intenção. Aliás, se fosse o que estava a pensar, era pouco provável eu e ela termos um affair. As marcas do tempo eram bem visíveis no rosto daquela mulher, mas também queria acreditar que ela não tinha veleidades. Sabia muito bem das suas possibilidade ante alguém mais novo. Portanto, ali havia coisa da grossa.
Ou não estava a ver o outro eu que não eu?
«Nem eu.»
«Como assim? Não sabe o seu nome?»
«Desculpe, não é o que julga. Chamo-me Helena. E o senhor?»
«Pedro. Pedro Vaz. Muito prazer em conhecê-la, Helena. É desta vez que vamos jantar?»
«Desculpe, já alguma vez me convidou?»
«Pois não. A culpa é toda minha. Ontem tinha um encontro marcado. Inadiável. Não imagina como é este mundo dos negócios.»
«Se o diz…»
«Hoje pode ser? Desculpe ser em cima do acontecimento.»
«Por acaso pode.»
«Então, vamos andando» disse, consultando o relógio. «Já passa das dez e tenho um ratinho no estômago e não imagina como ele está a roer!»
«Também eu.»
Não sei como aconteceu. Estava tão perto deles que até temi ser descoberto. Depois, ouvi um estalo seco e deixei de ver o homem tranquilo. Pareceu-me que o desejo fora concretizado.
«Não pode estar a acontecer!» exclamei, quase fora de mim.
«Como?»
«Não disse nada, Helena.» Disfarcei.
«Não pode estar a acontecer, o quê, Pedro?»
«Eu disse isso?»
Moveu afirmativamente a cabeça.
«Bom, deve ser da fraqueza. Não se esqueça de pôr o cinto.»
«Costuma acelerar?»
Compreendi a pergunta, mas não a intenção. Aliás, se fosse o que estava a pensar, era pouco provável eu e ela termos um affair. As marcas do tempo eram bem visíveis no rosto daquela mulher, mas também queria acreditar que ela não tinha veleidades. Sabia muito bem das suas possibilidade ante alguém mais novo. Portanto, ali havia coisa da grossa.
Ou não estava a ver o outro eu que não eu?
Àquela hora éramos os únicos clientes. Estava preocupado. Então ele era eu. Ou vice-versa. Não dava para entender. E o pior de tudo é que estava metido numa alhada das grandes. Ó se estava.
Desenrasca-te, Mário.
«Começamos com croquetes?» perguntei. «Estou saturado dos camarões de Espinho. Aliás vai ver que os croquetes são deliciosos.»
Camarões de Espinho. Há quanto tempo, Mário?
Mas com esta da saturação, acho que meteste água. Milhares de litros de água.
Ela limitou-se a sorrir. Senti-me preso na armadilha que eu próprio criei e tentei emendar o que já não tinha emenda.
«Afinal quem joga ao mesmo tempo a aposta máxima em duas ou três máquinas parece que não está a poupar dinheiro. Mas acredite que não foi de propósito. Na verdade estou cansado dos camarões…»
«Vou seguir o seu conselho e fico pelos croquetes.»
«Faço questão de mandar vir os camarões!»
O empregado aguardava ordens.
«Traga croquetes e camarões de Espinho, por favor.»
«Sim, doutor Vaz. É um instante. E o vinho? O habitual branco da "Quinta da Bacalhoa"?»
«Bem fresco.»
O empregado afastou-se.
«Vejo que costuma vir aqui muitas vezes…»
«É verdade.» Afirmei.
Menti e não menti. Estava na pele do alheio. Perfeitamente integrado. O empregado tinha sido a prova do fogo. E passei. Nem mais nem menos. Fisicamente era o homem tranquilo que até já tinha um nome. Quanto ao meu ego também não sofrera a mínima alteração, a não ser que tinha carregada cá dentro mais uma base de dados, esta que dizia respeito ao homem que se chamava Pedro Vaz. Quanto à profissão, teria que esperar mais um tempo. Até porque, de momento, não era preciso.
E a sua família?, como iria reagir?
Segundo as leis da Física, dois corpos não podem ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo espaço. Certo. Então, tanto ele como eu estávamos em falha. Eu ocupava o corpo dele e ele era o meu hospedeiro. Por sua vez, não podia estar ao mesmo tempo noutro sítio, bem como ele. Grande trapalhada. Só esperava que fosse uma situação temporária. Mais complicada era a minha intrusão mental nele.
E o Pedro, afinal para onde foi?
«Tem razão. Estes croquetes são mesmo saborosos. O tempero certo e e o recheio não tem um único nervo.»
Lembrei-me da pensão da "Aninhas morte-lenta" (4), dos bifes ao almoço e dos croquetes ao jantar e de uns tantos comensais que não jantavam quando havia croquetes com arroz branco. E não jantavam, porquê? Muito simples. Tudo motivado por uma guerra psicológica provocada por alguém que afirmava que a carne dos croquetes era o resultado dos restos do almoço nos pratos e onde estavam incluídos os mastigados que tinham sido rejeitados por terem muitos nervos. Manobra porca, a apontar para o terrorismo psicológico.
«Está a sorrir, porquê?»
«Pensei numa coisa que não vem para o caso.»
Por acaso vinha. Claro que não comentei a qualidade dos croquetes.
«E os camarões?»
«Prefiro não os provar.»
«Uma questão de dieta?»
«Adivinhou. Já bastam os dois croquetes, bem como as calorias do vinho branco. E ainda falta o resto. Não contando com este pão torrado que não consigo evitar.»
«O eterno problema das senhoras. Mas eu também cuido do meu corpo.»
«Não me diga que faz dieta, Pedro? Permita que o trate assim.»
Abanei a cabeça.
«Claro» concordei com o seu à vontade. «Nada disso. O que tento é equilibrar a gulodice e as noites mal dormidas por via dos jogos no casino. Para provar que não faço dieta vou atirar-me aos camarões. Não me acompanha?»
«Já agora.»
«As minhas dietas são longas caminhadas diárias. Faço pelo menos dez quilómetros.»
«Não contando com o ginásio.»
«Pois. O ginásio.»
A seguir veio o peixe.
Estávamos entretanto saboreando salmonetes grelhados acompanhados de batatas cozidas e legumes.
«Para ser franco, estes salmonetes nada se comparam com os de Setúbal.» Comentei.
Pousou os talheres no prato e atirou, de chofre:
«Que acha do caso "Panamá Papers"?»
Esperava tudo menos aquela pergunta dita de chofre, talvez com o intuito de ser apanhado em falso.
Que achava do quarto escritório mundial, em termos de volume de clientes, especializado em criar empresas offshore registadas num país que oferecia condições fiscais vantajosas, desde que a atividade da empresa constituída não fosse realizada no território do registo para que não fosse tributada como tal?
Digamos que se tratava de uma fuga ao fisco autorizada em que a empresa passaria a pagar até cinco por cento de imposto sobre os juros e quanto a isso nada havia a dizer ainda sob o aspeto legal. Quanto à ética, era outra coisa e com ela bem podiam os que beneficiavam da dita mais valia. Mas algumas dessas empresas não ficavam por aí. Havia a lavagem de dinheiro, o modo eficaz de esconder capital de origem duvidosa, falências fraudulentas, dinheiro escondido por causa de divórcios, financiamento ao terrorismo, etc, etc. Eu, Mário, enquanto Mário, não tinha nada a perder ou a ganhar, mas decidi ser cauteloso.
«Bom. Penso que foi uma descoberta que já está a preocupar muitas pessoas de bem. Os jornalistas ligados a este trabalho de pesquisa têm pela frente uma missão hercúlea mas que vai compensar pelo serviço nobre que estão a prestar à sociedade.»
«Pessoas de bem ou bem instaladas na vida?»
«Compreendo. Mas já viu o alcance que esta descoberta vai ter? Muitas empresas nada têm a temer. Estão legais. Mas há nomes sonantes que vão colapsar. Para já temos o caso do primeiro ministro islandês. Foi a primeira baixa.»
«Pois foi. Outras se seguirão, acredite.»
«Ai acredito acredito.»
A pergunta que receava veio a seguir.
«Tem alguma empresa offshore, Pedro?»
«Eu? Não. Claro que não.»
«Sim ou não?»
Era melhor responder de imediato porque desconhecia o alcance daquela pergunta. Eu, Mário, falava verdade. Mas eu, Pedro... bem, não punha as mãos no lume por mim.
«Não. Absolutamente. Mas a que propósito vem a sua pergunta?»
«Deixe, foi só uma pergunta de curiosidade. Falou das noites passadas no casino…»
Noites. Agora ela queria chegar a um ponto que não me causava grande entusiasmo.
E como teria reagido o Pedro verdadeiro?
«A minha ida ao casino é mais um meio de preencher um vazio.
«Como assim?»
«Não é o que pensa, ou que pensou antes das palavras que disse atrás. Na verdade, a maioria das pessoas que frequentam o casino procuram ali o el dourado, mas não se trata do caso. Felizmente a minha situação financeira está estável e jogo porque gosto de jogar e, ao mesmo tempo, ocupo o tal vazio de que falei. Aliás, estou a dar-me bem. Tenho contabilizado o deve e haver e o saldo é francamente positivo. Já tirei muitos jackpotes em poucos dias. Digamos que sou um jogador com sorte. Muita sorte.
«Acredito no seu êxito e felicito-o.»
«Mas devo desconfiar de tanta fartura» achei por bem esclarecer. «Já me aconselharam a estar atento à viragem. Este estado de graça não dura sempre porque os casinos não foram criados para perderem dinheiro. De grosso modo são uma espécie de Estado que se diz social, mas o que dá com uma mão tira mais tarde com a outra. E não é nada meigo…»
«Concordo consigo e deve estar atento.»
«Outro salmonete?»
«Obrigada. Fico bem assim.»
«Sobremesa?»
«Só café. Agora posso fazer uma pergunta indiscreta?»
«Tem luz verde.»
«Pretende ocupar o vazio no casino, porquê?» insistiu.
Era difícil lidar com o conhecimento de duas bases de dados que nada tinham a ver uma com a outra e que podiam, de um momento para o outro, entrar em rota de colisão.
«Digamos...»
«Sim?»
O café veio em boa altura. Mas o tempo não parou.
«Um mal de amor?»
«Sim, de certa maneira.»
Fitou-me com frontalidade. Pensei que estava a chegar aquele momento que não podia evitar e preparei-me para um ataque que parecia inevitável.
Como descartar-me?
«E se lhe disser que vai ao casino por outro motivo que não o de preencher o tal vazio de que falou?»
Foi a minha vez de a olhar, mas desta vez com um misto de estranheza e interrogação. Chamei o empregado, que trouxe a conta. Paguei e gratifiquei.
«Obrigado, doutor Vaz.» Agradeceu o empregado.
«De nada. Vamos então, Helena?»
Levantou-se.
«Só um momento. Ainda vou ao toilete.» Disse.
«Ok.»
Aproveitei também para ir à casa de banho. Além de satisfazer necessidades inadiáveis ansiava ver-me ao espelho. Mas quase que me arrependi. A imagem que vi não me agradou, embora já esperasse. Eu era ele. O tal Pedro. Tal como o via no casino.
Já no interior do BMW, perguntei-lhe:
«O que queria dizer há pouco?»
«De momento passo, como se diz na gíria do poker. Já jogou alguma vez, Pedro?»
«Só fechado.»
«Portanto, bluff.»
«Sim.»
«É um jogo interessante e que tem muita ciência, além do sangue frio e resistência física que o jogador deve ter para manter vivo o poder de observação e a sagacidade mental.»
Decidi-me pelo elogio.
«Desconhecia os seus dotes de jogadora. Por acaso a Helena anda em torneios?»
«Longe disso, Pedro. Gosto do jogo pelo jogo. A propósito, voltamos para o casino ou paramos em qualquer sítio para dois dedos de conversa?»
«Estou curioso. Olhe, podemos conversar um pouco no parque de estacionamento. Depois de esclarecermos o que temos para esclarecer, então voltamos ao casino. Isto se ainda estiver disposta a continuar o seu jogo.»
O contrato
Em poucos minutos estávamos no parque de estacionamento.
«Bem me perguntou há pouco se tinha posto o cinto de segurança. Você pisa bem no acelerador, Pedro!»
Limitei-me a sorrir.
«Estacione mais ao fundo.»
O carro foi deslizando com suavidade até que ela disse:
«É aqui.»
«A Helena manda.»
Rodei o volante para a direita e estacionei.
Que estava a tramar?
Ficámos em silêncio na meia obscuridade. Senti mais a sua proximidade. Uma mão sobre as calças, junto à coxa. Uma mão a pesquisar. Perigosamente atrevida.
«Helena?»
«Sim?»
«Não viemos para isto, pois não?»
Retirou de imediato a mão e chegou-se para o seu lugar. Fiquei arrependido por ser tão bruto. Mas o que estava feito, já estava. Era passado e ainda não tinha sido inventada a máquina do tempo.
«Tem razão. Não sei o que me deu.»
O que quer que fosse que tinha para dizer-me era talvez mais importante. Não acreditava que estávamos ali, na penumbra, só por causa de um vulgar engate.
Senti-me na obrigação de abrir a conversa real. A outra tinha os dias contados.
«Ah! Se fosse com a Maria...»
«Quem é essa Maria, Pedro?»
Mais uma vez pensei alto. Ao contrário da outra vez, em junho, quando uma brisa de fim de tarde quase me gelou, de repente senti-me febril.
«Nada. Foi apenas uma recordação.»
"Nesse fim de tarde a Maria não estava nos meus horizontes, por obra não sei de que feitiço. Tive-a na minha frente, ligeiramente à esquerda, e quase que ignorei a sua presença. Trocámos pouquíssimas palavras. Estupidamente dediquei toda a atenção à Odete. Ainda hoje estou para saber porquê. O que pensava era muito simples: a Maria não fora outra coisa na minha vida senão mais uma enviada pela outra. Uma morena, também com olhos tristes e carentes, que passou por mim de cabelos soltos ao vento e que não agarrei. Passou e não vai voltar a acontecer, embora esteja escrito que, depois dos trinta e dois anos, algo de imprevisível a trará ao meu encontro. Depois dos trinta e dois não significa aos trinta e três. Nem aos trinta e cinco. Mais tarde. Quando a paixão arder serenamente à lareira do crepúsculo. A Odete talvez tivesse razão. Havia entre nós o abismo das idades.
Mas seria mesmo por causa da diferença de idades?
No fim do jantar dei comigo a recitar alarvemente para a Odete dois ou três versos da primeira utopia. E logo a primeira! Ainda se fosse a da "dama de negro"!
Claros sinais do vinho branco que bebemos em excesso. Em consciência não tive qualquer intenção maldosa, mas fui grosseiro ao deixar que as palavras fatais saíssem:
«... então não perdia mais tempo: piscava-te o olho, montava o cavalo da coragem, e fugia contigo...»
A que propósito?
Dei conta do olhar espantado da Maria.
«O quê? Ele a dizer estes versos à Odete?» deve ter pensado.
Estavam então ditas as palavras talvez consideradas mágicas para a Maria e transformadas no momento em blasfémia. Assim, magoei-a. De certa forma vingava-me daquele dia em que me disse pelo telefone que estava a querer saber demasiado da sua vida privada.
E o que me levou a querer saber demais?
Logicamente porque gostava dela. Nunca lhe perdoei também a atitude levianamente sedutora que tomou comigo, pois continuava a namorar com o "rapazinho". Digamos que lhe dei uma bofetada com luva.
Mas quem ficou a perder?
Quanto à Odete, ouviu os versos, sorriu e não fez comentários. Lá tinha as suas razões para sorrir."
«Que aconteceu, Pedro? De repente ficou ausente.»
«Eu não me chamo Pedro!»
«Como assim?»
Então, Mário, controla-te. Foi apenas um momento de fuga...
«Não ligue, Helena. De vez em quando tenho ausências.»
«Já foi ao médico?»
«Sim» menti. «Não é nada de importante. Mas diga-me o que tem para dizer. Segundo a Helena preciso de ir ao casino porque...?»
«Vou direta ao assunto. A sua empresa faliu. Não me interessa se a falência é fraudulenta ou não. Se desviou dinheiro para uma offshore ou assim. Longe de mim armar-me em polícia ou pensar em fazer uma denúncia.»
«Já agora... Mossack Fonseca.»
Uma falha grave na minha outra base de dados. Uma lacuna que podia ficar cara. Não sabia a que dizia respeito a minha suposta empresa. Muito menos se entrou em falência. E mais que não sabia.
«E isso também. Mossack Fonseca. Descobrimos tudo. Não adianta negar, Pedro.»
«Disse... descobrimos?»
«Sim. Descobrimos. Já agora, aproximei-me de ti e não foi pelos teus lindos olhos, meu menino. E também és daqueles que julgam terem sorte ao jogo no casino?»
Temos complicação da grande, Mário!
«Ao contrário do que imaginas, não sou daqueles que têm sorte ao jogo no casino. Também não quero saber do motivo porque me trouxeste aqui. Não quero saber de nada. Se quiseres, fica. Depois dás-me a chave do carro.»
«Achas que não tens tido sorte?»
«Talvez um pouco. Mas jogo alto.»
E dispus-me a sair.
«Acho bem que me trates também por tu, mas não te aconselho a saíres do carro sem ouvires o que tenho para dizer-te. Acredita, Pedro, que é para teu bem.»
«É uma ameaça?»
«Se quiseres, também pode ser um conselho. Não tens outra solução que não seja ouvir. Estás metido numa alhada das grandes. Sabes, não sabes?»
«Estou?»
As pessoas mudavam de trato como um camaleão de cor. Uma mulher que me parecia uma coisa e que afinal era o que não parecia.
«Bom, vamos ao assunto. Vais continuar a jogar...»
«Claro que vou.»
«Não me interrompas. Vais continuar a jogar e a ganhar, mas a coisa agora pia fino. É negócio grosso, acredita. E queremos uma percentagem.»
Complicação cada vez maior, Mário! E em que alhada está metido o Pedro que agora sou eu?
«E que percentagem querem, Helena?»
Estava a aceitar tacitamente um acordo escabroso, mas não tinha outro remédio porque naquele momento eu era um industrial falido, hipoteticamente com um offshore em algures para onde tinha desviado uma quantia indeterminada.
«Depois saberás. Mas antes de entrarmos no casino temos que ir a um sítio.»
«Posso saber onde?»
Sorriu ironicamente.
«Sabes?, apesar de não dever misturar conhaque com serviço, uma atração que tenho por ti impele-me a fazer um disparate.»
Foi a vez de eu sorrir.
«Não prometo nada.»
«Veremos se resistes.»
Estou a viver uma aventura muito perigosa que pode ter um desfecho trágico. E a culpa é só minha. Não devia ter tido aquele desejo louco. Ao mesmo tempo é excitante ter saído da pasmaceira. Sinto-me atraído por esta nova situação como há muito tempo não acontecia. O marasmo em que me encontrava e a falta de inspiração para contar novas histórias eram um sinal que estava a chegar ao fim do fim. Depois, a atitude do António em nada me ajudou para sair do pântano onde me afogava. Despediu-me. Despediu-me de uma vez por todas com aquela ideia descabida de querer escrever para crianças. Erro! Erro notório que viria, mais tarde ou mais cedo, a pagar caro porque ele não tinha inspiração. A sua atividade literária era mais um ato de burilar as minhas descrições, do que de criar. A inspiração estava e esteve sempre comigo. De qualquer forma, abalou-me. Aquele ingrato abalou-me. A luz ao fundo do túnel parecia cada vez mais longe, mais esbatida. Como disse a brasileira, "a minha vida deu um nó".Até que, inesperadamente, aconteceu aquilo. Algo muito bom que me fez sonhar de novo.
Incríveis as voltas que o destino dá! Pena ter sido num dos últimos meandros do meu rio. Mas tenho esperança que estes se alonguem mais, cada vez mais.
Mas não era sobre isto que agora queria falar.
Optei por seguir à risca aquilo que considerei um capricho da Helena. Dizer que sim ao disparate que queria fazer comigo. Dizer também que sim ao seu pedido/ordem de deixar que me vendasse a vista com um lenço quando ficámos perto da sua suposta casa.
«Encosta o carro à berma quando puderes.»
«Ok.»
«Não faças comentários. Se não te importas, mudamos de lugar. A partir de agora sou eu quem conduz, mas antes vou pôr-te uma venda nos olhos.»
Obedeci. Não estava muito entusiasmado com o que ia seguir-se. Muito menos se ela pensasse em algemar-me e prender-me à cabeceira da cama. Contudo, admitia que havia mais para além do seu capricho.
E, que diabo!, um homem não era de ferro, nem ela a bruxa horrenda das histórias que as amiguinhas contavam ao Marinho.
«Por uma questão de segurança tanto para mim como para ti, não quero que saibas onde moro, Pedro.»
«O lenço incomoda-me. Está muito apertado.»
«Já falta pouco tempo.»
De facto o carro parou quase logo a seguir.
«É aqui. Não tires a venda. Só quando eu disser.»
«Fica descansada.»
Ajudou-me a sair do carro e a caminhar. Logicamente estava cego com aquela venda.
Ouvi-a meter a chave à porta da rua.
«Agora são só uns degraus até ao elevador. Não tenhas receio que não deixo que tropeces.»
«Tudo o que for preciso.»
«Ótimo. Vais ver que és recompensado!»
Nem ela imaginava o prazer que me ia dar.
O percurso do elevador foi curto. Talvez o apartamento fosse num segundo ou terceiro andar.
Mas onde?
«Chegámos.»
Pareceu-me que deu apenas meia volta à chave ou então esta abriu-se sem que ela interferisse. Não ouvi o que devia ouvir porque não estava preparado para ser cego.
«Entra.»
E entrei. Logo a seguir senti a pressão de qualquer coisa no nariz e um cheiro esquisito, desagradável.
«Não exageres!»
Ainda ouvi a voz dela.
«Cuidado...»
E mais nada.
Finalmente reconheci onde estava. A cerca de cem metros do casino.
«A tua aventura vai começar agora, Pedro. Peço-te muita descrição, principalmente com os teus amigos. Nem uma palavra.»
«Não tenho amigos aqui.»
«Isso facilita muito a tua missão. E, acredita, vai dar-te gozo ganhar sempre ou quase sempre. Agora vais saber onde jogas.»
«Posso saber onde?»
Sorriu ironicamente.
«Sabes?, apesar de não dever misturar conhaque com serviço, uma atração que tenho por ti impele-me a fazer um disparate.»
Foi a vez de eu sorrir.
«Não prometo nada.»
«Veremos se resistes.»
Estou a viver uma aventura muito perigosa que pode ter um desfecho trágico. E a culpa é só minha. Não devia ter tido aquele desejo louco. Ao mesmo tempo é excitante ter saído da pasmaceira. Sinto-me atraído por esta nova situação como há muito tempo não acontecia. O marasmo em que me encontrava e a falta de inspiração para contar novas histórias eram um sinal que estava a chegar ao fim do fim. Depois, a atitude do António em nada me ajudou para sair do pântano onde me afogava. Despediu-me. Despediu-me de uma vez por todas com aquela ideia descabida de querer escrever para crianças. Erro! Erro notório que viria, mais tarde ou mais cedo, a pagar caro porque ele não tinha inspiração. A sua atividade literária era mais um ato de burilar as minhas descrições, do que de criar. A inspiração estava e esteve sempre comigo. De qualquer forma, abalou-me. Aquele ingrato abalou-me. A luz ao fundo do túnel parecia cada vez mais longe, mais esbatida. Como disse a brasileira, "a minha vida deu um nó".Até que, inesperadamente, aconteceu aquilo. Algo muito bom que me fez sonhar de novo.
Incríveis as voltas que o destino dá! Pena ter sido num dos últimos meandros do meu rio. Mas tenho esperança que estes se alonguem mais, cada vez mais.
Mas não era sobre isto que agora queria falar.
Optei por seguir à risca aquilo que considerei um capricho da Helena. Dizer que sim ao disparate que queria fazer comigo. Dizer também que sim ao seu pedido/ordem de deixar que me vendasse a vista com um lenço quando ficámos perto da sua suposta casa.
«Encosta o carro à berma quando puderes.»
«Ok.»
«Não faças comentários. Se não te importas, mudamos de lugar. A partir de agora sou eu quem conduz, mas antes vou pôr-te uma venda nos olhos.»
Obedeci. Não estava muito entusiasmado com o que ia seguir-se. Muito menos se ela pensasse em algemar-me e prender-me à cabeceira da cama. Contudo, admitia que havia mais para além do seu capricho.
E, que diabo!, um homem não era de ferro, nem ela a bruxa horrenda das histórias que as amiguinhas contavam ao Marinho.
«Por uma questão de segurança tanto para mim como para ti, não quero que saibas onde moro, Pedro.»
«O lenço incomoda-me. Está muito apertado.»
«Já falta pouco tempo.»
De facto o carro parou quase logo a seguir.
«É aqui. Não tires a venda. Só quando eu disser.»
«Fica descansada.»
Ajudou-me a sair do carro e a caminhar. Logicamente estava cego com aquela venda.
Ouvi-a meter a chave à porta da rua.
«Agora são só uns degraus até ao elevador. Não tenhas receio que não deixo que tropeces.»
«Tudo o que for preciso.»
«Ótimo. Vais ver que és recompensado!»
Nem ela imaginava o prazer que me ia dar.
O percurso do elevador foi curto. Talvez o apartamento fosse num segundo ou terceiro andar.
Mas onde?
«Chegámos.»
Pareceu-me que deu apenas meia volta à chave ou então esta abriu-se sem que ela interferisse. Não ouvi o que devia ouvir porque não estava preparado para ser cego.
«Entra.»
E entrei. Logo a seguir senti a pressão de qualquer coisa no nariz e um cheiro esquisito, desagradável.
«Não exageres!»
Ainda ouvi a voz dela.
«Cuidado...»
E mais nada.
Finalmente reconheci onde estava. A cerca de cem metros do casino.
«A tua aventura vai começar agora, Pedro. Peço-te muita descrição, principalmente com os teus amigos. Nem uma palavra.»
«Não tenho amigos aqui.»
«Isso facilita muito a tua missão. E, acredita, vai dar-te gozo ganhar sempre ou quase sempre. Agora vais saber onde jogas.»
«Acho que não precisas.»
«Adivinhaste a zona, mas não a máquina. Aguarda.»
«Ganhar no casino?» questionei-me. «Ver para crer.»
«Só uma pergunta, Helena. Ou melhor: duas.»
«Diz.»
«Vou ver-te por aqui com frequência?»
«Não. A partir de agora não existo. E a segunda pergunta?»
«Porque será que não incluíram o Fort Knox?»
Respondeu de imediato.
«Muito simples. Já lá temos alguém...»
Portanto, havia uma rede instalada. Desconfiava da existência de grandes anomalias à volta do jogo, como manipulação, corrupção, mas a coisa era mais grave do que imaginava.
«Então, boa sorte. O carro fica no parque, não te esqueças.»
«Obrigado.»
«Já me esquecia. A tua percentagem é trinta. E não tentes enganar-nos, meu amigo, porque estás a ser controlado. Acredita. Portanto, nada de fazeres loucuras.»
Pensei logo nos mais que trinta espiões a que o Francisco aludira. Mas certamente não eram esses. Devia a estar a ser visionado de uma sala algures.
«Vá, segue em frente.»
«Adeus, Helena» despedi-me com um certo ar irónico. «Quando quiseres é só pedires...»
«Estavas convencido?»
«Quase que me enganaste. Só quase.»
Logo à entrada do casino fui cumprimentado pelo porteiro.
«Boa noite, senhor doutor Vaz. Hoje vem mais tarde...»
«Boa noite. Ah sim. Tive um jantar.»
Este devia ter rendido outro colega porque eu já tinha estado no casino até perto da dez.
Encaminhei-me para as máquinas dos cifrões. Também havia na zona três máquinas com quatro jogos cada.
«Ninguém a jogar.» Disse para mim.
Procurei dinheiro nos bolsos de fora do casaco. Negativo. Depois, nas calças. Outra vez negativo.
«A carteira...»
Encontrei um maço de notas de cem euros e fiquei a pensar.
«O Pedro só joga com notas de cinquenta. E eu sou o Pedro, não me posso esquecer.»
«Despacha-te, industrial falido dos pregos e parafusos.»
Donde vinha aquela voz?
«Não tentes falar que não te ouvimos. Joga nas duas primeiras máquinas. Vinte e sete apostas cada vez. Mas antes vai trocar o dinheiro. Jogas com notas de cinquenta. E não te esqueças de levantar os tickets sempre nas máquinas automáticas.»
Aqueles cabrões meteram-me a porra de um chip!
Bom, agora o que interessava era jogar. Jogar e ganhar dava-me gozo. E era o meu lema se não fosse o problema das máquinas estarem sempre manipuladas. Mas agora era ao contrário, pensava. Pressentia que ia ganhar.
Já com o dinheiro trocado, meti sucessivamente uma nota de cinquenta na primeira máquina a contar da esquerda e outra na segunda. De seguida, preparei-as para 9x3 e carreguei na tecla do automático de cada uma.
«Não jogar com o nosso dinheiro é bom, Mário» admiti. «E trinta por cento dos lucros também não é mau. Melhor seria o inverso, mas adiante que atrás vem gente.»
As duas notas foram engolidas em pouco tempo pelas máquinas. Paulatinamente, voltei a municiá-las e o jogo continuou. Estava a desempenhar na perfeição o meu papel.
«Viva, doutor Vaz, meu bom amigo...»
Virei-me. Era o Francisco.
«Olá, Francisco.»
O Francisco conhecia meio mundo. Já sabia. Mas não me reconheceu.
«Está a correr bem?»
«Comecei agora.»
Pouco depois ia ao bónus na segunda máquina e arrecadava quase oitocentos euros.
«Agora sobes as duas para 9x5.»
Não faria assim. Mantinha o valor da aposta na máquina que deu o prémio e subia para a aposta máxima na outra.
Mas foi a segunda máquina que voltou a ir ao bónus. Para meu espanto começou por dar quatro cifrões, depois três por duas vezes e a seguir cinco.
«Incrível!»
«Bem merece, doutor Vaz. Nem imagina o prazer que me dá vê-lo ganhar todo esse dinheiro.»
Limitei-me a sorrir. O entusiasmo não dava para mais. Finalmente começava a vingança. Mas não ficou por aí. Entre outros prémios fiz uma linha de moedas. Resultado final deste bónus: quase sete mil euros.
«Boa!, doutor Vaz!» exclamou o Francisco.
Sorri para ele. Pensei logo em dar-lhe cinquenta euros.
«Não lhe dês nada. Continua a jogar. Larga a primeira máquina e agora salta para a quarta. Rápido, antes que outro jogador a ocupe.»
Eles estavam a ver! A terceira máquina tinha sido ocupada segundos antes.
Olhei em redor e não vi ninguém que parecesse suspeito. Pelo menos uma daquelas pessoas que o Francisco que me tinha indicado.
Entretanto chegaram dois fiscais com o dinheiro do jackpot numa bandeja.
«Deixa vinte euros e as moedas. Por hoje não há mais jogo. Portaste-te bem.»
«Adivinhaste a zona, mas não a máquina. Aguarda.»
«Ganhar no casino?» questionei-me. «Ver para crer.»
«Só uma pergunta, Helena. Ou melhor: duas.»
«Diz.»
«Vou ver-te por aqui com frequência?»
«Não. A partir de agora não existo. E a segunda pergunta?»
«Porque será que não incluíram o Fort Knox?»
Respondeu de imediato.
«Muito simples. Já lá temos alguém...»
Portanto, havia uma rede instalada. Desconfiava da existência de grandes anomalias à volta do jogo, como manipulação, corrupção, mas a coisa era mais grave do que imaginava.
«Então, boa sorte. O carro fica no parque, não te esqueças.»
«Obrigado.»
«Já me esquecia. A tua percentagem é trinta. E não tentes enganar-nos, meu amigo, porque estás a ser controlado. Acredita. Portanto, nada de fazeres loucuras.»
Pensei logo nos mais que trinta espiões a que o Francisco aludira. Mas certamente não eram esses. Devia a estar a ser visionado de uma sala algures.
«Vá, segue em frente.»
«Adeus, Helena» despedi-me com um certo ar irónico. «Quando quiseres é só pedires...»
«Estavas convencido?»
«Quase que me enganaste. Só quase.»
Logo à entrada do casino fui cumprimentado pelo porteiro.
«Boa noite, senhor doutor Vaz. Hoje vem mais tarde...»
«Boa noite. Ah sim. Tive um jantar.»
Este devia ter rendido outro colega porque eu já tinha estado no casino até perto da dez.
Encaminhei-me para as máquinas dos cifrões. Também havia na zona três máquinas com quatro jogos cada.
«Ninguém a jogar.» Disse para mim.
Procurei dinheiro nos bolsos de fora do casaco. Negativo. Depois, nas calças. Outra vez negativo.
«A carteira...»
Encontrei um maço de notas de cem euros e fiquei a pensar.
«O Pedro só joga com notas de cinquenta. E eu sou o Pedro, não me posso esquecer.»
«Despacha-te, industrial falido dos pregos e parafusos.»
Donde vinha aquela voz?
«Não tentes falar que não te ouvimos. Joga nas duas primeiras máquinas. Vinte e sete apostas cada vez. Mas antes vai trocar o dinheiro. Jogas com notas de cinquenta. E não te esqueças de levantar os tickets sempre nas máquinas automáticas.»
Aqueles cabrões meteram-me a porra de um chip!
Bom, agora o que interessava era jogar. Jogar e ganhar dava-me gozo. E era o meu lema se não fosse o problema das máquinas estarem sempre manipuladas. Mas agora era ao contrário, pensava. Pressentia que ia ganhar.
Já com o dinheiro trocado, meti sucessivamente uma nota de cinquenta na primeira máquina a contar da esquerda e outra na segunda. De seguida, preparei-as para 9x3 e carreguei na tecla do automático de cada uma.
«Não jogar com o nosso dinheiro é bom, Mário» admiti. «E trinta por cento dos lucros também não é mau. Melhor seria o inverso, mas adiante que atrás vem gente.»
As duas notas foram engolidas em pouco tempo pelas máquinas. Paulatinamente, voltei a municiá-las e o jogo continuou. Estava a desempenhar na perfeição o meu papel.
«Viva, doutor Vaz, meu bom amigo...»
Virei-me. Era o Francisco.
«Olá, Francisco.»
O Francisco conhecia meio mundo. Já sabia. Mas não me reconheceu.
«Está a correr bem?»
«Comecei agora.»
Pouco depois ia ao bónus na segunda máquina e arrecadava quase oitocentos euros.
«Agora sobes as duas para 9x5.»
Não faria assim. Mantinha o valor da aposta na máquina que deu o prémio e subia para a aposta máxima na outra.
Mas foi a segunda máquina que voltou a ir ao bónus. Para meu espanto começou por dar quatro cifrões, depois três por duas vezes e a seguir cinco.
«Incrível!»
«Bem merece, doutor Vaz. Nem imagina o prazer que me dá vê-lo ganhar todo esse dinheiro.»
Limitei-me a sorrir. O entusiasmo não dava para mais. Finalmente começava a vingança. Mas não ficou por aí. Entre outros prémios fiz uma linha de moedas. Resultado final deste bónus: quase sete mil euros.
«Boa!, doutor Vaz!» exclamou o Francisco.
Sorri para ele. Pensei logo em dar-lhe cinquenta euros.
«Não lhe dês nada. Continua a jogar. Larga a primeira máquina e agora salta para a quarta. Rápido, antes que outro jogador a ocupe.»
Eles estavam a ver! A terceira máquina tinha sido ocupada segundos antes.
Olhei em redor e não vi ninguém que parecesse suspeito. Pelo menos uma daquelas pessoas que o Francisco que me tinha indicado.
Entretanto chegaram dois fiscais com o dinheiro do jackpot numa bandeja.
«Deixa vinte euros e as moedas. Por hoje não há mais jogo. Portaste-te bem.»
Em casa do outro
Eram quatro da manhã quando me deitei. Estava tão cansado com as peripécias do dia que adormeci mal caí na cama. No máximo dormi quatro horas.
Acordei com o barulho dos elevadores a arrancarem, para cima e para baixo. Do exterior nem um ruído, apesar do trânsito na avenida da República ser intenso, pelo que concluí que as janelas tinham vidros duplos. Apesar da rigidez do colchão, não estranhei a cama.
Deixei-me ficar deitado, barriga para cima e pernas fletidas. E também de mãos na nuca, como costumo fazer em momentos de relaxamento como era aquele. Pensava na minha nova vida que começara ontem, à noitinha, quando decidi seguir o homem que jogava nas máquinas com toda a tranquilidade do mundo, como se os créditos fossem feijões. Claro, também a sua fortuita companheira de jogo nos cifrões. E depois aconteceu aquilo. Algo inesperado e fantástico que se confundiu com um sonho. Mas era real. Tão real como eu beliscar-me e sentir a dor.Não estava no meu quarto. Agora era o Pedro Vaz, empresário, dono de uma suposta fábrica de pregos e parafusos em rotura financeira, que morava num apartamento de luxo da avenida da República.
Como consegui descobrir o andar e entrar sem problemas?
Tudo muito linear. Primeiro, os documentos que encontrei no BMW. Segundo, porque encontrei num dos bolsos do casaco um porta-chaves. Só havia um problema que me conduzia à possibilidade do meu hospedeiro não viver sozinho. Mas tinha que correr o risco. Enfim... joguei na lotaria e acertei em cheio no prémio.
Mas até quando aquela situação ia durar?
Ah... o dinheiro! Bendito dinheiro!
Levantei-me de um salto. Podia ter sido mau. Já não tinha trinta anos, nem quarenta, nem...Bom, os ossos ficaram todos no sítio, bem como os tendões. E indo direito ao assunto, procurei as notas nos bolsos do casaco e das calças e fui atirando as mesmas para cima da cama. Nunca tinha visto tanto dinheiro ganho em tão pouco tempo. Sim. Foram pouco mais de três horas. Comecei a fazer montes com as notas. Quinhentos, duzentos. Havia de tudo. Fui contando com cuidado e cheguei a um total de vinte e três mil quatrocentos e noventa euros e mais uns trocos. Mentalmente calculei o meu quinhão. Sete mil e quarenta e sete, mais coisa menos coisa. Havia o fundo de maneio mas já tinha feito o acerto antes de deitar-me.
Muito bom. Não podia ter sido melhor para começar. Mas fui invadido logo a seguir por um complexo de culpa. Estava a pactuar com indivíduos desonestos e portanto tinha que me considerar um fora da lei tal qual eles. Por outro lado, tinham-me na mão. Provavelmente eu, Pedro (ontem Mário), empresário, dono de uma fábrica de pregos e parafusos falida e com uma conta num offshore do Luxemburgo onde era quase certo ter dinheiro desviado, ano após ano, do qual pagava de impostos uma ninharia, não tinha saída. E mais ainda: talvez tivesse investido o dinheiro num negócio menos transparente. Sei lá. Droga, armas, tabaco, tráfico de mulheres. Tudo era possível, pois não me conhecia.
Quase a seguir, atenuei a amplidão da minha provável vivência pecaminosa, pondo de lado a droga e o contrabando de armas. Tráfico de mulheres, muito menos. Também era grave e não estava na minha forma de ser. Tabaco? Talvez também não. Restava a fuga aos impostos no meu país. Quem não foge aos impostos, se puder, que atire a primeira pedra!
Por outro lado, ao alinhar a contragosto com um grupo mafioso, nascia a oportunidade de lutar com as mesmas armas contra um casino onde os seus responsáveis e subalternos faziam a apologia do jogo aleatório quando estava mais que provado que a manipulação era total, feita a belo prazer para beneficiar uns e prejudicar outros, porque os casinos fizeram-se só para financiar o Estado e os seus donos (leia-se acionistas). E pior que tudo para mim. Estar permanentemente a ser vigiado, jogando ao sabor das suas decisões, ganhando ou perdendo ao sabor das decisões superiores. Eu e todos os utentes, corruptos e não corruptos.Decidi guardar para outra ocasião os complexo de culpa e pensei outra vez no dinheiro. Meu e dos outros. O meu já estava em boa mão. A vingança estava em marcha. O nó cego, que não quis mas sonhei, estava implementado.
Agora precisava de entregar os setenta por cento, mas teria que aguardar por um contacto. E a propósito, não consigo entender como eles conseguem contactar comigo. Certamente está relacionado com o momento que entrei na casa da Helena cinquentona. Não sei o que me aconteceu porque me puseram logo a dormir. Pensando melhor, devia ter implante algures no interior do corpo. Talvez esteja a nível do ouvido. Quanto ao resto, ao modo como chegavam ao controle de uma máquina, é ainda cedo para tirar conclusões. Talvez mesmo não venha a saber. Em primeira análise, o controle das máquinas e dos utentes mexe com suborno logo ao nível de alguém da central. Sim, porque, por mais que fiscais e chefes de sala neguem, todos os utentes são visionadas. E pela primeira vez, eu, Mário/Pedro, fui visionado para ser favorecido. Disso tenho a certeza.
Provavelmente o meu êxito vai repetir-se hoje, amanhã... até soar um sinal de alarme. Ninguém pode ganhar sempre. E então...?
Toque de telemóvel. Tento orientar-me pelo som. Ok. Já descobri. Está no bolso interior do casaco. Deixa ver quem chama por mim. Gina. Não sei se devo atender. É melhor não.
Antes de mais nada, um duche reparador chama por mim. E é para já. Mas antes da casa de banho tenho aqui o quarto de vestir. Preciso de bóxeres, camisa e peúgas. É bom que eu e o Pedro tenhamos números próximos.E eis a casa de banho. Vamos a isso.
«Jacuzzi!»
Gente rica é outra coisa. Gente da classe média não cheira muita coisa boa. E cada vez mais com a carga de impostos que se tornou pesada até dizer basta.
«Pedro... mas ao menos és feliz?»
Não respondes mas eu vou falar por ti...
Solitário. Empresa em vias de falência. Dinheiro escondido por causa das moscas. Jogo no casino que não falhas um dia, agora numa fase de salvação que não conheces pois não passas de um mero hospedeiro vegetativo. Almoçaradas com lagosta, carabineiros, camarão de Espinho, etc e tal. E desconfio que também a Gina faz parte do teu menu.
Ao menos ela ameniza a tua vida, Pedro?
Nem de propósito. O telemóvel a tocar. Deixa tocar, Mário. O jacuzzi chama por ti. Uma hidromassagem vem mesmo na hora certa. Se tivesse um jacuzzi na minha casa de banho não podia entrar nela sem primeiro cortar as unhas!
É bom demais, mas tenho que sair. Vou tomar nu um pequeno almoço suculento. Não. Stop! Preciso de ar puro para arrumar as ideias. Cá está. Bóxeres. Camisa. Todo o resto a que tenho direito. Este quarto de vestir é exemplar. Procuro um espelho. Parece que fico bem assim. O casaco cai-me que nem uma luva. Só não gosto deste cabelo ruivo, dos olhos azuis e da pele clara. Mas não posso fazer nada. Agora sou o Pedro. O espelho não mente.
Vou sair. As chaves? Sim, já estão no bolso. O telemóvel que se lixe. Não quero confusões com a Gina nem com outras pessoas, sejam mulheres ou homens.
«Pedro...»
São eles. Lembro-me que não vale a pena responder. Não me ouvem mas sabem onde estou.
Qual o raio de ação desta geringonça?
«Dentro de meia hora no cimo da Casal Ribeiro. Está alguém para receber o dinheiro. Ele veste uma camisola azul forte e calças de ganga pretas. A senha é offshore...»
Acordei com o barulho dos elevadores a arrancarem, para cima e para baixo. Do exterior nem um ruído, apesar do trânsito na avenida da República ser intenso, pelo que concluí que as janelas tinham vidros duplos. Apesar da rigidez do colchão, não estranhei a cama.
Deixei-me ficar deitado, barriga para cima e pernas fletidas. E também de mãos na nuca, como costumo fazer em momentos de relaxamento como era aquele. Pensava na minha nova vida que começara ontem, à noitinha, quando decidi seguir o homem que jogava nas máquinas com toda a tranquilidade do mundo, como se os créditos fossem feijões. Claro, também a sua fortuita companheira de jogo nos cifrões. E depois aconteceu aquilo. Algo inesperado e fantástico que se confundiu com um sonho. Mas era real. Tão real como eu beliscar-me e sentir a dor.Não estava no meu quarto. Agora era o Pedro Vaz, empresário, dono de uma suposta fábrica de pregos e parafusos em rotura financeira, que morava num apartamento de luxo da avenida da República.
Como consegui descobrir o andar e entrar sem problemas?
Tudo muito linear. Primeiro, os documentos que encontrei no BMW. Segundo, porque encontrei num dos bolsos do casaco um porta-chaves. Só havia um problema que me conduzia à possibilidade do meu hospedeiro não viver sozinho. Mas tinha que correr o risco. Enfim... joguei na lotaria e acertei em cheio no prémio.
Mas até quando aquela situação ia durar?
Ah... o dinheiro! Bendito dinheiro!
Levantei-me de um salto. Podia ter sido mau. Já não tinha trinta anos, nem quarenta, nem...Bom, os ossos ficaram todos no sítio, bem como os tendões. E indo direito ao assunto, procurei as notas nos bolsos do casaco e das calças e fui atirando as mesmas para cima da cama. Nunca tinha visto tanto dinheiro ganho em tão pouco tempo. Sim. Foram pouco mais de três horas. Comecei a fazer montes com as notas. Quinhentos, duzentos. Havia de tudo. Fui contando com cuidado e cheguei a um total de vinte e três mil quatrocentos e noventa euros e mais uns trocos. Mentalmente calculei o meu quinhão. Sete mil e quarenta e sete, mais coisa menos coisa. Havia o fundo de maneio mas já tinha feito o acerto antes de deitar-me.
Muito bom. Não podia ter sido melhor para começar. Mas fui invadido logo a seguir por um complexo de culpa. Estava a pactuar com indivíduos desonestos e portanto tinha que me considerar um fora da lei tal qual eles. Por outro lado, tinham-me na mão. Provavelmente eu, Pedro (ontem Mário), empresário, dono de uma fábrica de pregos e parafusos falida e com uma conta num offshore do Luxemburgo onde era quase certo ter dinheiro desviado, ano após ano, do qual pagava de impostos uma ninharia, não tinha saída. E mais ainda: talvez tivesse investido o dinheiro num negócio menos transparente. Sei lá. Droga, armas, tabaco, tráfico de mulheres. Tudo era possível, pois não me conhecia.
Quase a seguir, atenuei a amplidão da minha provável vivência pecaminosa, pondo de lado a droga e o contrabando de armas. Tráfico de mulheres, muito menos. Também era grave e não estava na minha forma de ser. Tabaco? Talvez também não. Restava a fuga aos impostos no meu país. Quem não foge aos impostos, se puder, que atire a primeira pedra!
Por outro lado, ao alinhar a contragosto com um grupo mafioso, nascia a oportunidade de lutar com as mesmas armas contra um casino onde os seus responsáveis e subalternos faziam a apologia do jogo aleatório quando estava mais que provado que a manipulação era total, feita a belo prazer para beneficiar uns e prejudicar outros, porque os casinos fizeram-se só para financiar o Estado e os seus donos (leia-se acionistas). E pior que tudo para mim. Estar permanentemente a ser vigiado, jogando ao sabor das suas decisões, ganhando ou perdendo ao sabor das decisões superiores. Eu e todos os utentes, corruptos e não corruptos.Decidi guardar para outra ocasião os complexo de culpa e pensei outra vez no dinheiro. Meu e dos outros. O meu já estava em boa mão. A vingança estava em marcha. O nó cego, que não quis mas sonhei, estava implementado.
Agora precisava de entregar os setenta por cento, mas teria que aguardar por um contacto. E a propósito, não consigo entender como eles conseguem contactar comigo. Certamente está relacionado com o momento que entrei na casa da Helena cinquentona. Não sei o que me aconteceu porque me puseram logo a dormir. Pensando melhor, devia ter implante algures no interior do corpo. Talvez esteja a nível do ouvido. Quanto ao resto, ao modo como chegavam ao controle de uma máquina, é ainda cedo para tirar conclusões. Talvez mesmo não venha a saber. Em primeira análise, o controle das máquinas e dos utentes mexe com suborno logo ao nível de alguém da central. Sim, porque, por mais que fiscais e chefes de sala neguem, todos os utentes são visionadas. E pela primeira vez, eu, Mário/Pedro, fui visionado para ser favorecido. Disso tenho a certeza.
Provavelmente o meu êxito vai repetir-se hoje, amanhã... até soar um sinal de alarme. Ninguém pode ganhar sempre. E então...?
Toque de telemóvel. Tento orientar-me pelo som. Ok. Já descobri. Está no bolso interior do casaco. Deixa ver quem chama por mim. Gina. Não sei se devo atender. É melhor não.
Antes de mais nada, um duche reparador chama por mim. E é para já. Mas antes da casa de banho tenho aqui o quarto de vestir. Preciso de bóxeres, camisa e peúgas. É bom que eu e o Pedro tenhamos números próximos.E eis a casa de banho. Vamos a isso.
«Jacuzzi!»
Gente rica é outra coisa. Gente da classe média não cheira muita coisa boa. E cada vez mais com a carga de impostos que se tornou pesada até dizer basta.
«Pedro... mas ao menos és feliz?»
Não respondes mas eu vou falar por ti...
Solitário. Empresa em vias de falência. Dinheiro escondido por causa das moscas. Jogo no casino que não falhas um dia, agora numa fase de salvação que não conheces pois não passas de um mero hospedeiro vegetativo. Almoçaradas com lagosta, carabineiros, camarão de Espinho, etc e tal. E desconfio que também a Gina faz parte do teu menu.
Ao menos ela ameniza a tua vida, Pedro?
Nem de propósito. O telemóvel a tocar. Deixa tocar, Mário. O jacuzzi chama por ti. Uma hidromassagem vem mesmo na hora certa. Se tivesse um jacuzzi na minha casa de banho não podia entrar nela sem primeiro cortar as unhas!
É bom demais, mas tenho que sair. Vou tomar nu um pequeno almoço suculento. Não. Stop! Preciso de ar puro para arrumar as ideias. Cá está. Bóxeres. Camisa. Todo o resto a que tenho direito. Este quarto de vestir é exemplar. Procuro um espelho. Parece que fico bem assim. O casaco cai-me que nem uma luva. Só não gosto deste cabelo ruivo, dos olhos azuis e da pele clara. Mas não posso fazer nada. Agora sou o Pedro. O espelho não mente.
Vou sair. As chaves? Sim, já estão no bolso. O telemóvel que se lixe. Não quero confusões com a Gina nem com outras pessoas, sejam mulheres ou homens.
«Pedro...»
São eles. Lembro-me que não vale a pena responder. Não me ouvem mas sabem onde estou.
Qual o raio de ação desta geringonça?
«Dentro de meia hora no cimo da Casal Ribeiro. Está alguém para receber o dinheiro. Ele veste uma camisola azul forte e calças de ganga pretas. A senha é offshore...»
Coincidência das coincidências. É onde escondi o dinheiro desviado da empresa. Algures. Mas não preciso de saber onde.
Estou triste. Há dias só sonhava com a multiplicação do dinheiro. Hoje que o tenho, e não é pouco, sinto-me estranho. Não o ganhei. Caiu do céu. Do céu, não. Rodei cento e oitenta graus e posso dizer que subiu das profundezas do inferno. Esta é a verdade nua e crua. Este dinheiro está amaldiçoado. Queima-me as mãos. Não sei como vou sair disto. Sinto medo. No casino já falam à boca cheia que não é possível eu ganhar todos os dias, que entrei num esquema de conluio com alguém. E não é mentira. Está à vista de qualquer pessoa minimamente observadora. Os próprios fiscais e chefes de sala olham para mim de uma forma diferente. Olham para mim e uns para os outros, com desconfiança. Isto vai acabar mal. Tanto critiquei o Zé dedilhador e uma mão cheia de outros e agora sinto que sou pior dez vezes que eles.
«É o karma.»
Até já oiço vozes. Não sei onde vou parar.
«Ele é que devia ver isto» ouvi o Vítor dizer a alguém. «Que já estava na inspeção a reclamar, disso tenho a certeza!»
Claro que se referia a mim sem saber que acusação era mesmo para mim. Pior ainda. Escondi-me atrás de um industrial falido que é capaz de tudo para sobreviver.
Ontem pensei em perder. Coisa que não admitia antes disto acontecer. Sempre gostei de jogar para ganhar e nunca consegui. O sistema instalado, altamente manipulador, não o permitiu.
Decidido a perder, experimentei máquinas novas não autorizadas por eles e aconteceu o mesmo. Choveram prémios e mais prémios. Por mais que mudasse de máquina, aparentemente fora da influência direta do grupo mafioso da Helena, tinha sempre mais do mesmo. Eles estavam mais próximos de mim do que imaginava.Seria que a sede era no próprio casino, ou o prodígio das novas tecnologias até dispensava a proximidade?
Era vigiado por pessoas invisíveis aos meus olhos?
Por mais que olhasse em volta, me virasse para trás de repente, nada divisava. Tudo parecia normal.
São onze da manhã e não me apetece sair da cama. Sinto-me preso numa teia muito forte. Já mais que uma vez pensei em falar com o António e pôr-lhe o problema. Depois arrependo-me e recuo. Não quero que se envolva nesta merda onde me atolei. Chega para mim e pronto. Só eu devo suportar este peso que me atormenta.
E não sendo o António, quem me pode acudir?
O Ernesto? Claro que não. É um amigo imaginário. Nunca existiu. Nem quando eu era o Marinho, a criança que gostava muito de gatos e atirava com eles pela varanda abaixo para ver como "aterravam" no empedrado.
Então, quem...?
«É o karma.»
Até já oiço vozes. Não sei onde vou parar.
«Ele é que devia ver isto» ouvi o Vítor dizer a alguém. «Que já estava na inspeção a reclamar, disso tenho a certeza!»
Claro que se referia a mim sem saber que acusação era mesmo para mim. Pior ainda. Escondi-me atrás de um industrial falido que é capaz de tudo para sobreviver.
Ontem pensei em perder. Coisa que não admitia antes disto acontecer. Sempre gostei de jogar para ganhar e nunca consegui. O sistema instalado, altamente manipulador, não o permitiu.
Decidido a perder, experimentei máquinas novas não autorizadas por eles e aconteceu o mesmo. Choveram prémios e mais prémios. Por mais que mudasse de máquina, aparentemente fora da influência direta do grupo mafioso da Helena, tinha sempre mais do mesmo. Eles estavam mais próximos de mim do que imaginava.Seria que a sede era no próprio casino, ou o prodígio das novas tecnologias até dispensava a proximidade?
Era vigiado por pessoas invisíveis aos meus olhos?
Por mais que olhasse em volta, me virasse para trás de repente, nada divisava. Tudo parecia normal.
São onze da manhã e não me apetece sair da cama. Sinto-me preso numa teia muito forte. Já mais que uma vez pensei em falar com o António e pôr-lhe o problema. Depois arrependo-me e recuo. Não quero que se envolva nesta merda onde me atolei. Chega para mim e pronto. Só eu devo suportar este peso que me atormenta.
E não sendo o António, quem me pode acudir?
O Ernesto? Claro que não. É um amigo imaginário. Nunca existiu. Nem quando eu era o Marinho, a criança que gostava muito de gatos e atirava com eles pela varanda abaixo para ver como "aterravam" no empedrado.
Então, quem...?
«Pedro, que se passa para estares ainda na cama nesses belos preparos?»
Fui apanhado de surpresa. Quem era ela e como apareceu aqui, sem mais nem menos, à porta do quarto?
«Olá...» Cumprimento, esboçando um sorriso. Será que pertence à rede dos mafiosos?
«É assim que me recebes?, só com um olá?»
E agora, Mário?
Soergo-me na cama. Felizmente que estas bóxeres tapam a parte mais íntima da minha nudez. Quem quer que seja ela tem a chave de casa e entrou com pezinhos de lã. Portanto, julgo que é pessoa da confiança do Pedro. Talvez uma amante. Não é talvez. É certo.A propósito, para onde foi ele depois que me apossei do seu corpo e talvez do espírito?
E lá vem a treta dos universos paralelos.
O que devo dizer à desconhecida?
Avanço? Não avanço?
«Não sei o que se passa contigo. Ultimamente tens andado muito esquisito.»
Vou arriscar!
«Impressão tua, Gina.»
«Gina?»
Agora é que estraguei tudo!
«Quem é essa Gina, Pedro?»
Quem é?
Não sei o que fazer neste jogo de cabra cega. Oxalá isto tudo possa acabar de um momento para o outro. O esquema dos mafiosos. A tensão em que ando que não me dá paz desde há uma semana. Quero o meu rosto de volta, embora ele seja mais bem parecido. A minha verdadeira identidade. E o maldito dinheiro que vá para o caraças. Já!
A mulher que não se chama Gina aponta-me um dedo acusador. No seu rosto leio revolta. Despeito. Neste momento não passo de um inseto para ela. Já percebi. Eles têm uma ligação forte e eu não sabia, claro.
«Não respondes. Estás a atraiçoar-me, Pedro!»
«Eu?!...»
Claro que não. Eu, Mário, nunca a vi na minha vida. Nem mais gorda nem mais magra. Nem com cabelo curto (fica-lhe bem), nem comprido. Nem nua. Só vestida. Com está agora. Preciso de ganhar tempo. isto está a ficar complicado. Vou dizer-lhe...?
«Não é o que pensas.»
Uma deixa para ganhar o tal tempo.
«Amélia, gosto de ti. Amélia, fica comigo esta noite. És o grande amor da minha vida. Blá, blá, blá...»
Então a intrusa que não é intrusa chama-se Amélia.
«Grande cínico! E agora atraiçoas-me com a puta duma Gina. Sim, porque essa mulher deve ser uma grande puta. És um ingrato! Depois do que tenho feito por ti, como foste capaz de me confundir com ela?»
«Mas estás, enganada. Não é o que pensas, Amélia! Na verdade não conheço nenhuma Gina.»
«Olá...» Cumprimento, esboçando um sorriso. Será que pertence à rede dos mafiosos?
«É assim que me recebes?, só com um olá?»
E agora, Mário?
Soergo-me na cama. Felizmente que estas bóxeres tapam a parte mais íntima da minha nudez. Quem quer que seja ela tem a chave de casa e entrou com pezinhos de lã. Portanto, julgo que é pessoa da confiança do Pedro. Talvez uma amante. Não é talvez. É certo.A propósito, para onde foi ele depois que me apossei do seu corpo e talvez do espírito?
E lá vem a treta dos universos paralelos.
O que devo dizer à desconhecida?
Avanço? Não avanço?
«Não sei o que se passa contigo. Ultimamente tens andado muito esquisito.»
Vou arriscar!
«Impressão tua, Gina.»
«Gina?»
Agora é que estraguei tudo!
«Quem é essa Gina, Pedro?»
Quem é?
Não sei o que fazer neste jogo de cabra cega. Oxalá isto tudo possa acabar de um momento para o outro. O esquema dos mafiosos. A tensão em que ando que não me dá paz desde há uma semana. Quero o meu rosto de volta, embora ele seja mais bem parecido. A minha verdadeira identidade. E o maldito dinheiro que vá para o caraças. Já!
A mulher que não se chama Gina aponta-me um dedo acusador. No seu rosto leio revolta. Despeito. Neste momento não passo de um inseto para ela. Já percebi. Eles têm uma ligação forte e eu não sabia, claro.
«Não respondes. Estás a atraiçoar-me, Pedro!»
«Eu?!...»
Claro que não. Eu, Mário, nunca a vi na minha vida. Nem mais gorda nem mais magra. Nem com cabelo curto (fica-lhe bem), nem comprido. Nem nua. Só vestida. Com está agora. Preciso de ganhar tempo. isto está a ficar complicado. Vou dizer-lhe...?
«Não é o que pensas.»
Uma deixa para ganhar o tal tempo.
«Amélia, gosto de ti. Amélia, fica comigo esta noite. És o grande amor da minha vida. Blá, blá, blá...»
Então a intrusa que não é intrusa chama-se Amélia.
«Grande cínico! E agora atraiçoas-me com a puta duma Gina. Sim, porque essa mulher deve ser uma grande puta. És um ingrato! Depois do que tenho feito por ti, como foste capaz de me confundir com ela?»
«Mas estás, enganada. Não é o que pensas, Amélia! Na verdade não conheço nenhuma Gina.»
«Estás a enterrar-te cada vez mais!»
«Não sou quem tu julgas.»
Felizmente que já tenho um nome para ela. Valha-me isso. Mas a verdade é que continuo em maus lençóis porque nem sequer ouviu o que disse.
«Mentiroso. Ainda por cima...»
Solta-se a lágrima inevitável. Os homens são todos uns ingratos. Dissimulados. Traidores. Deve estar a pensar. E eu não tenho argumentos. De momento.
Vira-me as costas e fico a pensar como sair duma situação daquelas. Olho para o meu corpo seminu que umas bóxeres XL não podem cobrir. Encolho os ombros (que se lixe!) e corro atrás dela. Apanho-a já a entrar no elevador e puxo-a para mim.
«Larga-me...»
Canalha. Era a palavra que se seguia. Protozoário, teria dito a bióloga ofendida. Foraminífero, a geóloga. E por aí adiante. Cada botão na sua casa.
«E se falássemos como gente crescida?»
«Não sou quem tu julgas.»
Felizmente que já tenho um nome para ela. Valha-me isso. Mas a verdade é que continuo em maus lençóis porque nem sequer ouviu o que disse.
«Mentiroso. Ainda por cima...»
Solta-se a lágrima inevitável. Os homens são todos uns ingratos. Dissimulados. Traidores. Deve estar a pensar. E eu não tenho argumentos. De momento.
Vira-me as costas e fico a pensar como sair duma situação daquelas. Olho para o meu corpo seminu que umas bóxeres XL não podem cobrir. Encolho os ombros (que se lixe!) e corro atrás dela. Apanho-a já a entrar no elevador e puxo-a para mim.
«Larga-me...»
Canalha. Era a palavra que se seguia. Protozoário, teria dito a bióloga ofendida. Foraminífero, a geóloga. E por aí adiante. Cada botão na sua casa.
«E se falássemos como gente crescida?»
Paz, Jacinto (5)! Ao menos tu não te metes em sarilhos.
Não se solta dos meus braços, mas responde:
«Tu não passas de uma criança viciada. Sim, de algum tempo a esta parte só vives para o casino. Trocaste-me por outra. Usas o casino para esconderes a traição. Essa Gina é do casino, não é? Quero lá ir. Quero enfrentá-la...»
«Vamos falar?» insisto.
"Vamos falar de amor? A gente teve um caso muito sério", diz a canção.
Desiste do elevador e eu desisto daquele abraço fatal. Uma velhinha que entretanto chegou só não tapa os olhos por vergonha. Ou isso.
«Tenho muito para te contar, acredita.»
«Ai tens tens!»
Entramos em casa. Fecho a porta.
«Espera um pouco que vou vestir qualquer coisa decente.»
«Fazes-me rir.»
«Insisto.»
«Não percebo essa vergonha repentina, mas está bem.»
É a primeira vez que sorri. Gostei do seu sorriso.
Com esta apreciação "made in facebook" cerram-se as cortinas, interrompe-se a representação e assim termina o primeiro ato. O segundo ato segue dentro de momentos...
Não se solta dos meus braços, mas responde:
«Tu não passas de uma criança viciada. Sim, de algum tempo a esta parte só vives para o casino. Trocaste-me por outra. Usas o casino para esconderes a traição. Essa Gina é do casino, não é? Quero lá ir. Quero enfrentá-la...»
«Vamos falar?» insisto.
"Vamos falar de amor? A gente teve um caso muito sério", diz a canção.
Desiste do elevador e eu desisto daquele abraço fatal. Uma velhinha que entretanto chegou só não tapa os olhos por vergonha. Ou isso.
«Tenho muito para te contar, acredita.»
«Ai tens tens!»
Entramos em casa. Fecho a porta.
«Espera um pouco que vou vestir qualquer coisa decente.»
«Fazes-me rir.»
«Insisto.»
«Não percebo essa vergonha repentina, mas está bem.»
É a primeira vez que sorri. Gostei do seu sorriso.
Com esta apreciação "made in facebook" cerram-se as cortinas, interrompe-se a representação e assim termina o primeiro ato. O segundo ato segue dentro de momentos...
Revelação
«Estás bem sentada, Amélia?»
«Não podia estar melhor sentada, Pedro. As tuas cadeiras são muito cómodas.»
Ainda não tive tempo para poder concordar com a Amélia
«Aquilo que tenho para contar-te vai parecer-te estranho. Ou melhor, é mesmo muito estranho. Para começar, aguenta-te no balanço com a primeira revelação.»
«Que mentira vai sair daí?»
«Eu não sou o Pedro.»
O embate não podia ter sido mais forte.
«Agora estás a gozar comigo. Como assim?»
«Aconteceu uma coisa incrível. Eu e ele somos frequentadores do casino. Parece que o Pedro não falta um dia. Aliás, já te queixaste há pouco que ele dá mais importância ao casino do que a ti.»
«Queres que acredite nessa peta? Será que estou cega?»
«Não sou o Pedro. Deixa-me contar o que aconteceu no casino. Tudo está relacionado com o casino, Amélia.»
Fiz uma pausa para conciliar as ideias. Logicamente tinha que tirar de cena a Helena.
«Então?»
«Sou mais um observador do desenrolar do jogo nas máquinas do que propriamente um jogador compulsivo. O mesmo não se passa com o teu amigo. Gosta de jogar e até arrisca muito.»
«Bem sei. É um homem que nada em dinheiro.»
«Não tanto.» Pensei.
A Amélia não estava informada da situação finnceira do seu amigo. Segundo a Helena, ele era um empresário falido. Se tinha ou não tinha dinheiro numa offshore, isso já era outro assunto.
«Bom, chamou-me a atenção o êxito que ele estava a ter nas máquinas dos cifrões. Idas ao bónus com frequência. Vários jackpotes. Linhas boas. Um caso de êxito que dava para pensar. E os homens da central não reagiam...»
«Os homens da central?»
«O jogo é manipulado, Amélia. Está fora de dúvidas.»
«Lá sabes.»
«Revoltado, perguntei a mim próprio porque não acontecia comigo. Claro que não tinha resposta. O que sabia é que eram sempre os mesmos que ganhavam e os mesmos que perdiam. E foi então que desejei ser o Pedro, poder beneficiar da sua sorte. Tão simples como isso.»
«E encarnaste no Pedro. Não me enganas! Tu és o Pedro. Deixa-te de histórias da carochinha...»
«Posso continuar?»
«Sim, continua.»
«Então, aconteceu uma coisa extraordinária. Não sei explicar como foi. Estás a olhar para o Pedro que não é o Pedro. Estou dentro dele, mas somos duas pessoas. E eu sou o outro. Chamo-me Mário.»
«Tudo muito linear. Queres que acredite...?»
«Acredita se quiseres. Nada sei dos negócios do Pedro, nem dos seus hábitos. Não te conhecia, nem à Gina, que tanto te incomodou quando ouviste falar no seu nome, nem tão pouco os seus amigos. Tudo o que sei resume-se aos documentos que descobri no carro. Mas a coisa não acaba aqui.»
«Já agora... E este andar...?, como descobriste?»
«Muito simples, sabes? Bastaram o porta-chaves que encontrei num dos bolsos e outra vez os documentos. Fui ao sítio certo e entrei no sítio certo. E felizmente não estava mais ninguém a morar neste apartamento.»
«Que mais tens para contar?»
Voltei a ignorar a existência da tal Helena cinquentona.
«É sobre a sorte que tenho no casino, principalmente nas máquinas dos cifrões. Há um grupo mafioso a conjugar esforços para eu sacar prémios sucessivos das máquinas. Dão-me trinta por cento dos lucros. Mas estou a andar com o carro à frente dos bois. Quase logo a seguir a ver-me no corpo do Pedro fui agarrado e imobilizado quando entrava para o carro. Eles deram-me qualquer coisa a cheirar que me fez de imediato adormecer. Quando acordei estavam a contactar comigo de uma forma que não sei explicar e foi assim que entrei no esquema diabólico dos mafiosos. Foi bom nos primeiros dias. Estou a ganhar muito dinheiro pois dão-me trinta por cento dos lucros, conforme já disse. É um dinheiro fácil. Entusiasmei-me. Finalmente as máquinas manipuladas funcionavam a meu favor. Os dias foram passando e nada se alterou. Até que, ao fim de uma semana tomei consciência de que o que estava a acontecer nada tinha a ver com o meu carácter. Mais ou menos na altura em que me apanhaste deitado nesta cama a deitar contas a esta nova vida. Uma dolce vita, diga-se.»
«Muito bem. É uma história insólita que tens estado a contar. Apenas uma história insólita. Gostava mesmo de assistir ao teu êxito. Como devo chamar-te?»
«Mário.»
Mário contador de histórias, pensei. Mas não disse. Seria um fator que não me ia beneficiar.
«Ah sim. Já disseste há pouco. E também quero saber um pouco de ti...»
Tentei desviar a conversa.
«Quanto ao êxito, é fácil de provar. Logo à noite vamos os dois ao casino e logo vês se falo verdade.»
«Mas fala-me de ti, Mário. Que fazes na vida?»
Não consegui escapar.
«Sou professor. Professor de Matemática.»
«És professor...»
«Como convencer-te?»
«Vamos até ao quarto.»
Interroguei-a com o olhar.
«Não é o que estás a pensar.» Sorriu.
«Então?»
Disse para não me excitar. Queria saber uma coisa.
Fiquei curioso.
«Deixa-me ver uma coisa. Mexeste na almofada?»
«Porquê?»
«Responde. Sim ou não?»
«Não.»
«De certeza?»
«Se queres saber em que posição durmo, é sempre do lado esquerdo e de barriga para baixo.»
«Curioso. Costumas dormir sobre o coração?»
«Sem qualquer problema.»
«Dois pontos a teu favor. Ele dorme do lado direito e nunca sobre o coração. Mas não basta. Outra coisa. O Pedro odeia futebol...»
«E eu sou fã.»
«Qual o género de músicas que gostas mais?»
«Ligeira. Anos sessenta e setenta.»
«Saudosista. E de música clássica?»
«Suporto.»
«Ele nem isso.»
«E cantas no duche?»
«Não. Só fora do duche. Fado de Coimbra. Espera...»
Não. Não ia cantar. Fiz-lhe um gesto para que se calasse. Eles estavam a contactar para me revelarem o local da entrega do dinheiro.
«Pronto, já podes falar, Amélia dos olhos doces.»
«És um sedutor. O Pedro nunca me tratou assim.»
«Ainda bem que agora o estou a fazer.»
Não reagiu.
«Há pouco mandaste-me calar, porquê?»
Dirigi-me para a cómoda encostada à parede oposta à porta de entrada e abri a primeira gaveta.
Estava lá dinheiro aos montes. A Amélia deve ter revirado os olhos.
«Tanta nota!»
«Ajuda-me a contar. Já temos pouco tempo.»
«E para ti fica trinta por cento deste dinheiro? Não achas que isso é demasiado bom?»
«É dinheiro fácil que começa a queimar-me as mãos. Há pouco pedi que rte calasses porque eles estavam a contactar comigo. Vamos lá contar o dinheiro. Tenho que entregar parte ao "bandido". Desta vez o local que escolheram é o largo de Santo António.»
«Oh!»
«Que aconteceu?»
A Amélia estava visivelmente perturbada.
«Vejo o Santo de pernas para o ar. Pressinto que qualquer coisa vai correr mal.»
«Tens dons, Amélia?»
«O Pedro diz que sim.»
«Mas o Santo António é casamenteiro. Que tem a ver para o caso?»
Não há sorte que sempre dure...
«Sabes?, há uns anos costumava vir aqui gastar umas moedinhas com um amigo. Coisa pouca. Jogávamos a meias, uma forma de não perdermos muito, quando era caso para isso e por isso também ganhávamos pouco quando a sorte nos batia à porta.»
«Eram clientes assíduos como o Pedro?»
«Nem por isso. Talvez uma vez por semana, ou menos. O Raul, um amigo, tal como eu, não gostava de perder. Ainda por cima era forreta e resmungava que eu não me concentrava no jogo. Dava mais atenção às mulheres, e isso. O mais natural que podia acontecer era perdermos e eu era o mais mentalizado.»
«Mulheres. Era o teu forte?»
Ignorei a insinuação. Estávamos parados na antecâmara das máquinas. Não tinha pressa.
«Digamos que frequentávamos o casino com o objetivo final de descarregarmos as energias negativas acumuladas ao longo da semana. Eu mais do que ele, porque sabia controlar bem os meus alunos. Como se faz ao papagaio que se lança no ar, entendes? Mais ou menos corda, conforme as circunstâncias.»
«A melhor coisa para descarregar os iões ruins é descansar num banco de um jardim sob uma árvore frondosa. Uma hora por dia é remédio santo.»
«Já ouvi dizer. Entretanto as máquinas passaram a dar menos prémios e fizemos algumas pausas de meses, até que desistimos.
Meses mais tarde voltei. Aproveitando a experiência desses tempos passados com o Raul acabei por dedicar-me a descobrir os podres que andam por aí, e que não são poucos. Barafustei com os fiscais e os chefes de sala, apresentei reclamações na inspeção... eu sei lá. E o resultado?»
«Adivinho. Nada resultou.»
«Eram clientes assíduos como o Pedro?»
«Nem por isso. Talvez uma vez por semana, ou menos. O Raul, um amigo, tal como eu, não gostava de perder. Ainda por cima era forreta e resmungava que eu não me concentrava no jogo. Dava mais atenção às mulheres, e isso. O mais natural que podia acontecer era perdermos e eu era o mais mentalizado.»
«Mulheres. Era o teu forte?»
Ignorei a insinuação. Estávamos parados na antecâmara das máquinas. Não tinha pressa.
«Digamos que frequentávamos o casino com o objetivo final de descarregarmos as energias negativas acumuladas ao longo da semana. Eu mais do que ele, porque sabia controlar bem os meus alunos. Como se faz ao papagaio que se lança no ar, entendes? Mais ou menos corda, conforme as circunstâncias.»
«A melhor coisa para descarregar os iões ruins é descansar num banco de um jardim sob uma árvore frondosa. Uma hora por dia é remédio santo.»
«Já ouvi dizer. Entretanto as máquinas passaram a dar menos prémios e fizemos algumas pausas de meses, até que desistimos.
Meses mais tarde voltei. Aproveitando a experiência desses tempos passados com o Raul acabei por dedicar-me a descobrir os podres que andam por aí, e que não são poucos. Barafustei com os fiscais e os chefes de sala, apresentei reclamações na inspeção... eu sei lá. E o resultado?»
«Adivinho. Nada resultou.»
«Exato. A inspeção não deu qualquer parecer favorável às tuas reclamações. Não é um dever ouvir os utentes e dar-lhes razão quando a têm?»
«Sim. Mas sabes o que é assobiar para o lado?»
«Compreendo. Quer dizer que...»
Pedi-lhe para não se precipitar. Ainda acreditava numa palavra que quase parecia mágica: bom senso.
«Não perdi a esperança. Mas o tempo vai passando e nada. Tenho a impressão que vou ficar outra vez de candeias às avessas com a inspeção. Começou com o casino. Até achei natural. Mas com a inspeção, nunca imaginei.»
«Sim. Mas sabes o que é assobiar para o lado?»
«Compreendo. Quer dizer que...»
Pedi-lhe para não se precipitar. Ainda acreditava numa palavra que quase parecia mágica: bom senso.
«Não perdi a esperança. Mas o tempo vai passando e nada. Tenho a impressão que vou ficar outra vez de candeias às avessas com a inspeção. Começou com o casino. Até achei natural. Mas com a inspeção, nunca imaginei.»
«Há grandes interesses financeiros em jogo.»
«Se ganham dez por cento das receitas, imagina quanto perdem os utentes!»
Concordou.
«E entretanto fui cada vez mais prejudicado. Não podia fixar-me numa máquina. Tinha que deslocar-me para não terem tempo de alterarem as séries. Olha, aqui tens as tais máquinas dos célebres cifrões...»
«Antes de começares a jogar, diz-me o que são as séries.»
«Muito simples. Trata-se de sequências de jogadas. Ruins ou boas. Mas, se quiserem, podem pará-las e substituir por outras, entendes?»
Franziu o sobrolho.
«Então o aleatório é uma história mal contada.»
«Se ganham dez por cento das receitas, imagina quanto perdem os utentes!»
Concordou.
«E entretanto fui cada vez mais prejudicado. Não podia fixar-me numa máquina. Tinha que deslocar-me para não terem tempo de alterarem as séries. Olha, aqui tens as tais máquinas dos célebres cifrões...»
«Antes de começares a jogar, diz-me o que são as séries.»
«Muito simples. Trata-se de sequências de jogadas. Ruins ou boas. Mas, se quiserem, podem pará-las e substituir por outras, entendes?»
Franziu o sobrolho.
«Então o aleatório é uma história mal contada.»
«Exato. Uma treta que todos nos querem contar. Incluindo a inspeção.»
«Achas que há falta de seriedade?»
«Perante os factos...»
Introduzi uma nota de cinquenta na primeira máquina dos cifrões e outra na máquina à esquerda, uma das que tinham a opção de quatro jogos. Só depois voltei-me para a Amélia.
«Achas que há falta de seriedade?»
«Perante os factos...»
Introduzi uma nota de cinquenta na primeira máquina dos cifrões e outra na máquina à esquerda, uma das que tinham a opção de quatro jogos. Só depois voltei-me para a Amélia.
«Logo nas duas?»
«Sigo as instruções deles.»
«E agora o que vai acontecer?»
«Tem calma. Aguarda.»
Ajustei a máquina dos cifrões para 9x4 e na outra joguei a aposta máxima (9x10).
Vi-a fazer mentalmente as contas.
«Estás louco, Mário! Mais de treze euros por cada jogada!»
«Sigo as instruções deles.»
«E agora o que vai acontecer?»
«Tem calma. Aguarda.»
Ajustei a máquina dos cifrões para 9x4 e na outra joguei a aposta máxima (9x10).
Vi-a fazer mentalmente as contas.
«Estás louco, Mário! Mais de treze euros por cada jogada!»
«Não te esqueças que sou o Pedro.» Disse, em voz baixa.
«Desculpa. Ai, estou a ficar nervosa. E nessa segunda máquina, como se chama o jogo?»
«Desculpa. Ai, estou a ficar nervosa. E nessa segunda máquina, como se chama o jogo?»
«Aviões. Se saírem três vai-se ao bónus.»
«Ah!»
Olhei para a assembleia de curiosos que começava a juntar-se. Não era nada bom.
«Está bem. Vou acreditar que vais ganhar.»
A primeira máquina a dar o sinal foi a dos cifrões. Uma ida ao bónus proporcionou-me perto de oitocentos euros. Mas era só o começo. A outra também não tardou a ir ao bónus. Tinham surgido três aviões.
«Ah!»
Olhei para a assembleia de curiosos que começava a juntar-se. Não era nada bom.
«Está bem. Vou acreditar que vais ganhar.»
A primeira máquina a dar o sinal foi a dos cifrões. Uma ida ao bónus proporcionou-me perto de oitocentos euros. Mas era só o começo. A outra também não tardou a ir ao bónus. Tinham surgido três aviões.
«Vinte e cinco jogos grátis, Amélia. E pode repetir se aparecerem de novo três aviões.»
Pouco depois...
«Mas isto é um jackpot de quase quatro mil euros, Pedro!»
«Exatamente três mil oitocentos e noventa e quatro euros.»
«Parabéns, doutor Vaz. Assim é que é castigar o casino. Fico muito feliz quando alguém atinge a coisa ruim que me destruiu a vida.»
«Obrigado, Francisco.»
Passei-lhe à socapa para as mãos uma nota de cinquenta euros.
«Obrigado, doutor. Mais logo mostro-lhe a nota.»
«Não é preciso, Francisco. Faça o uso que quiser desse dinheiro.»
Mal sabia ele que era o seu amigo Mário quem estava a dar-lhe os cinquenta euros.
Continuei a jogar na máquina dos cifrões. A outra estava bloqueada ainda pelo jackpot.
«Muito bem. Estou a ver como funciona o jogo aleatório. E agora como vai acontecer? Tens que ir ao balcão receber?»
«Não. Muito simples. Dois fiscais vêm trazer numa pequena bandeja o dinheiro do prémio.»
Olhei disfarçadamente em redor. Dois ou três jogadores meus conhecidos do Fort Knox olhavam para a cena com o ar de quem não estava a achar piada. Entre eles havia um que também devia pertencer ao grupo que beneficiava com o jogo. Portanto, um dos que ganhava sempre ou quase sempre.
«Vamos...»
«Não continuámos, porquê, Mário?»
«Recebi uma ordem para sair desta zona. Eles são cautelosos. Já estava a dar nas vistas.»
Cruzei-me com o chefe de sala com quem tinha tido uma bruta discussão na passagem do ano. O seu sorriso rasgado a cumprimentar-me disse quase tudo.
«Será...?» interroguei-me.
«Não sei quanto tempo isto vai durar.»
«Tu também lucras!»
«Sim. Mas este dinheiro escalda-me. Não me sinto bem. Isto é um trabalho desonesto. E mais ainda: para onde vai o dinheiro que também dou a ganhar aos outros?»
«Tens razão. Além do mais, a tua vida está em perigo.»
«O perigo pode vir por todos os lados. Neste momento tenho a certeza que estão a ouvir-nos. Ao mesmo tempo posso ter uma surpresa por parte da administração. Isto para não falar na inspeção. Acho até que já foram alertados.»
Agarrou-se a mim.
«Vamos embora daqui, Mário!»
Pouco depois...
«Mas isto é um jackpot de quase quatro mil euros, Pedro!»
«Exatamente três mil oitocentos e noventa e quatro euros.»
«Parabéns, doutor Vaz. Assim é que é castigar o casino. Fico muito feliz quando alguém atinge a coisa ruim que me destruiu a vida.»
«Obrigado, Francisco.»
Passei-lhe à socapa para as mãos uma nota de cinquenta euros.
«Obrigado, doutor. Mais logo mostro-lhe a nota.»
«Não é preciso, Francisco. Faça o uso que quiser desse dinheiro.»
Mal sabia ele que era o seu amigo Mário quem estava a dar-lhe os cinquenta euros.
Continuei a jogar na máquina dos cifrões. A outra estava bloqueada ainda pelo jackpot.
«Muito bem. Estou a ver como funciona o jogo aleatório. E agora como vai acontecer? Tens que ir ao balcão receber?»
«Não. Muito simples. Dois fiscais vêm trazer numa pequena bandeja o dinheiro do prémio.»
Olhei disfarçadamente em redor. Dois ou três jogadores meus conhecidos do Fort Knox olhavam para a cena com o ar de quem não estava a achar piada. Entre eles havia um que também devia pertencer ao grupo que beneficiava com o jogo. Portanto, um dos que ganhava sempre ou quase sempre.
«Vamos...»
«Não continuámos, porquê, Mário?»
«Recebi uma ordem para sair desta zona. Eles são cautelosos. Já estava a dar nas vistas.»
Cruzei-me com o chefe de sala com quem tinha tido uma bruta discussão na passagem do ano. O seu sorriso rasgado a cumprimentar-me disse quase tudo.
«Será...?» interroguei-me.
«Não sei quanto tempo isto vai durar.»
«Tu também lucras!»
«Sim. Mas este dinheiro escalda-me. Não me sinto bem. Isto é um trabalho desonesto. E mais ainda: para onde vai o dinheiro que também dou a ganhar aos outros?»
«Tens razão. Além do mais, a tua vida está em perigo.»
«O perigo pode vir por todos os lados. Neste momento tenho a certeza que estão a ouvir-nos. Ao mesmo tempo posso ter uma surpresa por parte da administração. Isto para não falar na inspeção. Acho até que já foram alertados.»
Agarrou-se a mim.
«Vamos embora daqui, Mário!»
Já não me chamava por Pedro.
Se o fim de tarde correu bem, a noite não podia estar a correr melhor.
«Aquele jackpot de quase vinte mil euros foi ouro sobre azul.»
«Pois foi. Mas já reparaste que cada vez tenho mais gente a assistir ao jogo?»
«Doutor Pedro Vaz?»
Olhou-me de frente. Não conhecia aquela cara.
Demorei a responder. Não consegui adivinhar o que ele ia dizer.
«Importa-se de me acompanhar?»
«Por acaso importo-me porque não sei de que se trata.»
Sorri para a minha companheira, tentando que ela se descontraísse. Tive mesmo uma atitude teatral ao acariciar-lhe o rosto moreno.
«Querida, não se passa nada.»
«Desculpe, devia ter-me identificado primeiro. Sou o inspetor Melícias. Importa-se de me acompanhar ao piso de cima? Não o demoro muito.»
O mesmo não pensava eu.
«Pois não.»
«Descarta-te. Diz que vais à casa de banho e pira-te para a garagem.» disse ela, num sussurro.
Arroz queimado. Isto ia dar para o torto, mais tarde ou mais cedo. Agora tinha que me desenrascar.
«Preciso de ir à casa de banho. Sei muito bem onde é o gabinete da inspeção pois já lá fui muitas vezes.»
Se o fim de tarde correu bem, a noite não podia estar a correr melhor.
«Aquele jackpot de quase vinte mil euros foi ouro sobre azul.»
«Pois foi. Mas já reparaste que cada vez tenho mais gente a assistir ao jogo?»
«Doutor Pedro Vaz?»
Olhou-me de frente. Não conhecia aquela cara.
Demorei a responder. Não consegui adivinhar o que ele ia dizer.
«Importa-se de me acompanhar?»
«Por acaso importo-me porque não sei de que se trata.»
Sorri para a minha companheira, tentando que ela se descontraísse. Tive mesmo uma atitude teatral ao acariciar-lhe o rosto moreno.
«Querida, não se passa nada.»
«Desculpe, devia ter-me identificado primeiro. Sou o inspetor Melícias. Importa-se de me acompanhar ao piso de cima? Não o demoro muito.»
O mesmo não pensava eu.
«Pois não.»
«Descarta-te. Diz que vais à casa de banho e pira-te para a garagem.» disse ela, num sussurro.
Arroz queimado. Isto ia dar para o torto, mais tarde ou mais cedo. Agora tinha que me desenrascar.
«Preciso de ir à casa de banho. Sei muito bem onde é o gabinete da inspeção pois já lá fui muitas vezes.»
«É a primeira vez, doutor Vaz.»
Tinha acabado de dar um passo em falso.
«Recentemente, não. Mas de há dois anos para trás...»
«É possível. Um vírus limpou-nos os ficheiros dessa altura.»
Sorte a minha.
«Muito bem. Eu espero por si lá em cima.»
«Então, até já.»
A Amélia seguiu-me.
«Que se passa?»
«Não sei. Depressa, vamos para a garagem.»
«Então não vais lá acima?»
«Claro que não.»
Tinha acabado de dar um passo em falso.
«Recentemente, não. Mas de há dois anos para trás...»
«É possível. Um vírus limpou-nos os ficheiros dessa altura.»
Sorte a minha.
«Muito bem. Eu espero por si lá em cima.»
«Então, até já.»
A Amélia seguiu-me.
«Que se passa?»
«Não sei. Depressa, vamos para a garagem.»
«Então não vais lá acima?»
«Claro que não.»
«Entra já para o carro! Não temos tempo a perder.»
«Destranca as portas para eu entrar!»
«Ah, é verdade. As portas...»
Estava a ficar nervoso com o desenrolar dos acontecimentos.
Expliquei-lhe que tinha recebido uma nova ordem. Devia sair de imediato do casino.
O grupo que me controlava estava em apuros. Provavelmente alguma fuga de informação pusera em risco um dos braços do polvo. E era melhor perderem um braço do que serem atacados na zona vital. Daí a pressa em que eu desaparecesse de cena.
«Só um momento...»
Azar o meu! Tudo perdido e só por alguns segundos. Olhei de relance. O homem trazia uma mala de executivo. Não vi qualquer arma.
«Que quer?»
«Rápido! Pegue...»
Parecia estar a viver um filme de espiões ou isso. Afinal o homem, que a princípio me pareceu ser um assaltante, deu-me a mala de executivo que trazia consigo e fugiu, sem mais palavras. Ah! Não estava preparado para aquelas cenas de puro suspense.
Entrei no carro ainda a tempo de ver dois indivíduos a correrem na nossa direção.
«O que era?»
«Ala que se faz tarde!»
Arranquei rápido. Enquanto me aproximava do controle de saída lembrei-me que não tinha validado o ticket.
«Vamos ter problema!»
«Porquê?»
«Somos seguidos e não validei o ticket.»
Parvoíce a minha. Naquele momento era o Pedro e conduzia um BMW que tinha via verde.
«Uff!»
Já em casa...
«Puseram-me esta criança nos braços, para quê?»
«Não faças suspense. Abre já essa coisa!»
Não tinha mais pressa do que eu.
«E se há uma bomba na mala?» perguntei, nervoso.
A reação da minha companheira não se fez esperar. Deu logo dois passos para atrás.
Podiam querer eliminar-me. Era uma hipótese plausível. Queriam eliminar Pedro Vaz, para eles, e Mário Fonseca na vida real.
Fiquei a olhar para a mala sem conseguir ter um pensamento que valesse a pena.
«E se tiver outra coisa lá dentro, Mário?»
«Outra coisa, o quê?, não me dizes?»
Então lembrei-me. Estávamos a lidar com dinheiro. O vil metal. Neste caso, notas. Naquela mala. Talvez muitas notas. Era isso.
«Que estás a fazer?!...»
«A abrir a mala. Vamos ver se tem segredo...»
«Tem cuidado!»
«Que cuidado, Amélia? Das duas, uma. Abro a mala, clik e pum! Ou então, clik e... que alívio! São só notas...»
«Não brinques.»
De facto havia dinheiro. Uma mala cheia só com notas de quinhentos, duzentos e cem euros.
«Mas isto é uma fortuna! Donde veio este dinheiro?»
«Claro que deles. Para já temos que contar as notas, Amélia dos olhos doces.»
A Amélia dos olhos doces sorriu docemente. Tentei adivinhar a profundidade daquele sorriso, se era devida ao vil metal, grana, cacau, ou se havia outra razão.
Mário... desce à Terra!
«É a segunda vez que me chamas assim.»
«E então, gostas?»
Avanço? Não avanço?
Já tinha visto este filme com outra personagem.
Que era feito da Helena cinquentona?
Decidi não avançar. Optei por contar o dinheiro. Dois milhões de euros.
Tanto dinheiro, para quê?
«O Pedro tem uma offshore no Luxemburgo. Será que ele já andava nalgum destes esquemas?»
E dizia que a Amélia tinha dons. Pois era verdade. Leu-me o pensamento. Mas estava mais preocupado com a origem do dinheiro. Contando com o que se passava no Fort Knox, relacionado com a minha contribuição, ainda sobrava muito dinheiro cuja proveniência estava por esclarecer.
«Que fazemos ao dinheiro?» perguntou.
«Para já, ficamos com ele. Bom, hoje foi um dia de emoções, não foi?»
«E se fôssemos descansar?»
«Não é má ideia. Mas… Não há problema. Tu ficas no quarto do Pedro e eu durmo no sofá da sala.»
«Que ideia, Mário! O sofá tem uma mola partida. Dormimos ambos no quarto do Pedro.» Sorriu com seu sorriso de Amélia dos olhos doces. «Não há de ser nada.»
«Pois não.»
Olhei para a mala dos dois milhões. Não queria deixá-la abandonada.
«Vais primeiro à casa de banho?»
«Pode ser.»
Acordei com a claridade. Nenhum de nós se tinha lembrado de descer os estores.
E a propósito de nós, eu estava presente. Quanto à Amélia, essa tinha-se evaporado docemente sem deixar um rasto de odor, qualquer que pudesse ser ele. E mais uma coisa: levou consigo a mala e, claro, o dinheiro.
Quanto ao santo milagreiro dos casamentos e uniões de facto, que ela viu de pernas para o ar, lembro-me perfeitamente que previu que tal visão não trazia nada de bom. E de facto não trouxe. A mala e a Amélia (que tinha dons) desapareceram. Na expetativa de descobrir o paradeiro daquela mulher que me deu o maior dos nós cegos que me foram dados e que eu também quis dar, só me restava agora atar um lenço à perna de uma cadeira e fazer com devoção o responso a Santo António. Só ele estava especializado em fazer casamentos embora fosse um leigo em questões de dinheiro.
Pensando sobre o nó cego que me foi dado pela Amélia, e também na reação inevitável dos mafiosos, que certamente já estavam na pista do dinheiro, senti-me indisposto e não pude evitar um vómito. Falso alarme porque nada tinha no estômago. Mas essa boa nova do falso alarme não evitou que tomasse o caminho da casa de banho.
Lavei o rosto com vigor e procurei uma toalha no toalheiro para me limpar. Depois, olhei-me ao espelho que ocupava toda a parede na minha frente. As olheiras eram de palmo e meio.
Mas não foram as olheiras que me surpreenderam. Foi a imagem que os meus olhos viram.
Voltava a ser eu.
Não posso falar do Pedro que já não sou. Talvez ele esteja a pensar na branca que lhe deu durante uma semana. Ou então já a contas com os mafiosos. Ou no aconchego da sua Amélia e da mala dos dois milhões. Talvez muitas coisas e entre elas a gozar as delícias que a sua querida offshore lhe proporciona.
Não voltei a ouvir o mafioso que me dava instruções. Talvez que eles tenham perdido o contacto. Mas, pelo sim pelo não, vou desaparecer. Eu e os meus trinta por cento que tanto gozo me deram a ganhar e que também vão dar uma boa ajuda para aguentar os achaques da velhice. Isto se não gastar tudo antes. Estou feliz porque, malgrado o nó cego que a doce Amélia me deu, também consegui dar o nó cego ao polvo mafioso. Tal só foi possível lutando com o inimigo com armas iguais.
Mas tudo tem um preço e preciso mesmo de fugir. Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar. E agora, bom amigo António, com a minha ausência vais realizar finalmente o teu sonho. Contar histórias para crianças. Dos sete aos oitenta anos, claro. Não podia ser de outra maneira. Julgavas que me enganavas?
E não sabes o resto. Já estou com saudades. Afinal foi quase uma vida...
«Destranca as portas para eu entrar!»
«Ah, é verdade. As portas...»
Estava a ficar nervoso com o desenrolar dos acontecimentos.
Expliquei-lhe que tinha recebido uma nova ordem. Devia sair de imediato do casino.
O grupo que me controlava estava em apuros. Provavelmente alguma fuga de informação pusera em risco um dos braços do polvo. E era melhor perderem um braço do que serem atacados na zona vital. Daí a pressa em que eu desaparecesse de cena.
«Só um momento...»
Azar o meu! Tudo perdido e só por alguns segundos. Olhei de relance. O homem trazia uma mala de executivo. Não vi qualquer arma.
«Que quer?»
«Rápido! Pegue...»
Parecia estar a viver um filme de espiões ou isso. Afinal o homem, que a princípio me pareceu ser um assaltante, deu-me a mala de executivo que trazia consigo e fugiu, sem mais palavras. Ah! Não estava preparado para aquelas cenas de puro suspense.
Entrei no carro ainda a tempo de ver dois indivíduos a correrem na nossa direção.
«O que era?»
«Ala que se faz tarde!»
Arranquei rápido. Enquanto me aproximava do controle de saída lembrei-me que não tinha validado o ticket.
«Vamos ter problema!»
«Porquê?»
«Somos seguidos e não validei o ticket.»
Parvoíce a minha. Naquele momento era o Pedro e conduzia um BMW que tinha via verde.
«Uff!»
Já em casa...
«Puseram-me esta criança nos braços, para quê?»
«Não faças suspense. Abre já essa coisa!»
Não tinha mais pressa do que eu.
«E se há uma bomba na mala?» perguntei, nervoso.
A reação da minha companheira não se fez esperar. Deu logo dois passos para atrás.
Podiam querer eliminar-me. Era uma hipótese plausível. Queriam eliminar Pedro Vaz, para eles, e Mário Fonseca na vida real.
Fiquei a olhar para a mala sem conseguir ter um pensamento que valesse a pena.
«E se tiver outra coisa lá dentro, Mário?»
«Outra coisa, o quê?, não me dizes?»
Então lembrei-me. Estávamos a lidar com dinheiro. O vil metal. Neste caso, notas. Naquela mala. Talvez muitas notas. Era isso.
«Que estás a fazer?!...»
«A abrir a mala. Vamos ver se tem segredo...»
«Tem cuidado!»
«Que cuidado, Amélia? Das duas, uma. Abro a mala, clik e pum! Ou então, clik e... que alívio! São só notas...»
«Não brinques.»
De facto havia dinheiro. Uma mala cheia só com notas de quinhentos, duzentos e cem euros.
«Mas isto é uma fortuna! Donde veio este dinheiro?»
«Claro que deles. Para já temos que contar as notas, Amélia dos olhos doces.»
A Amélia dos olhos doces sorriu docemente. Tentei adivinhar a profundidade daquele sorriso, se era devida ao vil metal, grana, cacau, ou se havia outra razão.
Mário... desce à Terra!
«É a segunda vez que me chamas assim.»
«E então, gostas?»
Avanço? Não avanço?
Já tinha visto este filme com outra personagem.
Que era feito da Helena cinquentona?
Decidi não avançar. Optei por contar o dinheiro. Dois milhões de euros.
Tanto dinheiro, para quê?
«O Pedro tem uma offshore no Luxemburgo. Será que ele já andava nalgum destes esquemas?»
E dizia que a Amélia tinha dons. Pois era verdade. Leu-me o pensamento. Mas estava mais preocupado com a origem do dinheiro. Contando com o que se passava no Fort Knox, relacionado com a minha contribuição, ainda sobrava muito dinheiro cuja proveniência estava por esclarecer.
«Que fazemos ao dinheiro?» perguntou.
«Para já, ficamos com ele. Bom, hoje foi um dia de emoções, não foi?»
«E se fôssemos descansar?»
«Não é má ideia. Mas… Não há problema. Tu ficas no quarto do Pedro e eu durmo no sofá da sala.»
«Que ideia, Mário! O sofá tem uma mola partida. Dormimos ambos no quarto do Pedro.» Sorriu com seu sorriso de Amélia dos olhos doces. «Não há de ser nada.»
«Pois não.»
Olhei para a mala dos dois milhões. Não queria deixá-la abandonada.
«Vais primeiro à casa de banho?»
«Pode ser.»
Acordei com a claridade. Nenhum de nós se tinha lembrado de descer os estores.
E a propósito de nós, eu estava presente. Quanto à Amélia, essa tinha-se evaporado docemente sem deixar um rasto de odor, qualquer que pudesse ser ele. E mais uma coisa: levou consigo a mala e, claro, o dinheiro.
Quanto ao santo milagreiro dos casamentos e uniões de facto, que ela viu de pernas para o ar, lembro-me perfeitamente que previu que tal visão não trazia nada de bom. E de facto não trouxe. A mala e a Amélia (que tinha dons) desapareceram. Na expetativa de descobrir o paradeiro daquela mulher que me deu o maior dos nós cegos que me foram dados e que eu também quis dar, só me restava agora atar um lenço à perna de uma cadeira e fazer com devoção o responso a Santo António. Só ele estava especializado em fazer casamentos embora fosse um leigo em questões de dinheiro.
Pensando sobre o nó cego que me foi dado pela Amélia, e também na reação inevitável dos mafiosos, que certamente já estavam na pista do dinheiro, senti-me indisposto e não pude evitar um vómito. Falso alarme porque nada tinha no estômago. Mas essa boa nova do falso alarme não evitou que tomasse o caminho da casa de banho.
Lavei o rosto com vigor e procurei uma toalha no toalheiro para me limpar. Depois, olhei-me ao espelho que ocupava toda a parede na minha frente. As olheiras eram de palmo e meio.
Mas não foram as olheiras que me surpreenderam. Foi a imagem que os meus olhos viram.
Voltava a ser eu.
Não posso falar do Pedro que já não sou. Talvez ele esteja a pensar na branca que lhe deu durante uma semana. Ou então já a contas com os mafiosos. Ou no aconchego da sua Amélia e da mala dos dois milhões. Talvez muitas coisas e entre elas a gozar as delícias que a sua querida offshore lhe proporciona.
Não voltei a ouvir o mafioso que me dava instruções. Talvez que eles tenham perdido o contacto. Mas, pelo sim pelo não, vou desaparecer. Eu e os meus trinta por cento que tanto gozo me deram a ganhar e que também vão dar uma boa ajuda para aguentar os achaques da velhice. Isto se não gastar tudo antes. Estou feliz porque, malgrado o nó cego que a doce Amélia me deu, também consegui dar o nó cego ao polvo mafioso. Tal só foi possível lutando com o inimigo com armas iguais.
Mas tudo tem um preço e preciso mesmo de fugir. Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar. E agora, bom amigo António, com a minha ausência vais realizar finalmente o teu sonho. Contar histórias para crianças. Dos sete aos oitenta anos, claro. Não podia ser de outra maneira. Julgavas que me enganavas?
E não sabes o resto. Já estou com saudades. Afinal foi quase uma vida...
Pergunto ao vento pelo Mário
O caderno do Mário já não tem mais histórias. Restam cinco páginas em branco e cinco páginas em branco só podem significar o vazio que ele deixou.
Tento descobrir nas entrelinhas uma pista que me conduza a ele. As últimas palavras parecem dizer que não vai suportar viver sem novas histórias, reais, adornadas, ou mesmo criadas pela sua imaginação. Por outro lado, há o dinheiro que finalmente ganhou no jogo e que pode servir realizar algum sonho oculto.
Fiquei para aqui sem ação e nada fiz mais que lamentar o seu desaparecimento.
E se no casino procurar chegar à fala com um ou dois amigos do Mário e até com fiscais e chefes de sala que mais de perto seguiram os seus passos?
Sinto uma especial alegria que me faz rir de gozo. O nó cego que deu no casino ao grupo mafioso e também ao casino. O problema é que esta história não é real. Na verdade "O nó cego" nunca aconteceu.
"Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar."
Esta frase é enigmática.
Que sítio é esse onde ninguém o pode encontrar?
Para já, acho premente falar com a Mónica. Tenho a certeza que não me contou tudo o que sabia acerca do Mário e da Maria.
Há mais alguém que sabe, mas esse alguém é uma coisa ainda mais secreta e volátil que o desejo de secretismo da Maria.
O mistério adensa-se. Aqui estou de regresso à Estrada de Benfica. Caminho no sentido poente-nascente e tenho à vista a tabacaria onde o Mário costumava entregar alguns boletins das sociedades falhadas de totoloto. Aliás, bem podia estar quieto pois nunca teve sorte ao jogo e sabia disso. Perdeu tempo, paciência e dinheiro. Quanto aos sócios, estes perderam apenas dinheiro visto que era ele quem preenchia os boletins com apostas de um sistema que julgava ser infalível se fossem concretizadas determinadas condições. E as condições nunca aconteceram.
Já saí da Estrada de Benfica e estou a meia dúzia de metros do prédio onde mora a Mónica, a amiga da Maria. Olho com atenção para as proximidades da porta e não vejo ninguém a meter a chave à porta. Seria demasiada coincidência repetir-se a situação da outra vez.
Abro a porta da rua. Não entro logo. Espero um pouco. Afinal não é verdade que não haja uma sem duas (invenção minha, pois o ditado prediz que não há duas sem três). Lá me decido entrar. Pouco depois estou junto à porta da entrada. Tenho a chave na mão, mas hesito. Abro não abro. Toco a campainha não toco. As chaves que a Mónica deixou em cima do papel manuscrito não eram senão um convite para entrar. Mas talvez porque não houvesse alguém em casa, o que significava que a casa poderia estar desabitada. Ao mesmo tempo não entendia a razão porque uma mulher me drogou para logo a seguir desaparecer.
Será que a Mónica teve algum contacto com que não contava e foi obrigada a desaparecer?
Continuava a dúvida, pois podia ter falado comigo no próprio dia. Ou melhor, é certo que falou, mas ficaram muitas coisas por dizer.
Resolvi premir a campainha. Pouco depois ouvi uma voz:
«Quem é?»
Bati levemente com os nós dos dedos. A porta abriu-se quase de imediato.
«Desculpe, já cá estou em cima.»
«Ah sim.»
Bem via, claro.
«Vinha falar com a Mónica.»
«E é o senhor...?»
«António Ildefonso.»
«Muito prazer. Eu sou a Maria João. Faz favor de entrar. Ela deve estar a chegar.»
Tinha cabelos compridos, próprios para se soltarem ao vento. Esse pormenor pôs-me alerta.
Encaminhou-me para a sala que já conhecia. Aliás, aquela casa já não tinha segredos para mim.
«Faz favor de sentar-se.»
Aguardei que ela se sentasse. Mandavam as boas regras de educação.
«Bebe alguma coisa? Uma cerveja... um chá...?» perguntou, deixando ver uns olhos muito abertos que emprestavam uma expressão algo indecisa.
Não pude evitar um sorriso de desconforto.
«Não, muito obrigado. Almocei há pouco tempo e de certeza que não me vai cair bem.»
«Também não gosto de beber a seguir às refeições. Bom, vou repetir-me. Conforme já disse, a Mónica não deve tardar. O senhor é o amigo do Mário, não é?»
«É verdade. Conhece-o?»
«Bom... vagamente. Isto é, só de nome.»
Ouvi o bater de uma porta a fechar-se e depois o ruído de passos apressados no exterior.
«A Mónica a sair!» pensei. «Mas que se passa aqui, António?»
Não consegui evitar virar-me para o lado da saída, embora a dita saída fosse outra. A minha inquietação não passou despercebida à Maria dos olhos castanhos, muito abertos.
«Não se assuste. É a vizinha do lado. Usa saltos altos que fazem um pouco de barulho. Então, quando regressa a altas horas.» Como ela sabia mentir muito bem!
«É pouco agradável ser acordado. Mas diga-me uma coisa...»
«Sim?»
Tinha que aproveitar a oportunidade.
«Este andar só tem dois fogos, não é?»
Foi a sua vez de mostrar inquietação.
«Sim. Porque pergunta?»
«Já vai saber.»
Levantei-me e dirigi-me para o porta que comunicava com o outro apartamento.
«Se eu abrir, o que vai acontecer?»
«Por favor não faça isso!»
«A sua amiga foi imprevidente. O nervosismo denunciou-a.»
«Desculpe.»
«Não tem que pedir desculpa, Maria.»
Olhou para mim, espantada.
«Sim, de facto sou a Maria. António... Penso que posso tratá-lo assim.»
«Claro.»
«O Mário falou-me muito de si. Vocês eram muito amigos, disse-o mais que uma vez.»
Éramos amigos e confidentes. Não havia nada, julgava, que não soubesse dele. Da infância da criança que gostava muito de gatos, infância que passou a correr. Do seu protetor e conselheiro imaginário a quem deu o nome de Ernesto. Dos amores e desamores. Dos êxitos e fracassos da sua vida profissional. Dos jogos do casino e da revolta infrutífera. Dos encontros inesperados. Do paranormal que tratou por tu. Da Manuela que foi o grande amor da sua vida. Das histórias incríveis que inventou ou lhe foram contadas. E, finalmente, da Maria com olhos assustados de gazela que tinha agora na minha frente. Enfim, sabia quase tudo.
«Continue, Maria...»
«No dia em que apareceu em nossa casa...»
«O Mário também morava aqui?» interrompi-a.
«Porque pergunta?»
«Talvez um ano depois de a conhecer disse-me que ia sair de casa e assim foi. Com ele foram todos os tarecos que não eram muitos. Nesse tempo gostava de espaços livres.»
Demorou a responder.
«Está a querer saber demais da minha vida!»
Só a Maria teria este comentário.
«Vamos lá, Maria, o Mário contou-me muitas coisas sobre si mas agora reparo numa coisa...»
«Não estou a perceber.»
Tentei acertar no escuro.
«Ele também omitiu muito.»
«E posso saber o quê?»
«O que aconteceu entre vós depois da visita que ele fez ao laboratório de análises. Contou-me até que a Maria foi ingrata.»
«Não o posso negar.»
«O que aconteceu mais tarde entre vocês?»
Tento descobrir nas entrelinhas uma pista que me conduza a ele. As últimas palavras parecem dizer que não vai suportar viver sem novas histórias, reais, adornadas, ou mesmo criadas pela sua imaginação. Por outro lado, há o dinheiro que finalmente ganhou no jogo e que pode servir realizar algum sonho oculto.
Fiquei para aqui sem ação e nada fiz mais que lamentar o seu desaparecimento.
E se no casino procurar chegar à fala com um ou dois amigos do Mário e até com fiscais e chefes de sala que mais de perto seguiram os seus passos?
Sinto uma especial alegria que me faz rir de gozo. O nó cego que deu no casino ao grupo mafioso e também ao casino. O problema é que esta história não é real. Na verdade "O nó cego" nunca aconteceu.
"Para o sítio onde vou ninguém me pode encontrar."
Esta frase é enigmática.
Que sítio é esse onde ninguém o pode encontrar?
Para já, acho premente falar com a Mónica. Tenho a certeza que não me contou tudo o que sabia acerca do Mário e da Maria.
Há mais alguém que sabe, mas esse alguém é uma coisa ainda mais secreta e volátil que o desejo de secretismo da Maria.
O mistério adensa-se. Aqui estou de regresso à Estrada de Benfica. Caminho no sentido poente-nascente e tenho à vista a tabacaria onde o Mário costumava entregar alguns boletins das sociedades falhadas de totoloto. Aliás, bem podia estar quieto pois nunca teve sorte ao jogo e sabia disso. Perdeu tempo, paciência e dinheiro. Quanto aos sócios, estes perderam apenas dinheiro visto que era ele quem preenchia os boletins com apostas de um sistema que julgava ser infalível se fossem concretizadas determinadas condições. E as condições nunca aconteceram.
Já saí da Estrada de Benfica e estou a meia dúzia de metros do prédio onde mora a Mónica, a amiga da Maria. Olho com atenção para as proximidades da porta e não vejo ninguém a meter a chave à porta. Seria demasiada coincidência repetir-se a situação da outra vez.
Abro a porta da rua. Não entro logo. Espero um pouco. Afinal não é verdade que não haja uma sem duas (invenção minha, pois o ditado prediz que não há duas sem três). Lá me decido entrar. Pouco depois estou junto à porta da entrada. Tenho a chave na mão, mas hesito. Abro não abro. Toco a campainha não toco. As chaves que a Mónica deixou em cima do papel manuscrito não eram senão um convite para entrar. Mas talvez porque não houvesse alguém em casa, o que significava que a casa poderia estar desabitada. Ao mesmo tempo não entendia a razão porque uma mulher me drogou para logo a seguir desaparecer.
Será que a Mónica teve algum contacto com que não contava e foi obrigada a desaparecer?
Continuava a dúvida, pois podia ter falado comigo no próprio dia. Ou melhor, é certo que falou, mas ficaram muitas coisas por dizer.
Resolvi premir a campainha. Pouco depois ouvi uma voz:
«Quem é?»
Bati levemente com os nós dos dedos. A porta abriu-se quase de imediato.
«Desculpe, já cá estou em cima.»
«Ah sim.»
Bem via, claro.
«Vinha falar com a Mónica.»
«E é o senhor...?»
«António Ildefonso.»
«Muito prazer. Eu sou a Maria João. Faz favor de entrar. Ela deve estar a chegar.»
Tinha cabelos compridos, próprios para se soltarem ao vento. Esse pormenor pôs-me alerta.
Encaminhou-me para a sala que já conhecia. Aliás, aquela casa já não tinha segredos para mim.
«Faz favor de sentar-se.»
Aguardei que ela se sentasse. Mandavam as boas regras de educação.
«Bebe alguma coisa? Uma cerveja... um chá...?» perguntou, deixando ver uns olhos muito abertos que emprestavam uma expressão algo indecisa.
Não pude evitar um sorriso de desconforto.
«Não, muito obrigado. Almocei há pouco tempo e de certeza que não me vai cair bem.»
«Também não gosto de beber a seguir às refeições. Bom, vou repetir-me. Conforme já disse, a Mónica não deve tardar. O senhor é o amigo do Mário, não é?»
«É verdade. Conhece-o?»
«Bom... vagamente. Isto é, só de nome.»
Ouvi o bater de uma porta a fechar-se e depois o ruído de passos apressados no exterior.
«A Mónica a sair!» pensei. «Mas que se passa aqui, António?»
Não consegui evitar virar-me para o lado da saída, embora a dita saída fosse outra. A minha inquietação não passou despercebida à Maria dos olhos castanhos, muito abertos.
«Não se assuste. É a vizinha do lado. Usa saltos altos que fazem um pouco de barulho. Então, quando regressa a altas horas.» Como ela sabia mentir muito bem!
«É pouco agradável ser acordado. Mas diga-me uma coisa...»
«Sim?»
Tinha que aproveitar a oportunidade.
«Este andar só tem dois fogos, não é?»
Foi a sua vez de mostrar inquietação.
«Sim. Porque pergunta?»
«Já vai saber.»
Levantei-me e dirigi-me para o porta que comunicava com o outro apartamento.
«Se eu abrir, o que vai acontecer?»
«Por favor não faça isso!»
«A sua amiga foi imprevidente. O nervosismo denunciou-a.»
«Desculpe.»
«Não tem que pedir desculpa, Maria.»
Olhou para mim, espantada.
«Sim, de facto sou a Maria. António... Penso que posso tratá-lo assim.»
«Claro.»
«O Mário falou-me muito de si. Vocês eram muito amigos, disse-o mais que uma vez.»
Éramos amigos e confidentes. Não havia nada, julgava, que não soubesse dele. Da infância da criança que gostava muito de gatos, infância que passou a correr. Do seu protetor e conselheiro imaginário a quem deu o nome de Ernesto. Dos amores e desamores. Dos êxitos e fracassos da sua vida profissional. Dos jogos do casino e da revolta infrutífera. Dos encontros inesperados. Do paranormal que tratou por tu. Da Manuela que foi o grande amor da sua vida. Das histórias incríveis que inventou ou lhe foram contadas. E, finalmente, da Maria com olhos assustados de gazela que tinha agora na minha frente. Enfim, sabia quase tudo.
«Continue, Maria...»
«No dia em que apareceu em nossa casa...»
«O Mário também morava aqui?» interrompi-a.
«Porque pergunta?»
«Talvez um ano depois de a conhecer disse-me que ia sair de casa e assim foi. Com ele foram todos os tarecos que não eram muitos. Nesse tempo gostava de espaços livres.»
Demorou a responder.
«Está a querer saber demais da minha vida!»
Só a Maria teria este comentário.
«Vamos lá, Maria, o Mário contou-me muitas coisas sobre si mas agora reparo numa coisa...»
«Não estou a perceber.»
Tentei acertar no escuro.
«Ele também omitiu muito.»
«E posso saber o quê?»
«O que aconteceu entre vós depois da visita que ele fez ao laboratório de análises. Contou-me até que a Maria foi ingrata.»
«Não o posso negar.»
«O que aconteceu mais tarde entre vocês?»
Demorou a responder.
«De facto o Mário morou aqui. Mas só alguns anos depois de nos termos conhecido.»
«De facto o Mário morou aqui. Mas só alguns anos depois de nos termos conhecido.»
«E onde morou entretanto?» perguntei aos meus botões.
Uma cortina já estava descerrada.
«Digamos... dez anos?»
Pareceu fazer contas.
«Doze anos.»
«E agora?»
«Desapareceu. Não sei dele há três meses...»
«O nó cego!» pensei.
«E eu vim à sua procura. Uma pergunta que me ocorre: antes de desaparecer ausentou-se por alguns dias?»
«Sim. Mas nunca disse onde esteve.»
Uma cortina já estava descerrada.
«Digamos... dez anos?»
Pareceu fazer contas.
«Doze anos.»
«E agora?»
«Desapareceu. Não sei dele há três meses...»
«O nó cego!» pensei.
«E eu vim à sua procura. Uma pergunta que me ocorre: antes de desaparecer ausentou-se por alguns dias?»
«Sim. Mas nunca disse onde esteve.»
Mário previu que a Maria ia levar uma vida secreta e acertou. Mas a dois, em que um dos dois era ele.
«Quero explicar-lhe toda esta trapalhada em que a minha amiga se envolveu consigo. Devemos-lhe uma explicação. A mensagem que recebeu tem a ver com um pedido que o Mário me fez um dia antes de desaparecer. Relacionava-se com um caderno manuscrito que devia ser entregue a si.»
Alterei o fio do diálogo.
«Leu o conteúdo desse caderno?»
«Apenas umas partes.»
«Porquê, só umas partes? Segundo o Mário, a Maria sempre se interessou por casos paranormais. Aliás, penso que o paranormal foi o muito que os uniu...»
Estava quase a adormecer quando me lembrei do que tinha acontecido na véspera e durante a aula de Formação. Eu e a Maria, sentados à secretária, conversávamos sobre não sei o quê. Outra colega dava uma aula sobre saúde.
De repente, parece que fiquei com o olhar estranho, parado, ao mesmo tempo que disse para a Maria, sem me virar:
«Elas não estão!»
Ao mesmo tempo conseguia ouvir o que se passava na aula, que já ia a meio. A outra colega esclarecia os alunos sobre os diversos métodos contracetivos.
Estaria a falar do aborto?
O aborto não era um método contracetivo. Mas vinha depois, como ponto final ou caso arrumado.
«Quem são elas?»
«Elas!» foi a minha resposta.
A Maria ficou atónita a ver-me olhar, com ar ausente, para um local indefinido do lado esquerdo. Preocupou-se comigo. Via que eu não estava bem.
Quando regressei a mim, voltou a fazer a pergunta e esclareci logo que elas eram a Lisete e a Cátia, por coincidência colegas de mesa. Não me lembro do que pensei naqueles momentos em que estive ausente para a Maria e bem gostava de lembrar-me. Se é que pensei em alguma coisa. Disse elas, mas os meus olhos fixaram-se no lugar vazio da Cátia. Disso tinha a certeza. Havia qualquer problema com ela. Como consegui captar que estava com problemas muito graves?
Depois aconteceu o que já relatei e contei-lhe o drama da Cátia. A Maria associou logo o caso com o meu momento de transe daquela noite e arregalou os olhos de espanto. Confessou que começava a acreditar naquelas estranhas histórias que lhe contava nas aulas de Formação. Na mulher de vermelho, principalmente.
«Ah!, a mulher de vermelho. Porquê eu?»
«Estás a falar de quem?»
«Da Cátia, Maria! Com três mulheres suas professoras, porquê eu?»
«És uma pessoa de bem.»
Mas quais eram as minhas verdadeiras intenções em relação à Cátia?
Aí batia o ponto. Estava convencido que só queria ajudar, mas não podia esquecer-me que ela era uma mulher atraente e muito acessível. Conhecia o seu passado recente. A sua colega de carteira tinha feito algumas insinuações, mas também não podia deitar muitas pedras. Em fins de setembro, quando o calor ainda apertava, costumava usar um vestido muito decotado. Acontecia que chamava-me muitas vezes para esclarecer dúvidas ligadas aos exercícios e, quando eu estava junto dela, baixava-se muito e via-lhe os seios, sem soutien a cobri-los. Claro que tentava não me desconcentrar, mas não era nenhum santo, se é que os santos podiam deixar ler o que ia no seu consciente em momentos parecidos.
«Elas não estão!»
Estranha coincidência. De certeza que a Cátia estava a pensar em mim naquele momento em que fiquei ausente.
Dei conta que a Maria olhava-me com um certo ar intrigado.
«Que aconteceu agora?»
«Desculpa fazer-te esta pergunta: tens mesmo dons?»
Sorri.
«Pressentimentos. Mas nunca posso fazer nada. As coisas acontecem e eu sou um simples “canal de comunicação”...»
«E a mulher de vermelho?»
«Foi uma coisa diferente!»
«Bom, tudo tem uma explicação e o desinteresse por essa história não foge à regra. Acontece que o Mário perdeu os dons há muito. Pude constatar principalmente durante o ano em que fomos colegas das mesmas turmas. Aliás, a perda do dom só lhe fez bem. Digamos que o tornou mais terreno. Mais realista. Essa história que vem no caderno vem corroborar a minha convicção. Acredita em toda aquela sequência de acontecimentos estranhos?»
«Quero explicar-lhe toda esta trapalhada em que a minha amiga se envolveu consigo. Devemos-lhe uma explicação. A mensagem que recebeu tem a ver com um pedido que o Mário me fez um dia antes de desaparecer. Relacionava-se com um caderno manuscrito que devia ser entregue a si.»
Alterei o fio do diálogo.
«Leu o conteúdo desse caderno?»
«Apenas umas partes.»
«Porquê, só umas partes? Segundo o Mário, a Maria sempre se interessou por casos paranormais. Aliás, penso que o paranormal foi o muito que os uniu...»
Estava quase a adormecer quando me lembrei do que tinha acontecido na véspera e durante a aula de Formação. Eu e a Maria, sentados à secretária, conversávamos sobre não sei o quê. Outra colega dava uma aula sobre saúde.
De repente, parece que fiquei com o olhar estranho, parado, ao mesmo tempo que disse para a Maria, sem me virar:
«Elas não estão!»
Ao mesmo tempo conseguia ouvir o que se passava na aula, que já ia a meio. A outra colega esclarecia os alunos sobre os diversos métodos contracetivos.
Estaria a falar do aborto?
O aborto não era um método contracetivo. Mas vinha depois, como ponto final ou caso arrumado.
«Quem são elas?»
«Elas!» foi a minha resposta.
A Maria ficou atónita a ver-me olhar, com ar ausente, para um local indefinido do lado esquerdo. Preocupou-se comigo. Via que eu não estava bem.
Quando regressei a mim, voltou a fazer a pergunta e esclareci logo que elas eram a Lisete e a Cátia, por coincidência colegas de mesa. Não me lembro do que pensei naqueles momentos em que estive ausente para a Maria e bem gostava de lembrar-me. Se é que pensei em alguma coisa. Disse elas, mas os meus olhos fixaram-se no lugar vazio da Cátia. Disso tinha a certeza. Havia qualquer problema com ela. Como consegui captar que estava com problemas muito graves?
Depois aconteceu o que já relatei e contei-lhe o drama da Cátia. A Maria associou logo o caso com o meu momento de transe daquela noite e arregalou os olhos de espanto. Confessou que começava a acreditar naquelas estranhas histórias que lhe contava nas aulas de Formação. Na mulher de vermelho, principalmente.
«Ah!, a mulher de vermelho. Porquê eu?»
«Estás a falar de quem?»
«Da Cátia, Maria! Com três mulheres suas professoras, porquê eu?»
«És uma pessoa de bem.»
Mas quais eram as minhas verdadeiras intenções em relação à Cátia?
Aí batia o ponto. Estava convencido que só queria ajudar, mas não podia esquecer-me que ela era uma mulher atraente e muito acessível. Conhecia o seu passado recente. A sua colega de carteira tinha feito algumas insinuações, mas também não podia deitar muitas pedras. Em fins de setembro, quando o calor ainda apertava, costumava usar um vestido muito decotado. Acontecia que chamava-me muitas vezes para esclarecer dúvidas ligadas aos exercícios e, quando eu estava junto dela, baixava-se muito e via-lhe os seios, sem soutien a cobri-los. Claro que tentava não me desconcentrar, mas não era nenhum santo, se é que os santos podiam deixar ler o que ia no seu consciente em momentos parecidos.
«Elas não estão!»
Estranha coincidência. De certeza que a Cátia estava a pensar em mim naquele momento em que fiquei ausente.
Dei conta que a Maria olhava-me com um certo ar intrigado.
«Que aconteceu agora?»
«Desculpa fazer-te esta pergunta: tens mesmo dons?»
Sorri.
«Pressentimentos. Mas nunca posso fazer nada. As coisas acontecem e eu sou um simples “canal de comunicação”...»
«E a mulher de vermelho?»
«Foi uma coisa diferente!»
«Bom, tudo tem uma explicação e o desinteresse por essa história não foge à regra. Acontece que o Mário perdeu os dons há muito. Pude constatar principalmente durante o ano em que fomos colegas das mesmas turmas. Aliás, a perda do dom só lhe fez bem. Digamos que o tornou mais terreno. Mais realista. Essa história que vem no caderno vem corroborar a minha convicção. Acredita em toda aquela sequência de acontecimentos estranhos?»
«Quem conhece o Mário normalmente não sabe onde está o seu real ou o seu fictício. Há exceções, como o caso dos "Mundos Alternantes". Mas agora a sua última história deixa-me a pensar. E o seu desaparecimento ainda vai acentuar mais as dúvidas suscitadas. Não sei. Francamente não sei, Maria. Preciso de pensar.»
«Pois eu tenho a certeza que essa história é toda ela fruto da sua imaginação e, ao mesmo tempo, uma forma de concretizar virtualmente uma vingança.»
«Vingança?»
Levantou-se.
«Vou buscar duas cervejas...» Sorriu com uma certa ironia. «Mas descanse que trago as cervejas com o saca cápsulas!»
Retribuí o sorriso.
«E a propósito, vai contar-me tim-tim por tim-tim toda essa história surrealista que culminou com o meu apagamento até ao dia seguinte.»
«Fique descansado, António. Mas já volto.»
«E faça o favor de não desaparecer.»
Pouco depois estava de volta com um tabuleiro onde vinham as garrafas, os copos e o saca-rolhas.
«Como vê...»
«Por acontecer uma vez não acontece segunda.»
«Claro.»
Sacou as cápsulas das garrafas e olhou para mim. Acenei afirmativamente, deixando que deitasse a cerveja no copo. A técnica era idêntica à minha. Copo inclinado e líquido a escorrer lentamente pela parede interior do copo.
«Estou a fazer bem?»
«Muito bem.»
Nesse dia o Mário tinha aparecido mais excitado do que o habitual. Trazia consigo o caderno manuscrito.
«Pois eu tenho a certeza que essa história é toda ela fruto da sua imaginação e, ao mesmo tempo, uma forma de concretizar virtualmente uma vingança.»
«Vingança?»
Levantou-se.
«Vou buscar duas cervejas...» Sorriu com uma certa ironia. «Mas descanse que trago as cervejas com o saca cápsulas!»
Retribuí o sorriso.
«E a propósito, vai contar-me tim-tim por tim-tim toda essa história surrealista que culminou com o meu apagamento até ao dia seguinte.»
«Fique descansado, António. Mas já volto.»
«E faça o favor de não desaparecer.»
Pouco depois estava de volta com um tabuleiro onde vinham as garrafas, os copos e o saca-rolhas.
«Como vê...»
«Por acontecer uma vez não acontece segunda.»
«Claro.»
Sacou as cápsulas das garrafas e olhou para mim. Acenei afirmativamente, deixando que deitasse a cerveja no copo. A técnica era idêntica à minha. Copo inclinado e líquido a escorrer lentamente pela parede interior do copo.
«Estou a fazer bem?»
«Muito bem.»
Nesse dia o Mário tinha aparecido mais excitado do que o habitual. Trazia consigo o caderno manuscrito.
«Credo! Nem dás um beijo às tuas amigas?»
Pareceu não ouvir a Mónica, preocupando-se mais em espreitar a uma das janelas.
«Estás a ser perseguido, ou quê, Mário?»
Mais descansado, beijou a Maria e a Mónica. Depois sentou-se. Elas já estavam sentadas.
«Desculpem. É que estou metido numa alhada das grandes.»
«Foste para a cama com um travesti.» Ironizou a Mónica.
«E vens dizer-nos com toda a lata que...»
«Não brinques com coisas sérias, Mónica. Estou mesmo metido numa alhada. Mas está tudo controlado» olhou para a janela. «Acreditem.»
«Que se passa?» perguntou a Maria, algo preocupada.
Levantou-se e debruçou-se sobre ela, beijando-a, ao de leve, nos lábios.
«Que beijo tão seco, Mário!»
«Mónica!»
«Pronto, Maria.»
«Este caderno é para o meu amigo António.»
«Mas não disseste que ele não queria escrever mais histórias tuas?»
«E é verdade. Parece que vai escrever para crianças. Conheço-o bem e não acredito que o faça. Mas não interessa. Acreditem que não vai perder esta história.»
«Podemos ler?» perguntou a Maria.
«Claro que podem. Agora tenho que sair.»
«Espera lá, meu menino. E como é que contactamos com o teu amigo?»
«Ah é verdade. Esferográfica e papel...»
«Ora vejam o sultão das Arábias!»
Não ligou ao comentário. Estava demasiado preocupado para esboçar um mero sorriso.
«Pronto. Está aqui o e-mail do António. Arranjem forma dele receber o caderno sem poder fazer perguntas.»
«Porquê?»
«Quero-o longe.»
«Por causa de não querer escrever mais histórias tuas?»
«Pode ser.»
Pareceu não ouvir a Mónica, preocupando-se mais em espreitar a uma das janelas.
«Estás a ser perseguido, ou quê, Mário?»
Mais descansado, beijou a Maria e a Mónica. Depois sentou-se. Elas já estavam sentadas.
«Desculpem. É que estou metido numa alhada das grandes.»
«Foste para a cama com um travesti.» Ironizou a Mónica.
«E vens dizer-nos com toda a lata que...»
«Não brinques com coisas sérias, Mónica. Estou mesmo metido numa alhada. Mas está tudo controlado» olhou para a janela. «Acreditem.»
«Que se passa?» perguntou a Maria, algo preocupada.
Levantou-se e debruçou-se sobre ela, beijando-a, ao de leve, nos lábios.
«Que beijo tão seco, Mário!»
«Mónica!»
«Pronto, Maria.»
«Este caderno é para o meu amigo António.»
«Mas não disseste que ele não queria escrever mais histórias tuas?»
«E é verdade. Parece que vai escrever para crianças. Conheço-o bem e não acredito que o faça. Mas não interessa. Acreditem que não vai perder esta história.»
«Podemos ler?» perguntou a Maria.
«Claro que podem. Agora tenho que sair.»
«Espera lá, meu menino. E como é que contactamos com o teu amigo?»
«Ah é verdade. Esferográfica e papel...»
«Ora vejam o sultão das Arábias!»
Não ligou ao comentário. Estava demasiado preocupado para esboçar um mero sorriso.
«Pronto. Está aqui o e-mail do António. Arranjem forma dele receber o caderno sem poder fazer perguntas.»
«Porquê?»
«Quero-o longe.»
«Por causa de não querer escrever mais histórias tuas?»
«Pode ser.»
«Pode ser o quê?»
«Isso.»
«Obrigada. Fiquei na mesma.»
«E agora, sim. Tenho que ir embora.»
«Fica!»
Levantou-se e abraçou primeiro a Mónica.
«Credo! Parece que nunca mais nos vemos!» comentou esta, preocupada.
De seguida olhou para a Maria.
«Desculpa.»
«Porquê?»
«Por nada.» Sorriu.
Apertou-a muito nos braços e beijou-a.
«Finalmente!» exclamou a Mónica.
«Cala-te! O homem está com os olhos brilhantes.»
«Queres ir ter comigo quando tudo estiver resolvido?»
Fitou-o. De repente sentiu-se triste.
«Tens mesmo que ir, Mário?»
«Sim, acredita que sim.»
«Não vou ser capaz!»
«É definitivo?»
«Sim.»
Ao fim de alguns anos o Mário tinha conseguido montar o cavalo da coragem. O edílio com a Maria estava aceso como as paixões que ardiam sem se ver. Mas agora surgia aquele imprevisto. Uma vida nova esperava por ele. A ser verdade, com muito dinheiro à mistura. Mas sem a sua Maria.
«Se o Mário contactar, a Maria vai ter com ele?»
«Não sei. Sinceramente não sei.»
«E as chaves?»
«Quais chaves?»
«As chaves que me deixaram com o bilhete e o caderno.»
Franziu o sobrolho. Mesmo assim não perdeu a beleza que irradiava. O parvo do Mário foi sozinho à procura de um paraíso. Deviam ter ido os dois. Montados no cavalo da coragem.
«Isso são coisas da Mónica. Provavelmente simpatizou consigo.»
Não comentei.
«Bom, parece que está tudo esclarecido. E a conclusão também é óbvia. Não sabemos para onde foi o Mário. Há ainda uma hipótese. Se não der resultado, então não nos resta senão aguardar.»
Levantei-me.
«É preciso acreditar!»
Isso dizia a cigana que jogava nas máquinas dos corações dourados (6). A princípio, tudo bem. Ganhou bom dinheiro. Depois, começou a perder. E um dia desapareceu, levada pelo vento sul.
Não havia ninguém que conseguisse dar a volta àquele sistema maldito de uma vez por todas?
«Não espera pela Mónica?»
«Ela fugiu à socapa.»
«Há um motivo, António.»
«E qual é?»
«Eu precisava de falar consigo à vontade. Na verdade já tínhamos combinado antes.»
«Vou ao quiosque comprar cigarros.»
«Você não fuma. Aliás, não há qualquer quiosque nas redondezas.»
«Mais uma razão para não voltar.» Tentei ser irónico.
«Não tem graça, António. A Mónica até gostou de si.»
«Vou pensar. Não me comprometo. Talvez o quiosque não esteja assim tão distante. Adeus, Maria. Trate de ser feliz. O Mário é bom rapaz.»
«Os homens são todos bons rapazes a princípio.»
«Aposte nele.»
«Já perdi a aposta.»
«Vá lá, Maria...»
«O meu receio é que a nossa utopia não se concretize. Tudo tem um tempo.»
«A esperança é a última coisa a morrer. Uma frase muito batida, mas que assenta sempre bem, como um casaco costurado por um bom alfaiate. E...»
Não completei o que ia dizer. Acabava de ouvir um rodar de chave.
Voltei-me a tempo de ver a porta a abrir-se.
«Desculpem. Pensava que...»
«A pensar morreu o burro. A burra, neste caso» comentou a Maria. «Ia sair neste momento. Não fiques para aí especada. Cumprimenta o teu novo amigo, Mónica. E por favor não o drogues outra vez!»
«Isso.»
«Obrigada. Fiquei na mesma.»
«E agora, sim. Tenho que ir embora.»
«Fica!»
Levantou-se e abraçou primeiro a Mónica.
«Credo! Parece que nunca mais nos vemos!» comentou esta, preocupada.
De seguida olhou para a Maria.
«Desculpa.»
«Porquê?»
«Por nada.» Sorriu.
Apertou-a muito nos braços e beijou-a.
«Finalmente!» exclamou a Mónica.
«Cala-te! O homem está com os olhos brilhantes.»
«Queres ir ter comigo quando tudo estiver resolvido?»
Fitou-o. De repente sentiu-se triste.
«Tens mesmo que ir, Mário?»
«Sim, acredita que sim.»
«Não vou ser capaz!»
«É definitivo?»
«Sim.»
Ao fim de alguns anos o Mário tinha conseguido montar o cavalo da coragem. O edílio com a Maria estava aceso como as paixões que ardiam sem se ver. Mas agora surgia aquele imprevisto. Uma vida nova esperava por ele. A ser verdade, com muito dinheiro à mistura. Mas sem a sua Maria.
«Se o Mário contactar, a Maria vai ter com ele?»
«Não sei. Sinceramente não sei.»
«E as chaves?»
«Quais chaves?»
«As chaves que me deixaram com o bilhete e o caderno.»
Franziu o sobrolho. Mesmo assim não perdeu a beleza que irradiava. O parvo do Mário foi sozinho à procura de um paraíso. Deviam ter ido os dois. Montados no cavalo da coragem.
«Isso são coisas da Mónica. Provavelmente simpatizou consigo.»
Não comentei.
«Bom, parece que está tudo esclarecido. E a conclusão também é óbvia. Não sabemos para onde foi o Mário. Há ainda uma hipótese. Se não der resultado, então não nos resta senão aguardar.»
Levantei-me.
«É preciso acreditar!»
Isso dizia a cigana que jogava nas máquinas dos corações dourados (6). A princípio, tudo bem. Ganhou bom dinheiro. Depois, começou a perder. E um dia desapareceu, levada pelo vento sul.
Não havia ninguém que conseguisse dar a volta àquele sistema maldito de uma vez por todas?
«Não espera pela Mónica?»
«Ela fugiu à socapa.»
«Há um motivo, António.»
«E qual é?»
«Eu precisava de falar consigo à vontade. Na verdade já tínhamos combinado antes.»
«Vou ao quiosque comprar cigarros.»
«Você não fuma. Aliás, não há qualquer quiosque nas redondezas.»
«Mais uma razão para não voltar.» Tentei ser irónico.
«Não tem graça, António. A Mónica até gostou de si.»
«Vou pensar. Não me comprometo. Talvez o quiosque não esteja assim tão distante. Adeus, Maria. Trate de ser feliz. O Mário é bom rapaz.»
«Os homens são todos bons rapazes a princípio.»
«Aposte nele.»
«Já perdi a aposta.»
«Vá lá, Maria...»
«O meu receio é que a nossa utopia não se concretize. Tudo tem um tempo.»
«A esperança é a última coisa a morrer. Uma frase muito batida, mas que assenta sempre bem, como um casaco costurado por um bom alfaiate. E...»
Não completei o que ia dizer. Acabava de ouvir um rodar de chave.
Voltei-me a tempo de ver a porta a abrir-se.
«Desculpem. Pensava que...»
«A pensar morreu o burro. A burra, neste caso» comentou a Maria. «Ia sair neste momento. Não fiques para aí especada. Cumprimenta o teu novo amigo, Mónica. E por favor não o drogues outra vez!»
Que nó cego?
São seis da tarde. Sinto-me um estranho numa terra estranha. Nada tenho a ver com esta alienação que sinto existir para cada lado que me vire. Ao mesmo tempo, sem justificação, as pessoas protestam, dão murros nos vidros das máquinas, queixam-se ao vizinho do lado que responde na mesma moeda, ameaçam fazer isto e aquilo, discutem com um jogador que lhes tomou a máquina de assalto porque se esqueceram de deixar a mesma marcada quando foram trocar um ticket e aproveitaram depois para ir à casa de banho, pedem aos fiscais para lhes darem melhor jogo. Eu sei lá!
Pegando nesta última deixa que acabei de ouvir, não acredito que os programadores tenham facilidade em alterarem as séries. Penso que não. Não vou por aí. Mas o Mário já me explicou ter descoberto quando uma série é substituída por outra. E é aí que deve haver uma forma de substituir uma por outra e tal pode ser feito de um momento para o outro. Quer dizer, antes de terminar a série, intromete-se outra, mais ou menos favorável. Assim se consegue justificar a sorte de uns e o azar de outros.
Estou dentro desta engrenagem porque fui eu quem escreveu as histórias que o Mário me contou e também recolhi alguns ensinamentos com conversas que os dois tivemos. Na prática, estou verde, sem a mínima experiência para enfrentar uma máquina. Felizmente, acrescento. A minha missão aqui é outra. Encontrar um pequeno sinal que me permita seguir ao encontro do Mário.
Já fiz um resumo das chamadas zonas quentes onde o Mário é conhecido. O Fort Knox e as máquinas de dez cêntimos onde se situam os célebres e badalados cifrões. É aí que devo centrar a minha atenção.
Começo pelo Fort Knox. Claro que não vou jogar. Para começar, vou procurar o Vítor. Melhor do que pôr-me a adivinhar é perguntar a alguém que não esteja a jogar e que acompanhe a par e passo o que se passa. Talvez a mulher idosa vestida de negro que veio de trocar um ticket de um utente e se sentou numa cadeira pertencente a uma máquina já fora da zona onde deve estar o Vítor.
«Desculpe, tenho um recado para dar a uma pessoa que deve estar aqui perto. Só sei que se chama Vítor.»
Mira-me de alto a baixo, algo desconfiada. Deve pensar que sou um inspetor dos jogos e é talvez por isso que demora a responder. E, a propósito de inspetores, ingenuidade a sua imaginar que a inspeção desce à praça.
«Esteja à vontade. É só um recado que quero dar ao Vítor.»
«Está bem. É o homem de camisola verde que está a jogar na máquina catorze.»
«Obrigado.»
Máquina catorze?
Localizo-o pela camisola e não pelo número da máquina.
«Olhe, acabou de ir ao cofre.»
O Vítor levantou-se e teceu um comentário para uma mulher ao lado, que riu como resposta. Agora vai carregar em dois quadrados. Não. Fica à espera. Já sei. Os contadores dos prémios não param. Vou aproveitar para falar com ele.
«Desculpe, posso falar consigo ou é má altura?»
«À vontade, amigo. Antes dos quarenta euros no cobre eu não ataco. O dinheiro faz-me falta.»
«Bem sei.»
«Como assim?»
Ignorei a pergunta. Não estava para explicações exaustivas.
«Quero falar-lhe sobre um amigo que se chama Mário. Ele tem vindo cá?»
Olha para a sua direita e aponta:
«O Mário está na última máquina dos cavalos. A vinte.»
Acompanho o seu gesto. Negativo.
«Aquele não é o Mário que conheço. É um indivíduo que é muito conhecido dos chefes de sala e da inspeção. Acho que já foi seis vezes apresentar queixa e numa delas até mandou fechar a máquina em que jogava.»
«Ah! É o doutor Mário. De nada vale as pessoas irem à inspeção reclamar. O sistema é muito complexo, sabe? Penso que estão todos feitos. Administradores e inspetores. Isto é tudo um regabofe.»
«Como assim?»
«É o que digo. Quanto ao seu amigo, não o vejo há uns tempos. Mas já falei demais sobre os podres do casino. Aqui há ouvidos em todo o lado. E agora vou atacar o cofre.»
«Dois, três meses?»
«Mais ou menos isso.»
Era o que queria ouvir.
«Obrigado e boa sorte.»
O Vítor já estava concentrado no jogo e eu afastei-me.
«E agora?» interroguei os meus botões.
Claro que nada me disseram. Não tinha muita escolha. As máquinas dos cifrões eram o próximo destino.
«Primeiro vou beber uma imperial.»
Já com o copo meio cheio na mão encaminhei-me para o local onde julgava estarem as ditas máquinas.
As máquinas estavam ocupadas, mas em duas delas jogava o mesmo utente. Aproximei-me mais. Enquanto os outros jogavam 9x1, ele jogava mais forte, ou seja, 9x5, a aposta máxima. E estava no bónus numa delas. Já fizera trinta e cinco jogadas e tinha vinte e cinco para jogar. Não! Mais três cifrões e uma inevitável caminhada para o jackpot.
«Com este é o terceiro hoje.»
Acendeu-se uma luz.
Voltei-me para o indivíduo que me informara do êxito do jogador que calmamente jogava nas duas máquinas como se estivesse a comer alcagoitas e a beber uma bejeca.
«Não sou desta guerra. Caí aqui de paraquedas só por curiosidade. Mas diga-me, é habitual este indivíduo ter tanta sorte?»
«De facto assim parece ser. Mas o doutor Vaz que se cuide. Eles não dormem e a sorte vai mudar em breve. É o costume.»
«Disse... doutor Vaz?»
«Exato. É um industrial de pregos e parafusos. Tem muito dinheiro para investir, mas está a apostar no cavalo errado. Eu já tenho muitos anos disto. Infelizmente desgracei-me no vício deste jogo merdoso.»
«Vaz. Ele chama-se Vaz!»
«Conhece-o?»
«Não, não. Mas diga-me, por acaso este senhor não teve qualquer problema há uns tempos?»
«Que eu saiba, não. Só se ausentou por uns dias. E quem é o senhor? Não me diga que veio de propósito para assistir ao show do doutor Vaz?»
«Por acaso não. Na realidade vim à procura de um amigo que também costuma jogar nestas máquinas. Talvez me possa dar uma dica. Imagino que frequenta este casino há muito.»
«Acertou. Infelizmente fui apanhado pelo polvo.»
«Polvo?»
«A merda do vício. Tem muitos braços para nos agarrarem.»
«Compreendo. Talvez que conheça o meu amigo. Mas primeiro. vamos beber uma imperial? E já agora... Chamo-me Ildefonso.»
«E eu Francisco.»
«Francisco?!...»
O que tínhamos para falar não se coadunava com aquele ambiente barulhento de balcão.
«Não haverá um sítio mais calmo para conversarmos, amigo Francisco?»
«Mesmo na nossa frente, ao fundo, há umas mesas.»
«Estou a ver. Vamos então.»
Não tivemos dificuldade em ocupar uma mesa. Estavam todas vagas. Aliás, compreendia. Dali não se inspirava o ar viciado das máquinas.
«E então, meu amigo?»
«Bom o que tenho a contar-lhe relaciona-se com um amigo que desapareceu. Já segui todas as pistas possíveis e impossíveis e o resultado é sempre o mesmo. Desapareceu levado pelo vento ou por algo pior. Temo pela sua vida.»
O homem cofiou o bigode farfalhudo e fixou o olhar na minha direção.
«E como se chama o seu amigo?»
«Mário.»
«O doutor Mário?»
«Sim.»
«É uma excelente pessoa e um lutador contra este sistema instalado. Precisávamos de muitos como ele...»
«Entre outras, tinha duas referências que considerava importantes. Ora a primeira falhou estrondosamente. Conhece o Vítor? O seu local permanente é o Fort Knox.»
Levantou o indicador direito para o teto.
«Não conheço eu outra pessoa! Desde já o aviso que é preciso ter cuidado com ele. É um indivíduo muito inteligente, mas sem alma. Por dinheiro é capaz de tudo. E acredite que joga com o dinheiro do casino. É dos poucos...» Interrompeu. «Mas o que tem a ver o Vítor com o seu amigo?»
«Acabou por dizer que não sabe dele há perto de três meses. O meu amigo dizia que o Francisco não parava por muito tempo num sítio, que circulava de um piso para o outro, que estava a par de tudo o que se passava no casino e que os dois eram dos poucos que acreditavam que havia manipulação no jogo. Principalmente nas máquinas. Que eram sempre os mesmos a ganhar.»
Segundo o Francisco, e não era novidade, o doutor Mário fora várias vezes apresentar queixa ao gabinete na inspeção e teve brutas discussões com fiscais e chefes de sala por causa destes afirmarem, com cinismo, que o jogo era aleatório, chegando ao ponto de lhe dizerem que ia ao casino porque queria. Ninguém o obrigava a ir. Aqueles grandes sacanas! Mas que ele não era jogador viciado, não. Antes eu conseguisse ser como ele. O jogo destruiu a sua vida. Teve uma boa posição numa empresa e foi despedido por causa do maldito vício do jogo. Havia muitos no casino que estavam na fossa como ele. Viviam das ofertas de alguns utentes generosos.
Deixei-o desabafar. Interiormente sentia-me bem como já há muito.
«Ele tem aparecido por cá?»
«Negativo.»
«E não lhe disse que ia ausentar-se?»
«Não.»
«Falavam com frequência?»
«Entre duas ou três cervejas, contava-me histórias incríveis, como de uma mulher de vermelho que veio de outra época. Anos trinta ou quarenta. Diga-me uma coisa, amigo Ildefonso. Ele é escritor?»
«Por contar histórias? Não.»
Ia confessar que o escritor era eu, mas calei-me.
«Sinto a falta dele. Mas agora me lembro. Dias antes de tirar um jackpot confessou-me que andava a estudar uma técnica.»
«Com recurso ao telemóvel?»
Abanou negativamente a cabeça.
«Nada disso. Até porque ele era contra os processos que alguns jogadores usavam para interferirem com as séries e aí entrava em cena o telemóvel. E até chegou a denunciá-los.»
«Andava a estudar uma técnica.» Pensei.
«Sim, porque o jogo não é aleatório. Disse-me mais que uma vez e explicou-me que existiam séries boas e séries más e aí é que residia verdadeiramente a manipulação do jogo. Até sabia quando a máquina mudava de uma série para outra.»
«Não sei o que hei de fazer mais...»
«Não desanime, meu bom amigo. Vai ver que um dia ele aparece.»
«Oxalá. Vamos a outra imperial?»
«Se não estou a pesar...»
«Claro que não. E um prego? O Mário disse-me que serviam aqui bons pregos.»
«Como o que o meu amigo quiser. Ainda a propósito do doutor Vaz...»
«Sim?»
«Os dois costumavam falar. Ouvi uma vez o seu amigo aconselhar o doutor a desistir quando sentisse a viragem.»
«A viragem?»
«Sim. Quando começasse a perder.»
Francisco meteu à boca metade da baguete que tinha, entre o miolo das duas partes previamente embebidas em molho com sabor a alho, o suculento e macio lombo, e deu-lhe uma dentada feroz de quem não comia desde a hora do almoço ou isso. Depois, pegou no guardanapo de papel e limpou os beiços, preparando-se para pegar no copo cheio de cerveja, dando algum tempo para deglutir aquele manjar do céu que tanto apreciava. Enquanto o imitava, não perdia de vista o ar de apreço que ele dava àquele conjunto perfeito pão/lombo/molho.
«Também penso o mesmo. Se a pessoa tem sorte deve pensar que ela não dura sempre.» Concordei.
Talvez o sabor a alho fosse excessivo.
«O Mário era bom jogador ou deixava-se levar pelo vício do jogo? Pelo que ele me contou, fiquei com a ideia que se continha, tal como os bons jogadores fazem. Mas gostava de ouvir a sua opinião.»
«Meu bom amigo, não jogo mais porque não tenho a mínima hipótese. Falta-me o pilim e sobra-me tempo para observar e fazer as minhas avaliações. Garanto-lhe que, no que me foi dado a ver, ele nunca se perdeu e esperou sempre por oportunidades que mais o favorecessem. E se não conseguiu foi porque o marginalizaram. Fecharam-lhe as máquinas. Aquele homem nunca se conformou com a injustiça que lhe estavam a fazer. Não se cansava de dizer que as máquinas estavam a ser manipuladas e que era seguido por bufos por todo o lado onde andasse. Mas pareceu-me que, nos últimos tempos, estava a ter algum êxito.»
«Tinha descoberto um sistema, não foi o que lhe disse?»
«Sim. Uma técnica. Foi na altura em que desapareceu. Logo quando as coisas lhe corriam bem. Já é preciso ter azar.»
«Não ouviu nenhum zunzum? O senhor que anda há muito por aqui e conhece meio mundo.»
Voltou-se para o meio prego e quase o fez desaparecer no interior cavernoso que logo se tornou escuro. De seguida nem esperou pelo guardanapo e levou o copo à boca. Eu também fazia pela vida com a minha outra parte.
«Há uma pessoa que nos pode ajudar. Talvez com um pouco de papel ele se descosa.»
«Quanto, amigo Francisco?»
«Cinquenta.»
«Bom. Cinquenta para ele e cinquenta para si. Mas não o gaste sem glória.»
«Obrigado, meu bom amigo. Prometo.»
De certeza que não era promessa de escuteiro.
«Vai tratar do assunto?»
«Não. Vamos.»
«Prefiro que seja o Francisco a falar sozinho com esse seu amigo.»
«Confia em mim?»
«Claro que confio. Entretanto fico a ver o jogo do doutor Vaz.»
Continuava a jogar em duas máquinas. Numa delas apostava em nove linhas e três créditos por linhas. Era um sinal que as coisas estavam a correr menos bem. Se fosse um jogador lógico era tempo de deixar as máquinas dos cifrões e procurar outras. Ou então, ainda o mais razoável, regressar a casa. Mas não.
Com a fleuma do costume continuava a alimentar as máquinas que entretanto parecia que tinham entrado em greve.
O Francisco não se fez velho. Já estava de volta.
«Então?» perguntei, ansioso.
«Também não sabe nada. Prometeu investigar. Só lhe digo que estavam a tentar cortar-lhe as vazas e não conseguiam. Uma vez até foi levado à administração, mas estava limpo. Limpinho. Não tinha qualquer objeto estranho com ele, nem sistema de comunicação com o interior e o exterior.»
«Que terá acontecido?»
«Não sei» virou-se para o lado do doutor Vaz. «E como vai o jogo?»
«Mal.»
«Bem me parece que não está a seguir o conselho do seu amigo.»
«Pois não. Mais um que vai seguir o caminho de outros tantos. Começam a ganhar e acabam a perder. Perdem os prémios do casino, deixam o deles e depois o dos cartões. É a velha história, amigo Francisco.»
«Pois é. Se tivéssemos uma inspeção à altura!»
«Não convém ao Estado. É cego, quando lhe interessa ser.»
«Porra!»
Virei-me para ele.
«Que aconteceu, Francisco?»
«Peço desculpa pelo palavrão. Vê aquela mulher loura, já entrada na idade, que mesmo agora se encostou a ele?»
«E que tem a mulher?»
«Não é a sua companheira. Conheço-a bem. Uma senhora de categoria que põe esta lambisgóia num chinelo.»
«E face ao que vemos, quer dizer que a companheira já não vive com ele.»
«Exato.»
«Esta quem é?»
«Uma das muitas manchas negras do casino.»
Compreendi onde o Francisco queria chegar. Uma das mais de trinta pessoas informadoras sobre o modus operandi dos jogadores. Se já estão suficientemente viciados, se têm fortuna pessoal, se são tão teimosos como os nascidos sob o signo de Aries, etc e tal. Mas esta devia ser especial, ante a exclamação que fez o Francisco sair fora dos seus carretos.
«Vai chupá-lo até ao tutano, acredite.»
«Tal e qual. Mas o que será feito da doutora Amélia?»
«Não sei. Conhece a doutora Amélia?»
O homem disfarçado
«Estou à tua espera no café Chiado. Onze horas. É importante.»
E mais nada.
Não admitia gozos daqueles. Mas, quem quer que fosse, estava na posse do meu número do telemóvel. Por outro lado, o café Chiado já não existia há umas dezenas de anos. E isso dava para pensar. Aquela espécie de convocatória era muito estranha. Mesmo muito estranha. Mais parecia que ele me estava a dar um código. Ou ela. Podia ser uma ela.
Não pude responder e gorou-se a hipótese de conseguir mais dados.
Ia tomar em conta aquela mensagem?
Consultei o relógio. Já passava das dez e um quarto e a única hipótese que tinha de chegar a horas àquele encontro misterioso só podia ser feita se recorresse aos préstimos de um táxi. Quanto ao problema de sair com chapéu ou sem chapéu deixou de o ser. Chapéu de chuva, entenda-se. Ainda falando de chapéus, detestei sempre usar chapéu ou boné. Isto para não falar da boina com os três vinténs que usei nos meus tempos de criança. Criança não tinha querer. Criança sofria. Criança batia o pé. Criança já não batia o pé. Felizmente que agora os tempos da criança são outros. Mas ou oito ou oitenta...
Cinco minutos antes da hora marcada para o encontro estava a subir a pé a Rua do Chiado. Inevitavelmente veio-me à memória o pavoroso incêndio de 25 de agosto de 1988 que deflagrou nos Armazéns Grandella, do lado da Rua do Carmo. O pavoroso incêndio do Chiado. Os piores estragos aconteceram na Rua do Carmo. Perderam-se os armazéns do Grandella, os Grandes Armazéns do Chiado, a Perfumaria da Moda, bem como o arquivo histórico de gravações de som da Valentim de Carvalho. E mais. A remoção dos escombros prolongou-se por meses. Seguiram-se anos complicados de reconstrução, mantendo-se algumas fachadas que tinham resistido ao fogo.
O espaço tornou-se mais aprazível, mas nada do que fora voltou a ser como era.
Ainda mergulhado nos meus pensamentos, a propósito do Chiado não voltar a ser o que era, de o agora não ser igual ao de há pouco (assim dizia o meu saudoso professor de Filosofia, lembrando um poema de Comtesse de Noailles - "Il fera longtemps clair ce soir" - ...Nous n'aurons plus jamais notre âme de ce soir), dei comigo em frente ao Fernando António e à sua cadeira vazia. Parecia que me convidava para uma cavaqueira em pensamento cujo tema principal seria fatalmente o tédio e a vontade de beber porque não tinha sede. Mas não estive pelos ajustes. A cadeira em bronze continuou vazia porque o meu objetivo era outro.
Olhei para cima, para os lados da Praça Camões. Estava mais interessado em descobrir se o meu palpite batia certo ou errado.
Foi então que senti algo a pressionar-me a coluna.Estava parado, virado para o sítio onde outrora fora o café Chiado. E parado fiquei. Suspenso da órbita do acontecer, segundo após segundo.
«Não te voltes! Tira disfarçadamente a carteira...»
Toda aquela história do encontro era por causa de um assalto, ou não passava de pura coincidência?
Ainda por cima nas barbas do poeta!
Obedeci à voz de homem.
«Pronto, já tenho a carteira na mão.»
«Ótimo. Estás-te a portar bem, meu menino. Agora baixa o braço.»
Voltei a obedecer. Parecia-me que a mão que segurava a carteira estremecia. Parecia-me, uma ova. Aquilo era um assalto e podia até contar com o pior. Sentia apontada às costas uma arma. Talvez uma pistola, talvez uma arma branca. A pressão era indefinida. Tinha que seguir à risca as instruções do assaltante.
«Então?»
Demorei a responder. Esperava que ele pegasse na carteira e tal não estava a acontecer.
«Então, o quê?»
«Vira-te devagar. De olhos bem fechados.»
Obedeci mais uma vez.
«Não quer a carteira?» perguntei, a medo.
«Eu é que sei o que quero!»
O tom de voz, embora disfarçado, parecia-me familiar.
«Pronto, pronto...»
«Já podes abrir os olhos.»
O homem sorria ironicamente. A carteira continuava na minha mão. Queria entender o que se estava a passar.
«Guarda a carteira. Mudei de ideias.»
Afinal o que é que ele queria?
Mas o desconhecido não tirava uma das mãos do bolso do casaco. Caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
«Não me conheces?»
Nem por sombras. Aquele rosto não me dizia nada. Mesmo nada.
«Nunca o vi na vida. Mas afinal o que quer de mim?»
«Pensa. Pensa bem.»
Se pensava, era sinal que ainda existia. Mas, de um momento para o outro, a sequência natural das coisas podia alterar-se.
Arrisquei:
«Porque falou na mensagem no café Chiado?»
O homem apreciou a pergunta com um sorriso largo, convincente.
«Ah! Pergunta inteligente, António. Mas ouve uma coisa: porque não me tratas por tu?»
Deixou de disfarçar o tom de voz e fez-se logo luz.
«Nem quero acreditar! Mas...»
«Mas?»
O Mário estava tão longe. Em Las Vegas, concretizando um sonho antigo. Além do mais, aquele rosto nada me dizia.
«Mário?» ousei arriscar.
«Porra! Finalmente, meu sacana.»
Trocámos um abraço forte e depois fiquei a olhar para ele.
«Agora entendo essa história do café Chiado. É do nosso tempo da Faculdade e tu vinhas para aqui estudar.»
«Pensei que entendias.»
«Mas escapou-me. És o Mário e não és! Que aconteceu? Nunca mais deste notícias...»
«Daqui a pouco vais saber o porquê do meu silêncio. Mas tenho sabido tudo de ti. Encontraste o caderno e publicaste as histórias.»
«É verdade.»
«Afinal não te dedicaste a escrever histórias para crianças, conforme era teu desejo.»
Concordei.
«Cheguei à conclusão que o meu estilo era demasiado hermético para a história chegar límpida às crianças. Mas diz-me uma coisa, fizeste uma operação plástica, porquê?»
«Eles descobriram-nos.»
«Não! A Amélia denunciou-te?»
«Antes fosse.»
«Conta-me o que aconteceu...»
Uma noite, quando jogava no casino, foi abordado por dois indivíduos que o intimidaram a acompanhá-los. Primeiro admitiu que se tratava de um assalto, mas reconheceu um deles e mudou logo de opinião. Era um dos homens que costumava receber parte do dinheiro sujo que ganhava no casino.
«Isto aqui não é como nos casinos em Portugal.»
«O quê?»
«Há detetores de metais por todos os lados. À entrada do casino e na passagem do hotel para o casino. Bem como em mais sítios.»
«Deixa-te de ideias e segue mas é à nossa frente. Senão...»
«Senão o quê? Vocês nem sequer estão armados.»
«Tens a certeza?»
«Se me agarrarem reajo e está ali um segurança.» Disse, apontando na sua frente.
Os outros olharam instintivamente para trás e Mário aproveitou a oportunidade para empurrar uma cadeira contra eles. Logo a seguir, lançou-se numa corrida desenfreada para as escadas rolantes que davam acesso ao primeiro liso. Aí concentrava-se a maior parte dos jogadores, pelo que foi fácil misturar-se entre a pequena multidão até desaparecer no exterior.
«Foi mais fácil do que pensava.»
«E depois, amigo?»
«Deduzi que seguiram outro objetivo.»
«A Amélia?»
«Acho que foram no seu encalce. Ela tinha ficado no quarto do hotel. Não tenho a certeza.»
«Então quer dizer que é muito provável a Amélia estar morta?»
«Não sei, António. Tudo é possível. Tenho uma réstia de esperança que ela ainda esteja viva. Isto admitindo a hipótese de pensarem chegar até mim por intermédio dela.»
«E há essa hipótese?»
Coçou a cabeça, parecendo perturbado.
«Muito remota. Ela não conseguia identificar-me depois de ter feito esta operação plástica dois dias depois. O que me preocupa é que eles de certeza que a torturaram porque se convenceram que era a única hipótese que tinham de chegarem a mim. Não imaginas o que é agora viver com esta sensação de culpa. Saber que já aconteceu, sem poder fazer nada. Que fui fazer, António?»
«Salvaste a pele.»
«Sim. Fugi como um cobarde.»
«Não tinhas outra hipótese. E a casa de cá? A Amélia conhecia a morada?»
«Impossível. A nossa relação em Lisboa passou-se só entre o casino e a casa do ex-namorado. Durou poucos dias. Depois aconteceu aquele episódio que já sabes.»
«Mas ela fugiu com o dinheiro da mala.»
«Isso foi o que pensei na altura.»
«Então?»
«A Amélia contactou pouco depois comigo e fugimos para Las Vegas. Sei o que vais perguntar. Mudei de telemóvel antes de viajar para Las Vegas. Portanto, descobriram-nos só por causa dela. Nunca desconfiei que também lhe tinham implantado um chip. Não me perguntes quando. Provavelmente até foi antes de a conhecer.»
«E o registo no hotel?»
«Foi feito pela Amélia. Quanto ao cofre que aluguei para esconder o dinheiro, também tive o cuidado de não deixar qualquer pista.»
«Mas como? Tiveste que abrir uma conta numa agência bancária.»
«Preferi correr o risco ao guardar o dinheiro em três cofres de supermercados. Sabes como são aqueles cofres de chaves na fechadura onde se guardam pequenos artigos?»
«Sim, sei. Pensaste em tudo.»
«Dois dias mais tarde, depois daqueles capangas quase me apanharem, tratei de desaparecer para sempre como Mário Fonseca. Custou-me uma pipa de massa, mas consegui. Fizeram-me uma plástica, arranjei documentos falsos e regressei a Portugal.»
«Com todo o dinheiro, claro.»
«Não. Uma parte ficou nos cofres. E aqui estou. Invisível como Mário. Há dez dias. É muito estranho ser outra pessoa que agora já não existe. Nem calculas a sensação quando, de manhã, me levanto, vou à casa de banho e olho-me ao espelho. É uma segurança, mas custa.»
«Já passaste pelo mesmo quando viste ao espelho a cara do outro. O tal Pedro.»
«É verdade. Não me perguntes como aconteceu. Mas que aconteceu, aconteceu.»
«E se, por algum motivo, os cofres forem abertos?»
«Agora é só um. Já pensei nisso. Preciso de voltar a Las Vegas para trazer o resto do dinheiro.»
«Gostava de conhecer Las Vegas...»
Não deu saída.
«Agora estás a viver mais uma grande aventura da tua vida. A última história do Mário contador de histórias que afinal não pode contar. E a talhe de foice, qual é o teu novo nome, Mário?»
«Cuidado» sorriu. «O Mário que conheceste já não existe. É um fantasma. Agora sou o Leonel Travassos. Não te esqueças.»
Foi a vez de eu sorrir.
«Travassos. Feliz coincidência, O nome de um dos fantásticos cinco violinos do Sporting. Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano. Há tantos anos, meu Deus!»
«Tal e qual. E ainda me lembro dos relatos da bola que fazia para a rapaziada do bairro, manipulado os "bonecos da bola". Havia balizas e tudo mais. Lembras-te?»
«Se me lembro. Pelo que me disseste, eras bom a relatar. Mas um pouco tendencioso, não o negues.»
«Pois.»
«Ainda és do Belenenses?»
«Claro que sou. O Matateu era o meu ídolo.
«Agora são raros os momentos de glória do meu clube.»
«Ou nenhuns. E tu, continuas de leão ao peito?»
«Claro!»
Consultou o relógio.
«Tens alguma coisa a fazer?» perguntei.
«Temos. Mas ainda é cedo. Vamos dar uma volta pela Baixa a fazer horas para o almoço. É sexta-feira. Que tal um prato de bacalhau no João do Grão e um bom tinto de jarro?»
«Duvido.»
«Não queres almoçar no João do Grão?»
«Quero. Mas duvido do bom vinho tinto de jarro. Os tempos são outros.»
«Está bem. Então depois escolhes o vinho.»
«Julgava-te uma pessoa mais snobe. Agora com todo esse dinheiro que tens...»
«Continuo igual a mim próprio, apesar de estar ainda mais rico do que quando fui para Las Vegas com a mala cheia daquele dinheiro sacado aos mafiosos que me quiseram dar um nó cego. Mas eles é que ficaram tosquiados. Como é que se diz...?»
«Foram buscar lã e saíram tosquiados.»
Fez um sinal de concordância.
«Isso mesmo. Continuas igual a ti próprio, António. Mas falei-te dum sistema que tinha inventado, não falei?»
Era verdade. Ele ia aplicar o sistema que inventou nos casinos de Las Vegas. Intimamente pensava que aquele sistema, ou método, ou o raio que queria chamar, ia dar em nada, tal como os seus sonhos. E também o dinheiro, embora ele fosse um indivíduo seguro a jogar.
«Tenho uma vaga ideia.»
«Pois bem.»
«Sim?»
«Deu certo.»
«Multiplicaste por quanto?»
«Nem imaginas...»
«E não me digas que tens o dinheiro espalhado por esses cofres dos supermercados?»
«Um só cofre, como já disse. Só lido com dinheiro vivo. Aqui para nós, o teu amigo Travassos é um pobretanas que conta os cêntimos...»
«Fazes bem em não dar nas vistas. Olha uma coisa, voltaste ao casino?»
«Que achas?»
Pus-me a pensar. O risco era quase nulo. Como o Mário não existia, os fiscais, chefes de sala e inspetores já não podiam estar em rota de colisão com o fantasma que era ele. Por sua vez, se continuava a frequentar o casino, como não era cego, podia confirmar e cimentar as suspeitas sobre os tais utentes que mantinham relações à margem da lei com certos funcionários do casino, inclusive os "tubarões". E aí prolongava-se a triste sina daqueles que perdiam sempre e também dos que ganhavam sempre.
Então, o que fazia o Mário no casino?
Considerei-o sempre uma pessoa que gostava mais de ganhar do que jogar. Um não viciado. Agora parecia que estava a haver uma mudança.
Efeito Las Vegas?
«Antónioooooooo!»
«Diz, Mário. Ou por outra: Travassos. Desculpa-me, mas com o tempo há de ir ao lugar.»
«Assim espero. Que foi feito de ti?»
«Não entendo.»
«De repente ficaste na lua.»
«E tu não respondeste direito à minha pergunta.»
«Onde julgas que vamos logo à noite?»
Há um bom par de anos o Mário disse-me que a entrada no casino era enganadora no que dizia respeito aos ocupantes das máquinas, uma vez que as primeiras visíveis aos olhos de quem entrava normalmente não estavam ocupadas.
«Lá fora costumava contar as ondas provocadas pelo vulcão. Funcionavam quase como um relógio. O Raul...»
«Não te esqueças que fui eu que escrevi as tuas histórias. E a propósito, tens que contar-me o que aconteceu em Las Vegas. O teu caso com a Amélia, os jogos. Tudo.»
«Não me esqueço, não. Mas não há muito para contar.»
«E a tua técnica?, como é?»
«Não te posso dizer.»
«Está bem.»
Deslocámo-nos para além das primeiras máquinas. O cenário modificou-se. Comecei a ver as pessoas agarradas às máquinas. Fora do mundo e no seu mundo. Um vício terrível!
«Já viste?»
«O quê?»
«Estas pessoas estão vidradas nas máquinas. À espera de um milagre que raramente chega. Os casinos fizeram-se para dar lucro. Dez por cento da receita, é o que dizem. Isto se não houver golpada.»
«Ou nenhuns. E tu, continuas de leão ao peito?»
«Claro!»
Consultou o relógio.
«Tens alguma coisa a fazer?» perguntei.
«Temos. Mas ainda é cedo. Vamos dar uma volta pela Baixa a fazer horas para o almoço. É sexta-feira. Que tal um prato de bacalhau no João do Grão e um bom tinto de jarro?»
«Duvido.»
«Não queres almoçar no João do Grão?»
«Quero. Mas duvido do bom vinho tinto de jarro. Os tempos são outros.»
«Está bem. Então depois escolhes o vinho.»
«Julgava-te uma pessoa mais snobe. Agora com todo esse dinheiro que tens...»
«Continuo igual a mim próprio, apesar de estar ainda mais rico do que quando fui para Las Vegas com a mala cheia daquele dinheiro sacado aos mafiosos que me quiseram dar um nó cego. Mas eles é que ficaram tosquiados. Como é que se diz...?»
«Foram buscar lã e saíram tosquiados.»
Fez um sinal de concordância.
«Isso mesmo. Continuas igual a ti próprio, António. Mas falei-te dum sistema que tinha inventado, não falei?»
Era verdade. Ele ia aplicar o sistema que inventou nos casinos de Las Vegas. Intimamente pensava que aquele sistema, ou método, ou o raio que queria chamar, ia dar em nada, tal como os seus sonhos. E também o dinheiro, embora ele fosse um indivíduo seguro a jogar.
«Tenho uma vaga ideia.»
«Pois bem.»
«Sim?»
«Deu certo.»
«Multiplicaste por quanto?»
«Nem imaginas...»
«E não me digas que tens o dinheiro espalhado por esses cofres dos supermercados?»
«Um só cofre, como já disse. Só lido com dinheiro vivo. Aqui para nós, o teu amigo Travassos é um pobretanas que conta os cêntimos...»
«Fazes bem em não dar nas vistas. Olha uma coisa, voltaste ao casino?»
«Que achas?»
Pus-me a pensar. O risco era quase nulo. Como o Mário não existia, os fiscais, chefes de sala e inspetores já não podiam estar em rota de colisão com o fantasma que era ele. Por sua vez, se continuava a frequentar o casino, como não era cego, podia confirmar e cimentar as suspeitas sobre os tais utentes que mantinham relações à margem da lei com certos funcionários do casino, inclusive os "tubarões". E aí prolongava-se a triste sina daqueles que perdiam sempre e também dos que ganhavam sempre.
Então, o que fazia o Mário no casino?
Considerei-o sempre uma pessoa que gostava mais de ganhar do que jogar. Um não viciado. Agora parecia que estava a haver uma mudança.
Efeito Las Vegas?
«Antónioooooooo!»
«Diz, Mário. Ou por outra: Travassos. Desculpa-me, mas com o tempo há de ir ao lugar.»
«Assim espero. Que foi feito de ti?»
«Não entendo.»
«De repente ficaste na lua.»
«E tu não respondeste direito à minha pergunta.»
«Onde julgas que vamos logo à noite?»
Há um bom par de anos o Mário disse-me que a entrada no casino era enganadora no que dizia respeito aos ocupantes das máquinas, uma vez que as primeiras visíveis aos olhos de quem entrava normalmente não estavam ocupadas.
«Lá fora costumava contar as ondas provocadas pelo vulcão. Funcionavam quase como um relógio. O Raul...»
«Não te esqueças que fui eu que escrevi as tuas histórias. E a propósito, tens que contar-me o que aconteceu em Las Vegas. O teu caso com a Amélia, os jogos. Tudo.»
«Não me esqueço, não. Mas não há muito para contar.»
«E a tua técnica?, como é?»
«Não te posso dizer.»
«Está bem.»
Deslocámo-nos para além das primeiras máquinas. O cenário modificou-se. Comecei a ver as pessoas agarradas às máquinas. Fora do mundo e no seu mundo. Um vício terrível!
«Já viste?»
«O quê?»
«Estas pessoas estão vidradas nas máquinas. À espera de um milagre que raramente chega. Os casinos fizeram-se para dar lucro. Dez por cento da receita, é o que dizem. Isto se não houver golpada.»
«Tens razão. Não há volta a dar. Que as máquinas estão manipuladas, ninguém o nega. E fala-se à boca cheia dos jogadores que têm êxito a princípio e depois acontece o que acontece. Acabam por cair na armadilha. Vão ganhando dia após dia, até que se inverte a situação e acabam por perder o que ganharam e o que não ganharam. Sem darem conta, chegaram a uma nova etapa e tu sabes qual é, António. O vício é terrível! Quem cai nele é como se caísse num buraco negro. Não tem retorno. Só na ficção científica. Os buracos de verme...»
«Bem sei. Sempre é verdade que eles têm mais que trinta informadores?»
«Já te disse. Não te lembras?»
«Claro que me lembro. Mas podia ter sido um desabafo teu.»
«Não sou um viciado, António!»
«És o David a lutar contra o Golias. Na realidade nada podes fazer. E tu sabes disso.»
«Daí a minha mudança de estratégia. Respondendo à tua pergunta, claro que estou a ter êxito» disse, baixando a voz. «Aqui só para nós, já vais ver.»
«E se te apanham?»
Limitou-se a sorrir.
«Não me contas?» insisti.
«É melhor não, António. Só te digo que a vida é uma aventura.»
«No teu caso uma aventura de alto risco. E os teus amigos do casino? Vais falar-lhes?»
Virou-se para mim. O seu sorriso era agora diferente. Soava a ironia.
«Estava só a brincar.» Disse.
«Eu sei, António. Vamos até ao Fort Knox. Mas antes deixa que te diga que aqui, mais do que em qualquer outro local, não há amigos. Só conhecidos. É um mundo perigoso.»
«Tenho que concordar contigo. Mas mostra-me então como jogas no Fort Knox.»
«É um mundo e peras. Um mundo à parte. Quem o criou devia ter sido laureado com um prémio Nobel. Isto se não houvesse o reverso da medalha. Os seus prisioneiros.»
«Tens razão. Wernher von Braun, o cientista alemão que foi o principal responsável pelo projeto Apolo, esse projeto que pôs o homem na Lua e que muito desgostou os soviéticos da altura, teve um passado obscuro, talvez tenebroso, ao serviço de Hitler. As suas poderosas V2 podiam ter mudado o sentido da guerra e agora não estaríamos aqui a falar das maravilhas deste Fort Knox. Embora já o conheças, pelas histórias que te contei e que escreves, nada se compara com a visão em direto. As máquinas estão quase sempre ocupadas e há gente desesperada à espera de uma máquina livre. Até perto da uma da manhã é difícil apanhar uma máquina disponível. Principalmente nos Unicorn. E nos fins de semana, nem pensar nisso. A não ser que chegues cedo.»
«Porquê tanta procura?»
«Pelo aparente êxito que mostram. Dão bons prémios, mas também o lucro para o casino é incrível, percebes? Um logro.»
«Então é uma zona onde muita gente perde.»
«Certo, António. É o principal abono de família do casino.»
«Vamos aproximar-nos. estou a ficar curioso.»
«Há aqui gente que vive à custa do casino. Não me perguntes como conseguem. Para os desmascarar requeria que fosse feita uma investigação profunda.»
«Que nem sequer a inspeção faz, segundo me disseste.»
«Sim. É um grande mistério. Disseram-me, mais que uma vez, que estavam assoberbados com burocracia. Quando havia qualquer caso anómalo tinham forma de saber pelo vídeo. Mas é no palco que se passa o espetáculo. Neste caso o espetáculo das coisas estranhas.»
«E o tal Vítor que guarda as máquinas para os jogadores que apostam alto, está mesmo ao serviço do casino?»
«Um informador disse-me que o Vítor trabalha para o casino. Em tempos admirei-me dele obter bons resultados mesmo jogando muito baixo. De vez em quando davam-lhe ouros e platinas, além de linhas e dos célebres três Unicorn com uma figura. Mais tarde compreendi. Era o prémio por arranjar bons clientes-patos que jogavam alto e perdiam rios de dinheiro. Funciona como conselheiro, percebes?»
«Também já sabia disso.»
«É verdade. Então porque queres que fale de pessoas que já conheces pelas minhas descrições?»
«Confesso-te que já tive oportunidade de conhecer o Vítor. Mas foi muito lacónico. Gostava de o conhecer melhor.»
«Como assim?»
«Vim à tua procura. Talvez o Vítor ou o Francisco me dessem uma pista. Mas nada consegui.»
«Não me digas que estiveste cá?»
«Pois estive. Queria saber de ti e vê-los ao vivo. Tenho uma certa curiosidade em conhecer, por exemplo, o Palrador e o Abutre.»
«Este último deixou de aparecer. Muito provavelmente cortaram-lhe a sorte e foi mais um que caiu no pântano. Agora deve andar com grandes problemas nos cartões de crédito. Como ele, há muitos jogadores que já não vêm. São os sinais da crise. Mas não perguntaste pelo mais pitoresco de todos.»
«Já sei. O agressor das palavras. A seu tempo.»
«Quanto a mim, o verdadeiro abutre é, sem dúvida, o Zé dedilhador. Por enquanto. Olha, saiu um jogador duma máquina à sua direita.»
Vi-o dar uma corrida para a máquina. Não imaginava o Mário a reagir daquela forma.
«Pronto. Toma atenção como jogo. Já sabes que as máquinas que funcionam em bloco são do mesmo tipo. Por exemplo, o último grupo de Unicorn em que estamos. Normalmente há uma máquina que paga bem e as outras têm que absorver esse prejuízo para o casino. Sabes também que há séries, isto é, sequências de jogadas.»
«Pois sei. Mas deixa-me ver como ele joga.»
«Não interessa a forma como joga. Afinal já adquiriu, como muitos, a técnica.»
«Técnica?»
«Todo o jogo tem uma técnica.»
«Então?»
«Como abutre que é, fica à espera da sua oportunidade.»
«Aquele indivíduo que está na última máquina fala pelos cotovelos. Queixa-se que a máquina não dá "caixotes" nem "cavalos". Por acaso, não é o Palrador?»
«Na mouche!»
«Julgo que estou a sonhar. Disse bem alto que ia procurar um chefe de sala para se queixar que a máquina não pagava.»
«Acreditas?»
«Olha, levantou-se. Foi mesmo chamar um chefe de sala?»
«És bom observador.»
«Sempre há uma central?»
«Duvidas?»
«Não. E onde fica?»
«Também gostava de saber. Agora, toma atenção. A máquina do Zé está a dar boa conta de si, não está?»
Concordei. Até já tinha tirado um ouro de cerca de quinhentos euros. E uma linha de quase trezentos euros.
«Vou aplicar o meu método.» Sussurrou.
«Como é?»
«Baixa mais a voz. Olha, neste caso consiste em fazer com que minha máquina passe a ser a número um em prémios. E não te digo mais nada. O resto é cá comigo.»
«Estás a gozar ou então deliras.»
«Espera só um pouco.»
«Queres que acredite? Morde aqui.»
«Já vais ver...»
Não decorreram quinze minutos para acontecer algo que considerei insólito. A máquina do Mário modificou-se drasticamente em relação ao rendimento. De vez em quando o Mário sorria para mim.
«E ainda não é tudo. Olha, já viste como se joga?»
«Mais ou menos.»
«Então, muda comigo. Aliás, é só carregares na tecla de reapostar. Não alteres a aposta.»
Mudámos de posição.
«Chegou o Vítor. Agora está junto ao Zé dedilhador. O outro queixa-se que lhe fecharam a máquina.»
Olhei pelo canto do olho.
«O nosso amigo Vítor ficou com cara de caso. Ouve o que dizem...»
«Não pode ser!» exclamou o Vítor algo admirado.
«Não pode ser? Pois claro que pode. Já meti cinco notas de cinquenta e nada. Estou a jogar a 19x5 e nem a porra do cofre abre!»
Entretanto o Palrador acabara de tirar cinco "corneteiros".
A conversa com o chefe de sala dera os seus frutos.
«Experimenta mudar essa merda para 20x4.» Disse o Vítor ao Zé.
«Porquê 20x4?» perguntei, num sussurro, ao meu companheiro.
«Pergunta-lhe.» Respondeu, irónico.
«Estás parvo ou quê?»
Mais quinze minutos e a situação sem alterar-se. Entretanto a nossa máquina melhorara significativamente de rendimento.
«Já temos mais de quatrocentos euros, Mário! Tiro o ticket?» exclamei, virando-me para trás.
«Estou a falar para a parede.»
«Pois está.»
Conforme dizia o Mário, o Vítor não perdia pitada. Mas não via o meu companheiro.
«Em vez de olhar para trás, olhe para a frente, sortudo.» E para o Zé, em voz baixa, mas o suficiente para eu ouvir. «A sorte sorri sempre aos forasteiros...»
Nem queria acreditar. Um jackpot de mil oitocentos e noventa euros e mais uns pós.
Quanto ao Zé dedilhador nem piou, mas notei que tinha o semblante carregado. Por dentro devia estar pior que uma barata.
Mas onde estava o Mário?
Não demorou muito tempo a pagarem-me o prémio. Gratifiquei com vinte euros e as moedas que estavam na pequena bandeja em que trouxeram o dinheiro do prémio.
«Ainda tem mais de quatrocentos euros para jogar. Se fosse a si, procurava outra máquina.» Disse o Vítor, solícito.
Entretanto juntara-se gente à minha volta.
«Acho que vou seguir o seu conselho.»
«Quer que lhe arranje outra máquina?»
«Não, obrigado, vou para casa. Mas volto mais tarde» menti. «Por acaso, senhor Vítor, reparou numa pessoa que estava comigo?»
«Como sabe o meu nome?»
Uma lança em África. Não me tinha reconhecido.
«Ora, ouvi chamarem por si.»
Saí-me bem.
«Ah sim» engoliu a peta. «Por acaso reparei. Alguém tocou-lhe e afastaram-se logo.»
«Uma mulher?»
«Sim.»
«Como era ela?»
«Não reparei muito bem. Era baixa.»
«De cabelo comprido?»
«Não, curto. Se reconsiderar, tem uma máquina nos livros.»
«Mais logo venho ter consigo. Obrigado pela disponibilidade.»
«De nada. Posso saber como se chama?»
«António.»
«Simplesmente...?»
«Sim.»
Saquei o ticket e dispus-me a sair da zona do célebre Fort Knox. Ainda tive tempo de enfrentar o olhar fulminante do Palrador. Não enganava ninguém. A inveja personificada. A homens como aquele impunha-se fazer "figas".
«E agora, António?» falei para os meus botões.
Estava mais preocupado em encontrá-lo do que em descobrir como tinha tornado aquela máquina produtiva em vez da do Zé dedilhador, que agora também era conhecido por Senhor dos passos.
Depois de me certificar que o Mário não estava no primeiro piso, dispus-me a subir ao segundo, onde era o deserto das muitas máquinas vazias.
«Olha o meu amigo! Já sei que foi bafejado pela sorte.»
O Francisco! Estava em todas. O seu serviço de informações funcionava na perfeição.
«Olá, viva. Pois foi. Tive um golpe de sorte do caraças.»
«E o seu amigo?»
Ia a dizer que o procurava no casino, mas emendei a tempo.
«O meu amigo teve que sair mais cedo.»
«Ah sim.»
Aquele Francisco era um perigo. Havia no casino uma rede impecável de informações.
«Vou à casa de banho.» Descartei-me.
«Pois vá, meu bom amigo. Nos cifrões há uma máquina boa para si.»
«Vá andando que já lá vou ter.»
«Eu tomo conta da máquina.»
«Sim, obrigado.»
No segundo piso também não estava.
Quem era a mulher de baixa estatura que tinha tocado no ombro de Mário?
«Bem sei. Sempre é verdade que eles têm mais que trinta informadores?»
«Já te disse. Não te lembras?»
«Claro que me lembro. Mas podia ter sido um desabafo teu.»
«Não sou um viciado, António!»
«És o David a lutar contra o Golias. Na realidade nada podes fazer. E tu sabes disso.»
«Daí a minha mudança de estratégia. Respondendo à tua pergunta, claro que estou a ter êxito» disse, baixando a voz. «Aqui só para nós, já vais ver.»
«E se te apanham?»
Limitou-se a sorrir.
«Não me contas?» insisti.
«É melhor não, António. Só te digo que a vida é uma aventura.»
«No teu caso uma aventura de alto risco. E os teus amigos do casino? Vais falar-lhes?»
Virou-se para mim. O seu sorriso era agora diferente. Soava a ironia.
«Estava só a brincar.» Disse.
«Eu sei, António. Vamos até ao Fort Knox. Mas antes deixa que te diga que aqui, mais do que em qualquer outro local, não há amigos. Só conhecidos. É um mundo perigoso.»
«Tenho que concordar contigo. Mas mostra-me então como jogas no Fort Knox.»
«É um mundo e peras. Um mundo à parte. Quem o criou devia ter sido laureado com um prémio Nobel. Isto se não houvesse o reverso da medalha. Os seus prisioneiros.»
«Tens razão. Wernher von Braun, o cientista alemão que foi o principal responsável pelo projeto Apolo, esse projeto que pôs o homem na Lua e que muito desgostou os soviéticos da altura, teve um passado obscuro, talvez tenebroso, ao serviço de Hitler. As suas poderosas V2 podiam ter mudado o sentido da guerra e agora não estaríamos aqui a falar das maravilhas deste Fort Knox. Embora já o conheças, pelas histórias que te contei e que escreves, nada se compara com a visão em direto. As máquinas estão quase sempre ocupadas e há gente desesperada à espera de uma máquina livre. Até perto da uma da manhã é difícil apanhar uma máquina disponível. Principalmente nos Unicorn. E nos fins de semana, nem pensar nisso. A não ser que chegues cedo.»
«Porquê tanta procura?»
«Pelo aparente êxito que mostram. Dão bons prémios, mas também o lucro para o casino é incrível, percebes? Um logro.»
«Então é uma zona onde muita gente perde.»
«Certo, António. É o principal abono de família do casino.»
«Vamos aproximar-nos. estou a ficar curioso.»
«Há aqui gente que vive à custa do casino. Não me perguntes como conseguem. Para os desmascarar requeria que fosse feita uma investigação profunda.»
«Que nem sequer a inspeção faz, segundo me disseste.»
«Sim. É um grande mistério. Disseram-me, mais que uma vez, que estavam assoberbados com burocracia. Quando havia qualquer caso anómalo tinham forma de saber pelo vídeo. Mas é no palco que se passa o espetáculo. Neste caso o espetáculo das coisas estranhas.»
«E o tal Vítor que guarda as máquinas para os jogadores que apostam alto, está mesmo ao serviço do casino?»
«Um informador disse-me que o Vítor trabalha para o casino. Em tempos admirei-me dele obter bons resultados mesmo jogando muito baixo. De vez em quando davam-lhe ouros e platinas, além de linhas e dos célebres três Unicorn com uma figura. Mais tarde compreendi. Era o prémio por arranjar bons clientes-patos que jogavam alto e perdiam rios de dinheiro. Funciona como conselheiro, percebes?»
«Também já sabia disso.»
«É verdade. Então porque queres que fale de pessoas que já conheces pelas minhas descrições?»
«Confesso-te que já tive oportunidade de conhecer o Vítor. Mas foi muito lacónico. Gostava de o conhecer melhor.»
«Como assim?»
«Vim à tua procura. Talvez o Vítor ou o Francisco me dessem uma pista. Mas nada consegui.»
«Não me digas que estiveste cá?»
«Pois estive. Queria saber de ti e vê-los ao vivo. Tenho uma certa curiosidade em conhecer, por exemplo, o Palrador e o Abutre.»
«Este último deixou de aparecer. Muito provavelmente cortaram-lhe a sorte e foi mais um que caiu no pântano. Agora deve andar com grandes problemas nos cartões de crédito. Como ele, há muitos jogadores que já não vêm. São os sinais da crise. Mas não perguntaste pelo mais pitoresco de todos.»
«Já sei. O agressor das palavras. A seu tempo.»
«Quanto a mim, o verdadeiro abutre é, sem dúvida, o Zé dedilhador. Por enquanto. Olha, saiu um jogador duma máquina à sua direita.»
Vi-o dar uma corrida para a máquina. Não imaginava o Mário a reagir daquela forma.
«Pronto. Toma atenção como jogo. Já sabes que as máquinas que funcionam em bloco são do mesmo tipo. Por exemplo, o último grupo de Unicorn em que estamos. Normalmente há uma máquina que paga bem e as outras têm que absorver esse prejuízo para o casino. Sabes também que há séries, isto é, sequências de jogadas.»
«Pois sei. Mas deixa-me ver como ele joga.»
«Não interessa a forma como joga. Afinal já adquiriu, como muitos, a técnica.»
«Técnica?»
«Todo o jogo tem uma técnica.»
«Então?»
«Como abutre que é, fica à espera da sua oportunidade.»
«Aquele indivíduo que está na última máquina fala pelos cotovelos. Queixa-se que a máquina não dá "caixotes" nem "cavalos". Por acaso, não é o Palrador?»
«Na mouche!»
«Julgo que estou a sonhar. Disse bem alto que ia procurar um chefe de sala para se queixar que a máquina não pagava.»
«Acreditas?»
«Olha, levantou-se. Foi mesmo chamar um chefe de sala?»
«És bom observador.»
«Sempre há uma central?»
«Duvidas?»
«Não. E onde fica?»
«Também gostava de saber. Agora, toma atenção. A máquina do Zé está a dar boa conta de si, não está?»
Concordei. Até já tinha tirado um ouro de cerca de quinhentos euros. E uma linha de quase trezentos euros.
«Vou aplicar o meu método.» Sussurrou.
«Como é?»
«Baixa mais a voz. Olha, neste caso consiste em fazer com que minha máquina passe a ser a número um em prémios. E não te digo mais nada. O resto é cá comigo.»
«Estás a gozar ou então deliras.»
«Espera só um pouco.»
«Queres que acredite? Morde aqui.»
«Já vais ver...»
Não decorreram quinze minutos para acontecer algo que considerei insólito. A máquina do Mário modificou-se drasticamente em relação ao rendimento. De vez em quando o Mário sorria para mim.
«E ainda não é tudo. Olha, já viste como se joga?»
«Mais ou menos.»
«Então, muda comigo. Aliás, é só carregares na tecla de reapostar. Não alteres a aposta.»
Mudámos de posição.
«Chegou o Vítor. Agora está junto ao Zé dedilhador. O outro queixa-se que lhe fecharam a máquina.»
Olhei pelo canto do olho.
«O nosso amigo Vítor ficou com cara de caso. Ouve o que dizem...»
«Não pode ser!» exclamou o Vítor algo admirado.
«Não pode ser? Pois claro que pode. Já meti cinco notas de cinquenta e nada. Estou a jogar a 19x5 e nem a porra do cofre abre!»
Entretanto o Palrador acabara de tirar cinco "corneteiros".
A conversa com o chefe de sala dera os seus frutos.
«Experimenta mudar essa merda para 20x4.» Disse o Vítor ao Zé.
«Porquê 20x4?» perguntei, num sussurro, ao meu companheiro.
«Pergunta-lhe.» Respondeu, irónico.
«Estás parvo ou quê?»
Mais quinze minutos e a situação sem alterar-se. Entretanto a nossa máquina melhorara significativamente de rendimento.
«Já temos mais de quatrocentos euros, Mário! Tiro o ticket?» exclamei, virando-me para trás.
«Estou a falar para a parede.»
«Pois está.»
Conforme dizia o Mário, o Vítor não perdia pitada. Mas não via o meu companheiro.
«Em vez de olhar para trás, olhe para a frente, sortudo.» E para o Zé, em voz baixa, mas o suficiente para eu ouvir. «A sorte sorri sempre aos forasteiros...»
Nem queria acreditar. Um jackpot de mil oitocentos e noventa euros e mais uns pós.
Quanto ao Zé dedilhador nem piou, mas notei que tinha o semblante carregado. Por dentro devia estar pior que uma barata.
Mas onde estava o Mário?
Não demorou muito tempo a pagarem-me o prémio. Gratifiquei com vinte euros e as moedas que estavam na pequena bandeja em que trouxeram o dinheiro do prémio.
«Ainda tem mais de quatrocentos euros para jogar. Se fosse a si, procurava outra máquina.» Disse o Vítor, solícito.
Entretanto juntara-se gente à minha volta.
«Acho que vou seguir o seu conselho.»
«Quer que lhe arranje outra máquina?»
«Não, obrigado, vou para casa. Mas volto mais tarde» menti. «Por acaso, senhor Vítor, reparou numa pessoa que estava comigo?»
«Como sabe o meu nome?»
Uma lança em África. Não me tinha reconhecido.
«Ora, ouvi chamarem por si.»
Saí-me bem.
«Ah sim» engoliu a peta. «Por acaso reparei. Alguém tocou-lhe e afastaram-se logo.»
«Uma mulher?»
«Sim.»
«Como era ela?»
«Não reparei muito bem. Era baixa.»
«De cabelo comprido?»
«Não, curto. Se reconsiderar, tem uma máquina nos livros.»
«Mais logo venho ter consigo. Obrigado pela disponibilidade.»
«De nada. Posso saber como se chama?»
«António.»
«Simplesmente...?»
«Sim.»
Saquei o ticket e dispus-me a sair da zona do célebre Fort Knox. Ainda tive tempo de enfrentar o olhar fulminante do Palrador. Não enganava ninguém. A inveja personificada. A homens como aquele impunha-se fazer "figas".
«E agora, António?» falei para os meus botões.
Estava mais preocupado em encontrá-lo do que em descobrir como tinha tornado aquela máquina produtiva em vez da do Zé dedilhador, que agora também era conhecido por Senhor dos passos.
Depois de me certificar que o Mário não estava no primeiro piso, dispus-me a subir ao segundo, onde era o deserto das muitas máquinas vazias.
«Olha o meu amigo! Já sei que foi bafejado pela sorte.»
O Francisco! Estava em todas. O seu serviço de informações funcionava na perfeição.
«Olá, viva. Pois foi. Tive um golpe de sorte do caraças.»
«E o seu amigo?»
Ia a dizer que o procurava no casino, mas emendei a tempo.
«O meu amigo teve que sair mais cedo.»
«Ah sim.»
Aquele Francisco era um perigo. Havia no casino uma rede impecável de informações.
«Vou à casa de banho.» Descartei-me.
«Pois vá, meu bom amigo. Nos cifrões há uma máquina boa para si.»
«Vá andando que já lá vou ter.»
«Eu tomo conta da máquina.»
«Sim, obrigado.»
No segundo piso também não estava.
Quem era a mulher de baixa estatura que tinha tocado no ombro de Mário?
Nada de novo
«Em primeiro lugar quero agradecer-te estares aqui comigo, a almoçar.»
«O prazer é todo meu, acredita.»
Estávamos num pequeno restaurante, muito acolhedor, que tinha descoberto para os lados do Parque das Nações. Comida tradicional sem os requintes de passa-fome dos "chefs". Não sabia se ela ia gostar.
«Olha, têm aqui um cozido fabuloso. Já não é a primeira vez que cá venho.»
Ela levantou os olhos da ementa e comentou, sorrindo:
«Achas que estou magrinha?»
«Não pareces» admiti, irónico. «Mas não posso avaliar devidamente, minha amiga.»
«Bem bem! Daqui, não levas nada.»
«Não estou a pedinchar.»
«Mas querias ter a certeza?»
«Por acaso...»
Não completei a frase. O empregado estava na nossa frente.
«Já escolheram?»
Olhei para a Mónica.
«Seja.»
«Uma dose de cozido bem servida. E uma garrafa de Monte Velho. Tinto, claro.»
«Não demora, senhor Ildefonso. Uns queijinhos frescos para começar?»
«Pode ser.»
E afastou-se.
«Pelos vistos és conhecido aqui.»
«Mais ou menos.»
Entre uma garfada de chispe, um pedaço de nabo e uma golada de tinto, perguntei-lhe:
Entre uma garfada de chispe, um pedaço de nabo e uma golada de tinto, perguntei-lhe:
«Estás preparada?»
«Depende do que tenhas para dizer-me.»
«É uma boa notícia e outra má.»
«Venha a boa notícia.»
Peguei-lhe na mão e olhei-a de olhos nos olhos.
«Digo já sim.»
O cozido ficou a arrefecer. Havia muita coisa na vida melhor que o cozido.
«E a má notícia? É sobre o Mário? Continuamos sem saber dele. Receio o pior. A Maria anda muito triste, António.»
«Imagino.»
Às vezes, ficar mudo, é uma solução ideal. Mas não era o caso. Tinha que falar!
Achei por bem acabarmos de almoçar. As notícias podiam esperar.
«Não vais contar agora, António?»
«Acho melhor comermos primeiro.»
Foi então que tive uma ideia.
«E se tomássemos o café noutro sítio?»
«Por mim, tudo bem.»
«Conheces o Picoas Plazza?»
«Por acaso não.»
«Há lá uma esplanada onde se está bem. Ou havia. Com a instabilidade em que estamos nunca se sabe.»
«A propósito, que pensas deste novo governo?»
«Não se pode dizer que seja novo. Já vai com seis meses. Para ser franco não tenho muita esperança que as coisas melhorem. A economia estagnou, as exportações não crescem, a dívida não pára de crescer, o desemprego está como está e o primeiro ministro fez alianças muito perigosas que vão dar buraco, mais tarde ou mais cedo.»
«É também o que eu penso. Mas acho que vai ser mais tarde. Não vamos ficar melhor do que estávamos. Para um homem que tinha muita ambição, estou desiludida.»
«Lá ambição tinha e continua a ter enquanto não o rasteirarem.»
«Como assim, António?»
«Vamos acabar de comer o cozido?»
De facto tinha razão quanto ao Picoas Plazza. Quem conheceu aquele local, cheio de lojas, esplanadas, muita gente... era uma deceção ver o estado a que chegou. Aliás, nada me admirava em relação ao que estava a acontecer neste jardim à beira-mar plantado. Felizmente que a esplanada tinha escapado às "areias do deserto".«Esta esplanada é muito agradável, António!»
«Havias de ver este local há uns anos.»
«Continuando a nossa conversa do restaurante, António, falaste em rasteiras.»
«Sim. Não me esqueci ainda das rasteiras principais. Primeiro, foi uma tentativa de assalto ao poder dentro do próprio partido. Lembras-te?»
«Perfeitamente. Mas recuou. Não era chegada a altura.»
«Mais tarde, porque a vitória não foi muito "segura" nas europeias, zás! Rasteira decisiva ao número um do partido e o galo de Barcelos chegou ao poder. Seguiram-se as legislativas. Perdeu. Mas zás!, outra vez. Aliou-se historicamente à ala mais à esquerda e de novo tivemos o galo de Barcelos no poder. Bota abaixo e aproveitamento da recuperação do Governo que estava no poder, beneficiando também dos bons ventos que sopravam na altura dos lados da Europa. Entretanto a oposição esperou e voltou a esperar pelo diabo.»
«E agora?»
«É a vida... diz ele. Talvez que daqui a uns tempos lhe digam o mesmo. O diabo há de chegar um dia e para grande azar o nosso. Tenho o pressentimento que vamos sofrer na pele!»
«Nunca se sabe. Mas basta de política. Agora dá-me a má notícia. Claro que não contado com essa tua premonição.»
«Ainda não disse a boa.»
«Então...?»
Acariciei-lhe o rosto.
«Isto não era a boa notícia. Estava já nos teus olhos. E nos meus. Mas vamos falar do Mário. Está vivo e recomenda-se. Escreveu-me um postal. Adivinha donde?»
Encolheu os ombros.
«Não imagino.»
«Las Vegas.»
«Ah!»
«Está tão cheio de dinheiro que nem deve precisar de aperfeiçoar o sistema que tinha descoberto para tirar proveito no casino. Além da percentagem que tirou daquele acordo que fez com o misterioso grupo mafioso, afinal sempre conseguiu recuperar a mala desaparecida.»
«Que bom António! Vou já telefonar à Maria...»
«Não telefones. Espera pela má notícia.»
«Então?»
«A mala com o dinheiro nunca esteve perdida.»
«Não entendo, António. Segundo eu li, a Amélia desapareceu com a mala e o Mário só ficou com as comissões ganhas.»
«Isso também era o que eu pensava. Mas não foi bem assim que aconteceu. No mesmo dia em que recebi a carta do Mário, veio também uma pequena encomenda. Imagina, Mónica, mais um caderno!
«Ah!»
«Não deites foguetes antes da festa. O caderno tinha escrito na primeira página, pelo punho do Mário...»
«O quê?, António? Não faças suspense!»
«Intencionalmente em branco.»
«Só isso?»
«Sim.»
«E a carta?»
«Ah... a carta... O motivo porque disse para não contares nada à Maria. A carta era um pouco menos lacónica que o caderno. Só um pouco menos. Ele, a Amélia e a mala estavam bem de saúde e recomendavam-se. Por razões óbvias tinha escolhido Las Vegas para passarem uns tempos agradáveis nos casinos e também poder dedicar-se, sem limitações, ao estudo das séries das slot machines.»
«O filho da mãe! Descartou-se da Maria com uma destas limpezas impressionantes.»
«Amor com amor se paga.»
«O que queres dizer com isso?»
Demorei a responder. A ideia estava presente mas não sabia dizer as palavras certas para não ofender a amiga da Maria.
Afinal estavam empatados. Primeiro foi ele que não conseguiu montar o cavalo da coragem. Depois, foi ela. Não tinha a certeza se podia aceitar o convite que ele fazia para o seguir até ao fim do mundo. Tal e qual. Depois, aconteceu toda aquela embrulhada toda com a Amélia dos olhos doces, a mala com o dinheiro e, finalmente, Las Vegas.
«O Mário foi sempre um inconstante. Nunca soube separar as águas. Tens razão.»«Aí tens o Mário.»
«Uma cabeça de vento...»
«Eu também sou responsável.»
«Como assim? Tu e ele são duas pessoas diferentes. Ele é responsável pelos seus atos e tu pelos teus.»
«Não é assim tão linear, Mónica.»
Ficou a olhar para mim, tentando adivinhar o que estava escondido atrás daquelas palavras. E eu não lhe disse. Limitei-me a sorrir e a não fugir com o olhar.
«Já é tarde, António. Tenho que ir andando.»
«Encontramo-nos amanhã?»
«É melhor não.»
«Depende do que tenhas para dizer-me.»
«É uma boa notícia e outra má.»
«Venha a boa notícia.»
Peguei-lhe na mão e olhei-a de olhos nos olhos.
«Digo já sim.»
O cozido ficou a arrefecer. Havia muita coisa na vida melhor que o cozido.
«E a má notícia? É sobre o Mário? Continuamos sem saber dele. Receio o pior. A Maria anda muito triste, António.»
«Imagino.»
Às vezes, ficar mudo, é uma solução ideal. Mas não era o caso. Tinha que falar!
Achei por bem acabarmos de almoçar. As notícias podiam esperar.
«Não vais contar agora, António?»
«Acho melhor comermos primeiro.»
Foi então que tive uma ideia.
«E se tomássemos o café noutro sítio?»
«Por mim, tudo bem.»
«Conheces o Picoas Plazza?»
«Por acaso não.»
«Há lá uma esplanada onde se está bem. Ou havia. Com a instabilidade em que estamos nunca se sabe.»
«A propósito, que pensas deste novo governo?»
«Não se pode dizer que seja novo. Já vai com seis meses. Para ser franco não tenho muita esperança que as coisas melhorem. A economia estagnou, as exportações não crescem, a dívida não pára de crescer, o desemprego está como está e o primeiro ministro fez alianças muito perigosas que vão dar buraco, mais tarde ou mais cedo.»
«É também o que eu penso. Mas acho que vai ser mais tarde. Não vamos ficar melhor do que estávamos. Para um homem que tinha muita ambição, estou desiludida.»
«Lá ambição tinha e continua a ter enquanto não o rasteirarem.»
«Como assim, António?»
«Vamos acabar de comer o cozido?»
De facto tinha razão quanto ao Picoas Plazza. Quem conheceu aquele local, cheio de lojas, esplanadas, muita gente... era uma deceção ver o estado a que chegou. Aliás, nada me admirava em relação ao que estava a acontecer neste jardim à beira-mar plantado. Felizmente que a esplanada tinha escapado às "areias do deserto".«Esta esplanada é muito agradável, António!»
«Havias de ver este local há uns anos.»
«Continuando a nossa conversa do restaurante, António, falaste em rasteiras.»
«Sim. Não me esqueci ainda das rasteiras principais. Primeiro, foi uma tentativa de assalto ao poder dentro do próprio partido. Lembras-te?»
«Perfeitamente. Mas recuou. Não era chegada a altura.»
«Mais tarde, porque a vitória não foi muito "segura" nas europeias, zás! Rasteira decisiva ao número um do partido e o galo de Barcelos chegou ao poder. Seguiram-se as legislativas. Perdeu. Mas zás!, outra vez. Aliou-se historicamente à ala mais à esquerda e de novo tivemos o galo de Barcelos no poder. Bota abaixo e aproveitamento da recuperação do Governo que estava no poder, beneficiando também dos bons ventos que sopravam na altura dos lados da Europa. Entretanto a oposição esperou e voltou a esperar pelo diabo.»
«E agora?»
«É a vida... diz ele. Talvez que daqui a uns tempos lhe digam o mesmo. O diabo há de chegar um dia e para grande azar o nosso. Tenho o pressentimento que vamos sofrer na pele!»
«Nunca se sabe. Mas basta de política. Agora dá-me a má notícia. Claro que não contado com essa tua premonição.»
«Ainda não disse a boa.»
«Então...?»
Acariciei-lhe o rosto.
«Isto não era a boa notícia. Estava já nos teus olhos. E nos meus. Mas vamos falar do Mário. Está vivo e recomenda-se. Escreveu-me um postal. Adivinha donde?»
Encolheu os ombros.
«Não imagino.»
«Las Vegas.»
«Ah!»
«Está tão cheio de dinheiro que nem deve precisar de aperfeiçoar o sistema que tinha descoberto para tirar proveito no casino. Além da percentagem que tirou daquele acordo que fez com o misterioso grupo mafioso, afinal sempre conseguiu recuperar a mala desaparecida.»
«Que bom António! Vou já telefonar à Maria...»
«Não telefones. Espera pela má notícia.»
«Então?»
«A mala com o dinheiro nunca esteve perdida.»
«Não entendo, António. Segundo eu li, a Amélia desapareceu com a mala e o Mário só ficou com as comissões ganhas.»
«Isso também era o que eu pensava. Mas não foi bem assim que aconteceu. No mesmo dia em que recebi a carta do Mário, veio também uma pequena encomenda. Imagina, Mónica, mais um caderno!
«Ah!»
«Não deites foguetes antes da festa. O caderno tinha escrito na primeira página, pelo punho do Mário...»
«O quê?, António? Não faças suspense!»
«Intencionalmente em branco.»
«Só isso?»
«Sim.»
«E a carta?»
«Ah... a carta... O motivo porque disse para não contares nada à Maria. A carta era um pouco menos lacónica que o caderno. Só um pouco menos. Ele, a Amélia e a mala estavam bem de saúde e recomendavam-se. Por razões óbvias tinha escolhido Las Vegas para passarem uns tempos agradáveis nos casinos e também poder dedicar-se, sem limitações, ao estudo das séries das slot machines.»
«O filho da mãe! Descartou-se da Maria com uma destas limpezas impressionantes.»
«Amor com amor se paga.»
«O que queres dizer com isso?»
Demorei a responder. A ideia estava presente mas não sabia dizer as palavras certas para não ofender a amiga da Maria.
Afinal estavam empatados. Primeiro foi ele que não conseguiu montar o cavalo da coragem. Depois, foi ela. Não tinha a certeza se podia aceitar o convite que ele fazia para o seguir até ao fim do mundo. Tal e qual. Depois, aconteceu toda aquela embrulhada toda com a Amélia dos olhos doces, a mala com o dinheiro e, finalmente, Las Vegas.
«O Mário foi sempre um inconstante. Nunca soube separar as águas. Tens razão.»«Aí tens o Mário.»
«Uma cabeça de vento...»
«Eu também sou responsável.»
«Como assim? Tu e ele são duas pessoas diferentes. Ele é responsável pelos seus atos e tu pelos teus.»
«Não é assim tão linear, Mónica.»
Ficou a olhar para mim, tentando adivinhar o que estava escondido atrás daquelas palavras. E eu não lhe disse. Limitei-me a sorrir e a não fugir com o olhar.
«Já é tarde, António. Tenho que ir andando.»
«Encontramo-nos amanhã?»
«É melhor não.»
O estranho mundo da ilusão
Pegando num texto que li algures...
"Será a nossa existência no Universo uma ilusão?O que é real?
Supomos que o Universo que vemos à nossa volta existe mesmo. Não podemos saber que o Universo que nos rodeia é real. A nossa realidade poderá ser um fraco tecido de ilusões de nós próprios.
Depois, temos os acontecimentos aleatórios que podem não ser aleatórios, mas sim séries programadas.
Vivemos no Matrix?
Imaginemos que uma criatura mais evoluída poderia criar programas para cada aspeto do nosso Universo. Lei da gravidade. Genoma humano. Os cinco sentidos. As emoções. Os sentimentos. Para cada caso um programa. Subprogramas que fazem parte de um programa principal. O software seria incrivelmente grande e complexo. Ou talvez não. Segundo alguns investigadores que se debruçaram sobre este problema admitem que são precisas escassas linhas de código. São tudo o que alguém precisaria para governar o nosso Universo que, em conclusão, pode ter sido gerado por um computador.
Há quem afirme que sabe escrever o seu código.
Os eventos aleatórios podem ser programados?
Aleatórios que são pseudoaleatórios. Como o número irracional "Pi". Séries (caso dos videojogos de casino quando o jogador entra no bónus). Não passam de séries.
Finalmente, temos os casos relatados de déjà vu. Mas aí já estamos a interagir com mundos paralelos."
A hipótese de ter sido identificado pelo grupo mafioso que operava criminosamente na sombra, manipulando certos fiscais, mecânicos e chefes de sala, era residual dada a quase impossibilidade de ser descoberto depois que se submetera àquela plástica radical, modificando-lhe a fisionomia a ponto de não deixar o mínimo vestígio que fizesse lembrar o Mário dos tempos que eu e os amigos e conhecidos estávamos habituados a ver. Quanto à hipótese de ser localizado pelo chip, que os mafiosos lhe tinham implantado, e a partir do qual recebia informações de como agir no jogo de máquinas, também tinha que ser posta de parte, uma vez que o cirurgião plástico, que o riscou da face da Terra como Mário, removeu o chip do corpo. Restava admitir que fora identificado no casino por estar na minha companhia na noite em que desapareceu. Era uma hipótese mais viável, uma vez que, embora não sendo jogador, já tinha contactado com o Francisco e o Vítor, dois indivíduos muito populares no casino.
E afinal quem era a mulher do cabelo curto que interpelou Mário naquela noite em que fomos ao casino?
Nada tinha a acrescentar, uma vez que não a vi. Tudo o que pudesse dizer era pura especulação.
Segundo o Mário, o casino já tivera melhores dias. Os prémios eram mais frequentes e substanciais e os utentes ainda não estavam a ser demasiado massacrados. Era certo que um casino não estava aberto para ter prejuízo. Mas tudo tinha os seus limites e o desespero e revolta, acrescentado pela crise que grassava no país, começava a fazer os seus efeitos no casino. Os utentes perdiam mais vezes e espaçavam no tempo a sua presença. Agora só os mais resistentes (ou viciados) resistiam e não faltavam à chamada, juntamente com os protegidos que continuavam a ser beneficiados, embora menos do que noutros tempos. Como resultado da crise, o casino fechava ainda mais a torneira dos prémios e utilizava expedientes pondo novas máquinas com um software de topo de gama de efeitos mais espetaculares e aparentes baixos custos por jogada, uma vez que a maioria das máquinas novas era de um cêntimo. Um engano, pois a aposta mínima andava entre os quarenta e os oitenta cêntimos. Não tardaria que os utentes dessem conta do logro em que estavam a cair. Bastava que os prémios canalizados para essas máquinas deixassem de ser frequentes. E não tardaria que fosse feito o reajustamento. Logo que passasse o período de promoção, claro. Quanto às outras máquinas, nomeadamente as do Fort Knox e dos cifrões, sofriam ainda mais ao serem sangradas até limites perigosos.
E a inspeção?
Ora, a inspeção, como sempre, não descia à praça para ficar cara a cara com a realidade. O que interessava, entre outras coisas impenetráveis, era que os impostos continuassem a manter os seus níveis do passado, apesar da tal crise que se agudizara a partir de 2008 e tinha alcançado valores alarmantes em 2011.
Longe iam os tempos em que o Mário e o Raul se iniciaram naquele casino.
«Faltam vinte ondas para mergulharmos...»
«O quê?» perguntou logo o Raul, com um ar de intrigado. «Não sei de que estás a falar.»
Tive a certeza que já tinha mergulhado no interior da primeira história.
Estávamos sentados num banco, à espera. O calor apertava e via os bancos à nossa volta ocupados por pessoas que não conhecíamos, muito mais impacientes que nós, ele o observador e eu o participante em potência e também observador, quiçá mais especializado.
«Estive a observar que a onda vem do fundo do canal e concluí que o intervalo entre duas ondas é de meio minuto. Nem mais, nem menos.»
«Continuo a não entender.»
«Olha em frente e espera pela onda...»
«Já percebi.»
«Vem aí uma. Controla o tempo até chegar a outra e depois diz-me se tenho ou não tenho razão.»
Pouco depois rendia-se à evidência.
«Tens razão, podemos contar o tempo em ondas. Olha que nem lembrava ao careca, embora não venha daí qualquer efeito prático.»
«É só uma forma de matar o tempo.»
Tive uma ideia diabólica e sorri.
«Não tardam algumas ondas que abram a porta e que todos partam à procura do seu sonho ou do pesadelo. A correria pela disputa das máquinas baratas vai ser digna de ser vista. Só não sabem que mandei pôr pó-de-sabão no piso. Se não escorregarem, escorregam de outra maneira. Ó se escorregam.»
E afinal quem era a mulher do cabelo curto que interpelou Mário naquela noite em que fomos ao casino?
Nada tinha a acrescentar, uma vez que não a vi. Tudo o que pudesse dizer era pura especulação.
Segundo o Mário, o casino já tivera melhores dias. Os prémios eram mais frequentes e substanciais e os utentes ainda não estavam a ser demasiado massacrados. Era certo que um casino não estava aberto para ter prejuízo. Mas tudo tinha os seus limites e o desespero e revolta, acrescentado pela crise que grassava no país, começava a fazer os seus efeitos no casino. Os utentes perdiam mais vezes e espaçavam no tempo a sua presença. Agora só os mais resistentes (ou viciados) resistiam e não faltavam à chamada, juntamente com os protegidos que continuavam a ser beneficiados, embora menos do que noutros tempos. Como resultado da crise, o casino fechava ainda mais a torneira dos prémios e utilizava expedientes pondo novas máquinas com um software de topo de gama de efeitos mais espetaculares e aparentes baixos custos por jogada, uma vez que a maioria das máquinas novas era de um cêntimo. Um engano, pois a aposta mínima andava entre os quarenta e os oitenta cêntimos. Não tardaria que os utentes dessem conta do logro em que estavam a cair. Bastava que os prémios canalizados para essas máquinas deixassem de ser frequentes. E não tardaria que fosse feito o reajustamento. Logo que passasse o período de promoção, claro. Quanto às outras máquinas, nomeadamente as do Fort Knox e dos cifrões, sofriam ainda mais ao serem sangradas até limites perigosos.
E a inspeção?
Ora, a inspeção, como sempre, não descia à praça para ficar cara a cara com a realidade. O que interessava, entre outras coisas impenetráveis, era que os impostos continuassem a manter os seus níveis do passado, apesar da tal crise que se agudizara a partir de 2008 e tinha alcançado valores alarmantes em 2011.
Longe iam os tempos em que o Mário e o Raul se iniciaram naquele casino.
«Faltam vinte ondas para mergulharmos...»
«O quê?» perguntou logo o Raul, com um ar de intrigado. «Não sei de que estás a falar.»
Tive a certeza que já tinha mergulhado no interior da primeira história.
Estávamos sentados num banco, à espera. O calor apertava e via os bancos à nossa volta ocupados por pessoas que não conhecíamos, muito mais impacientes que nós, ele o observador e eu o participante em potência e também observador, quiçá mais especializado.
«Estive a observar que a onda vem do fundo do canal e concluí que o intervalo entre duas ondas é de meio minuto. Nem mais, nem menos.»
«Continuo a não entender.»
«Olha em frente e espera pela onda...»
«Já percebi.»
«Vem aí uma. Controla o tempo até chegar a outra e depois diz-me se tenho ou não tenho razão.»
Pouco depois rendia-se à evidência.
«Tens razão, podemos contar o tempo em ondas. Olha que nem lembrava ao careca, embora não venha daí qualquer efeito prático.»
«É só uma forma de matar o tempo.»
Tive uma ideia diabólica e sorri.
«Não tardam algumas ondas que abram a porta e que todos partam à procura do seu sonho ou do pesadelo. A correria pela disputa das máquinas baratas vai ser digna de ser vista. Só não sabem que mandei pôr pó-de-sabão no piso. Se não escorregarem, escorregam de outra maneira. Ó se escorregam.»
Talvez não fosse um bom dia para ir ao casino, mas impunha-se. Era sábado. Onze da noite. Um espetáculo barulhento estava no ar e tinha chamado muita juventude. Muita cerveja em copos de plástico. Promessas de problemas que os seguranças tinham que enfrentar depois da meia-noite. E, acabado o espetáculo, máquinas ronronantes à sua espera, bem mais simpáticas para eles do que para os utentes que não faltavam à chamada. O que era um logro para os que voltassem mais tarde, na expectativa de ganharem de novo.
Com um sorriso nos lábios, afastei-me do local do barulho e dirigi-me para os lados do Fort Knox. Não precisei de dar muitos passos e agora a realidade era outra. Jogo e mais jogo. Concentração. Murros nos ecrãs das máquinas. Esgares de impotência. Queixas a seguir a queixas. Palavrões de revolta. Desespero. Tal como Mário me contara e eu tinha escrito, mas ainda pior do que imaginava. Talvez um sinal de que a crise se instalara também nos casinos.
«Já reparou como está a platina?»
Olhei para a minha esquerda.
«Por acaso não. Acabo de chegar.»
«Quatro mil e quinhentos euros! E depois dizem que o jogo é aleatório...»
Mário também falara disso, culminando a sua descrição com uma palavra. Manipulação.
«Quando o fiscal me falou em teoria da conspiração, fui aos arames, António! Teoria da conspiração quando tinha a realidade bem na minha frente. Nem imaginas como desanquei nele...»
«Imagino, sim. Já me contaste. Olha, Mário, mas não estás a exagerar?»
«Convido-te a ires comigo um dia ao casino.»
«Obrigado.»
Declinei o convite e sabia porquê.
Pareceu-me reconhecer o homem. Tinha razão. Era um abuso que devia ser denunciado. Aliás, Mário já denunciara várias vezes à inspeção casos mais estranhos.
Resultados?
Nenhuns. Outra coisa não se podia esperar. Manipulavam as máquinas do Forte de tal forma que os jogadores, perante valores altos para o ouro e a platina jogavam cada mais alto para poderem ir mais vezes ao cofre, na ânsia de ganharem um desses prémios chorudos. Os valores dos prémios começavam em quatrocentos euros e dois mil euros, respetivamente, e não era hábito atingirem valores duplos dos mesmos. Mas agora estava a acontecer.
«Se o jogo é aleatório, então eu fui ontem ordenado padre.» Costumava ironizar o Mário.
«Já reparou que os jogadores do Fort Knox se comportam como autênticos prisioneiros do mesmo? Passam horas a fio agarrados às máquinas na esperança destas os libertarem da prisão após um bom bónus.»
Não obtive resposta. Descobri o porquê do silêncio. O homem já não estava presente.
«Olha o meu amigo que andava naquela noite à procura do doutor Mário!»
«Não me faltava mais nada!» pensei.
«E o senhor é o Vítor. Já lá vai um tempo...»
«E sempre o encontrou, meu amigo?»
«Não. E o senhor?»
Não queria adiantar-me muito. O Mário tinha-me confessado que aquele indivíduo trabalhava para o casino. Ou melhor: suspeitava.
«Também não. Olhe, meu amigo, tenho uma máquina de cavalos livre...»
E tinha razão. Outro qualquer que não ele já tinha sido expulso do casino se não estivesse ao serviço.
«Não, muito obrigado.»
Senti que me pegavam na manga do casaco.
«Depressa!»
«Que se passa?»
Uma mulher de cabelo escuro acastanhado olhava-me com aparente ansiedade.
«Venha antes que o encontrem!»
Olhei em volta e achei exagerado alarme. Tudo me parecia normal.
A ser verdade, que queriam de mim se não me conheciam?
«Mas...»
«Depressa, depressa...»
E foi-se afastando, sempre a olhar para trás.
Apressei o passo na direção da mulher, disposto a não a perder de vista. Era estranho. À minha volta parecia tudo normal. Uma sala barulhenta, provavelmente por causa do cantor convidado pela administração do casino. Muita gente com copos de plástico nas mãos, bebendo cerveja. Mas nada de anormal aos meus olhos.
«É por causa do Mário?» arrisquei.
Não me respondeu porque não ouviu ou não quis responder.
Juntos, passámos uma porta e atravessámos um corredor que nos levou diretamente ao parque de estacionamento.
«Tal e qual como Mário me disse...» Pensei.
Não demos muitos passos e entrámos pela porta traseira de um BMW que já tinha o motor a trabalhar. Só tive tempo de olhar para a cabeça calva do condutor porque logo a seguir fez-se escuro.
«Já reparou como está a platina?»
Olhei para a minha esquerda.
«Por acaso não. Acabo de chegar.»
«Quatro mil e quinhentos euros! E depois dizem que o jogo é aleatório...»
Mário também falara disso, culminando a sua descrição com uma palavra. Manipulação.
«Quando o fiscal me falou em teoria da conspiração, fui aos arames, António! Teoria da conspiração quando tinha a realidade bem na minha frente. Nem imaginas como desanquei nele...»
«Imagino, sim. Já me contaste. Olha, Mário, mas não estás a exagerar?»
«Convido-te a ires comigo um dia ao casino.»
«Obrigado.»
Declinei o convite e sabia porquê.
Pareceu-me reconhecer o homem. Tinha razão. Era um abuso que devia ser denunciado. Aliás, Mário já denunciara várias vezes à inspeção casos mais estranhos.
Resultados?
Nenhuns. Outra coisa não se podia esperar. Manipulavam as máquinas do Forte de tal forma que os jogadores, perante valores altos para o ouro e a platina jogavam cada mais alto para poderem ir mais vezes ao cofre, na ânsia de ganharem um desses prémios chorudos. Os valores dos prémios começavam em quatrocentos euros e dois mil euros, respetivamente, e não era hábito atingirem valores duplos dos mesmos. Mas agora estava a acontecer.
«Se o jogo é aleatório, então eu fui ontem ordenado padre.» Costumava ironizar o Mário.
«Já reparou que os jogadores do Fort Knox se comportam como autênticos prisioneiros do mesmo? Passam horas a fio agarrados às máquinas na esperança destas os libertarem da prisão após um bom bónus.»
Não obtive resposta. Descobri o porquê do silêncio. O homem já não estava presente.
«Olha o meu amigo que andava naquela noite à procura do doutor Mário!»
«Não me faltava mais nada!» pensei.
«E o senhor é o Vítor. Já lá vai um tempo...»
«E sempre o encontrou, meu amigo?»
«Não. E o senhor?»
Não queria adiantar-me muito. O Mário tinha-me confessado que aquele indivíduo trabalhava para o casino. Ou melhor: suspeitava.
«Também não. Olhe, meu amigo, tenho uma máquina de cavalos livre...»
E tinha razão. Outro qualquer que não ele já tinha sido expulso do casino se não estivesse ao serviço.
«Não, muito obrigado.»
Senti que me pegavam na manga do casaco.
«Depressa!»
«Que se passa?»
Uma mulher de cabelo escuro acastanhado olhava-me com aparente ansiedade.
«Venha antes que o encontrem!»
Olhei em volta e achei exagerado alarme. Tudo me parecia normal.
A ser verdade, que queriam de mim se não me conheciam?
«Mas...»
«Depressa, depressa...»
E foi-se afastando, sempre a olhar para trás.
Apressei o passo na direção da mulher, disposto a não a perder de vista. Era estranho. À minha volta parecia tudo normal. Uma sala barulhenta, provavelmente por causa do cantor convidado pela administração do casino. Muita gente com copos de plástico nas mãos, bebendo cerveja. Mas nada de anormal aos meus olhos.
«É por causa do Mário?» arrisquei.
Não me respondeu porque não ouviu ou não quis responder.
Juntos, passámos uma porta e atravessámos um corredor que nos levou diretamente ao parque de estacionamento.
«Tal e qual como Mário me disse...» Pensei.
Não demos muitos passos e entrámos pela porta traseira de um BMW que já tinha o motor a trabalhar. Só tive tempo de olhar para a cabeça calva do condutor porque logo a seguir fez-se escuro.
No passado
Onde estava?«Foi mesmo à conta, António!»
Provavelmente sonhava. Tinha o Mário na minha frente. O seu rosto de sempre.
«Mas...»
«Não te preocupes. Está tudo bem por aqui.»
«Que se passa, Mário?» perguntei, algo nervoso.
Fez-me um sinal para esperar e afastou-se alguns metros. Foi então que vi ao fundo o homem calvo que conduzia o BMW. Apurei o ouvido mas não consegui ouvir o que diziam.
Olhei em volta e vi que estava numa sala que fazia lembrar um escritório. Fazia lembrar porque faltava qualquer coisa e havia também outra qualquer coisa que me admirou. Oito secretárias alinhadas, quatro a quatro. Ao fundo, outra mesa onde estava sentado o homem calvo, virado para mim. Ele e o Mário continuavam a conversar. Bem gostava de ser mosca naquele momento.
Deixei-me ficar de pé, tal como estava quando fui interpelado pelo meu amigo. Não sabia como tinha ido parar àquele escritório. De resto sentia-me bem, embora um pouco nervoso.
Fui observando melhor o que me rodeava. À esquerda, e no enfiamento da segunda linha de secretárias, havia um guichet destinado ao atendimento. Logo a seguir, encostados à parede, até ao fundo da sala, um conjunto de arquivadores metálicos de cor cinzenta. Depois havia uma porta que dava acesso a outra divisão e talvez à saída.
Olhei para a minha direita e vi outra secretária encostada a uma janela. Atrás, mais dois ou três arquivadores. Tudo normal para um escritório. Só dois pormenores. Além de nós não havia mais ninguém. E o mais importante: sobre o tampo de cada secretária havia uma máquina de escrever e montes de papéis em cestas metálicas. Nada de computadores, o que dava para pensar.
«Então, pensa, António, que o teu pensar tem graça. Estás na presença de um escritório do tempo da Maria Cachucha.» Admiti.
Faltava ainda ver o que havia atrás de mim.
«Uma porta. Vejamos...»
Rodei a porta e espreitei. Vi uma mesa grande, em mogno, sem nada sobre ela.
«Uma mesa de apoio, talvez onde são tomadas refeições.» Pensei.
De repente, vi o Mário debruçado sobre a mesa. Ia pegando em envelopes selados, dos quais retirava os selos com o auxílio de uma tesoura. Quatro cortes retilíneos no envelope e.
Imagens vindas do passado?
«António.»
Voltei-me. Era ele que me chamava. Estava sentado na secretária em frente ao guichet.
«Sim?»
«Senta-te ao meu lado.»
Obedeci.
«Quando olhei lá para dentro, vi uma coisa, Mário. Pareceu-me ver-te a retirar envelopes de selos.»
Olhou para mim, intrigado.
«Viste mesmo?»
«Sim. Foi só um momento.»
«O estranho é que é verdade. Eu costumava fazer isso depois das refeições. Os envelopes com as missivas dos beneficiários eram guardados, em molhos por mês, e só podiam ser inutilizados seis meses depois da data dos carimbos dos correios. Já estás a imaginar onde estamos.»
«Como viemos parar a este escritório, onde estiveste a trabalhar em 1967?»
«Exato.» Foi a resposta que deu.
«Então e...» Insisti.
«Depressa!»
«O que se passa?»
Tanto mistério!
Olhei para o fundo. O homem calvo já não estava presente quando ouvi um ruído de um besouro, avisando que alguém tinha entrado no pequeno hall do outro lado. O rosto de uma mulher já assomava ao guichet.
«Vou fazer uma coisa que não fiz quando devia ter feito.» Afirmou, sem se virar para mim.
«E o que é, Mário?»
Não respondeu. Vi-o de pé, a dirigir-se para o guichet. Sentia-me confuso. Queria entender. Tudo aquilo que estava a acontecer criava uma neblina impenetrável.
Não demorou mais que um minuto o tempo em que esteve, aparentemente, a falar com a desconhecida.
«Deixa-te ficar aí.» Disse, virando-se para trás.
Entretanto a mulher já tinha saído.
Vi-o atravessar a sala, abrir a porta ao fundo e desaparecer.
«Que está a acontecer?» perguntei, num sussurro. «Não estou a perceber!»
Continuava sem saber como fora ali parar juntamente com o Mário e o homem calvo.
Que significava para ele aquele escritório, além de um mero local de trabalho? Onde estavam as pessoas que ocupavam as secretárias? Quem era a mulher que assomou ao guichet? O que levou Mário a sair da sala?
Muitas perguntas e nenhuma resposta. Mistérios. Mistérios que só o meu amigo podia explicar quando voltasse, se é que voltava. Finalmente, a peça chave de todos aqueles misteriosos acontecimentos era o homem calvo que também se ausentara. Precisava de deixar passar o tempo, mas sentado perto do guichet não ia a parte alguma. Então, dirigi-me a uma das janelas e espreitei para o exterior. O que vi deixou-me atónito.
«Incrível! Confirma-se.»
Sem sombra de dúvidas. Estava a ver a rua dos Douradores. O largo dos CTT. Mais ao fundo, a rua dos Fanqueiros. E Mário ainda conhecia melhor do que eu. Afinal tinha trabalhado em tempos recuados neste escritório. Para ele não era novidade. E, vendo melhor, eu também estava dentro do que se passou naquele escritório. Ou não escrevesse as histórias que ele me contava.
«Oh!»
Nem queria acreditar. O livro que tinha entre mãos era de Paleontologia, uma das cadeiras do curso de Geologia.
«Que estás a ver, António?»
Sobressaltei-me. Não tinha dado pela presença do Mário.
«Uma coisa de outro mundo. Um livro antigo de Paleontologia. Léon Moret. Lembro-me bem dos dois manuais, apesar de já terem passado muitos anos. Paleontologia Animal e Paleontologia Vegetal. Duas bíblias, salvo seja.»
«Esses livros eram meus. Deu-mos o pai de um explicando. Foi há trinta e um, ou trinta e dois anos. Não tenho a certeza. O Adolfo é que sabe ao certo.»
«Quem é o Adolfo?»
«A pessoa que nos trouxe a este escritório.» Foi a resposta do Mário.
«Mário, com quem te foste encontrar lá fora? Aquela mulher era...?»
«Adivinha?»
«Não leio pensamentos.»
«A Manuela.»
«Não é possível!»
«Tanto é que estamos aqui. No ano exato. No dia exato. E à hora exata.»
«Agora percebo. Este é o momento em que a Manuela está a dirigir-se ao guichet para entregar o requerimento de subsídio de casamento. E, se bem me lembro, porque fui eu que escrevi a história, também um papel que nesse momento não conseguiste receber.»
«Sim, é verdade. Pedi ao meu colega do lado para atender a Manuela. Não tive coragem. Hoje...»
«Mas conta tudo de princípio. Tim tim por tim. Desde que entrei no BMW acompanhado de uma mulher. E a propósito, quem era essa mulher?»
«Ninguém em especial. Apenas a companheira do Adolfo.»
«Suponho que devia estar aqui connosco.»
«Escuta, António. Quando entraste no BMW não foi aí que fomos teleportados para este escritório. Lembra-te que eu nem sequer estava no interior do carro.»
«Então?»
«A mulher que te conduziu ao carro deu-te uma picada subtil com um anestesiante poderoso e perdeste de imediato a consciência. Só mais tarde é que aconteceu o teleporte e de facto ela não veio connosco. Ficou a manipular instrumentos no painel de comandos para que tudo corresse bem no regresso.»
«Compreendo. Materialização e desmaterialização. Mas isso pertence ao mundo da ficção científica e não existem ainda tecnologias que permitam que tais processos, a materialização e a desmaterialização, sejam viáveis.»
«Talvez não, António.»
«Tu lá sabes. Bom, passando por cima do assunto, quando há tempos estávamos a jogar no Fort Knox desapareceste de repente. Só sei que uma mulher de cabelo curto tocou-te no ombro e seguiste-a logo. Essa mulher, quem era?»
«Uma colaboradora do Adolfo. Era urgente retirarem-me do casino.»
«Porquê?»
«Não sei. Nunca me explicaram muito bem. Mas julgo que os mafiosos já andavam no meu encalce. Acho que ainda andam pelo casino a manipular as máquinas a seu pelo prazer e a roubar os prémios que assim não podem sobrar para os utentes. Mais perigoso teria sido para ti se tivesses continuado lá. Mas deixa-te ficar muito bem sentado nessa secretária que já foi minha em tempos e escuta.»
«Antes de começares, diz-me uma coisa: onde está esse teu amigo da cabeça rapada?»
Sorriu. Provavelmente achou graça à expressão "amigo da cabeça rapada".
«Neste momento julgo que ele está em contacto com a companheira que controla a cabine onde se processam a materialização e a desmaterialização.»
«Será que eles conseguem contactar, estando em épocas diferentes?»
«Boa pergunta.»
«Então achas que não estamos nas mãos de Deus, mas sim nas da companheira do teu novo amigo.»
«Sim. A Eva. Acredito que depende em absoluto dessa mulher voltarmos sãos e salvos.»
«António.»
Voltei-me. Era ele que me chamava. Estava sentado na secretária em frente ao guichet.
«Sim?»
«Senta-te ao meu lado.»
Obedeci.
«Quando olhei lá para dentro, vi uma coisa, Mário. Pareceu-me ver-te a retirar envelopes de selos.»
Olhou para mim, intrigado.
«Viste mesmo?»
«Sim. Foi só um momento.»
«O estranho é que é verdade. Eu costumava fazer isso depois das refeições. Os envelopes com as missivas dos beneficiários eram guardados, em molhos por mês, e só podiam ser inutilizados seis meses depois da data dos carimbos dos correios. Já estás a imaginar onde estamos.»
«Como viemos parar a este escritório, onde estiveste a trabalhar em 1967?»
«Exato.» Foi a resposta que deu.
«Então e...» Insisti.
«Depressa!»
«O que se passa?»
Tanto mistério!
Olhei para o fundo. O homem calvo já não estava presente quando ouvi um ruído de um besouro, avisando que alguém tinha entrado no pequeno hall do outro lado. O rosto de uma mulher já assomava ao guichet.
«Vou fazer uma coisa que não fiz quando devia ter feito.» Afirmou, sem se virar para mim.
«E o que é, Mário?»
Não respondeu. Vi-o de pé, a dirigir-se para o guichet. Sentia-me confuso. Queria entender. Tudo aquilo que estava a acontecer criava uma neblina impenetrável.
Não demorou mais que um minuto o tempo em que esteve, aparentemente, a falar com a desconhecida.
«Deixa-te ficar aí.» Disse, virando-se para trás.
Entretanto a mulher já tinha saído.
Vi-o atravessar a sala, abrir a porta ao fundo e desaparecer.
«Que está a acontecer?» perguntei, num sussurro. «Não estou a perceber!»
Continuava sem saber como fora ali parar juntamente com o Mário e o homem calvo.
Que significava para ele aquele escritório, além de um mero local de trabalho? Onde estavam as pessoas que ocupavam as secretárias? Quem era a mulher que assomou ao guichet? O que levou Mário a sair da sala?
Muitas perguntas e nenhuma resposta. Mistérios. Mistérios que só o meu amigo podia explicar quando voltasse, se é que voltava. Finalmente, a peça chave de todos aqueles misteriosos acontecimentos era o homem calvo que também se ausentara. Precisava de deixar passar o tempo, mas sentado perto do guichet não ia a parte alguma. Então, dirigi-me a uma das janelas e espreitei para o exterior. O que vi deixou-me atónito.
«Incrível! Confirma-se.»
Sem sombra de dúvidas. Estava a ver a rua dos Douradores. O largo dos CTT. Mais ao fundo, a rua dos Fanqueiros. E Mário ainda conhecia melhor do que eu. Afinal tinha trabalhado em tempos recuados neste escritório. Para ele não era novidade. E, vendo melhor, eu também estava dentro do que se passou naquele escritório. Ou não escrevesse as histórias que ele me contava.
O Cintra
«É pá, é a razão seguinte. Como vês isto não tem dificuldade. Primeiro tens que fazer rolar estas pecinhas que têm as letras e os números até formares a data. Depois...»
«Zumba! Carimbo as folhas.» Disse Mário.
«E os envelopes, não te esqueças.»
«Descansa o bico, ó Cintra!»
«É pá, ó Leonel, não tens piada nenhuma!»
«Conta lá aquela história de quando estavas na tropa, na Companhia do "Arre Macho"...»
«Essa não posso. Está ali uma senhora.» Escusou-se, apontado para o lado da secretária encostada à parede onde estava a datilógrafa, de nome Joaquina de Jesus.
«Vá lá, conta. Ela tapa os ouvidos.»
«Então é a razão seguinte. Dona Joaquina, peço-lhe que não oiça. Um dia o comandante...»
«Impossível!» exclamei.
Parecia que estavam todos aqui. Nunca os vi, mas o Mário contou-me passagens do tempo em que esteve naquele escritório.
O "impossível" foi dito agora com mais convicção porque sabia que era um absurdo estarmos os três num escritório que já não existia. Na realidade o espaço era atualmente ocupado por uma empresa que nada tinha a ver com a Caixa dos Empregados Bancários.
Abandonei o meu ponto de observação e fui sentar-me no lugar ocupado pelo Mário. Conhecia grande parte dos seus momentos passados no escritório. Dividia o tempo entre o escritório e a Faculdade de Ciências. Quando acabava o trabalho, abria a gaveta da secretária. Lá dentro havia sempre fascículos para estudar. Então, estudava se não fosse preciso ajudar um colega atrasado no trabalho. Por vezes, participava nas brincadeiras dos colegas.
«Olha o meu amigo Mário! Hoje temos entrega de ordens de pagamento. Queres ir comigo?»
«É dia grande para ti. Se o doutor deixar, eu vou. Mas porta-te bem.»
«Já falei com o doutor e tu vais comigo depois do almoço.»
«E logo depois do almoço. Mas vou jogar à defesa, Cintra. Não tenho a tua pedalada.»
Referia-me aos copos de tinto que o esperavam nas muitas capelinhas e teria que o acompanhar em dois ou três.
«É a razão seguinte: bebes o que quiseres.»
«Claro, claro. Mas agora ouve uma coisa. Tenho um bilhete para ti. Estava na minha secretária.»
Fez um ar de pessoa importante.
«Dá cá, dá cá. Sabes o que é?»
«Como havia de saber? Cheguei mesmo agora das aulas e vi o bilhete. Tu é que deves saber. Ouve lá, meu malandro, andas a engatar alguma contínua?»
«Bem, é a razão seguinte...»
«Pronto. A razão seguinte é uma dúvida. Quem será a felizarda?»
«Troca essa coisada por miúdos.»
«Deixa. Vê lá o que vais fazer depois de leres o bilhete.»
Coçou o queixo e mostrou um ar saudoso.
«É pá, tenho o moral muito em baixo. Não pode ser o que julgas.»
«Há quanto tempo?»
Limitou-se a encolher os ombros.
Voltei para o meu lugar. Os outros sustinham o riso. Até a datilógrafa, introvertida por natureza, tinha suspendido o matraquear na velhinha Azerty que ainda fazia bem o seu trabalho.
Passei a observar a vítima. Olhou e voltou a olhar o bilhete e notei nele um certo ar que interpretei com sendo de interrogação. Parecia não estar a acreditar no que lia. Pois não. Colocou o bilhete sobre a secretária. Desânimo na assembleia.
Mas a curiosidade acabou por sair vencedora. Pegou no telefone e discou o número. Estabeleceu-se um diálogo “de cá para lá e de lá para cá” que logicamente não ouvi. Só podia avaliar o evoluir da conversação através da expressão do rosto e dos gestos largos, pondo de parte as caretas nervosas e as tais inevitáveis boquinhas.
Começo: afabilidade. E a seguir: semblante sério e logo a seguir de perplexidade.
Que se passava?
A resposta à minha dúvida foi um brusco pousar do telefonar e um ar de poucos amigos na minha direção. Tudo se passou muito rapidamente.
E então?
Tinha ligado para o Jardim Zoológico e queria falar com o doutor Leão.
Num gesto maquinal abri a gaveta da secretária.«Zumba! Carimbo as folhas.» Disse Mário.
«E os envelopes, não te esqueças.»
«Descansa o bico, ó Cintra!»
«É pá, ó Leonel, não tens piada nenhuma!»
«Conta lá aquela história de quando estavas na tropa, na Companhia do "Arre Macho"...»
«Essa não posso. Está ali uma senhora.» Escusou-se, apontado para o lado da secretária encostada à parede onde estava a datilógrafa, de nome Joaquina de Jesus.
«Vá lá, conta. Ela tapa os ouvidos.»
«Então é a razão seguinte. Dona Joaquina, peço-lhe que não oiça. Um dia o comandante...»
«Impossível!» exclamei.
Parecia que estavam todos aqui. Nunca os vi, mas o Mário contou-me passagens do tempo em que esteve naquele escritório.
O "impossível" foi dito agora com mais convicção porque sabia que era um absurdo estarmos os três num escritório que já não existia. Na realidade o espaço era atualmente ocupado por uma empresa que nada tinha a ver com a Caixa dos Empregados Bancários.
Abandonei o meu ponto de observação e fui sentar-me no lugar ocupado pelo Mário. Conhecia grande parte dos seus momentos passados no escritório. Dividia o tempo entre o escritório e a Faculdade de Ciências. Quando acabava o trabalho, abria a gaveta da secretária. Lá dentro havia sempre fascículos para estudar. Então, estudava se não fosse preciso ajudar um colega atrasado no trabalho. Por vezes, participava nas brincadeiras dos colegas.
«Olha o meu amigo Mário! Hoje temos entrega de ordens de pagamento. Queres ir comigo?»
«É dia grande para ti. Se o doutor deixar, eu vou. Mas porta-te bem.»
«Já falei com o doutor e tu vais comigo depois do almoço.»
«E logo depois do almoço. Mas vou jogar à defesa, Cintra. Não tenho a tua pedalada.»
Referia-me aos copos de tinto que o esperavam nas muitas capelinhas e teria que o acompanhar em dois ou três.
«É a razão seguinte: bebes o que quiseres.»
«Claro, claro. Mas agora ouve uma coisa. Tenho um bilhete para ti. Estava na minha secretária.»
Fez um ar de pessoa importante.
«Dá cá, dá cá. Sabes o que é?»
«Como havia de saber? Cheguei mesmo agora das aulas e vi o bilhete. Tu é que deves saber. Ouve lá, meu malandro, andas a engatar alguma contínua?»
«Bem, é a razão seguinte...»
«Pronto. A razão seguinte é uma dúvida. Quem será a felizarda?»
«Troca essa coisada por miúdos.»
«Deixa. Vê lá o que vais fazer depois de leres o bilhete.»
Coçou o queixo e mostrou um ar saudoso.
«É pá, tenho o moral muito em baixo. Não pode ser o que julgas.»
«Há quanto tempo?»
Limitou-se a encolher os ombros.
Voltei para o meu lugar. Os outros sustinham o riso. Até a datilógrafa, introvertida por natureza, tinha suspendido o matraquear na velhinha Azerty que ainda fazia bem o seu trabalho.
Passei a observar a vítima. Olhou e voltou a olhar o bilhete e notei nele um certo ar que interpretei com sendo de interrogação. Parecia não estar a acreditar no que lia. Pois não. Colocou o bilhete sobre a secretária. Desânimo na assembleia.
Mas a curiosidade acabou por sair vencedora. Pegou no telefone e discou o número. Estabeleceu-se um diálogo “de cá para lá e de lá para cá” que logicamente não ouvi. Só podia avaliar o evoluir da conversação através da expressão do rosto e dos gestos largos, pondo de parte as caretas nervosas e as tais inevitáveis boquinhas.
Começo: afabilidade. E a seguir: semblante sério e logo a seguir de perplexidade.
Que se passava?
A resposta à minha dúvida foi um brusco pousar do telefonar e um ar de poucos amigos na minha direção. Tudo se passou muito rapidamente.
E então?
Tinha ligado para o Jardim Zoológico e queria falar com o doutor Leão.
«Oh!»
Nem queria acreditar. O livro que tinha entre mãos era de Paleontologia, uma das cadeiras do curso de Geologia.
«Que estás a ver, António?»
Sobressaltei-me. Não tinha dado pela presença do Mário.
«Uma coisa de outro mundo. Um livro antigo de Paleontologia. Léon Moret. Lembro-me bem dos dois manuais, apesar de já terem passado muitos anos. Paleontologia Animal e Paleontologia Vegetal. Duas bíblias, salvo seja.»
«Esses livros eram meus. Deu-mos o pai de um explicando. Foi há trinta e um, ou trinta e dois anos. Não tenho a certeza. O Adolfo é que sabe ao certo.»
«Quem é o Adolfo?»
«A pessoa que nos trouxe a este escritório.» Foi a resposta do Mário.
«Mário, com quem te foste encontrar lá fora? Aquela mulher era...?»
«Adivinha?»
«Não leio pensamentos.»
«A Manuela.»
«Não é possível!»
«Tanto é que estamos aqui. No ano exato. No dia exato. E à hora exata.»
«Agora percebo. Este é o momento em que a Manuela está a dirigir-se ao guichet para entregar o requerimento de subsídio de casamento. E, se bem me lembro, porque fui eu que escrevi a história, também um papel que nesse momento não conseguiste receber.»
«Sim, é verdade. Pedi ao meu colega do lado para atender a Manuela. Não tive coragem. Hoje...»
«Mas conta tudo de princípio. Tim tim por tim. Desde que entrei no BMW acompanhado de uma mulher. E a propósito, quem era essa mulher?»
«Ninguém em especial. Apenas a companheira do Adolfo.»
«Suponho que devia estar aqui connosco.»
«Escuta, António. Quando entraste no BMW não foi aí que fomos teleportados para este escritório. Lembra-te que eu nem sequer estava no interior do carro.»
«Então?»
«A mulher que te conduziu ao carro deu-te uma picada subtil com um anestesiante poderoso e perdeste de imediato a consciência. Só mais tarde é que aconteceu o teleporte e de facto ela não veio connosco. Ficou a manipular instrumentos no painel de comandos para que tudo corresse bem no regresso.»
«Compreendo. Materialização e desmaterialização. Mas isso pertence ao mundo da ficção científica e não existem ainda tecnologias que permitam que tais processos, a materialização e a desmaterialização, sejam viáveis.»
«Talvez não, António.»
«Tu lá sabes. Bom, passando por cima do assunto, quando há tempos estávamos a jogar no Fort Knox desapareceste de repente. Só sei que uma mulher de cabelo curto tocou-te no ombro e seguiste-a logo. Essa mulher, quem era?»
«Uma colaboradora do Adolfo. Era urgente retirarem-me do casino.»
«Porquê?»
«Não sei. Nunca me explicaram muito bem. Mas julgo que os mafiosos já andavam no meu encalce. Acho que ainda andam pelo casino a manipular as máquinas a seu pelo prazer e a roubar os prémios que assim não podem sobrar para os utentes. Mais perigoso teria sido para ti se tivesses continuado lá. Mas deixa-te ficar muito bem sentado nessa secretária que já foi minha em tempos e escuta.»
«Antes de começares, diz-me uma coisa: onde está esse teu amigo da cabeça rapada?»
Sorriu. Provavelmente achou graça à expressão "amigo da cabeça rapada".
«Neste momento julgo que ele está em contacto com a companheira que controla a cabine onde se processam a materialização e a desmaterialização.»
«Será que eles conseguem contactar, estando em épocas diferentes?»
«Boa pergunta.»
«Então achas que não estamos nas mãos de Deus, mas sim nas da companheira do teu novo amigo.»
«Sim. A Eva. Acredito que depende em absoluto dessa mulher voltarmos sãos e salvos.»
«Fiquei mais animado.»
«Vai tudo correr bem.»
«E se falhar alguma coisa, ficamos para sempre retidos no passado?»
«Bom, vou tentar dizer-te tudo o que sei. Entretanto ficamos à espera do Adolfo receber o sinal para voltarmos.»
«Nem tu nem eu queremos ficar perdidos para sempre no tempo nesta Lisboa deserta, digamos, quase virtual. Digo isto porque, quando fui a uma das janelas e espreitei lá para fora, não vi vivalma, Mário! Vê se me entendes, criatura. Tens que me contar tudo o que aconteceu!»
«Vai tudo correr bem.»
«E se falhar alguma coisa, ficamos para sempre retidos no passado?»
«Bom, vou tentar dizer-te tudo o que sei. Entretanto ficamos à espera do Adolfo receber o sinal para voltarmos.»
«Nem tu nem eu queremos ficar perdidos para sempre no tempo nesta Lisboa deserta, digamos, quase virtual. Digo isto porque, quando fui a uma das janelas e espreitei lá para fora, não vi vivalma, Mário! Vê se me entendes, criatura. Tens que me contar tudo o que aconteceu!»
Porque desapareceu Mário
Mário tinha aperfeiçoado uma técnica de ganhar nas máquinas de vídeo dos casinos. Baseava-se simplesmente nas mais que célebres sequências que desconfiava existirem desde que um funcionário dos balcões de pagamento e troca de tickets lhe tinha dado como certo a existência das ditas sequências. Foi fácil desenvolver um software para trabalhar a base de dados que ia extraindo das máquinas enquanto jogava. Melhor dizendo, foi um minuto de inspiração depois de muitos de transpiração. Depois, instalou a base de dados e um programa executivo num aparente telemóvel que não era mais que um computador que ligava, sem fios, com a máquina onde jogava. A princípio teve alguns amargos de boca em Las Vegas. Mas dinheiro não lhe faltava e pôde ir para a frente com o seu projeto. Até que um dia descobriu o "ovo de Colombo", baseado na mudança de série que ocorria quando os "rolos" da máquina invertiam, por uma só vez, o sentido. Avaliando o software essa nuance, foi fácil todo o resto. Isto é: saber quando a série era favorável e prolongá-la por mais algum tempo, o bastante para ter êxito. Outro segredo para ajudar ao êxito era jogar muito depressa, em modo de jogador nervoso.
Depois teve que fugir de Las Vegas. Submeteu-se a uma operação plástica e assim surgiu um novo Mário que nem o próprio amigo reconheceu. Para trás ficou a Amélia, que lamentou perder. Mas nada podia fazer. A lei da sobrevivência falou mais forte.
«Não admites que andou sempre contigo uma mãozinha do teu amigo Adolfo? Mesmo no tempo daquela história incrível do "Nó Cego"?»
«Não sei, António.»
Aquele dia em que foram ao casino marcou uma nova viragem na sua vida. Quando assistia e controlava o jogo do amigo surgiu a tal mulher do cabelo curto que o Vítor viu tocar-lhe no ombro.
«A sua segurança corre perigo, Mário!»
Sabia o seu nome.
«Se o Mário quer salvar a pele, venha comigo.»
E seguiu-a. Em boa hora. Saíram discretamente e entraram num carro estacionado à esquina do edifício do casino.
«Estavam quase a deitar-lhe a mãos, sabe?»
O carro, conduzido por um homem calvo, já ia em movimento.
«Como assim?»
«Aquela máquina onde jogava tinha sido preparada para não dar prémios e nem sequer abrir, mesmo que jogassem alto nela. Quando dessem que o programa fora alterado e saíra fora do sistema, não havia outra solução senão apanhar o jogador que ocupava a máquina. Nessa altura jogava o seu amigo António. Mas não foi incomodado.»
«Não admites que andou sempre contigo uma mãozinha do teu amigo Adolfo? Mesmo no tempo daquela história incrível do "Nó Cego"?»
«Não sei, António.»
Aquele dia em que foram ao casino marcou uma nova viragem na sua vida. Quando assistia e controlava o jogo do amigo surgiu a tal mulher do cabelo curto que o Vítor viu tocar-lhe no ombro.
«A sua segurança corre perigo, Mário!»
Sabia o seu nome.
«Se o Mário quer salvar a pele, venha comigo.»
E seguiu-a. Em boa hora. Saíram discretamente e entraram num carro estacionado à esquina do edifício do casino.
«Estavam quase a deitar-lhe a mãos, sabe?»
O carro, conduzido por um homem calvo, já ia em movimento.
«Como assim?»
«Aquela máquina onde jogava tinha sido preparada para não dar prémios e nem sequer abrir, mesmo que jogassem alto nela. Quando dessem que o programa fora alterado e saíra fora do sistema, não havia outra solução senão apanhar o jogador que ocupava a máquina. Nessa altura jogava o seu amigo António. Mas não foi incomodado.»
«Como descobriu isto tudo?»
«Muito simples.»
Voltou-se para trás, sorrindo.
«Diga...»
«Fui ao futuro.» Disse, de chofre.
«Está a brincar comigo!»
«Fui ao futuro por uns minutos. Vi-o ser levado por seguranças do casino. Ao contrário do que acontecia nas viagens ao passado, conseguia ver as pessoas e até dialogar com elas. E compreende-se. Não devemos interagir com as pessoas no passado sob pena de tudo se alterar no futuro. Suponha o caso clássico do neto ir ao passado e matar o avô. Como pode nascer no futuro? É um paradoxo. Assim, era urgente tirá-lo dali.»
«Essa de ir ao futuro ou ao passado não me convence.»
«Não?»
«Não.»
Estacionou o carro.
«Eva, leva o senhor Mário para dentro enquanto vou arrumar o carro na garagem.»
«Um momento. Não sei quem é o senhor.»
«Chamo-me Adolfo.»
Um pensamento estranho passou-lhe pela cabeça. Não. Não queria acreditar.
«Você é um extraterrestre? Tem a ver com aquele caso dos ovnis em que uma mulher androide quase me convenceu a partir para o espaço, de galáxia em galáxia?»
«Que imaginação!»
«Então até já...»
«E o meu amigo?»
«Por enquanto, esse amigo que escreve as suas aventuras, não corre perigo. Mas vamos estar atentos. Tenho quase a certeza que ele volta ao casino. E aí as coisas podem complicar-se.»
«Espero que sim, que esteja atento.»
«Eva, acompanha o senhor Mário.»
«Mário.»
«Mário. Seja. A propósito da pergunta que me fez, não sou um extraterrestre.»
«Uma resposta estranha.»
«Também achei.»
Nos poucos dias que Mário passou em casa do enigmático Adolfo teve oportunidade de acompanhar as suas experiências fantásticas com teleportagens, não tendo participado no entanto em qualquer viagem. Era estranho vê-lo desaparecer instantaneamente na cabine para, horas mais tarde, aparecer, sorridente, como se nada tivesse acontecido. No entanto, pouco ou nada sabia dessas viagens que considerava uma coisa de outro mundo. Desconhecia como eram programadas e qual o objetivo. Um mistério onde só cabiam ele e a inseparável Eva. Mas um dia tudo se alterou quando surgiu acompanhado de outra pessoa. Precisamente a mulher que me avisou no casino do perigo que corria e me pediu para a seguir.
«Sem mais nem menos, Mário?»
«Sim. Veio do nada. Vi com os meus olhos.»
«Está bem. Acredito.»
«Perguntei-lhe donde veio e desta vez ele respondeu.»
«Do passado.»
«Muito simples.»
Voltou-se para trás, sorrindo.
«Diga...»
«Fui ao futuro.» Disse, de chofre.
«Está a brincar comigo!»
«Fui ao futuro por uns minutos. Vi-o ser levado por seguranças do casino. Ao contrário do que acontecia nas viagens ao passado, conseguia ver as pessoas e até dialogar com elas. E compreende-se. Não devemos interagir com as pessoas no passado sob pena de tudo se alterar no futuro. Suponha o caso clássico do neto ir ao passado e matar o avô. Como pode nascer no futuro? É um paradoxo. Assim, era urgente tirá-lo dali.»
«Essa de ir ao futuro ou ao passado não me convence.»
«Não?»
«Não.»
Estacionou o carro.
«Eva, leva o senhor Mário para dentro enquanto vou arrumar o carro na garagem.»
«Um momento. Não sei quem é o senhor.»
«Chamo-me Adolfo.»
Um pensamento estranho passou-lhe pela cabeça. Não. Não queria acreditar.
«Você é um extraterrestre? Tem a ver com aquele caso dos ovnis em que uma mulher androide quase me convenceu a partir para o espaço, de galáxia em galáxia?»
«Que imaginação!»
«Então até já...»
«E o meu amigo?»
«Por enquanto, esse amigo que escreve as suas aventuras, não corre perigo. Mas vamos estar atentos. Tenho quase a certeza que ele volta ao casino. E aí as coisas podem complicar-se.»
«Espero que sim, que esteja atento.»
«Eva, acompanha o senhor Mário.»
«Mário.»
«Mário. Seja. A propósito da pergunta que me fez, não sou um extraterrestre.»
«Uma resposta estranha.»
«Também achei.»
Nos poucos dias que Mário passou em casa do enigmático Adolfo teve oportunidade de acompanhar as suas experiências fantásticas com teleportagens, não tendo participado no entanto em qualquer viagem. Era estranho vê-lo desaparecer instantaneamente na cabine para, horas mais tarde, aparecer, sorridente, como se nada tivesse acontecido. No entanto, pouco ou nada sabia dessas viagens que considerava uma coisa de outro mundo. Desconhecia como eram programadas e qual o objetivo. Um mistério onde só cabiam ele e a inseparável Eva. Mas um dia tudo se alterou quando surgiu acompanhado de outra pessoa. Precisamente a mulher que me avisou no casino do perigo que corria e me pediu para a seguir.
«Sem mais nem menos, Mário?»
«Sim. Veio do nada. Vi com os meus olhos.»
«Está bem. Acredito.»
«Perguntei-lhe donde veio e desta vez ele respondeu.»
«Do passado.»
«Donde?»
«Não posso dizer.»
«Não posso dizer.»
Mas não voltou a ver essa mulher.
«Num destes dias perguntei-lhe se ia ao passado de forma aleatória, ou decidia o ano, dia, etc...»
«E que respondeu?»
«Imagina...»
«Ano, dia e até hora e por aí diante, Mário. Porque pergunta?»
«Se lhe der todos os dados, como o local, data, hora e tudo o mais, leva-me onde quero ir?»
«Sem sombra de dúvidas. Só pretendo saber o motivo.»
«Simples curiosidade.»
«Com esses dados todos que me pede?»
«E tu, que disseste?»
«Embatuquei. Mas ficou-se por ali e aceitou o pedido. Não tive que dar qualquer explicação.»
Mário estava perante uma situação insólita, irreal. Queria acreditar, mas não conseguia. Mergulhar no passado remoto.
Valeria a pena abrir feridas?
«Vou fazer-lhe outro pedido. Posso?»
«E que respondeu?»
«Imagina...»
«Ano, dia e até hora e por aí diante, Mário. Porque pergunta?»
«Se lhe der todos os dados, como o local, data, hora e tudo o mais, leva-me onde quero ir?»
«Sem sombra de dúvidas. Só pretendo saber o motivo.»
«Simples curiosidade.»
«Com esses dados todos que me pede?»
«E tu, que disseste?»
«Embatuquei. Mas ficou-se por ali e aceitou o pedido. Não tive que dar qualquer explicação.»
Mário estava perante uma situação insólita, irreal. Queria acreditar, mas não conseguia. Mergulhar no passado remoto.
Valeria a pena abrir feridas?
«Vou fazer-lhe outro pedido. Posso?»
«Depende.»
«Que vá uma terceira pessoa.»
«Um momento.»
Um sinal de chamada do telemóvel interrompeu o diálogo.
«És tu? Diz...»
Ficou na expectativa. Era a primeira vez que o telemóvel tocava.
«Sim. Vou já.»
«E o que se passava, Mário?»
«Era por tua causa. Tinham que ir buscar-te...»
«Ah!»
«E aqui estamos. Neste escritório. Em 1967. É verão. Lá fora está um dia azul. Magnífico.»
«E as estradas estão desertas. Foste lá para fora ter com a mulher que assomou ao guichet. Com a Manuela, não negues!»
«Não estive com ninguém, garanto-te!»
«Morde aqui.»
«Acredita. Estou a falar verdade.»
«E onde foi o homem da cabeça rapada?»
Encolheu os ombros.
«Que vá uma terceira pessoa.»
«Um momento.»
Um sinal de chamada do telemóvel interrompeu o diálogo.
«És tu? Diz...»
Ficou na expectativa. Era a primeira vez que o telemóvel tocava.
«Sim. Vou já.»
«E o que se passava, Mário?»
«Era por tua causa. Tinham que ir buscar-te...»
«Ah!»
«E aqui estamos. Neste escritório. Em 1967. É verão. Lá fora está um dia azul. Magnífico.»
«E as estradas estão desertas. Foste lá para fora ter com a mulher que assomou ao guichet. Com a Manuela, não negues!»
«Não estive com ninguém, garanto-te!»
«Morde aqui.»
«Acredita. Estou a falar verdade.»
«E onde foi o homem da cabeça rapada?»
Encolheu os ombros.
«Vocês os dois falaram com ela?» perguntei.
«Não.»
Estávamos num impasse. Ele a tentar que eu acreditasse. E o meu ceticismo a dizer que não, que não acreditava.
«Nem eu e muito menos ele.»
«Para onde foi a Manuela depois de teres falado com ela ao guichet?»
«Não sei. Juro que não sei.»
«Temos que ir. Estejam preparados.»
O misterioso Adolfo tinha chegado. Vinha com cara de caso.
«Mário, não volte a fazer o que fez!»
Que tinha feito Mário?
Uma hipótese bailou no meu espírito. Certamente relacionava-se com a Manuela.
«Mas...»
«Não pode alterar o passado! Nem imagina as consequências que adviriam daí. O que nós combinámos é muito claro. No máximo falava com ela. Não podia tocar-lhe. Nem trazer consigo qualquer objeto, entende?»
«Eu sei que não podia trazer nada comigo. E não toquei nela enquanto estive no guichet. E depois não a vi lá fora.»
«Felizmente que o segui. Senão, você tinha ficado aqui para sempre. Foi à procura dessa mulher e ia afastar-se para longe. Não chegava cá a tempo. Bom, preparem-se. Daqui a pouco vai abrir-se o portal. Depois só temos trinta segundos para mergulhar. Quem não mergulhar fica cá para sempre, certo?»
«E onde vai aparecer esse portal?»
«Algures nesta sala. A todo o momento.»
O tempo foi correndo. Cinco. Dez minutos. Adolfo começou a ficar inquieto.
«Já devia ter aberto!»
«Era bom ficarmos aqui» disse Mário. «Ia ter com ela.»
«Não seja parvo. Tudo isto é virtual, meu amigo.»
Quando descobri o livro de Geologia do Moret, cheguei a folheá-lo, lembrei-me.
«Não.»
Estávamos num impasse. Ele a tentar que eu acreditasse. E o meu ceticismo a dizer que não, que não acreditava.
«Nem eu e muito menos ele.»
«Para onde foi a Manuela depois de teres falado com ela ao guichet?»
«Não sei. Juro que não sei.»
«Temos que ir. Estejam preparados.»
O misterioso Adolfo tinha chegado. Vinha com cara de caso.
«Mário, não volte a fazer o que fez!»
Que tinha feito Mário?
Uma hipótese bailou no meu espírito. Certamente relacionava-se com a Manuela.
«Mas...»
«Não pode alterar o passado! Nem imagina as consequências que adviriam daí. O que nós combinámos é muito claro. No máximo falava com ela. Não podia tocar-lhe. Nem trazer consigo qualquer objeto, entende?»
«Eu sei que não podia trazer nada comigo. E não toquei nela enquanto estive no guichet. E depois não a vi lá fora.»
«Felizmente que o segui. Senão, você tinha ficado aqui para sempre. Foi à procura dessa mulher e ia afastar-se para longe. Não chegava cá a tempo. Bom, preparem-se. Daqui a pouco vai abrir-se o portal. Depois só temos trinta segundos para mergulhar. Quem não mergulhar fica cá para sempre, certo?»
«E onde vai aparecer esse portal?»
«Algures nesta sala. A todo o momento.»
O tempo foi correndo. Cinco. Dez minutos. Adolfo começou a ficar inquieto.
«Já devia ter aberto!»
«Era bom ficarmos aqui» disse Mário. «Ia ter com ela.»
«Não seja parvo. Tudo isto é virtual, meu amigo.»
Quando descobri o livro de Geologia do Moret, cheguei a folheá-lo, lembrei-me.
«O senhor diz que tudo é virtual. Mas eu sinto o virtual» apalpei as costas da cadeira rotativa. «Se fosse virtual não sentia o contacto com esta cadeira!»
«Como assim? Está a brincar.»
Agarrei numa folha de papel e deixei-a cair no chão. De seguida apanhei-a e fiz deslizar um dedo pelo papel. A expressão do olhar de Adolfo modificou-se.
«Como assim? Está a brincar.»
Agarrei numa folha de papel e deixei-a cair no chão. De seguida apanhei-a e fiz deslizar um dedo pelo papel. A expressão do olhar de Adolfo modificou-se.
«Então é isso. Eu sabia! Eu sabia!»
«O que é que sabia, Adolfo?» perguntei.
«O portal! Depressa! Mergulhemos...»
Uma luz intensa tinha surgido na nossa frente, junto à porta de saída. No meio, via-se um círculo em rotação, uma espécie de vórtice onde mergulhámos para o lado invisível, um de cada vez.
Dei comigo sentado num chão de terra batida. Ao meu lado estava o Mário. Mais à frente, o Adolfo.
«Viemos ter a um sítio errado!» disse este.
Qualquer coisa tinha corrido mal.
«As pessoas estão a olhar para nós como se fôssemos animais do jardim zoológico.» Disse o Mário.
«Lógico. Surgimos aqui de repente. Temos que nos levantar e sair daqui quanto antes...»
«O que é que sabia, Adolfo?» perguntei.
«O portal! Depressa! Mergulhemos...»
Uma luz intensa tinha surgido na nossa frente, junto à porta de saída. No meio, via-se um círculo em rotação, uma espécie de vórtice onde mergulhámos para o lado invisível, um de cada vez.
Dei comigo sentado num chão de terra batida. Ao meu lado estava o Mário. Mais à frente, o Adolfo.
«Viemos ter a um sítio errado!» disse este.
Qualquer coisa tinha corrido mal.
«As pessoas estão a olhar para nós como se fôssemos animais do jardim zoológico.» Disse o Mário.
«Lógico. Surgimos aqui de repente. Temos que nos levantar e sair daqui quanto antes...»
«Sim. Ainda alguém vai perguntar como aparecemos neste jardim, vindos do nada.» Disse eu.
«Tem razão.»
Foi então que vi ao meu lado um isqueiro prateado. Admiti que tinha saído do bolso das calças do Mário. Só podia ser. E acontecia que o Mário não fumava há alguns anos. O que era estranho. Mesmo muito estranho.
«Vamos...»
Deixei-me atrasar de propósito e observei com atenção o isqueiro. Numa das faces tinha uma pequena janela.
Para que servia?
Abri-a com facilidade. Engenhoso! Uma pequena fotografia de mulher estava encaixada na janela.
«Mário...» Sussurrei.
Virou-se e mostrei-lhe o isqueiro.
«É teu?»
«Bem sabes que não fumo.»
«Pois não. Mas é melhor veres.»
«Deixa ver...»
«Que se passa?» perguntou o Adolfo.
«Nada nada.» Disse, dando um passo em frente.
«Oh!»
«Que foi, Mário?»
«É o isqueiro que a Manuela um dia me ofereceu. Devolvi-o com outras prendas e também com as cartas quando acabou o namoro.»
«Não pode ser!»
Entretanto o Adolfo já estava a afastar-se.
«Mas disseste que não estiveste com ela.»
«E não menti. Bem gostava de a ter encontrado lá fora. Mas não a vi. De facto as ruas estavam desertas e não entendo porquê. Afinal tenho que admitir que a Manuela surgiu vinda do nada.»
«E esse isqueiro não caiu do céu, Mário!»
«Pois não. Deixa-me ver.»
Levou a mão ao bolso das calças.
«Cá está!»
«O quê, Mário?»
Mostrou-me um pequeno envelope.
«Só pode ter sido isso. Quando a Manuela assomou ao guichet passou qualquer coisa para o meu lado. Só podia ser o envelope com o isqueiro lá dentro. Conforme já te disse, logo que acabámos a relação ela devolveu-me tudo. Cartas. Prendas. Não se esqueceu de nada, tanto era o despeito por ter sido atraiçoada. E eu também paguei na mesma moeda. Inclusivamente este isqueiro que tinha a sua fotografia e de que tanto gostava!»
«E agora?»
«Ela trouxe-me o isqueiro.»
«Mas...»
A dúvida que se instalou nele era grande. Queria entender mas não encontrava explicação. A Manuela não podia adivinhar que o Mário tinha vindo do futuro para se encontrar com ela. Então, aquele era o momento real em que entrava no hall para entregar o pedido de subsídio de casamento. Um casamento que seria mal sucedido. O isqueiro que trazia consigo para entregar a Mário era um sinal que ele ainda estava no seu coração. Mas infelizmente não foi ao guichet receber os documentos e ela, sentida, levou consigo aquela prova de amor.
«Uma coisa, Mário. Recebeste alguns documentos dela?»
«Não me lembro.»
«Mas eu lembro-me. Nem sequer abriste a gaveta para guardar os ditos documentos. E da outra vez o teu colega,»
«Sim. Isto não bate certo! A não ser...»
«Diz.»
«A não ser que, quando trouxe os documentos, já soubesse onde trabalhavas. Lembra-te que se encontraram no autocarro naquele dia. Podia ter trazido o isqueiro para te oferecer outra vez, mas tu não foste receber os documentos…»
«É uma hipótese.»
«Que estão para aí a segredar?» perguntou o Adolfo.
«Vamos, antes que ele desconfie.»
Podia ser grave Mário ter trazido o isqueiro. Era certo que não tinha culpa, mas não invalidava a possibilidade de pôr em causa o projeto de Adolfo. Por sua vez, não sabíamos até que ponto os objetivos eram transparentes porque os seus interesses centravam-se principalmente nas idas ao passado. Nada sabíamos desse homem.
«Mário, tens confiança nele?»
«Nenhuma, acredita. Estou a lembrar-me duma coisa. Ainda antes do dia em que fomos teleportados para 1967, ouvi parte de uma conversa entre ele e a Eva que me deixou a pensar no momento. Depois passou-me, por qualquer motivo.»
«Mas lembras-te dessa conversa?»
«Claro que me lembro. Na altura, o Adolfo falava de uns documentos importantes que iriam revolucionar os acontecimentos futuros. Só tinha receio de uma coisa. Que eles fossem virtuais e não pudesse levá-los ao sítio certo. Nesse momento deixei tudo a perder com um movimento involuntário que fez tombar um bibelot que estava no corredor, em cima de uma mísula. Calaram-se de imediato. Entretanto disse-me que não se podia alterar nada no passado. E até exemplificou com o paradoxo do neto que mata o avô e, portanto, nunca podia ter nascido. O homem estava transtornado quando pegaste na cadeira e deitaste a folha de papel ao chão, lembras-te? Disseste algo que lhe iluminou a mente.»
«Provei que nada naquele escritório era virtual.»
«Deste-lhe um trunfo, amigo. E onde será que estão esses documentos que ele acha tão importantes?»
Então Mário opinou que aquela conversa que ouviu parcialmente não tinha a ver com o presente e muito menos com o futuro. O seu interesse estaria localizado algures no passado. O que os dois estavam a planear era um mistério. Quando e onde, não conseguia saber.
«Sabendo agora que tudo o que existe à vista no passado não é virtual, pode ir buscar os documentos de que falava à Eva. Só há uma coisa. Não viste ninguém lá fora.»
«Pois não.»
«Mas as pessoas estavam lá!»
«Tens razão. Não se conseguiram ver as pessoas e deviam ver-se. O que fez ficarem invisíveis? Mas eu vi a Manuela!»
«Foi só ela. Sempre estiveste com ela lá fora, confessa. E de que falaram?»
«E tu a dar-lhe e a burra a fugir. Juro que não! Bem gostaria. Só a vi quando ficámos, frente a frente, junto ao guichet. Os seus olhos tristes fixaram-se nos meus. Os lábios moveram-se mas não consegui ouvi-la, António! Era desesperante vê-la sem mais nada acontecer. Tocar-lhe. Beijá-la. Perdi-a duas vezes, António.»
«Amavas muito a Manuela, Mário.»
Emudeceu. Talvez por culpa de uma lágrima rebelde.
«E viste-a mal tocou o besouro a anunciar que estava alguém a entrar no hall?»
«Não.»
«Ah!»
«Então?»
Achei estranho. Mário devia tê-la visto mal esta entrou.
E por que motivo a viu já perto do guichet?
«Foi o desejo?»
«O quê?»
«Desejaste muito que ela aparecesse?»
«Sim. Mesmo antes de ouvir o besouro.»
«Olha uma coisa, o Adolfo já falou contigo a propósito desse momento breve em que viste a Manuela?»
«E devia ter falado?»
«Claro. É importante. Vermos uma pessoa e não vermos as outras. Lisboa estava deserta em pleno dia.»
Fomos interrompidos pela chegada impetuosa do enigmático Adolfo. De pistola em punho, obrigou-nos a recuar até à parede. Atrás dele estava a inseparável Eva.
«Meus santinhos, a vossa conversa foi frutuosa para nós. Já sei porque não vimos as pessoas...»
«E posso saber porquê?»
«Que ganha com isso, António?»
Não respondi de imediato. De facto nada ganhava.
«Conhecimentos.»
«Bom, não lhes quero fazer mal. Se se portarem bem, está-se a ver. Em primeiro, amigo Mário, dê-me esse isqueiro. Atire-o para o chão, para perto de mim.»
Entreolhámo-nos.
«Mas eu já não tenho o isqueiro!»
«Deixemo-nos de disfarces. Escutámos toda a conversa. E em relação ao isqueiro, sei que o tem porque já passámos uma busca à casa.»
Mário resignou-se e levou a mão ao bolso direito das calças.
«Doucement, comme il faut.»
«Pronto.»
«Menino bonito. Quanto ao mistério de vermos os objetos e as pessoas ficarem invisíveis, já está resolvido.»
«E como conseguiu?»
Ignorou de novo a minha pergunta.
«O tempo urge. Eu e a Eva temos que fazer duas viagens. Primeiro vamos deixar o isqueiro no sítio onde aquela mulher o entregou a si, Mário. É mesmo necessário. A seguir, recuamos mais no tempo para tratarmos de levar umas coisas para as mãos certas. Entretanto há uma carta que vamos deixar na sala da cabine. Aí explico tudo.»
«Quem são vocês?» perguntei.
«Não somos do presente.» Disse, sorrindo ironicamente.
«Já desconfiava» menti. «E porque fomos os escolhidos?»
«Sabe-se lá. Só uma coisa, Mário... alguém tinha que ser. Agora vamos deixá-los, meninos. Esta porta tranca automaticamente quando eu e a Eva sairmos. Nas próximas três horas vão ficar presos. Tive muito gosto em usá-los. Foram muito úteis. Principalmente o Mário.»
«O que vão fazer? Não auguro coisa boa.»
«Fique descansado, amigo António Ildefonso, relator do Mário, que nunca mais me verá para poder contar a parte final da história que é bem interessante e que acontecerá num futuro qualquer. Nem a mim nem à Eva. Desejo aos dois uma vida cheia neste mundo incipiente que podia ter tido um rumo bem melhor se não fosse um acidente de percurso.»
«Espere, Adolfo.»
«Sim, António?»
«Que vai acontecer?»
«Nada de mal.»
Saíram e a porta fechou-se automaticamente. Tal como Adolfo tinha afirmado.
«António, parece-me que ouvi um ruído lá fora. Será que qualquer coisa está a correr mal e eles ainda não conseguiram partir?»
Consultei pela enésima vez o relógio.
«Faltam apenas cinco minutos para as três horas que ele marcou. O que ouviste provavelmente foi o ruído do destrancar da fechadura. Vamos lá a ver se tenho razão ou não.»
Aproximei-me da porta e rodei o puxador.
Sorriu.
«Ok, meu velho. Estamos livres. Agora vamos ver o que se passa na cabine de embarque.»
«Estranho. Parece que foi totalmente desativada. Não há qualquer luz acesa.»
«Tens razão. Vamos lá a ler o que diz a carta.»
Nem sinal. Tínhamos procurado sem qualquer resultado. Uma brincadeira cujo alcance não atingia. Ou então esqueceu-se.
«Será?»
«Que se esqueceu?»
«Tens a certeza que a central está desligada, Mário?»
Não sabia. Nunca tinha assistido a uma desmaterialização.
«Bom, que fazemos?»
Entrei na cabine. Um cartão sobre o comprido painel de instrumentos chamou-me a atenção. Peguei nele.
«Oh!»
«O que diz?»
«Sejam felizes no vosso tempo que nós não voltamos.»
«É o que diz este cartão. A cabine sempre está desativada. E nós já não temos nada a fazer aqui.»
«Pois não. Estou cheio de fome. Vamos daqui para fora quanto antes. Almoçamos no primeiro restaurante que encontrarmos nas proximidades. Concordas?»
«Vamos lá então.»
A bomba atómica em mãos erradas!
«Tem razão.»
Foi então que vi ao meu lado um isqueiro prateado. Admiti que tinha saído do bolso das calças do Mário. Só podia ser. E acontecia que o Mário não fumava há alguns anos. O que era estranho. Mesmo muito estranho.
«Vamos...»
Deixei-me atrasar de propósito e observei com atenção o isqueiro. Numa das faces tinha uma pequena janela.
Para que servia?
Abri-a com facilidade. Engenhoso! Uma pequena fotografia de mulher estava encaixada na janela.
«Mário...» Sussurrei.
Virou-se e mostrei-lhe o isqueiro.
«É teu?»
«Bem sabes que não fumo.»
«Pois não. Mas é melhor veres.»
«Deixa ver...»
«Que se passa?» perguntou o Adolfo.
«Nada nada.» Disse, dando um passo em frente.
«Oh!»
«Que foi, Mário?»
«É o isqueiro que a Manuela um dia me ofereceu. Devolvi-o com outras prendas e também com as cartas quando acabou o namoro.»
«Não pode ser!»
Entretanto o Adolfo já estava a afastar-se.
«Mas disseste que não estiveste com ela.»
«E não menti. Bem gostava de a ter encontrado lá fora. Mas não a vi. De facto as ruas estavam desertas e não entendo porquê. Afinal tenho que admitir que a Manuela surgiu vinda do nada.»
«E esse isqueiro não caiu do céu, Mário!»
«Pois não. Deixa-me ver.»
Levou a mão ao bolso das calças.
«Cá está!»
«O quê, Mário?»
Mostrou-me um pequeno envelope.
«Só pode ter sido isso. Quando a Manuela assomou ao guichet passou qualquer coisa para o meu lado. Só podia ser o envelope com o isqueiro lá dentro. Conforme já te disse, logo que acabámos a relação ela devolveu-me tudo. Cartas. Prendas. Não se esqueceu de nada, tanto era o despeito por ter sido atraiçoada. E eu também paguei na mesma moeda. Inclusivamente este isqueiro que tinha a sua fotografia e de que tanto gostava!»
«E agora?»
«Ela trouxe-me o isqueiro.»
«Mas...»
A dúvida que se instalou nele era grande. Queria entender mas não encontrava explicação. A Manuela não podia adivinhar que o Mário tinha vindo do futuro para se encontrar com ela. Então, aquele era o momento real em que entrava no hall para entregar o pedido de subsídio de casamento. Um casamento que seria mal sucedido. O isqueiro que trazia consigo para entregar a Mário era um sinal que ele ainda estava no seu coração. Mas infelizmente não foi ao guichet receber os documentos e ela, sentida, levou consigo aquela prova de amor.
«Uma coisa, Mário. Recebeste alguns documentos dela?»
«Não me lembro.»
«Mas eu lembro-me. Nem sequer abriste a gaveta para guardar os ditos documentos. E da outra vez o teu colega,»
«Sim. Isto não bate certo! A não ser...»
«Diz.»
«A não ser que, quando trouxe os documentos, já soubesse onde trabalhavas. Lembra-te que se encontraram no autocarro naquele dia. Podia ter trazido o isqueiro para te oferecer outra vez, mas tu não foste receber os documentos…»
«É uma hipótese.»
«Que estão para aí a segredar?» perguntou o Adolfo.
«Vamos, antes que ele desconfie.»
Podia ser grave Mário ter trazido o isqueiro. Era certo que não tinha culpa, mas não invalidava a possibilidade de pôr em causa o projeto de Adolfo. Por sua vez, não sabíamos até que ponto os objetivos eram transparentes porque os seus interesses centravam-se principalmente nas idas ao passado. Nada sabíamos desse homem.
«Mário, tens confiança nele?»
«Nenhuma, acredita. Estou a lembrar-me duma coisa. Ainda antes do dia em que fomos teleportados para 1967, ouvi parte de uma conversa entre ele e a Eva que me deixou a pensar no momento. Depois passou-me, por qualquer motivo.»
«Mas lembras-te dessa conversa?»
«Claro que me lembro. Na altura, o Adolfo falava de uns documentos importantes que iriam revolucionar os acontecimentos futuros. Só tinha receio de uma coisa. Que eles fossem virtuais e não pudesse levá-los ao sítio certo. Nesse momento deixei tudo a perder com um movimento involuntário que fez tombar um bibelot que estava no corredor, em cima de uma mísula. Calaram-se de imediato. Entretanto disse-me que não se podia alterar nada no passado. E até exemplificou com o paradoxo do neto que mata o avô e, portanto, nunca podia ter nascido. O homem estava transtornado quando pegaste na cadeira e deitaste a folha de papel ao chão, lembras-te? Disseste algo que lhe iluminou a mente.»
«Provei que nada naquele escritório era virtual.»
«Deste-lhe um trunfo, amigo. E onde será que estão esses documentos que ele acha tão importantes?»
Então Mário opinou que aquela conversa que ouviu parcialmente não tinha a ver com o presente e muito menos com o futuro. O seu interesse estaria localizado algures no passado. O que os dois estavam a planear era um mistério. Quando e onde, não conseguia saber.
«Sabendo agora que tudo o que existe à vista no passado não é virtual, pode ir buscar os documentos de que falava à Eva. Só há uma coisa. Não viste ninguém lá fora.»
«Pois não.»
«Mas as pessoas estavam lá!»
«Tens razão. Não se conseguiram ver as pessoas e deviam ver-se. O que fez ficarem invisíveis? Mas eu vi a Manuela!»
«Foi só ela. Sempre estiveste com ela lá fora, confessa. E de que falaram?»
«E tu a dar-lhe e a burra a fugir. Juro que não! Bem gostaria. Só a vi quando ficámos, frente a frente, junto ao guichet. Os seus olhos tristes fixaram-se nos meus. Os lábios moveram-se mas não consegui ouvi-la, António! Era desesperante vê-la sem mais nada acontecer. Tocar-lhe. Beijá-la. Perdi-a duas vezes, António.»
«Amavas muito a Manuela, Mário.»
Emudeceu. Talvez por culpa de uma lágrima rebelde.
«E viste-a mal tocou o besouro a anunciar que estava alguém a entrar no hall?»
«Não.»
«Ah!»
«Então?»
Achei estranho. Mário devia tê-la visto mal esta entrou.
E por que motivo a viu já perto do guichet?
«Foi o desejo?»
«O quê?»
«Desejaste muito que ela aparecesse?»
«Sim. Mesmo antes de ouvir o besouro.»
«Olha uma coisa, o Adolfo já falou contigo a propósito desse momento breve em que viste a Manuela?»
«E devia ter falado?»
«Claro. É importante. Vermos uma pessoa e não vermos as outras. Lisboa estava deserta em pleno dia.»
Fomos interrompidos pela chegada impetuosa do enigmático Adolfo. De pistola em punho, obrigou-nos a recuar até à parede. Atrás dele estava a inseparável Eva.
«Meus santinhos, a vossa conversa foi frutuosa para nós. Já sei porque não vimos as pessoas...»
«E posso saber porquê?»
«Que ganha com isso, António?»
Não respondi de imediato. De facto nada ganhava.
«Conhecimentos.»
«Bom, não lhes quero fazer mal. Se se portarem bem, está-se a ver. Em primeiro, amigo Mário, dê-me esse isqueiro. Atire-o para o chão, para perto de mim.»
Entreolhámo-nos.
«Mas eu já não tenho o isqueiro!»
«Deixemo-nos de disfarces. Escutámos toda a conversa. E em relação ao isqueiro, sei que o tem porque já passámos uma busca à casa.»
Mário resignou-se e levou a mão ao bolso direito das calças.
«Doucement, comme il faut.»
«Pronto.»
«Menino bonito. Quanto ao mistério de vermos os objetos e as pessoas ficarem invisíveis, já está resolvido.»
«E como conseguiu?»
Ignorou de novo a minha pergunta.
«O tempo urge. Eu e a Eva temos que fazer duas viagens. Primeiro vamos deixar o isqueiro no sítio onde aquela mulher o entregou a si, Mário. É mesmo necessário. A seguir, recuamos mais no tempo para tratarmos de levar umas coisas para as mãos certas. Entretanto há uma carta que vamos deixar na sala da cabine. Aí explico tudo.»
«Quem são vocês?» perguntei.
«Não somos do presente.» Disse, sorrindo ironicamente.
«Já desconfiava» menti. «E porque fomos os escolhidos?»
«Sabe-se lá. Só uma coisa, Mário... alguém tinha que ser. Agora vamos deixá-los, meninos. Esta porta tranca automaticamente quando eu e a Eva sairmos. Nas próximas três horas vão ficar presos. Tive muito gosto em usá-los. Foram muito úteis. Principalmente o Mário.»
«O que vão fazer? Não auguro coisa boa.»
«Fique descansado, amigo António Ildefonso, relator do Mário, que nunca mais me verá para poder contar a parte final da história que é bem interessante e que acontecerá num futuro qualquer. Nem a mim nem à Eva. Desejo aos dois uma vida cheia neste mundo incipiente que podia ter tido um rumo bem melhor se não fosse um acidente de percurso.»
«Espere, Adolfo.»
«Sim, António?»
«Que vai acontecer?»
«Nada de mal.»
Saíram e a porta fechou-se automaticamente. Tal como Adolfo tinha afirmado.
«António, parece-me que ouvi um ruído lá fora. Será que qualquer coisa está a correr mal e eles ainda não conseguiram partir?»
Consultei pela enésima vez o relógio.
«Faltam apenas cinco minutos para as três horas que ele marcou. O que ouviste provavelmente foi o ruído do destrancar da fechadura. Vamos lá a ver se tenho razão ou não.»
Aproximei-me da porta e rodei o puxador.
Sorriu.
«Ok, meu velho. Estamos livres. Agora vamos ver o que se passa na cabine de embarque.»
«Estranho. Parece que foi totalmente desativada. Não há qualquer luz acesa.»
«Tens razão. Vamos lá a ler o que diz a carta.»
Nem sinal. Tínhamos procurado sem qualquer resultado. Uma brincadeira cujo alcance não atingia. Ou então esqueceu-se.
«Será?»
«Que se esqueceu?»
«Tens a certeza que a central está desligada, Mário?»
Não sabia. Nunca tinha assistido a uma desmaterialização.
«Bom, que fazemos?»
Entrei na cabine. Um cartão sobre o comprido painel de instrumentos chamou-me a atenção. Peguei nele.
«Oh!»
«O que diz?»
«Sejam felizes no vosso tempo que nós não voltamos.»
«É o que diz este cartão. A cabine sempre está desativada. E nós já não temos nada a fazer aqui.»
«Pois não. Estou cheio de fome. Vamos daqui para fora quanto antes. Almoçamos no primeiro restaurante que encontrarmos nas proximidades. Concordas?»
«Vamos lá então.»
A bomba atómica em mãos erradas!
Enquanto almoçávamos, nem eu nem ele ousámos pegar num assunto como aquele que escaldava. Mas como eu, também o seu consciente devia fervilhar de dúvidas acerca do destino do Adolfo e da Eva.
Quem eram e que motivações tinham para se aventurarem em viagens perigosas como eram as que envolviam materializações e desmaterializações, rumo a passados e futuros que um dia podiam levá-los a um beco sem saída, isto para não se admitir um acontecimento extremo que acabasse em destruição?
Recordei as entrelinhas que o Adolfo deixou para ler quando da última vez que falámos. Enquanto atacava um pregado grelhado com batata assada no forno e um esparregado carente de vinagre, ia congeminando hipóteses nada satisfatórias que logo abandonava.
«Que queres para a sobremesa, Mário?»
«Nada.»
Recordei as entrelinhas que o Adolfo deixou para ler quando da última vez que falámos. Enquanto atacava um pregado grelhado com batata assada no forno e um esparregado carente de vinagre, ia congeminando hipóteses nada satisfatórias que logo abandonava.
«Que queres para a sobremesa, Mário?»
«Nada.»
«E um café?»
«Isso vai. Agora vamos falar. Que pensas de tudo isto?»
«Bom, enquanto almoçava, não pensei noutra coisa.»
«Também eu. Desembucha.»
«Isso vai. Agora vamos falar. Que pensas de tudo isto?»
«Bom, enquanto almoçava, não pensei noutra coisa.»
«Também eu. Desembucha.»
Tudo girava à volta dos tais documentos que ele queria ver em boas mãos. Os desenvolvimentos da hipóteses levavam sempre a uma teoria incrível, demasiado ruim a ponto de não querer admitir. Eles tinham vindo do passado. Foi uma afirmação que o Adolfo fez.
Mas quem era aquele casal que tinha vindo do passado?
Na descoberta da sua verdadeira identidade e localização no espaço e no tempo estava a chave de todo o enigma.
«E se eles forem o Hitler e a Eva Braun e os documentos que procuram são os planos para a construção da bomba atómica?»
«Credo, António!»
«Ouve-me em silêncio e só depois replicas.»
Se os alemães tivessem descoberto e fabricado a bomba atómica, a história da humanidade teria seguido um outro rumo. Felizmente não aconteceu e os americanos ganharam a corrida antes dos russos, já com os alemães derrotados e, portanto, fora da mesma corrida. Entretanto, aconteceram Hiroxima e Nagasaki. Os milhares de mortos que as bombas causaram, e vêm ainda causando por via das radiações. O apelo à consciência das potências que conheceram depois os segredos e o potencial destruidor da bomba, serviram de dissuasão para que a bomba voltasse a ser acionada. De facto, não tardou que os russos fabricassem a bomba. Mais tarde, seguiram-se outros países. Foi-se tomando consciência que mais nenhum país voltaria a usar a bomba sob pena do perigo da retaliação e virar-se o feitiço contra o feiticeiro. Estava criado o equilíbrio. Um equilíbrio precário, mas de qualquer forma um equilíbrio.
Voltando ao cerne da questão, por um triz Hitler não foi senhor do mundo. E agora, surgindo do nada, apareceu aquele homem calvo, ainda na sua fase experimental de viajar entre mundos e no tempo e Mário a servir de cobaia. Culminando, parecia estar afinada a teoria, com as viagens através do transmissor da matéria ao futuro e ao passado, já com a concretização efetiva dos objetivos, e tendo-o outra vez como cobaia e, de certa maneira, eu, António Ildefonso, nesta fase final.
Que se ia passar a partir de agora?
Era um facto o misterioso Adolfo ter prescindido das suas cobaias e também da "Estação de Trânsito" que usou para as suas experiências.
«Porquê?»
Recordando principalmente as palavras que ele disse, já quando se preparava para partir, ia concretizar o seu objetivo. Era óbvio admitir que já não precisava da "Estação de Trânsito". A sua atividade ia centrar-se provavelmente no país onde sabia que estavam os documentos relativos ao plano da bomba. Viajando ao passado, precisamente ao momento decisivo da Alemanha nazi poder fazer a viragem para a vitória, Adolfo ia impedir que os segredos da bomba ficassem, conforme ditava o seu nacionalismo extremista, em más mãos. Mas, com essa viagem, surgia de novo o paradoxo do avô e do neto. A não ser...
Não era inédito. Mário já tinha conhecido o amargo sabor de viver entre dois mundos paralelos (A Terra em Perigo).
Portanto a vida continuaria a correr no nosso mundo sem qualquer descontinuidade e Adolfo e Eva estavam agora noutro mundo paralelo onde o futuro seria diferente. Bem diferente. Um pesadelo que, paradoxalmente, também seria vivido por mim e por Mário, desconhecendo se a nossa vida também corria noutra estrada.
«Isso é incrível, António!»
«E não vamos conseguir esquecer. A partir de hoje nada será igual, meu bom amigo...»
«A não ser que...»
«Que?»
Levou a mão ao bolso esquerdo das calças e retirou-a com o punho fechado.
«Adivinha?»
Encolhi os ombros.
«Achas que sou bruxo?»
Como resposta abriu a mão.
«Oh! Mostra-me.»
Era o isqueiro que a Manuela lhe tinha dado.
«Como conseguiste?»
«Muito simples. Descobri outro numa sala contígua. Foi esse que dei ao Adolfo.»
«Bom para ti e para mim. Provavelmente não tão bom para ele. Devolveu outro objeto. Não sei que consequências virão daí.»
Há passagens na vida de Mário que precisam de ser revisitadas. Mas de momento não posso contar com a sua colaboração, pois mergulhou num mutismo total, não justificando porque não deu seguimento ao plano que tínhamos acordado. Ao mesmo tempo fechou-se na concha, como se estivesse a esconder um segredo demasiado perigoso para ser revelado. Esta atitude apanhou-me de surpresa. A sua vida foi sempre um livro aberto. Nunca deixou de contar as histórias que tinham a ver com a sua vivência, as outras e as que se cruzaram efemeramente com uma casual órbita de outro acontecer. Não me posso esquecer de certas histórias que me contou e que são fruto da sua imaginação fértil, na maior parte das vezes a pender para o paranormal, aprofundando o tema a ponto de invadir a terra de ninguém entre o real e o fictício.
Se bem me lembro, tínhamos combinado explorar o software que, segundo ele, traria o controle das máquinas do casino, principalmente as duas dúzias ligadas, por hipótese, a um sistema aureolado de aleatório mas que, em boa verdade, de aleatório tinha apenas o nome. A abordagem seria feita com todas as cautelas. Assim, havia que obedecer a duas regras fundamentais: nunca estaríamos em simultâneo no casino e a assiduidade seria espaçada o mais possível.
Nem pestanejei. Ele lá sabia. Mas no dia seguinte a sua decisão alterou-se e deixou-me a pensar. Muito. Não batia certo. Ele clamava vingança pela manipulação descarada que levou à ruína de muitos utentes que tinham entrado no jogo e sabiam com o que contavam. As regras do aleatório tinham sempre a última palavra. Verdade? Não. Eles tinham sido estudados até ao mais ínfimo pormenor. A seguir, bastava retirar-lhes o tapete e deixá-los à mercê da arma que funcionava sempre a seu favor. O vício. O vício que arrastava consigo a esperança da sorte mudar. A boa sorte. Hoje. Amanhã. Nunca.
Quem zelava pelos interesses dos utentes já enterrados no pântano até ao pescoço?
Havia um guardião teórico. A figura do inspetor que não abandonava o seu posto de trabalho. Um posto burocrático ao serviço do Estado que, por sua vez, se interessava apenas nos lucros que tirava do jogo e que se destinavam a ajudar a tapar os buracos, por exemplo dos bancos e banqueiros menos honestos e também de governantes megalómanos que acabavam por ter a "cabeça a prémio" (e ainda bem!), de ontem hoje e amanhã. Um posto onde o trabalho era apenas baseado em estatísticas anuais de máquinas que mostravam sempre um desempenho normal, malgrado a revolta gritante dos utentes mais corajosos que apresentavam por escrito reclamações fundamentadas. Um bastião que não abandonavam, nem por nada, quando a verdade nua e crua estava numa descida à praça, ao palco onde se desenrolava a peça real que só os que queriam ser cegos não viam.
Agora Mário deixava em suspenso o seu ato de vingança.
«Vamos esperar.»
«Apareceu algum obstáculo?»
«Não puxes por mim.»
«Mas...»
«Imperdoável. Mas não tanto porque tu só ultimamente tens andado em casinos. Ou melhor, num casino. Vamos lá então. Teodoro dos Santos, um empresário que começou do nada. Prosperou no negócio das malas (daí a alcunha de Teodoro das malas), adquiriu a concessão do jogo, no velho Casino Estoril, em 1 de julho de 1958. Só dez anos depois foi inaugurado o "Novo Casino Estoril". Era vulgar ouvir-se da boca de um jogador quando ganhava um jackpot chorudo que ia investir por "conta do Teodoro". Não interessava o quê. Sentia um prazer enorme quando afirmava que "era por conta do Teodoro". Só que, fatalmente, acabava por deixar no Teodoro o que ganhava e o que não ganhava. Por outras palavras: tudo. E era tradição o casino oferecer um bilhete de comboio ao perdedor arruinado numa noite de jogo para este poder regressar a Lisboa ou outra localidade da linha. Bilhete que nalguns casos não era utilizado porque o perdedor desesperado usava o comboio de outra forma.»
«Fiquei esclarecido. É do teu tempo?»
«Não sou assim tão velho, mas contaram-me.»
«Voltando ao vinho, quanto te custou esta garrafa, com a leveza entre aspas dos seus quinze graus, agradável ao paladar até dizer basta?»
«Não sei.»
«Diz.»
«Talvez cento e cinquenta euros. Mas não pensemos nisso. Agora vai um digestivo. Acompanhas-me?»
«Só um café, meu amigo. Não tenho o teu treino.»
«Queres café cheio ou normal?»
«Curto, se não te importas.»
Notei que ele estava um pouco mais animado do que o costume e aproveitei para insistir nos selos. É que estava a fazer-me uma grande confusão.
Onde estariam os selos?
Levantou-se e exclamou:
«Tchan tchan tchan!»
«O quê?»
«Fecha os olhos. Só os abres quando eu disser.»
«Está bem. Contrariado, mas obedeço. Já estão fechados.»
Ouvi um ligeiro ruído que não pude identificar e, logo de seguida, a voz do Mário:
«Podes abrir.»
E o que vi deixou-me espantado. Mesmo ao meu lado, à direita, rasgou-se na parede uma abertura que mostrou outra sala.
«Este é o meu segundo santuário.»
«Estou a ver. Então é neste recanto que guardas a tua coleção de selos.»
«E não só. Nos dias mais complicados tranco-me aqui, desabafo os meus males de amor e não só, concentro-me à procura de ideias e até chego a dormir.»
Estaria num dia complicado?
«E não te sentes mal? Não tens falta de ar?»
«Em primeiro lugar não sofro de claustrofobia. E há circulação de ar vinda diretamente do exterior. Uma das paredes tem comunicação com a parede da varanda por dois ventiladores, aqui camuflados por quadros que, claro, não são os "Malhoas". Estes, como vês, estão na parede frontal. E já estás mais descansado com o caso dos selos?»
«Não é caso nenhum, Mário. Lembrei-me. Lembrei-me apenas. Então é nesta mesa que trabalhas na tua coleção.»
«Senta-te. Vou mostrar-te a coleção de selos de Portugal.»
«Tens os selos de Santo António?»
«Toda a série. Nova. Sem marca de charneira. E também os quatro selos de Dona Maria. Com certificado. Mas já tos mostro.»
«Bom, já vi os selos. Como sabes, também sou colecionador. Mas não ao ponto de ter uma coleção como a tua. Longe disso. Aliás, tenho outras opções, conforme sabes.»
«A tua biblioteca. E também o empenho e a coragem que mostras na net ao escreveres, tal como te foram contadas, as minhas histórias. Já falámos disso há tempos. Continua tudo na mesma? As pessoas passam pelo blogue e dás conta do ruído da sua passagem silenciosa?»
«E se mudássemos de assunto?»
«Já te conheço. És leão como eu. Os leões, quando sentem que podem ir em frente não hesitam. Lutam até ao fim pelo seu ideal. Mas também sabem quando devem desistir.»
Senti que era uma crítica.
«Gosto de escrever. As tuas histórias. As minhas. Não sei onde as tuas começam e as minhas acabam. Vou na estrada até ao fim do fim e quem não me quiser ver nela então não veja. Ou acompanhe-me. De qualquer das formas não desisto.»
«Eu quero que continues a escrever. Gosto do teu estilo. Nunca pensei que aquela opção de escreveres para crianças fosse dar certo. Ponto final.»
«Mas és suspeito.»
«Pois.»
Levantou-se.
«Vou encher o copo. Tenho outra garrafa a respirar.»
Franzi o sobrolho. Para mim aquele impulso era um pico inesperado.
«Que se passa, Mário? Estás a beber muito!»
«Não se passa nada. Pensava que bebias mais. Assim, bebo por mim e por ti. As lulas fizeram-me sede.»
«Morde aqui. Aposto que é a Maria.»
Demorou a responder. Tive a certeza que estava no bom caminho.
Momento de magia!
Entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu na minha direção. Olho em volta e verifico que só estamos nós. Não há dúvida que ela parece conhecer-me. Então, também devo sorrir. É melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não, vou pôr uma interrogação no olhar, não vá haver outra pessoa na sala, apesar da verificação meticulosa que fiz.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Os cabelos são castanhos, compridos. Passou no exame preliminar. Mas que faço eu numa sala que tem muitas cadeiras vazias? Não mostro a mínima admiração. Parece que estava à sua espera. Mas como?
«Curioso. Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
Mensagens. Recados de um diálogo trazido pelo éter. Quero dizer-lhe qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento. Quem sabe até se nos conhecemos noutro tempo e noutro espaço! Segundo exame. Agora reparo. É mais jovem do que pensava. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. Sorrio. Retribui o sorriso e parece recompor-se do nervosismo. A palma da mão está virada para cima. Sinto que qualquer coisa a preocupa. Interrogo-a com o olhar. Quer que pegue na sua mão. E que vou fazer com aquela mão macia como o veludo? Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido e também porque o sol está a cair no horizonte. «Eu crepúsculo e tu viçosa...»
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e aqueles olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as nossas mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Quando as folhas das árvores amareleceram e desistiram de viver, é que dei conta que a tinha perdido para sempre. Agora é tarde. Muito tarde. A jovem continua de mão estendida e está à espera de uma iniciativa minha. Não reajo. Sorri, embaraçada. Com natural timidez. A timidez desculpa muitas faltas. Mas as pessoas tímidas serão também ingratas?
Que jovem tão sedutora!
Talvez tivesse entrado na sala errada...
Pego na sua mão macia e ela fica à espera.
Que vou fazer?, acariciar a mão da jovem?
Não. Sublimo o desejo e começo a olhar fixamente para a sua mão, como quem planeia uma viagem. Continuamos sós naquela sala mágica que tem a porta fechada.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo.»
Tudo parece ser secreto. Tento adivinhar a verdade na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Naqueles olhos espantados e muito abertos. Na mulher que parece oferecer-se, corpo e alma. Tento ainda adivinhar se vou perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana. Se fico para sempre debruçado sobre a linha do coração.
Na descoberta da sua verdadeira identidade e localização no espaço e no tempo estava a chave de todo o enigma.
«E se eles forem o Hitler e a Eva Braun e os documentos que procuram são os planos para a construção da bomba atómica?»
«Credo, António!»
«Ouve-me em silêncio e só depois replicas.»
Se os alemães tivessem descoberto e fabricado a bomba atómica, a história da humanidade teria seguido um outro rumo. Felizmente não aconteceu e os americanos ganharam a corrida antes dos russos, já com os alemães derrotados e, portanto, fora da mesma corrida. Entretanto, aconteceram Hiroxima e Nagasaki. Os milhares de mortos que as bombas causaram, e vêm ainda causando por via das radiações. O apelo à consciência das potências que conheceram depois os segredos e o potencial destruidor da bomba, serviram de dissuasão para que a bomba voltasse a ser acionada. De facto, não tardou que os russos fabricassem a bomba. Mais tarde, seguiram-se outros países. Foi-se tomando consciência que mais nenhum país voltaria a usar a bomba sob pena do perigo da retaliação e virar-se o feitiço contra o feiticeiro. Estava criado o equilíbrio. Um equilíbrio precário, mas de qualquer forma um equilíbrio.
Voltando ao cerne da questão, por um triz Hitler não foi senhor do mundo. E agora, surgindo do nada, apareceu aquele homem calvo, ainda na sua fase experimental de viajar entre mundos e no tempo e Mário a servir de cobaia. Culminando, parecia estar afinada a teoria, com as viagens através do transmissor da matéria ao futuro e ao passado, já com a concretização efetiva dos objetivos, e tendo-o outra vez como cobaia e, de certa maneira, eu, António Ildefonso, nesta fase final.
Que se ia passar a partir de agora?
Era um facto o misterioso Adolfo ter prescindido das suas cobaias e também da "Estação de Trânsito" que usou para as suas experiências.
«Porquê?»
Recordando principalmente as palavras que ele disse, já quando se preparava para partir, ia concretizar o seu objetivo. Era óbvio admitir que já não precisava da "Estação de Trânsito". A sua atividade ia centrar-se provavelmente no país onde sabia que estavam os documentos relativos ao plano da bomba. Viajando ao passado, precisamente ao momento decisivo da Alemanha nazi poder fazer a viragem para a vitória, Adolfo ia impedir que os segredos da bomba ficassem, conforme ditava o seu nacionalismo extremista, em más mãos. Mas, com essa viagem, surgia de novo o paradoxo do avô e do neto. A não ser...
Não era inédito. Mário já tinha conhecido o amargo sabor de viver entre dois mundos paralelos (A Terra em Perigo).
Portanto a vida continuaria a correr no nosso mundo sem qualquer descontinuidade e Adolfo e Eva estavam agora noutro mundo paralelo onde o futuro seria diferente. Bem diferente. Um pesadelo que, paradoxalmente, também seria vivido por mim e por Mário, desconhecendo se a nossa vida também corria noutra estrada.
«Isso é incrível, António!»
«E não vamos conseguir esquecer. A partir de hoje nada será igual, meu bom amigo...»
«A não ser que...»
«Que?»
Levou a mão ao bolso esquerdo das calças e retirou-a com o punho fechado.
«Adivinha?»
Encolhi os ombros.
«Achas que sou bruxo?»
Como resposta abriu a mão.
«Oh! Mostra-me.»
Era o isqueiro que a Manuela lhe tinha dado.
«Como conseguiste?»
«Muito simples. Descobri outro numa sala contígua. Foi esse que dei ao Adolfo.»
«Bom para ti e para mim. Provavelmente não tão bom para ele. Devolveu outro objeto. Não sei que consequências virão daí.»
Há passagens na vida de Mário que precisam de ser revisitadas. Mas de momento não posso contar com a sua colaboração, pois mergulhou num mutismo total, não justificando porque não deu seguimento ao plano que tínhamos acordado. Ao mesmo tempo fechou-se na concha, como se estivesse a esconder um segredo demasiado perigoso para ser revelado. Esta atitude apanhou-me de surpresa. A sua vida foi sempre um livro aberto. Nunca deixou de contar as histórias que tinham a ver com a sua vivência, as outras e as que se cruzaram efemeramente com uma casual órbita de outro acontecer. Não me posso esquecer de certas histórias que me contou e que são fruto da sua imaginação fértil, na maior parte das vezes a pender para o paranormal, aprofundando o tema a ponto de invadir a terra de ninguém entre o real e o fictício.
Se bem me lembro, tínhamos combinado explorar o software que, segundo ele, traria o controle das máquinas do casino, principalmente as duas dúzias ligadas, por hipótese, a um sistema aureolado de aleatório mas que, em boa verdade, de aleatório tinha apenas o nome. A abordagem seria feita com todas as cautelas. Assim, havia que obedecer a duas regras fundamentais: nunca estaríamos em simultâneo no casino e a assiduidade seria espaçada o mais possível.
Nem pestanejei. Ele lá sabia. Mas no dia seguinte a sua decisão alterou-se e deixou-me a pensar. Muito. Não batia certo. Ele clamava vingança pela manipulação descarada que levou à ruína de muitos utentes que tinham entrado no jogo e sabiam com o que contavam. As regras do aleatório tinham sempre a última palavra. Verdade? Não. Eles tinham sido estudados até ao mais ínfimo pormenor. A seguir, bastava retirar-lhes o tapete e deixá-los à mercê da arma que funcionava sempre a seu favor. O vício. O vício que arrastava consigo a esperança da sorte mudar. A boa sorte. Hoje. Amanhã. Nunca.
Quem zelava pelos interesses dos utentes já enterrados no pântano até ao pescoço?
Havia um guardião teórico. A figura do inspetor que não abandonava o seu posto de trabalho. Um posto burocrático ao serviço do Estado que, por sua vez, se interessava apenas nos lucros que tirava do jogo e que se destinavam a ajudar a tapar os buracos, por exemplo dos bancos e banqueiros menos honestos e também de governantes megalómanos que acabavam por ter a "cabeça a prémio" (e ainda bem!), de ontem hoje e amanhã. Um posto onde o trabalho era apenas baseado em estatísticas anuais de máquinas que mostravam sempre um desempenho normal, malgrado a revolta gritante dos utentes mais corajosos que apresentavam por escrito reclamações fundamentadas. Um bastião que não abandonavam, nem por nada, quando a verdade nua e crua estava numa descida à praça, ao palco onde se desenrolava a peça real que só os que queriam ser cegos não viam.
Agora Mário deixava em suspenso o seu ato de vingança.
«Vamos esperar.»
«Apareceu algum obstáculo?»
«Não puxes por mim.»
«Mas...»
No apartamento de Mário
Um mês depois combinámos encontrar-nos no seu apartamento da Alameda Afonso Henriques, agora completamente remodelado. Um segundo andar num prédio dos anos sessenta que fazia esquina com a Almirante Reis.
«Entra, amigo. Não vais conhecer a casa.»
Ele tinha razão. Entrei num pequeno hall com duas portas diametralmente opostas.
«Para já este hall não existia da última vez que cá estive.»
«Nada está como era dantes, conforme vais ter oportunidade de ver. Segue-me, António.»
António Ildefonso. A face oculta que dava vida às "Histórias de Mário Contador de Histórias". Suas, dos outros e inventadas.
A porta à esquerda comunicava com uma sala que funcionava também como casa de jantar. Achei o espaço apertado, mas evitei comentar. A sala comunicava com a cozinha, não só por uma porta como por um bonito balcão em granito róseo. Os milhões do casino estavam a ser bem aplicados.
«Que achas, António?»
«Acolhedor.»
«Bom, hoje estás lacónico. Vamos ver o resto.»
Voltámos ao hall e entrámos pela outra porta. A divisão a seguir era o quarto, servido por uma casa de banho. Dei conta do contraste. Mesmo ao jeito do Mário.
«Então?» perguntou, talvez influenciado pela minha expressão de pessoa estarrecida.
«Que grande casa de banho! Mas não é para admirar. Se não te conhecesse...»
E conhecia-o mesmo?
«Pois não. Tinha que ter um santuário adequado ao meu modo de estar numa casa de banho.»
Não evitei um sorriso.
«Já me esquecia.»
Foi então que vi uma estante na parede em frente.
«Bizarro.» Pensei.
A estante estava cheia de livros encadernados. Uns, de grande formato, de cor grená e ainda outros, estes mais pequenos, com capas de um azul forte a atirar para o escuro.
«Os Cavaleiros Andantes e os Mosquitos» adivinhei. «E também os Tim-Tins. Não falta um único exemplar, vou jurar.»
«Nem podia faltar.»
«Ainda os lês?»
«Claro. Doutra forma não estariam aqui. Tenho este velho hábito de ler banda desenhada na casa de banho desde criança. Ter estas coleções foi um sonho que me perseguiu durante muito tempo e que agora concretizei.»
«Com o dinheiro de Las Vegas e não só. Conheço-te há muito tempo mas não sabia que colecionavas banda desenhada com tanto fervor. Faltam aqui os Diabretes e os Mundos de Aventuras. Isto para não falar dos Titãs e dos Falcões, entre outros. Como tu, fui fã do Mandrake e do Tarzan, sabes?»
«Estão no encadernador e vão ficar nesta estante.»
Rodei cento e oitenta graus e vi mais uma estante. Vazia.
«És único, Mário. Doido varrido. Quem se lembraria de fazer da casa de banho a sua biblioteca de banda desenhada? Só tu. Mas creio que há um problema relacionado com a humidade. A não ser que tenhas pensado nisso.»
«Claro que pensei. Está instalado um sistema que liga automaticamente nos períodos dos banhos. Toda a humidade desaparece.»
«Então está aprovada a localização da tua biblioteca.»
Que me lembrasse, não havia livros na sala. Nem sequer um computador portátil, já para não falar na impressora. Optei pelo silêncio.
«É tudo?»
«Quase. Tenho ainda a coleção de catos.»
«É verdade. Os teus catos.»
«E plantas gordas, não te esqueças.»
«Mas sabes uma coisa?»
Franziu o sobrolho.
«Se tivesse o dom de adivinhar...»
«Deixa-te de graças. Nunca te disseram que dá azar ter catos dentro de casa?»
«Isso é superstição. Mas descansa que os catos não estão dentro de casa e por outro motivo. O crescimento não é perfeito no interior. Por isso e só por isso, estão na varanda.»
E lá fomos ver os catos. Mais que duzentos exemplares.
«Este conheço. O célebre Cereus peruvianus.»
«É já a terceira geração. Filho, neto e irmão.»
Voltámos à sala.
«Senta-te enquanto preparo o almoço.»
«Também sabes cozinhar?»
Sorriu e dirigiu-se para a cozinha.
«Queres ajuda?»
«Obrigado. Bem sei da tua falta de jeito. Olha, prepara uns drinques. Para mim pode ser um Martini. Seco.»
«Okey. Tens ginjinha?»
«Vais beber ginjinha?»
«Estou a gozar.»
«Bem me parecia.»
«Pega no teu Martini. Se queres com gelo, não te acanhes. Tens o frigorífico à tua disposição.» Gozei.
Escolhi um Porto branco.
Pouco depois espalhava-se no ar o odor inconfundível a lulas guisadas. Se bem me lembrava, o prato favorito do Mário.
«Já sei o que é o almoço.»
«Já? Não admira. Este exaustor anda a funcionar mal. Queres acompanhar as lulas com batatas cozidas ou fritas? Já pus o vinho a respirar.»
«Fritas. Se não te importas.» Olhei em volta. «Mas estou a sentir uma falta. Que fizeste aos selos?»
«Os selos estão bem, muito obrigado.»
Mário era um colecionador apaixonado talvez desde os seus doze anos.
«Mas onde os tens?»
«Mistério» disse, muito sério. «Olha, põe a mesa. Tira uma toalha da primeira gaveta do aparador. E desenrasca-te com o resto. Está tudo no mesmo móvel.»
«Que é o único.»
«Sim.»
Além da mesa oval e das cadeiras, em mogno, que me pareceu ser maciço, havia uma mesa que suportava a televisão. Na parede oposta à mesa, um sofá preto, em pele, de dois lugares. Três pequenos quadros decoravam as paredes. Um sobre o sofá e os outros dois acima do aparador. Esboços de Van Hove, com mulheres meio despidas.
Tudo muito simples e prático.
«Onde tens aquele Malhoa que dizes que vale um balúrdio?»
«Os Malhoas, queres dizer. Comprei mais dois. E também um Almada. Já sei que vais dizer que se vive bem aqui.»
«E não é verdade?»
«Pois.»
«Porque tu gostas muito de dizer pois. Não me dizes agora dos selos...?»
«Isto para não falar dos quadros.» Pensei.
«Depois do almoço.»
Escusado será de dizer que as lulas guisados estavam saborosas. Segundo o meu amigo, se é que havia segredo, o segredo estava em serem cozinhadas em lume brando, depois de um breve estrugido com cebola bem picada, azeite extra virgem, alho igualmente bem picado, vinho branco e tomate em pedaços com o mínimo de acidez então já com as lulas (frescas, a saberem a mar) cortadas às rodelas e uma pitada de sal e também piripiri, caseiro.
Não sei se comi mais do que ele, mas fiz por isso. Quanto ao vinho, não podia ter sido melhor escolhido para quem tinha a bolsa recheada como o Mário.
«É por conta dos "Teodoros" de Las Vegas e não só. Sabes quem foi o Teodoro?»
«Por acaso não.»«Entra, amigo. Não vais conhecer a casa.»
Ele tinha razão. Entrei num pequeno hall com duas portas diametralmente opostas.
«Para já este hall não existia da última vez que cá estive.»
«Nada está como era dantes, conforme vais ter oportunidade de ver. Segue-me, António.»
António Ildefonso. A face oculta que dava vida às "Histórias de Mário Contador de Histórias". Suas, dos outros e inventadas.
A porta à esquerda comunicava com uma sala que funcionava também como casa de jantar. Achei o espaço apertado, mas evitei comentar. A sala comunicava com a cozinha, não só por uma porta como por um bonito balcão em granito róseo. Os milhões do casino estavam a ser bem aplicados.
«Que achas, António?»
«Acolhedor.»
«Bom, hoje estás lacónico. Vamos ver o resto.»
Voltámos ao hall e entrámos pela outra porta. A divisão a seguir era o quarto, servido por uma casa de banho. Dei conta do contraste. Mesmo ao jeito do Mário.
«Então?» perguntou, talvez influenciado pela minha expressão de pessoa estarrecida.
«Que grande casa de banho! Mas não é para admirar. Se não te conhecesse...»
E conhecia-o mesmo?
«Pois não. Tinha que ter um santuário adequado ao meu modo de estar numa casa de banho.»
Não evitei um sorriso.
«Já me esquecia.»
Foi então que vi uma estante na parede em frente.
«Bizarro.» Pensei.
A estante estava cheia de livros encadernados. Uns, de grande formato, de cor grená e ainda outros, estes mais pequenos, com capas de um azul forte a atirar para o escuro.
«Os Cavaleiros Andantes e os Mosquitos» adivinhei. «E também os Tim-Tins. Não falta um único exemplar, vou jurar.»
«Nem podia faltar.»
«Ainda os lês?»
«Claro. Doutra forma não estariam aqui. Tenho este velho hábito de ler banda desenhada na casa de banho desde criança. Ter estas coleções foi um sonho que me perseguiu durante muito tempo e que agora concretizei.»
«Com o dinheiro de Las Vegas e não só. Conheço-te há muito tempo mas não sabia que colecionavas banda desenhada com tanto fervor. Faltam aqui os Diabretes e os Mundos de Aventuras. Isto para não falar dos Titãs e dos Falcões, entre outros. Como tu, fui fã do Mandrake e do Tarzan, sabes?»
«Estão no encadernador e vão ficar nesta estante.»
Rodei cento e oitenta graus e vi mais uma estante. Vazia.
«És único, Mário. Doido varrido. Quem se lembraria de fazer da casa de banho a sua biblioteca de banda desenhada? Só tu. Mas creio que há um problema relacionado com a humidade. A não ser que tenhas pensado nisso.»
«Claro que pensei. Está instalado um sistema que liga automaticamente nos períodos dos banhos. Toda a humidade desaparece.»
«Então está aprovada a localização da tua biblioteca.»
Que me lembrasse, não havia livros na sala. Nem sequer um computador portátil, já para não falar na impressora. Optei pelo silêncio.
«É tudo?»
«Quase. Tenho ainda a coleção de catos.»
«É verdade. Os teus catos.»
«E plantas gordas, não te esqueças.»
«Mas sabes uma coisa?»
Franziu o sobrolho.
«Se tivesse o dom de adivinhar...»
«Deixa-te de graças. Nunca te disseram que dá azar ter catos dentro de casa?»
«Isso é superstição. Mas descansa que os catos não estão dentro de casa e por outro motivo. O crescimento não é perfeito no interior. Por isso e só por isso, estão na varanda.»
E lá fomos ver os catos. Mais que duzentos exemplares.
«Este conheço. O célebre Cereus peruvianus.»
«É já a terceira geração. Filho, neto e irmão.»
Voltámos à sala.
«Senta-te enquanto preparo o almoço.»
«Também sabes cozinhar?»
Sorriu e dirigiu-se para a cozinha.
«Queres ajuda?»
«Obrigado. Bem sei da tua falta de jeito. Olha, prepara uns drinques. Para mim pode ser um Martini. Seco.»
«Okey. Tens ginjinha?»
«Vais beber ginjinha?»
«Estou a gozar.»
«Bem me parecia.»
«Pega no teu Martini. Se queres com gelo, não te acanhes. Tens o frigorífico à tua disposição.» Gozei.
Escolhi um Porto branco.
Pouco depois espalhava-se no ar o odor inconfundível a lulas guisadas. Se bem me lembrava, o prato favorito do Mário.
«Já sei o que é o almoço.»
«Já? Não admira. Este exaustor anda a funcionar mal. Queres acompanhar as lulas com batatas cozidas ou fritas? Já pus o vinho a respirar.»
«Fritas. Se não te importas.» Olhei em volta. «Mas estou a sentir uma falta. Que fizeste aos selos?»
«Os selos estão bem, muito obrigado.»
Mário era um colecionador apaixonado talvez desde os seus doze anos.
«Mas onde os tens?»
«Mistério» disse, muito sério. «Olha, põe a mesa. Tira uma toalha da primeira gaveta do aparador. E desenrasca-te com o resto. Está tudo no mesmo móvel.»
«Que é o único.»
«Sim.»
Além da mesa oval e das cadeiras, em mogno, que me pareceu ser maciço, havia uma mesa que suportava a televisão. Na parede oposta à mesa, um sofá preto, em pele, de dois lugares. Três pequenos quadros decoravam as paredes. Um sobre o sofá e os outros dois acima do aparador. Esboços de Van Hove, com mulheres meio despidas.
Tudo muito simples e prático.
«Onde tens aquele Malhoa que dizes que vale um balúrdio?»
«Os Malhoas, queres dizer. Comprei mais dois. E também um Almada. Já sei que vais dizer que se vive bem aqui.»
«E não é verdade?»
«Pois.»
«Porque tu gostas muito de dizer pois. Não me dizes agora dos selos...?»
«Isto para não falar dos quadros.» Pensei.
«Depois do almoço.»
Escusado será de dizer que as lulas guisados estavam saborosas. Segundo o meu amigo, se é que havia segredo, o segredo estava em serem cozinhadas em lume brando, depois de um breve estrugido com cebola bem picada, azeite extra virgem, alho igualmente bem picado, vinho branco e tomate em pedaços com o mínimo de acidez então já com as lulas (frescas, a saberem a mar) cortadas às rodelas e uma pitada de sal e também piripiri, caseiro.
Não sei se comi mais do que ele, mas fiz por isso. Quanto ao vinho, não podia ter sido melhor escolhido para quem tinha a bolsa recheada como o Mário.
«É por conta dos "Teodoros" de Las Vegas e não só. Sabes quem foi o Teodoro?»
«Imperdoável. Mas não tanto porque tu só ultimamente tens andado em casinos. Ou melhor, num casino. Vamos lá então. Teodoro dos Santos, um empresário que começou do nada. Prosperou no negócio das malas (daí a alcunha de Teodoro das malas), adquiriu a concessão do jogo, no velho Casino Estoril, em 1 de julho de 1958. Só dez anos depois foi inaugurado o "Novo Casino Estoril". Era vulgar ouvir-se da boca de um jogador quando ganhava um jackpot chorudo que ia investir por "conta do Teodoro". Não interessava o quê. Sentia um prazer enorme quando afirmava que "era por conta do Teodoro". Só que, fatalmente, acabava por deixar no Teodoro o que ganhava e o que não ganhava. Por outras palavras: tudo. E era tradição o casino oferecer um bilhete de comboio ao perdedor arruinado numa noite de jogo para este poder regressar a Lisboa ou outra localidade da linha. Bilhete que nalguns casos não era utilizado porque o perdedor desesperado usava o comboio de outra forma.»
«Fiquei esclarecido. É do teu tempo?»
«Não sou assim tão velho, mas contaram-me.»
«Voltando ao vinho, quanto te custou esta garrafa, com a leveza entre aspas dos seus quinze graus, agradável ao paladar até dizer basta?»
«Não sei.»
«Diz.»
«Talvez cento e cinquenta euros. Mas não pensemos nisso. Agora vai um digestivo. Acompanhas-me?»
«Só um café, meu amigo. Não tenho o teu treino.»
«Queres café cheio ou normal?»
«Curto, se não te importas.»
Notei que ele estava um pouco mais animado do que o costume e aproveitei para insistir nos selos. É que estava a fazer-me uma grande confusão.
Onde estariam os selos?
Levantou-se e exclamou:
«Tchan tchan tchan!»
«O quê?»
«Fecha os olhos. Só os abres quando eu disser.»
«Está bem. Contrariado, mas obedeço. Já estão fechados.»
Ouvi um ligeiro ruído que não pude identificar e, logo de seguida, a voz do Mário:
«Podes abrir.»
E o que vi deixou-me espantado. Mesmo ao meu lado, à direita, rasgou-se na parede uma abertura que mostrou outra sala.
«Este é o meu segundo santuário.»
«Estou a ver. Então é neste recanto que guardas a tua coleção de selos.»
«E não só. Nos dias mais complicados tranco-me aqui, desabafo os meus males de amor e não só, concentro-me à procura de ideias e até chego a dormir.»
Estaria num dia complicado?
«E não te sentes mal? Não tens falta de ar?»
«Em primeiro lugar não sofro de claustrofobia. E há circulação de ar vinda diretamente do exterior. Uma das paredes tem comunicação com a parede da varanda por dois ventiladores, aqui camuflados por quadros que, claro, não são os "Malhoas". Estes, como vês, estão na parede frontal. E já estás mais descansado com o caso dos selos?»
«Não é caso nenhum, Mário. Lembrei-me. Lembrei-me apenas. Então é nesta mesa que trabalhas na tua coleção.»
«Senta-te. Vou mostrar-te a coleção de selos de Portugal.»
«Tens os selos de Santo António?»
«Toda a série. Nova. Sem marca de charneira. E também os quatro selos de Dona Maria. Com certificado. Mas já tos mostro.»
«Bom, já vi os selos. Como sabes, também sou colecionador. Mas não ao ponto de ter uma coleção como a tua. Longe disso. Aliás, tenho outras opções, conforme sabes.»
«A tua biblioteca. E também o empenho e a coragem que mostras na net ao escreveres, tal como te foram contadas, as minhas histórias. Já falámos disso há tempos. Continua tudo na mesma? As pessoas passam pelo blogue e dás conta do ruído da sua passagem silenciosa?»
«E se mudássemos de assunto?»
«Já te conheço. És leão como eu. Os leões, quando sentem que podem ir em frente não hesitam. Lutam até ao fim pelo seu ideal. Mas também sabem quando devem desistir.»
Senti que era uma crítica.
«Gosto de escrever. As tuas histórias. As minhas. Não sei onde as tuas começam e as minhas acabam. Vou na estrada até ao fim do fim e quem não me quiser ver nela então não veja. Ou acompanhe-me. De qualquer das formas não desisto.»
«Eu quero que continues a escrever. Gosto do teu estilo. Nunca pensei que aquela opção de escreveres para crianças fosse dar certo. Ponto final.»
«Mas és suspeito.»
«Pois.»
Levantou-se.
«Vou encher o copo. Tenho outra garrafa a respirar.»
Franzi o sobrolho. Para mim aquele impulso era um pico inesperado.
«Que se passa, Mário? Estás a beber muito!»
«Não se passa nada. Pensava que bebias mais. Assim, bebo por mim e por ti. As lulas fizeram-me sede.»
«Morde aqui. Aposto que é a Maria.»
Demorou a responder. Tive a certeza que estava no bom caminho.
Momento de magia!
Entrou uma pessoa na sala que tem muitas cadeiras vazias e desarrumadas. Sorriu na minha direção. Olho em volta e verifico que só estamos nós. Não há dúvida que ela parece conhecer-me. Então, também devo sorrir. É melhor pôr uma interrogação no olhar. Pelo sim pelo não, vou pôr uma interrogação no olhar, não vá haver outra pessoa na sala, apesar da verificação meticulosa que fiz.
Já a vi em qualquer lado. É baixa, morena e simpática. Tem um olhar doce, de gazela espantada. Os cabelos são castanhos, compridos. Passou no exame preliminar. Mas que faço eu numa sala que tem muitas cadeiras vazias? Não mostro a mínima admiração. Parece que estava à sua espera. Mas como?
«Curioso. Vi-te com uma rosa vermelha. Para quem era?»
«Para ti...»
«Mas nunca a recebi!»
Mensagens. Recados de um diálogo trazido pelo éter. Quero dizer-lhe qualquer coisa e só me vem à cabeça a imagem de uma amazona que soltou os cabelos longos ao vento. Quem sabe até se nos conhecemos noutro tempo e noutro espaço! Segundo exame. Agora reparo. É mais jovem do que pensava. Sentou-se ao meu lado, receosa, e estendeu-me a mão direita. Sorrio. Retribui o sorriso e parece recompor-se do nervosismo. A palma da mão está virada para cima. Sinto que qualquer coisa a preocupa. Interrogo-a com o olhar. Quer que pegue na sua mão. E que vou fazer com aquela mão macia como o veludo? Não posso levá-la ao altar. Não posso porque é proibido e também porque o sol está a cair no horizonte. «Eu crepúsculo e tu viçosa...»
Já tinha acontecido. A mão delicada que eu pegava e aqueles olhos que me fitavam, assustados, como se fosse o predador e ela a gazela, lembravam-me tempos em que ainda era mais jovem que ela. Os olhos falavam outra linguagem e as nossas mãos apertavam-se. Mas isso foi noutro tempo. Quando as folhas das árvores amareleceram e desistiram de viver, é que dei conta que a tinha perdido para sempre. Agora é tarde. Muito tarde. A jovem continua de mão estendida e está à espera de uma iniciativa minha. Não reajo. Sorri, embaraçada. Com natural timidez. A timidez desculpa muitas faltas. Mas as pessoas tímidas serão também ingratas?
Que jovem tão sedutora!
Talvez tivesse entrado na sala errada...
Pego na sua mão macia e ela fica à espera.
Que vou fazer?, acariciar a mão da jovem?
Não. Sublimo o desejo e começo a olhar fixamente para a sua mão, como quem planeia uma viagem. Continuamos sós naquela sala mágica que tem a porta fechada.
«Não digas a ninguém que estiveste comigo.»
Tudo parece ser secreto. Tento adivinhar a verdade na sua respiração apressada, quase ofegante. Na voz trémula, sussurrante. Naqueles olhos espantados e muito abertos. Na mulher que parece oferecer-se, corpo e alma. Tento ainda adivinhar se vou perder o fio do raciocínio e trocar, por exemplo, a linha da vida pela saturniana. Se fico para sempre debruçado sobre a linha do coração.
«Há quanto tempo não vês a Maria?»
Não respondeu. Quis acompanhar a tristeza da expressão que vi no seu olhar, mas fiquei bloqueado e não consegui penetrar no seu íntimo.
«Mário, se não confias no teu maior amigo, então em quem vais confiar?»
«Não é coisa que possas resolver. Nem eu, tão pouco.»
Um Leão-Dragão nunca se ia abaixo com facilidade. Devia haver um mal maior a atormentá-lo E de que forma!
«Claro que não sou eu quem vai resolver o teu problema. Mas ficavas melhor, meu amigo, se desabafasses...»
Mário pareceu ceder.
«Lembras-te daquele sonho terrível em que fui ao encontro da Maria e só a vi depois de anoitecer? Ia numa bicicleta de dois lugares com uma aluna que, a dada altura, fez-me uma revelação que me deixou desorientado.»
«Não me lembro.»
«Mas tu escreveste essa história! O sonho que tive foi com a Maria.»
«Deduzo que não sabes nada dela. A Mónica talvez te pudesse ajudar...»
«Como conheceste a Mónica?»
«Conheci-a quando fugiste para Las Vegas. Andava à tua procura e segui uma pista que me levou à Mónica. Mas pensava que já te tinha contado.»
Tinha quase a certeza, mas se ele me fazia aquela pergunta então era preciso reconsiderar.
«Então é isso. Não a vês desde que tiveste aquele caso com a Amélia. Depois, fugiste para Las Vegas. Fala com a Mónica. Eu vou contigo. Interrompi o fio da conversa. Mário olhava muito sério para mim. Achei-o estranho.
«Já falei com a Mónica.»
Estava a ser estúpido. Aquele sonho que me contou...
Olhámos um para o outro.
«Ouviste o mesmo que eu?» perguntou.
«Sim. Que se passa?»
«Há qualquer coisa...»
Levantou-se, rápido, em direção ao televisor e carregou num botão. Ato contínuo, surgiram no ecrã cinco imagens numa quadrícula. Ao mesmo tempo ouvi um ruído e a abertura que comunicava com a sala começou a fechar-se, da esquerda para a direita.
«Que se passa, Mário?»
«Eles deram com a casa!»
«Eles?»
«Deixa-me pensar.»
Tentei perceber o que se passava no monitor. Cada quadrícula mostrava uma imagem das divisões da casa. Aparentemente estava tudo normal.
«Estão armados!»
«Mas estás a vê-los?»
Aproximei-me mais e foi então que vi a quinta imagem que estava tapada pelo volume do seu corpo. Havia três homens encapuçados junto à porta e as suas intenções de facto não eram as melhores. Acrescia que estavam armados com metralhadoras. Um mau augúrio.
«Daqui posso desligar a corrente, mas de nada resulta. Eles trazem lanternas. Ao mesmo tempo ficam com a certeza de estar gente em casa.»
Um deles tirou um conjunto de chaves do bolso e chegou-se à fechadura.
«A porta é blindada e a fechadura é de alta segura. Agora é que é a prova dos nove.»
«Como é que te descobriram?»
«Muito simples. Seguiram-te, António.»
Escusei de perguntar. Ainda era o caso do grupo mafioso do casino relacionado com a mala do dinheiro. E ele tinha razão ao afirmar que fui seguido. Afinal, acabei por dar nas vistas quando, face ao seu desaparecimento, o procurei no casino. Falei com o Francisco. Falei com o Vítor. Estava longe de imaginar as consequências. O próprio Mário não tomou em conta as consequências de termos estado no casino naquela noite.
«Só pode ter sido isso e sinto-me culpado.»
«Deixa para lá. O que não tem remédio, remediado está. De momento estamos seguros aqui. Mas vejamos o que estão a fazer. Por enquanto a fechadura resistiu.»
Não por muito tempo.
«Os grandes sacanas!»
«Não te preocupes, António. Estás num abrigo quase inexpugnável. Temos mantimentos para sobrevivermos entre um mês e dois.»
Não me imaginei fechado naquele espaço por tempo indeterminado.
«E temos casa de banho?»
«Claro. Também há casa de banho. É só fazer um gesto de "abre-te Sésamo" com o comando da televisão. Olha só...»
E, como que por magia, rasgou-se na parede do aparador uma abertura.
«Temos comunicação com uma pequena casa de banho e também com a varanda dos catos que, como tiveste oportunidade de ver, dá para as traseiras do prédio. É por aqui que vamos sair, se for caso para isso.»
«Pensaste em tudo.»
«Sim. Para tudo há remédio. Só não há para a morte. A propósito, olha para eles. Estão a vasculhar a casa. Se nos encontrassem, adeus à vida. É gente muito perigosa.»
«E se derem conta de algum ruído?»
«Este abrigo está insonorizado.»
«E quando sairmos daqui para onde vamos?»
Ficou a olhar para mim.
«Que foi, Mário?»
«A não ser que...»
Abriu uma gaveta do aparador e retirou de lá outro objeto que me pareceu ser um comando.
«Deixa-te ficar imóvel. Isto é um scanner. Não é muito provável mas podes ter implantado um chip algures no corpo.»
Não demorou muito tempo a operação de varrimento com o scanner.
«Estás limpo. E aqui a segurança é quase absoluta. Só uma explosão ou isso.»
«Isso?»
«É uma forma de dizer. Mas não acredito que cheguem a esse extremo. Penso que, partir de agora, vão continuar a vigiar a casa.»
«Então temos que ficar por cá.»
«Talvez não» sentou-se. «Deixa-me pensar...»
«Já saíram.»
«E não voltam a entrar. Basta-lhes vigiarem a porta.»
«Estamos feitos.»
«Dizes bem.»
«Foi por causa disto que adiaste a nossa ida ao casino? Já desconfiavas de alguma coisa?»
«Não.»
«Então?»
«A Maria. Não tenho tido disposição para nada, meu bom amigo. Essa mulher mexeu muito comigo.»
Não dava para entender.
«E não hesitaste em gozar os milhões com a Amélia dos olhos doces, Mário. Agora vens com essa paixão pela Maria. Tretas, Mário!»
«Nenhuma mulher foi feliz comigo. Nem eu fui feliz na vida. A dona Ima tinha razão. Não fui feliz, nem fiz nenhuma mulher feliz. É por isso que estou a pagar faturas.»
«És capaz de ter razão. Mas as faturas não têm nada a ver com esta tua vida. Se pudesses fazer uma regressão!»
«Se, dizes bem. Agora deixa-me pensar. Tenho que tomar uma decisão. Passa-me a garrafa do tinto. Preciso de inspiração.»
«Ah!»
«Que foi?»
«A loiça! Eles sabiam que estavas aqui. Viste-os mexer na loiça? Nem sequer se preocuparam com a loiça. Mas há uma coisa que não bate certo.»
«Demoraram muito tempo a chegar cá a casa. Vá lá saber porquê?»
«Provavelmente foste seguido só por um e os outros demoraram a chegar por algum motivo.»
«Devem ter ficado intrigados por não encontrarem ninguém.»
«Pois. Por isso mesmo temos que sair daqui o mais rápido possível.»
«Será que vão vigiar as traseiras?»
«Não. Neste momento já desistiram. Devem ter chegado à conclusão que fugimos pelas traseiras. Mas vão voltar. Disso tenho a certeza. Pelo sim pelo não vamos sair pela porta da frente. E já. Antes que se organizem e montem guarda à zona.»
«Tu lá sabes, meu. E será que a casa da Mónica...?»
«Talvez, António. Estás danadinho para ver a Mónica, não estás?»
«Olha para a minha cara de preocupado!»
«Morde aqui.»
Na casa da Mónica...
Não respondeu. Quis acompanhar a tristeza da expressão que vi no seu olhar, mas fiquei bloqueado e não consegui penetrar no seu íntimo.
«Mário, se não confias no teu maior amigo, então em quem vais confiar?»
«Não é coisa que possas resolver. Nem eu, tão pouco.»
Um Leão-Dragão nunca se ia abaixo com facilidade. Devia haver um mal maior a atormentá-lo E de que forma!
«Claro que não sou eu quem vai resolver o teu problema. Mas ficavas melhor, meu amigo, se desabafasses...»
Mário pareceu ceder.
«Lembras-te daquele sonho terrível em que fui ao encontro da Maria e só a vi depois de anoitecer? Ia numa bicicleta de dois lugares com uma aluna que, a dada altura, fez-me uma revelação que me deixou desorientado.»
«Não me lembro.»
«Mas tu escreveste essa história! O sonho que tive foi com a Maria.»
«Deduzo que não sabes nada dela. A Mónica talvez te pudesse ajudar...»
«Como conheceste a Mónica?»
«Conheci-a quando fugiste para Las Vegas. Andava à tua procura e segui uma pista que me levou à Mónica. Mas pensava que já te tinha contado.»
Tinha quase a certeza, mas se ele me fazia aquela pergunta então era preciso reconsiderar.
«Então é isso. Não a vês desde que tiveste aquele caso com a Amélia. Depois, fugiste para Las Vegas. Fala com a Mónica. Eu vou contigo. Interrompi o fio da conversa. Mário olhava muito sério para mim. Achei-o estranho.
«Já falei com a Mónica.»
Estava a ser estúpido. Aquele sonho que me contou...
Olhámos um para o outro.
«Ouviste o mesmo que eu?» perguntou.
«Sim. Que se passa?»
«Há qualquer coisa...»
Levantou-se, rápido, em direção ao televisor e carregou num botão. Ato contínuo, surgiram no ecrã cinco imagens numa quadrícula. Ao mesmo tempo ouvi um ruído e a abertura que comunicava com a sala começou a fechar-se, da esquerda para a direita.
«Que se passa, Mário?»
«Eles deram com a casa!»
«Eles?»
«Deixa-me pensar.»
Tentei perceber o que se passava no monitor. Cada quadrícula mostrava uma imagem das divisões da casa. Aparentemente estava tudo normal.
«Estão armados!»
«Mas estás a vê-los?»
Aproximei-me mais e foi então que vi a quinta imagem que estava tapada pelo volume do seu corpo. Havia três homens encapuçados junto à porta e as suas intenções de facto não eram as melhores. Acrescia que estavam armados com metralhadoras. Um mau augúrio.
«Daqui posso desligar a corrente, mas de nada resulta. Eles trazem lanternas. Ao mesmo tempo ficam com a certeza de estar gente em casa.»
Um deles tirou um conjunto de chaves do bolso e chegou-se à fechadura.
«A porta é blindada e a fechadura é de alta segura. Agora é que é a prova dos nove.»
«Como é que te descobriram?»
«Muito simples. Seguiram-te, António.»
Escusei de perguntar. Ainda era o caso do grupo mafioso do casino relacionado com a mala do dinheiro. E ele tinha razão ao afirmar que fui seguido. Afinal, acabei por dar nas vistas quando, face ao seu desaparecimento, o procurei no casino. Falei com o Francisco. Falei com o Vítor. Estava longe de imaginar as consequências. O próprio Mário não tomou em conta as consequências de termos estado no casino naquela noite.
«Só pode ter sido isso e sinto-me culpado.»
«Deixa para lá. O que não tem remédio, remediado está. De momento estamos seguros aqui. Mas vejamos o que estão a fazer. Por enquanto a fechadura resistiu.»
Não por muito tempo.
«Os grandes sacanas!»
«Não te preocupes, António. Estás num abrigo quase inexpugnável. Temos mantimentos para sobrevivermos entre um mês e dois.»
Não me imaginei fechado naquele espaço por tempo indeterminado.
«E temos casa de banho?»
«Claro. Também há casa de banho. É só fazer um gesto de "abre-te Sésamo" com o comando da televisão. Olha só...»
E, como que por magia, rasgou-se na parede do aparador uma abertura.
«Temos comunicação com uma pequena casa de banho e também com a varanda dos catos que, como tiveste oportunidade de ver, dá para as traseiras do prédio. É por aqui que vamos sair, se for caso para isso.»
«Pensaste em tudo.»
«Sim. Para tudo há remédio. Só não há para a morte. A propósito, olha para eles. Estão a vasculhar a casa. Se nos encontrassem, adeus à vida. É gente muito perigosa.»
«E se derem conta de algum ruído?»
«Este abrigo está insonorizado.»
«E quando sairmos daqui para onde vamos?»
Ficou a olhar para mim.
«Que foi, Mário?»
«A não ser que...»
Abriu uma gaveta do aparador e retirou de lá outro objeto que me pareceu ser um comando.
«Deixa-te ficar imóvel. Isto é um scanner. Não é muito provável mas podes ter implantado um chip algures no corpo.»
Não demorou muito tempo a operação de varrimento com o scanner.
«Estás limpo. E aqui a segurança é quase absoluta. Só uma explosão ou isso.»
«Isso?»
«É uma forma de dizer. Mas não acredito que cheguem a esse extremo. Penso que, partir de agora, vão continuar a vigiar a casa.»
«Então temos que ficar por cá.»
«Talvez não» sentou-se. «Deixa-me pensar...»
«Já saíram.»
«E não voltam a entrar. Basta-lhes vigiarem a porta.»
«Estamos feitos.»
«Dizes bem.»
«Foi por causa disto que adiaste a nossa ida ao casino? Já desconfiavas de alguma coisa?»
«Não.»
«Então?»
«A Maria. Não tenho tido disposição para nada, meu bom amigo. Essa mulher mexeu muito comigo.»
Não dava para entender.
«E não hesitaste em gozar os milhões com a Amélia dos olhos doces, Mário. Agora vens com essa paixão pela Maria. Tretas, Mário!»
«Nenhuma mulher foi feliz comigo. Nem eu fui feliz na vida. A dona Ima tinha razão. Não fui feliz, nem fiz nenhuma mulher feliz. É por isso que estou a pagar faturas.»
«És capaz de ter razão. Mas as faturas não têm nada a ver com esta tua vida. Se pudesses fazer uma regressão!»
«Se, dizes bem. Agora deixa-me pensar. Tenho que tomar uma decisão. Passa-me a garrafa do tinto. Preciso de inspiração.»
«Ah!»
«Que foi?»
«A loiça! Eles sabiam que estavas aqui. Viste-os mexer na loiça? Nem sequer se preocuparam com a loiça. Mas há uma coisa que não bate certo.»
«Demoraram muito tempo a chegar cá a casa. Vá lá saber porquê?»
«Provavelmente foste seguido só por um e os outros demoraram a chegar por algum motivo.»
«Devem ter ficado intrigados por não encontrarem ninguém.»
«Pois. Por isso mesmo temos que sair daqui o mais rápido possível.»
«Será que vão vigiar as traseiras?»
«Não. Neste momento já desistiram. Devem ter chegado à conclusão que fugimos pelas traseiras. Mas vão voltar. Disso tenho a certeza. Pelo sim pelo não vamos sair pela porta da frente. E já. Antes que se organizem e montem guarda à zona.»
«Tu lá sabes, meu. E será que a casa da Mónica...?»
«Talvez, António. Estás danadinho para ver a Mónica, não estás?»
«Olha para a minha cara de preocupado!»
«Morde aqui.»
Na casa da Mónica...
Fomos recebidos pela Mónica sem cerimónia. Percebi logo que o Mário era da casa. Talvez que uma vivência a dois com a Maria fosse um dado adquirido. Não sei porquê, mas ocultou-me aquela fase da sua vida depois que a Maria seguiu a sua vida profissional, no seu dizer, uma vida subterrânea, cheia de mistérios ou talvez não. Tudo estava no segredo dos deuses.
«Dispõe do outro apartamento, meu amigo. Afinal também já foi teu. Só lamento que a Maria esteja ausente..»
«Dispõe do outro apartamento, meu amigo. Afinal também já foi teu. Só lamento que a Maria esteja ausente..»
«Deixa, Mónica. Afinal são águas passadas.»
«Tens razão.»
Então e eu?
A Mónica sorriu e o seu sorriso não deixou também de dirigir-se a mim. Senti-me comprometido, como se fosse um ladrão apanhado em contrapé. E afinal não tinha motivos para isso. Quem me dera que tivesse.
«Agora vou fazer umas compras e não demoro. A não ser que...»
«É mesmo isso, se é o que pensas. Não temos outras roupas além das do corpo. Foi tudo muito rápido. E nem eu nem ele podemos voltar a casa.»
«Talvez...» olhou para mim «possa ir a casa do António.»
«Nem penses nisso que és uma mulher morta. Nesta altura já a casa está vigiada.»
«É assim tão perigoso?»
«Nem imaginas, Mónica!»
Mário tirou umas notas do bolso e passou-as para as mãos da amiga.
«Compra o que achares necessário.»
«Mas é muito dinheiro!»
Sorriu e abriu os braços.
«Agora sou rico, Mónica. Ou melhor: somos ricos. Os três. Compra sem problemas. Quando acabar, há mais para gastar.»
«Assaltaram algum banco? Ah...! Essas aventuras nos casinos de Las Vegas renderam, não foi?»
«E não só. O casino de cá também contribuiu com a sua quota parte.»
«Mas vocês correm perigo!»
Dirigiu-se a mim e agarrou-me as mãos, apertando-as.
«Tem cuidado, António!»
«Ah!»
Aquele "Ah!" do Mário queria dizer muito do muito que eu queria dizer à Mónica e não disse. Ela teve mais à vontade e discernimento e revelou o que não consegui revelar.
«E depois, Mário?»
«Depois, abracem-se, seus parvos. Eu fecho os olhos. Ou melhor, vou lá para dentro.»
Desprendeu-se suavemente. Mário já estava no outro apartamento.
«Ficas aqui comigo.»
«Fico?»
«Sim. Fui estúpida. Quase que te perdi.»
«Não vou fugir, Mónica. Afinal temos muita coisa para dizer um ao outro.»
«Tens razão.»
Então e eu?
A Mónica sorriu e o seu sorriso não deixou também de dirigir-se a mim. Senti-me comprometido, como se fosse um ladrão apanhado em contrapé. E afinal não tinha motivos para isso. Quem me dera que tivesse.
«Agora vou fazer umas compras e não demoro. A não ser que...»
«É mesmo isso, se é o que pensas. Não temos outras roupas além das do corpo. Foi tudo muito rápido. E nem eu nem ele podemos voltar a casa.»
«Talvez...» olhou para mim «possa ir a casa do António.»
«Nem penses nisso que és uma mulher morta. Nesta altura já a casa está vigiada.»
«É assim tão perigoso?»
«Nem imaginas, Mónica!»
Mário tirou umas notas do bolso e passou-as para as mãos da amiga.
«Compra o que achares necessário.»
«Mas é muito dinheiro!»
Sorriu e abriu os braços.
«Agora sou rico, Mónica. Ou melhor: somos ricos. Os três. Compra sem problemas. Quando acabar, há mais para gastar.»
«Assaltaram algum banco? Ah...! Essas aventuras nos casinos de Las Vegas renderam, não foi?»
«E não só. O casino de cá também contribuiu com a sua quota parte.»
«Mas vocês correm perigo!»
Dirigiu-se a mim e agarrou-me as mãos, apertando-as.
«Tem cuidado, António!»
«Ah!»
Aquele "Ah!" do Mário queria dizer muito do muito que eu queria dizer à Mónica e não disse. Ela teve mais à vontade e discernimento e revelou o que não consegui revelar.
«E depois, Mário?»
«Depois, abracem-se, seus parvos. Eu fecho os olhos. Ou melhor, vou lá para dentro.»
Desprendeu-se suavemente. Mário já estava no outro apartamento.
«Ficas aqui comigo.»
«Fico?»
«Sim. Fui estúpida. Quase que te perdi.»
«Não vou fugir, Mónica. Afinal temos muita coisa para dizer um ao outro.»
Tanto tempo perdido, António! Esta vida são dois dias e duas noites. É tempo de viveres a tua vida e de deixares de ouvir o "Mário contador de histórias". Ela, a Mónica, "grama-te aos molhinhos", como dizia uma amiga do Mário que afinal só queria ir com ele para a cama. Ela e a Odete, claro. Mas nesse tempo Mário foi fiel à sua paixão pela Maria.
Que confusão haver tanta gente metida em três ou quatro linhas!
«Agora deste em ventríloco?»
«Como assim?»
«Ouvi duas vozes, António. Duas vozes masculinas. Só cá estamos os dois e juro que não falei...»
«Só se foi o Ernesto.»
«Que piada te acho! Pois estás redondamente enganado. Nem eu sou ventríloquo nem o anterior Procurador Geral da República era a "Rainha da Inglaterra".»
«Só tu me fazes rir. Esta tirada dele nem parecia vir de quem vinha. Ou enganei-me?»
Não comentou. Dirigiu-se para o pequeno bar que tinha por cima um plasma de dimensões exageradas para o tampo do mesmo.
«Não te enganaste, António. Que bebes?»
«O mesmo que tu. Preciso de ganhar ânimo.»
«Ui, meu amigo! A Mónica não te animou? Ou estou enganado e então deliro, ou tu e a Mónica vão entender-se às mil maravilhas. Aproveita que ela é boa rapariga. E já estás entradote para a idade. Amanhã pode ser tarde...»
Sorri, tentando disfarçar o mau estar ao ver-me na situação de pessoa enamorada tendo em conta a diferença de idades entre eu e a Mónica. Mas tudo bem. A vida era muito curta e tinha que ser aproveitada até à medula.
«Não é isso. Claro que estamos bem. Aliás, já estivemos antes.»
«E então?»
«Então, ela desistiu. Mas agora voltou.»
«António, não a percas.»
Passou-me o copo com o whisky para as mãos.
«Simples. Sem um único vestígio de gelo. É assim que gostas, não é?»
«Bem sabes que não aprecio esta bebida. Bebo só para te fazer companhia.»
«Sentemo-nos.»
«Concordo. Mas o que se passa? Estás com um ar mais sério do que o costume.»
O Mário que tinha na minha frente já não era o Mário. Ou melhor: era outro Mário. Bom, ainda não tinha começado a beber.
«Que dizes?»
«Como conseguiste? O único problema está na voz.»
«Porque eu quero. E agora?»
«Incrível!»
Bebi de um trago aquele líquido que soube-me sempre a remédio. O whisky canadiano, esse suportava-o melhor. Tinha um sabor mais aceitável. Mas era uma opinião suspeita de mau apreciador.
«Dá-me outro.»
«Ena! Levanta-te. Sabes onde está a garrafa...»
E levantei-me. O que tinha visto e ouvido era caso para beber mais um copo. E não sabia se ficava por ali.
«Bom, conta lá ao teu amigo como conseguiste essa coisa incrível? Lembras-me os mutantes do X-Men. Dias de um futuro esquecido. Viste esse filme?»
«Não. Senta-te outra vez para não caíres.»
E começou a contar-me. Tudo começou com o chip que os mafiosos lhe implantaram. Um simples dispositivo que permitia o contacto com eles e assim atacar com êxito as máquinas que lhe indicavam no momento. Tudo muito simples e a funcionar na perfeição. Até que um dia...
Grande mistério! Nada tinham a ver um com o outro. Ele era um jogador com dinheiro para arriscar, mas um pouco cauteloso, diga-se. Ela, uma jogadora aparentemente pouco abonada que parecia mais interessada nele do que no próprio jogo. E aí residia a dúvida:
Interesse carnal ou ligado simplesmente à possibilidade de poder sacar algum dinheiro?
Aquela mulher já conhecera dias melhores. Conservava apenas traços da mulher fatal que fora na juventude. Então, era outra coisa.
«Pensa bem, Mário.»
Mas não tive tempo para pensar. Ali estava estavam eles junto a um BMW preto, topo de gama. Gostava de ser mosca ou qualquer outro inseto voador para me juntar a eles. Gostava mas não era possível. No entanto podia aproximar-me mais, passando despercebido entre as colunas espessas que suportavam o teto.
«Quem me dera ter os poderes do homem do cartão!»
Que pensamento o meu! O mais certo era aquele homem ter apenas existido em mais umas tantas histórias que contei. Pois era. Mas também vivi outras, bem mais estranhas.
Estava muito perto deles. Já os podia ouvir.
Melhor que ouvi-los foi o que aconteceu a seguir...Interesse carnal ou ligado simplesmente à possibilidade de poder sacar algum dinheiro?
Aquela mulher já conhecera dias melhores. Conservava apenas traços da mulher fatal que fora na juventude. Então, era outra coisa.
«Pensa bem, Mário.»
Mas não tive tempo para pensar. Ali estava estavam eles junto a um BMW preto, topo de gama. Gostava de ser mosca ou qualquer outro inseto voador para me juntar a eles. Gostava mas não era possível. No entanto podia aproximar-me mais, passando despercebido entre as colunas espessas que suportavam o teto.
«Quem me dera ter os poderes do homem do cartão!»
Que pensamento o meu! O mais certo era aquele homem ter apenas existido em mais umas tantas histórias que contei. Pois era. Mas também vivi outras, bem mais estranhas.
Estava muito perto deles. Já os podia ouvir.
«Ainda não sei como se chama.»
«Nem eu.»
«Como assim? Não sabe o seu nome?»
«Desculpe, não é o que julga. Chamo-me Helena. E o senhor?»
«Não estava a perceber. Pedro Vaz. Muito prazer em conhecê-la, Helena. É desta vez que vamos jantar?»
«Ontem a culpa não foi minha. O senhor tinha um encontro marcado. Inadiável, disse.»
«E era verdade. Não sabe como é o mundo dos negócios. Mas vamos andando» disse, consultando o relógio.» Já passa das dez e tenho um ratinho no estômago e não imagina como ele está a roer!»
«Imagino, sim.»
Não sei como aconteceu. Estava tão perto deles que até temi ser descoberto. Depois, ouvi um estalo seco e deixei de ver o denominado homem tranquilo. O meu desejo fora concretizado. De repente os poderes do homem do cartão, talvez acrescidos de um fator mais alto, estavam comigo.
«Não pode estar a acontecer!»
«Como?»
«Não disse nada, Helena.» Disfarcei com a maior das calmas.
«Não pode estar a acontecer, o quê, Pedro?»
«Eu disse isso?»
Moveu afirmativamente a cabeça.
«Bom» disfarcei. «Deve ser da fraqueza. Não se esqueça de pôr o cinto.»
«Costuma acelerar?»
Compreendi a pergunta, mas não a intenção. Aliás, se fosse o que estava a pensar, era pouco provável eu e ela termos um affair. As marcas do tempo eram bem visíveis no rosto daquela mulher, mas também queria acreditar que ela não tinha veleidades. Sabia muito bem das suas possibilidade ante alguém mais novo.
Ou não estava a ver o outro eu que não eu?
«Nem eu.»
«Como assim? Não sabe o seu nome?»
«Desculpe, não é o que julga. Chamo-me Helena. E o senhor?»
«Não estava a perceber. Pedro Vaz. Muito prazer em conhecê-la, Helena. É desta vez que vamos jantar?»
«Ontem a culpa não foi minha. O senhor tinha um encontro marcado. Inadiável, disse.»
«E era verdade. Não sabe como é o mundo dos negócios. Mas vamos andando» disse, consultando o relógio.» Já passa das dez e tenho um ratinho no estômago e não imagina como ele está a roer!»
«Imagino, sim.»
Não sei como aconteceu. Estava tão perto deles que até temi ser descoberto. Depois, ouvi um estalo seco e deixei de ver o denominado homem tranquilo. O meu desejo fora concretizado. De repente os poderes do homem do cartão, talvez acrescidos de um fator mais alto, estavam comigo.
«Não pode estar a acontecer!»
«Como?»
«Não disse nada, Helena.» Disfarcei com a maior das calmas.
«Não pode estar a acontecer, o quê, Pedro?»
«Eu disse isso?»
Moveu afirmativamente a cabeça.
«Bom» disfarcei. «Deve ser da fraqueza. Não se esqueça de pôr o cinto.»
«Costuma acelerar?»
Compreendi a pergunta, mas não a intenção. Aliás, se fosse o que estava a pensar, era pouco provável eu e ela termos um affair. As marcas do tempo eram bem visíveis no rosto daquela mulher, mas também queria acreditar que ela não tinha veleidades. Sabia muito bem das suas possibilidade ante alguém mais novo.
Ou não estava a ver o outro eu que não eu?
Seguiram-se mais peripécias que culminaram com a concretização de um sonho. Las Vegas e os casinos. A Amélia dos olhos doces. O drama de terem sido descobertos e a última vez que a viu. Depois, a fuga. E a operação plástica.
«Chegou a altura que de te contar toda a verdade do que aconteceu em Las Vegas. De facto descobriram-nos porque a Amélia também tinha um chip implantado. Mas não fiz nenhuma operação plástica, António.»
«Então?»«O chip foi retirado apenas para ser desativado e depois pedi para o recolocarem no sítio.»
Não entendi. Deixei que continuasse a descrição.
«Achei que era importante para as minhas metamorfoses não retirar o chip. Foi um palpite. Um palpite que bateu em cheio, António. Não me perguntes porquê. Palpites são palpites. Valem o que valem. E este bateu certo.»
«Bateu certo?»
«Sim. Até então só conseguira apoderar-me do corpo e da personalidade do Pedro Vaz, o tal jogador do casino que parecia fazer o que queria das máquinas dos cifrões. Mas foi só uma vez. Nunca mais consegui. Este rosto que estás a ver e que imaginavas dever-se a uma plástica a que me submeti, na realidade não foi mais que a segunda metamorfose.»
Fiquei para morrer. Afinal, Mário tinha-se transformado no homem dos mil rostos.
«Não me digas!»
Foi um momento. De repente tinha na minha frente um Mário com outro rosto. Mais carregado com uma barba e pera espessas e ruivas e o rosto branco, sardento. E uns olhos azuis-esverdeados.
«Pareces um irlandês. Só te falta uma fácies mais rude.»
«Não se pode ter tudo, meu bom amigo.»
«Agora fizeste-me lembrar o Francisco.»
Foi outro momento. Era de novo o verdadeiro Mário.
«Quando a Mónica chegar não lhe contes nada do que acabo de revelar-te. Quanto menos ela souber, melhor. Fica longe do perigo acaso algum dia as coisas corram mal. E a propósito, podemos voltar ao casino. Podemos ir juntos. Não um de cada vez.»
«Ah sim? Tanta mentira me pregaste, meu grande sacana!»
«Mas agora estou a redimir-me.»
«Tu és o homem dos mil rostos. Mas como posso entrar no casino sem pôr a nossa segurança em risco? Lembra-te que o Vítor e o Francisco conhecem-me.»
«O Vítor é perigoso. Vamos pensar num disfarce para ti. Tenho um amigo especialista que vai fazer maravilhas.»
«Nem penses nisso! Ninguém mexe no meu rosto!»
«O que estão para aí a dizer?»
A Mónica tinha chegado sem que tivéssemos dado por isso.
Que teria ouvido?
«Não é o que pensas, Mónica!»
«E o que é que penso, Mário? Pelos vistos, o teu rosto antigo voltou. Folgo muito.»
«Ora diz-me o que trouxeste?»
«Pronto, não te convém a conversa. Já comprei roupa para ti, António. E refeições prontas a irem para a mesa, depois de serem aquecidas. E que mais? Fruta, leite e vinho. Pão e bolachas. E chá. Já cá tinha cervejas de lata e também cápsulas de café expresso.»
«Chá?» ironizei. «Não vais drogar-me outra vez, Mónica?»
Encostou-se a mim, sorrindo.
«Achas que é preciso?»
«Podem ronronar à vontade que eu não me importo.»
Afastou-se logo, corada que nem um pimento maduro.
«Então?» perguntei.
Foi a vez de a aconchegar no meu peito.
«Deixem-se de mariquices. Vamos jantar que tenho a barriga a dar horas.»
«E eu vou pôr uma garrafa de tinto a respirar.»
«Boa, António! Bebes também, Mónica?»
«Claro. Parece que estás esquecido...»
O rosto de Mário toldou-se, parecendo distante. A Maria dos cabelos soltos ao vento ainda mexia com ele. Não conseguiu montar o cavalo da coragem. Que ideia estúpida ela teve!
E que ideia tinha sido?
Mas foram alguns segundos. Logo se recompôs.
Pensei mais no pós jantar do que no jantar propriamente dito. Ainda não queria acreditar que tinha a Mónica de volta.
A mulher que tinha o seu amor em Espanha
De uma vez por todas podes dizer-me onde vamos?»
Mário parou bruscamente e limitou-se a dizer:
«Não sei se faço bem.»
«Desembucha. Já estou a ficar com nervoso miudinho!»
«Prometes que não tocas em nada?»
Demorei a responder. Parecia que íamos a um museu e que ele estava a fazer uma recomendação a uma criança traquinas. Já bastava ter-me pedido para não dizer nada à Mónica, o que me constrangeu deveras. Não devíamos ter segredos um para o outro e eu estava a dar um motivo a ela para fazer o mesmo noutra ocasião que se proporcionasse.
«Claro que não vou mexer em nada. Se tu o dizes, embora não saiba porquê, prometo.»
«E mais uma coisa: não contes à Mónica nada, mesmo nada, do que vai passar-se dentro de momentos.»
Tínhamos apanhado o metropolitano no Alto dos Moinhos até ao Marquês e saímos nessa estação, começando a subir a Fontes Pereira de Melo pelo passeio do lado esquerdo.
«Não dizes onde vamos?»
«Já vais ver.»
Não queria adiantar mais.
«Albarde-se o burro à vontade do dono.»
«Isso mesmo. Foi o que eu fiz.»
«Como assim, Mário?»
A meio da avenida cortámos à esquerda, o que fez com que se acendesse uma luz ao fundo do túnel.
«Que vamos fazer ao Picoas Plazza, pá?»
«Como sabes que vamos ao Picoas Plazza?»
«Está-se mesmo a ver. Não se trata de ir à Maternidade Alfredo da Costa, pois não?»
«Nunca se sabe.»
«Goza.»
De facto o nosso destino era o Picoas Plazza. Mais propriamente a esplanada onde ele costumava ir. Mas os desígnios que o levavam aí ainda estavam no segredo dos deuses.
Cinco minutos depois já estávamos sentados na esplanada.
«Bom, que bebes?»
«Um café.»
«Então, espera um pouco. Vou ao balcão. Não servem na esplanada.»
«Certo.»
Não tardou que aparecesse com um tabuleiro com duas chávenas de café e dois bolos.
«Hum! Bolos de coco! Como sabias que eu gostava?»
«Foi um palpite. Lembras-te do que me aconteceu aqui?»
Pus-me a adivinhar.
«Deixa ver. Uma antiga aluna tua de... Não me lembro do nome. Costumava guardar-te o lugar no autocarro que os levavam à estação do comboio. Era muito querida. Lourel. Era isso. Foi onde te efetivaste.»
«Boa memória, António.»
«Um pouco emperrada.»
«Mas não se trata da Maria da Graça.»
«Ah!, já sei. Era a tal mulher que tinha o seu amor em Espanha.»
«Mas não era a Marie.»
Entretanto chegam notícias. Uma mulher que não conhece pretende ocupar uma mesa pegada à sua, quando há muitas outras disponíveis. Faz um gesto de anuência e só então olha para ela com olhos de ver.
Não é a Odete. Já há muito tempo que não a vê por ali. Muito provavelmente, evita-o. Inverteram-se os tempos. Fez tudo e mais que tudo para lhe tirar a Maria dos cabelos soltos ao vento. E conseguiu.
Agora pensa que chegou o seu tempo de vingança. Da sua vingança ridícula, o que só dá vontade de rir. Viu sempre nela uma amiga. Mais nada Nunca deste conta, Odete?
A mulher já se sentou na mesa pegada à sua e prepara-se para colocar a mala sobre a cadeira ao seu lado e na frente de Mário. Portanto, está a entrar em domínios alheios. Mais precisamente nos seus domínios.
Tem um movimento de recuo.
«Pode deixar ficar a mala. Estou só.»
«Obrigada.»
Aparenta ter pouco mais de quarenta anos e menos de cinquenta, não é gorda nem magra, o cabelo é curto a atirar para o loiro. Os lábios são carnudos. Os olhos estão tapados por uns óculos escuros.
«Bom, e estamos aqui à espera dessa mulher? Não gozes comigo, Mário!»
«Achas que estou a gozar?»
«Tenho a certeza.»
«Absoluta?»
«Bem...»
«Dá-me a mão.»
«O quê?!... Deixa-te de paneleirices.»
Soltou uma gargalhada gutural, tão gutural que várias pessoas voltaram-se para nós, intrigadas ou incomodadas.
«Dá-me a mão e fecha os olhos.»
«Mau mau!»
E dei-lhe a mão.
«Que está a acontecer, Mário?»
«Observa, apenas.»
«Sim.»
«E então?»
«Mas tu estás ali! E aquela mulher é...»
«Essa mesma.»
«Não percebo» viro-me para ele e sinto vontade de o beliscar. «Aquela mulher que fala contigo.»
«Limita-te a escutar.»
«E não há o perigo deles te verem?»
«Fica descansado. Estamos invisíveis para todas as pessoas que estão nesta esplanada e também para as que vão passando.»
Continua a olhá-la de soslaio. Não sendo uma beleza, não é mulher que se deite fora, mas não pode deitar fora nem acolher uma mulher que não conhece.
Continua a desbaratar a tarde a seu belo prazer, mas não se sente eterno e já dá atenção ao que se passa ou passará na linha do seu horizonte. Com a chegada daquela mulher, os pardais interromperam o repasto. Tudo é silêncio. Entretém-se a dar as últimas dentadas na tosta que está cada vez mais saborosa à medida que desaparece do prato. Alguma coisa lhe diz que aquele momento mágico e de prazer vai ser interrompido.
Bruxo!
«Estou à espera duma amiga.» Diz ela.
Quer diálogo e não quer.
«Ah...»
Consulta o relógio. Tenta ler-lhe o pensamento. Não está a ser bem sucedida na tentativa de tomar de assalto o castelo bem guarnecido.
«Mas ainda é cedo.»
Retira os óculos de lentes escuras do rosto e deposita-os sobre a mesa. De repente lembra-lhe a mulher de vermelho com os seus óculos espelhados e os momentos conturbados que então viveu e que o tempo de hoje já quase apagou. Nada tem a ver com a outra. É inofensiva. A força do olhar perdeu-se com o gesto de desproteger os olhos. Lembra-se outra vez da Odete. Se estivesse presente não hesitava em comentar:
«Dás sempre muita atenção aos olhos das mulheres, principalmente quando são atraentes. Lês bem neles, certamente.»
«Nem sempre, nem sempre, Odete. Olha que já me enganei muitas vezes.»
«Perdão...»
A companheira de mesa interpelou-o.
Será que falou alto?
Se foi, é perigoso. Os pensamentos ficam a nu e ela pode esgrimir em ação brusca de ataque.
«Não percebi o que o senhor disse. Parece que falava de olhos, ou coisa parecida.»
«Foi quando tirou os óculos. Mas já não me lembro do que disse. Ah!, é isso. Esses óculos são muito escuros e devem diminuir-lhe a visão na esplanada. A esta hora o sol já não bate nas mesas.»
«Foi por esse motivo que os tirei.»
«Bem me pareceu.»
Definitivamente não é a mulher de vermelho. Até porque veste calças de ganga azuis e uma t-shirt também azul, de tom mais carregado.
Voltou a consultar o relógio. Está inquieta. Algo perturba aquela cabeça de vento.
Cabeça de vento?
Que ideia mais disparatada, se nem sequer a conhece!
«A sua amiga já deve estar atrasada. Se calhar já não vem.»
Está a meter-se onde não é chamado. Vai replicar e pô-lo no lugar.
«Não é isso. Olhei para o relógio só por olhar. Foi um gesto maquinal.»
«Compreendo. Acontece o mesmo comigo. Posso passar mais que uma hora sem olhar para o relógio e depois faço-o duas vezes no intervalo de cinco minutos.»
O assunto parece ter-se esgotado. Ficou a cerimónia do arquiteto no prato. Uma nica de tosta. Não sabe porquê mas procede sempre da mesma maneira.
É ela quem tenta alimentar a chama antes que volte a mergulhar no mundo silencioso dos números ou na melancolia circular que o tem atormentado ultimamente.
«Pelo que vejo está a consultar um livro. Posso saber o assunto?»
«Muito agreste» mostra-lhe o livro. «Decerto que não é do seu agrado. Primitivas.»
«Puro gosto ou mais do que isso?»
«Sou professor de Matemática.»
«Engraçado! Eu também sou. Agora estou a fazer um trabalho de mestrado.»
«Necessidades de valorização que os tempos correntes impõem. Pediu licença sabática?»
«Certíssimo. Neste momento só quero terminar o mestrado o mais depressa possível e depois ir viver para Espanha.»
«Espanha. Porquê?»
Sorriu, algo embaraçada.
«Tenho lá o meu amor...»
«É espanhol?»
«Alfacinha de gema.»
Achou curiosa aquela revelação. E ele a julgar que se estava a atirar. Tudo parecia ir nesse sentido. Tinha muitas mesas vagas e veio ocupar a que se ligava à sua. A seguir, meteu conversa, mostrou os olhos (que apreciou), olhou descaradamente para ele, meteu-se na sua vida, etc, etc. Um amante em Espanha não impedia que procurasse outro em Portugal.
Ai, Mário, Mário... que já não tens hipótese de emenda! Estás quase sempre a fazer leituras erradas. A desconhecida só quer conversa e até o seu namorado de Espanha pode não existir. Quer conversa, pronto. Por vezes o tempo custa a passar, entendes?
O silêncio prolongou-se e aproveitou para arrumar as ideias. Tentando não ser agressivo, procurou que ela não se refugiasse em terrenos de crença (e olé!).
«Deixemos o seu amor em descanso. Oxalá o reveja o mais depressa possível, tal como deseja. Diga-me uma coisa: está a gostar do seu trabalho?»
«Muito. Muito mais do que julgava. Mas o meu sonho é ir o mais depressa possível para Espanha, onde vive o meu amor.»
Outra vez o seu amor.
«Parece que a sua amiga se demora. Posso oferecer-lhe um café... um sumo?»
«Obrigada. É muito amável. A minha amiga está quase a chegar. Combinámos o encontro às cinco.»
«São cinco e vinte e cinco.»
«O tempo passa a correr.»
Ele que o diga. Não tarda que chegue o crepúsculo.
«Vou andando para a Bertrand. Ela já deve estar à espera...»
Nada feito. Recuo nítido.
Num gesto mecânico consultou o relógio. O tempo, que nunca descansa, estava a chegar ao fim, a triturar as expectativas criadas pela desconhecida. Notou indecisão no gesto de se levantar. Ainda quis saber dele. Como se sentia com a vida que fazia fora das aulas. Um animal acossado. E, ao contrário dela, sem o seu amor.
«Tenho sempre um vazio a preencher. Um enorme vazio. Mas sabe... não sou capaz de ficar de braços cruzados. Dou atenção à minha coleção de selos, à paixão pela escrita, às longas caminhadas que me ajudam a pôr as ideias transviadas no sítio. E muito mais, se for necessário.»
«E a Matemática?»
«É mais um motivo para matar a saudade dos meus tempos de Faculdade. Mas faço-o raramente.»
«E escreve sobre quê?»
«Essencialmente contos.»
Mentiu. Não era escritor. Sim, o Ildefonso. Mas não fazia mal. De certeza que não se zangava.
«Vou andando» levantou-se. Gostaria de ficar mais tempo a falar consigo, mas não posso. Talvez que um dia nos encontremos para falarmos um pouco dos seus contos, quem sabe, ler um ou outro. Vem muitas vezes para aqui?»
«Algumas.»
Mário levantou-se. Trocaram um cumprimento selado por um aperto de mão e ficou a vê-la a afastar-se em direção à Bertrand. Não tinha cabelos longos. Muito menos, soltos ao vento.
«Mário! Onde vais?»
«À Bertrand. Não saias donde estás.»
«Não podes interferir no passado!»
Vi-o dirigir-se para o sítio onde devia estar a desconhecida. O outro Mário estava sentado, aparentemente debruçado sobre um problema de Matemática.
«Não!»
O outro Mário acabava de levantar-se. Tinha que fazer qualquer coisa para evitar uma tragédia.
Quem sabia até se não podiam regressar ao presente?
Optei pela prudência.
Não passaram cinco minutos e eis que Mário voltou, sorridente.
«Cruzaste-te com ele? Ou melhor, contigo?»
«Não.»
«E a desconhecida?»
«Estava na Bertrand a comprar um livro.»
«E?»
«Logo a seguir, saiu. Vi-a passar por mim...»
Então não tinham trocado uma única palavra.
«Não se pode alterar o passado! Não falei com ela mas fiquei a saber uma coisa. Não havia qualquer amiga na livraria.»
«Então?»
«Então, mentiu.»
«E não a seguiste até à porta da saída do centro comercial. Podia estar lá fora a amiga...»
«Seria o tipo mais estúpido do mundo se não a tivesse seguido. Ao mesmo tempo, se tinha esclarecido uma dúvida, outra surgiu, tão forte que me deixou a cismar.»
«Não me digas que ela tinha lá fora à espera o seu amor de Espanha?»
«Pior ainda. Desapareceu. Pura e simplesmente vi-a desaparecer.»
«Incrível!»
Não éramos só nós que fazíamos viagens no tempo. Havia mais quem o fizesse.
Nem eu nem o Mário imaginávamos quantos viajantes andavam entre nós!
«A mulher de vermelho?» perguntei.
«Sim. É quase uma certeza. Mas não sei se veio do futuro ou do passado.»
«Muito interessante o que aconteceu. Não te pergunto como conseguiste. Penso que tu também não sabes como esse dom te veio parar às mãos.»
«Tens razão, meu amigo. Tenho qualquer coisa cá dentro que me dá o poder de realizar estas viagens ao passado e exatamente à medida dos meus desejos. E aí é que está um grande enigma dentro do outro.»
Se compreendia, havia dois dons em Mário. O primeiro, poder viajar ao passado e ao futuro. E o segundo, ainda mais difícil de entender, como chegava no momento exato desejado. E tudo, sem materializações e desmaterializações.
«Em que estás a pensar?»
«Nisto que aconteceu há pouco. Estou banzado!»
«Não percebo o que queres dizer.»
«Mais que admirado. É muita areia, Mário.»
«Também para mim. Por mais voltas que dê à cabeça, chego sempre ao mesmo ponto.»
«E qual?»
Talvez soubesse a resposta que ele ia dar. O implante do chip foi o começo de tudo. Antecipei-me com o palpite.
«Já sei. O chip provavelmente tem ficheiros ocultos. Por outro lado...»
«Diz.»
«Por outro lado, as tuas viagens ao passado são posteriores ao caso do casino.»
«E o que permitiu metamorfosear-me no Pedro e não só...?»
«Tens razão.»
«A tua hipótese da existência de ficheiros ocultos no chip parece ter consistência. Por outro lado, a memória de massa não foi alterada, garantiu-me o técnico informático que desativou o dispositivo. Zero bytes, António. Garantiu-me o minhoquinhas do informático.»
«E se mentiu? Escuta uma coisa: mesmo que os ficheiros estejam ocultos, podem ser detetados.»
«Nada é impossível nos nossos tempos.»
«E o Adolfo?»
«Que tem a ver o Adolfo com o chip?»
«Tudo e nada.»
«És capaz de ter razão. Estamos perante um enigma como a existência da matéria negra e da energia negra que não podem ser comprovadas. Mas que existem, lá isso existem. E se nos deixássemos de hipóteses que só levam a becos sem saída e continuássemos a explorar as potencialidades inimagináveis que me caíram do céu?»
«Não sei, Mário. É perigoso.»
«Alinhamos ou não?»
Hesitei, mas só por breves momentos.
«Vamos em frente.»
«Vê lá...»
«Está decidido.»
«E a Mónica?»
«E a Maria?»
«Deixa a Maria em paz. A Maria decidiu seguir o seu destino. Agora vamos tentar resolver outro enigma.»
«Que enigma?»
«Logo vês. Já nada temos a fazer aqui. É melhor irmos de táxi.»
«Que destino?»
«Só te digo que a distância que nos separa do destino anda à volta de quarenta quilómetros.»
«Deixa-me adivinhar.»
«Antes de adivinhares, pensa bem. Julgo que esta aventura vai ser mais complicada.»
Desvendado o enigma da mulher de vermelho?
Estávamos no café do Norte.
«Os donos já não os mesmos.»
«E isso tem influência?»
«Não. O problema não está aí. Até é bom não serem os antigos donos. Teria que usar um dos meus disfarces.»
«Ah sim.»
«O que tomam os senhores?»
Olhámos um para o outro.
«Dois cafés e duas ginjas, por favor.»
«Com elas?»
Sorrimos.
«Claro que com elas!»
Sorriu também.
«É para já.»
«Está a falhar alguma coisa?»
«Não sei. Ainda não comecei.»
«Tens razão.»
O homem do café colocou primeiro as duas chávenas sobre a mesa e só depois os copos com a ginja. Copos robustos. Como se impunha.
«Vejamos então» raciocinei em voz alta. «Vais outra vez agarrar a minha mão e pedir para fechar os olhos, não é?»
«Exato.»
«E de que estás à espera?»
«De beber o resto da ginja. Faz o mesmo. Não se pode perder nem uma gota. Todo este cenário vai deixar de existir dentro em breve e não sei o que me espera.»
Obedeci. De facto a ginja não era má. Mas eu fazia melhor. Um litro de bagaço, setecentos e cinquenta gramas de açúcar, três paus de canela e um quilo de ginjas, claro. Tudo deitado num frasco de boca larga que ficaria fechado hermeticamente. Depois, guardava o frasco num local às escuras, pelo menos durante três meses. Ao fim desse tempo provava o líquido e fazia os necessários acertos. Mais dois meses e voltava a provar. E aí estava uma ginjinha de estalo.
«Tens a certeza que vai correr tudo bem?»
«É relativo, António.»
«Bom, eu quero voltar para a Mónica, não te esqueças.»
«Vamos então lá a ver...»
«Tal e qual como nos velhos tempos das apostas no totoloto. Ali estou eu a entregar os primeiros cheques assinados à dona do café...»
«E a mulher de vermelho olha na tua direção. Não lhe vejo os olhos, mas parece olhar fixamente para ti. Ela veio do passado ou do futuro?»
«Isso é o que vou saber.»
«Como?»
«Ainda não decidi. Olha, confirma-se que o cabelo é escuro, bem penteado. E o corte é clássico.»
«Sempre não tem chapéu. Acho que era uma dúvida que tinhas.»
«Não me lembro.»
«Dentro em breve vou ficar perturbado pelo olhar da mulher, apesar dos seus olhos estarem escondidos atrás duns óculos espelhados.»
«Está a acontecer!»
«Ah!»
«Que foi?»
«Não existe qualquer chávena de café em cima da mesa. Na altura foi um pormenor que me escapou, lembras-te?»
«Sim. Nem sequer há um copo de água. Nada. Bem disseram na altura os donos do café que não havia ninguém quando foste rebater os recibos do totoloto. Mas tu viste-a.»
«É verdade. E nunca consegui encontrar uma explicação plausível.»
«Muito simples.»
«Então?»
«Nessa altura já eras um sensitivo.»
«Talvez. Mas não consegui saber se ela vinha do passado ou do futuro. Os óculos espelhados, de certeza modernos, faziam a diferença e lançavam a dúvida. Vou ter que decidir. Nem que seja por moeda ao ar.»
Previ que o Mário ia fazer um disparate dos grandes. Daqueles à maneira do Mário.
«É já a dona do café quem assina os restantes cheques. Neste momento estou bloqueado. Mas não perdi a consciência. Tudo vai acontecendo como te contei.» Disse ele.
«Chegou um indivíduo do interior do café. É também um viajante do tempo?»
«Não. Trata-se do antigo dono do café. Estou a dizer-lhe que voltou a acontecer-me o mesmo que da outra vez.»
«É verdade. Já te tinha acontecido uma vez, mas nesse dia não viste ninguém.»
«Foi em fevereiro, penso. Estava frio, ou era eu que tinha frio. Tudo se passou em circunstâncias diferentes. Já me sentia perturbado em Lisboa.»
«Tens razão, Mário.»
«E agora estou a retirar-me em pânico. Nem sequer tenho coragem de olhar para trás. Pronto. Chegou o momento.»
Levantou-se.
«Espera! Onde vais?»
«Já volto. Não saias daqui...»
«Mário!»
Fez-me um gesto para me tranquilizar e encaminhou-se para a mesa da mulher de vermelho. Puxou a cadeira para trás e sentou-se de frente para ela. A mulher continuou tal como estava. Imperturbável, muito direita, como se não houvesse mais ninguém na mesa senão ela.
«Oh!»
Foi tudo muito rápido. Ele pegou-lhe na mão e desapareceram instantaneamente.
Fiquei para morrer. O Mário e a mulher do vestido vermelho tinham desaparecido.
Aproximei-me da mesa da mulher e apenas pude confirmar que nada havia sobre o tampo da mesma. Portanto, tempo perdido.
«Não entres em pânico, António» tentei controlar-me. «Isto que aconteceu é só fruto de uma alucinação. Ou então adormeceste por momentos. Entretanto o teu amigo foi à casa de banho e dentro em breve está de volta. É isso. Vai para a tua mesa e espera. Esta situação não permite precipitações.»
Fiz um sinal para o dono do café.
«Mais duas ginjas, por favor. Desta vez sem elas.»
Pouco depois tinha os dois copos sobre a mesa.
«O seu amigo?»
«Já volta.»
«Ah sim.»
E regressou ao balcão.
Peguei num dos copos e bebi a ginja de um trago.
«Que sede!» comentei para dentro.
Não sabia o que havia de fazer. Ele tinha-me dito para não sair dali e devia obedecer. Mas sentia-me de mãos atadas.
E se não voltasse?
Levantei-me e dirigi-me até à porta. Não estava habituado a meter-me em sarilhos. Para o Mário era o trivial. Falava tu cá tu lá com eles, os sarilhos.
Voltei para a mesa e levei à boca o segundo copo. O dono do café já estava na minha frente.
«O senhor está preocupado...»
«Nem imagina!» pensei.
«Um pouco.» Respondi, laconicamente.
«E eu não estou menos. Posso sentar-me ao seu lado?»
Pressenti que ia acontecer aquilo que se chama bosta no beco.
«Faz favor de se sentar.»
«Antes disso, só um momento.»
Vi-o aproximar-se do balcão e entrar. Voltou com um copo e uma garrafa de ginja. A seguir sentou-se e começou a encher o meu copo e só depois encheu o dele. Tudo feito em silêncio.
«Não sei como dizer-lhe...»
«Mas diga.»
Bebeu a ginja de um trago e voltou a encher o copo, continuando com a garrafa no ar. Compreendi a intenção e pouco depois também o meu copo voltava a estar cheio.
«Beba. Esta é da boa.»
Tinha razão. Parecia-se mais com a minha. Ou então o álcool começava a fazer efeito.
«Vi o seu amigo encaminhar-se para o meio do café, baixei-me para apanhar um pano que escapou-me das mãos e já não o vi.»
«O pano?» tentei ganhar tempo.
«Claro que não. O seu amigo. Foi como que um passo de magia. Daquelas que não se explicam, por mais que sejam repetidas.
«Foi à casa de banho.»
«Acho que não. Se assim fosse, tinha-o visto passar ao fundo. Mas não. Parece que se evaporou.»
Ia explicar-lhe que o Mário tinha viajado até ao futuro ou ao passado, tendo por companhia a mulher de vermelho?
Não o faria, nem foi preciso.
«António...»
Virei-me para a porta do café.
«Oh!»
A exclamação veio da boca do dono do café. E quem me chamou foi o Mário.
Não tardou que desaparecesse do nosso campo de visão.
«Eu já volto, meu amigo.»
«Se é para pagar as ginjas, está tudo pago. Mas gostava que voltasse para me explicar este mistério que se passou com o seu amigo.»
«Eu já volto.»
Conforme calculava o Mário esperava por mim na rua, dois ou três metros para lá do café.
«Então conta lá...»
Pela expressão do rosto deduzi que havia caso.
«Correu tudo mal, António.»
«Como assim? Voltaste são e salvo.»
«Foi um fiasco. Não me lembro de nada.»
Tinha pegado no braço da mulher de vermelho e desapareceram de imediato. Para onde? Se para o passado ou para o futuro era o que estava à espera que me dissesse.
«Olha, só me lembro de dar comigo junto ao muro da praia do peixe. O que aconteceu antes, não sei.»
«E ela?»
«Não voltei a vê-la. Estava ali, especado, aparentemente a olhar o mar, como se nada tivesse acontecido. E de facto nada aconteceu. Perdi-a, António.»
«E se repetires a regressão? Creio que não estou a dizer uma barbaridade. O que aconteceu foi uma espécie de regressão. Voltámos uns tantos anos atrás e conseguimos ver aquela mulher a bloquear-te. Que te bloqueou de verdade é facto assente. O motivo porque te escolheu, não sabemos. Só ela o sabe.»
Seria?
Mário pareceu ter-me lido a dúvida.
«Ao contrário do que tenho pensado, ela não estava naquele café para ver-me. Entrei e ela já lá estava. O seu olhar fixou-se em mim. Aparentemente zangada. Era isso. Ela viajara no tempo e eu interferi ao aparecer no café. Quanto mais cedo eu saísse do café, melhor seria para ela.»
«E isto fica assim, Mário?»
«Acho que é melhor. E compreendo-a. Também não gostava que um sensitivo qualquer me visse.»
«Nem a Manuela?»
«Isso foi diferente. O Adolfo tinha uma central sofisticada de desmaterialização-materialização. As suas intenções eram obscuras. Tenho a certeza que queria encontrar os planos da bomba atómica e assim ganhar uma guerra que já estava perdida.»
«Noutro universo.»
«Sim, num universo paralelo. No nosso, conheci a Manuela, mas perdi-a. Noutro, as nossas vidas uniram-se. Noutro ainda, não a vi sentada no banco naquela noite quente de setembro. Compreendes?»
«Estará a acontecer noutro mundo paralelo um futuro negro para a humanidade?»
«Quem o pode dizer?»
«Mas voltando à Manuela, ela interferiu contigo. Deu-te o isqueiro que tinha a sua fotografia. Lembras-te?»
Apostava que se lembrava. Tudo o que dizia respeito à Manuela...
«Que ainda conservo. Mas creio que não influenciou o futuro. Não fui ao passado interferir em nada. O que aconteceu foi uma coisa vir do passado, o que é diferente.»
«Não será esse isqueiro uma máquina do tempo?»
«Também já pensei nisso. E, para dissipar de vez as dúvidas, não o trouxe.»
«Então é outra coisa. Muito provavelmente o chip.»
Lembrou-me que o chip estava inoperacional.
«Tens razão. Mas voltando à vaca fria, pode haver ficheiros ocultos.»
«Olha, o homem do café está à porta. Vai lá dizer-lhe uma mentirola qualquer. Entretanto eu vou andando para o muro. Preciso de meditar nisto tudo. Mas para já para já vamos deixar assentar a poeira.»
Não foram difíceis duas coisas. Primeiro, dar uma desculpa ao dono do café. Tudo menos a verdade. Segundo, encontrar o Mário. Só que estava acompanhado de uma mulher.
«Essa agora!»
A força da sugestão vence tudo. Um pequeno indício é o bastante para reforçar a imagem formada na mente. E essa minha imagem era a mulher de vermelho. Tão intensa ficara na memória a cor vermelha que foi o bastante para esconder os outros indícios.
Em pouco tempo estava frente a frente com os dois.
Dando seguimento, por exemplo umas calças de ganga, uns olhos castanhos, um cabelo louro certamente pintado. E muito mais. Não. Definitivamente aquela mulher que conversava com o Mário não era a mulher de vermelho. Apenas vestia uma blusa vermelha.
«Apresento-te a Paula. Era uma colega da escola. Lembras-te dela?»
Acenei com a cabeça negativamente. Provavelmente uma professora eventual das turmas da noite, porque não a conhecia.
«Lamento.» Disse, com o melhor dos sorrisos.
«Mas eu conheço-o. Aliás, cruzámo-nos mais que uma vez na sala dos professores. Tinha uns apoios de dia. Agora estou na Pedro de Santarém. Efetivei-me lá.»
E eu e o Mário noutros destinos profissionais.
«Ah sim? Então desculpe por não me lembrar de si.»
Era uma mulher atraente, mas demasiado nova para me chamar a atenção. A partir de uma certa idade começamos a fazer as nossas escolhas mais seguras para o futuro.
«Parece impossível, António, não dares pela presença duma jovem tão interessante como é a Paula!»
Mário, o eterno sedutor. Sem idade. Sem convencionalismos.
«Agora tenho que pedir mil desculpas» sorri. «De facto é imperdoável não ter dado por si.»
Sim. Um palminho de cara gostoso.
Mas estava mais interessada na conversa com o Mário do que em "erros meus-má fortuna-amor ardente" que não sentia por ela.
«Nunca mais apareceste no Califa. Tu e a Maria. A propósito, ela está? Têm algum rebento?»
"O filho que não terás, Maria..."
«Nunca mais a vi.»
O Califa ficava perto da casa da Maria. E, pelos vistos, a Paula encontrava-se com eles nesse café. Faltava dizer para onde fora o Mário. Casino. Almirante Reis. Las Vegas. Tudo podia ter acontecido porque algumas coisa aconteceu. O casino não era a residência habitual de Mário, mas passava algumas noites aí, onde quase todo o mundo o conhecia, principalmente pela irreverência com que enfrentava os chefões e menos chefões, bem como os inspetores, na sua luta inglória de David contra Golias que nunca deu em nada.
«Não quero acreditar, Mário! Tu e a Maria separados. Estavam feitos um para o outro...»
O rosto da jovem iluminou-se, em vez de mostrar desapontamento. A minha atenção ganhou outra força.
«E por onde andas agora?»
Lembrei-me de uma canção de Toni de Matos, há muito apagada da memória dos fãs da música ligeira que tanto apreciavam então.
"Diz-me onde te perdes para te ir lá buscar..."
«Ando por aí, Paula. Tens o meu contacto.»
Boa, Mário. Se era o que pensava, esse contacto já não existia. Assim, a jovem não podia ir lá buscar Mário, o conquistador inveterado.
«Não tenho, Mário. Há uns tempos roubaram-me o telemóvel e tive que refazer os contactos.»
Azar dos Távoras. Que ia ele fazer?
«Olha, os meus pais estão a acenar lá ao fundo. Encontramo-nos por aqui?»
«Sim. Moro lá para o norte, perto da praia.»
Grande mentira, Mário.
«Registei. Muito prazer, António. Apareça também.»
«Igualmente, Paula. Vou fazer por isso.»
E afastou-se a correr.
Ponto final?
«Então, meu amigo...»
«Então o quê?»
«A Paula estava em competição na altura com a Maria?»
«Por acaso não. Apenas tinha um fraquinho por mim. Águas passadas.»
«Mas temos que discutir muito bem isto da mulher de vermelho. Ali em frente há uma esplanada. Bebemos uma imperial e assentamos as ideias.»
Mário seguiu com o olhar a direção do meu braço e concordou. Depois daquele falhanço, havia que baralhar as cartas e dar de novo seguimento ao jogo, ou então continuar no mesmo jogo e apostar forte, com bluff ou sem ele.
«Viva, senhor Fonseca.»
Aqui era Fonseca.
«Olá, Lurdes. Podem ser duas canecas e um prato de gambas.»
Também ali o conheciam. O Mário era uma caixa de surpresas. As histórias que contava não eram todas as histórias que tinha para contar.
Preferi calar-me e fingir de parvo.
«Então que fazemos, meu amigo?»
«Nada.»
«Nada?» perguntou. «Mesmo nada?»
«Por mim, nada. As tuas experiências começam a ficar perigosas. Por pouco hoje não voltavas. Foi demasiado temerária a tua decisão quando pegaste no braço da mulher de vermelho. Podia ter-te arrastado para o passado ou para o futuro e não deixar-te a mínima hipótese de retorno. Já viste o que podia ter acontecido?»
«Arrastado, não. Teleportado. É o termo mais correto. E quanto ao que podia ter acontecido, a vida é uma aventura. Desde que nascemos começa a viagem no desconhecido. Curta ou longa. Ninguém sabe.»
«Voltando à mulher de vermelho, não te lembras mesmo nada do que aconteceu depois que lhe pegaste no braço?»
«Se me lembrasse não te dizia, António?»
«Sei lá.»
Sem saber porquê nem como, pressenti que ele me tinha transmitido um pouco das suas qualidades sensitivas. Claro que sonhava alto. O que o denunciou foi o seu olhar estranho.
«Diz-me a verdade, Mário. Sou o teu melhor amigo!»
«E único amigo. Somos como irmãos.»
«Siameses. Bom, é uma metáfora.»
«Então?»
«Então o quê?»
«Não contas ao teu irmão siamês? Vá lá!»
«Bom. Já que tanto insistes...»
«Conta, conta.»
«Em boa verdade, eu fui teleportado com a Germina.»
«Germina?»
«É o seu nome. E adivinha...?»
Palpitei que ela tinha vindo do futuro. O vestuário contradizia o palpite. Mas de certeza que havia uma explicação.
«É verdade. Acertaste.»
«Mas ainda não me manifestei! Por acaso lês pensamentos?»
Olhou-me estarrecido.
«Ia jurar que sim, que falaste no futuro.»
«E eu digo que não. Bom, não interessa. Conta lá. Foste muito longe?»
«Até 2035. E nem imaginas o que vi!»
Mário transfigurou-se. De repente mostrou uma expressão aterrorizada. Como se tivesse vindo de um futuro sem futuro. Cidades esventradas pelas bombas. Pessoas vagueando entre as ruínas. Atmosfera poluída a ponto de não mostrar o sol.
«Exatamente como estás a dizer. Num futuro próximo vai haver uma guerra que nada terá a ver com as guerras convencionais. Uma guerra tal que a população será quase toda dizimada. E a semente é o terrorismo cego.»
«Mas eu não disse nada. Apenas pensei...»
«Isto é terrível, António! Já bastava o que me aconteceu depois que me implantaram o chip. Não tenho descanso, não tenho descanso.»
«Calma, Mário. Estou convencido que nada tem a ver com esse chip. Foi apenas um dom que adquiriste. Tens vindo a ganhar poder e vais ter que repensar a tua vida futura. E falando de futuro, conta lá então ao teu amigo o que aconteceu com essa Germina. Mas primeiro, explica-me a razão de ela aparecer vestida à anos trinta ou quarenta.»
«Muito simples. As suas viagens ainda são experimentais. E na anterior...»
«Continua. Para quê essa paragem?»
«Tu já o disseste. De facto teleportou-se para 1937.»
«Mas eu não disse nada!»
«Tens razão. Esqueci-me.»
«Do teu dom.»
«Bom. Depois deu outro salto no tempo e foi então que me viu entrar no café. Os papéis que mostrei ao balcão à dona do café despertaram-lhe a curiosidade e quis ler.»
«Ler? Mas não saiu da mesa!»
«E se não me interrompesses?»
Mário continuou a narrativa. Finalmente entendeu a razão porque ficara tão perturbado com aquele olhar escondido atrás de uns óculos espelhados. Pura e simplesmente, e de um modo inconsciente, estava a oferecer resistência à tentativa da Germina entrar no seu cérebro. Segundo ela, era um dom. Fizera-o com muitas pessoas e ele foi o único que não se deixou dominar. E mais convencida ficou quando sentiu que alguém lhe pegara no braço e viu-se teleportada. Coisa que não queria. O seu objetivo era voltar aos do seu clã para discutir com todos a possibilidade de viverem juntos em paz e segurança.
«Falaste de clã?»
«Sim. Depois do fim da guerra, quando toda a Terra ficou destruída, continuaram as escaramuças, desta vez só com o objetivo da sobrevivência na anarquia que se tinha estabelecido.»
«Você tem que voltar, Mário, porque vai interferir com o futuro. Bem basta ver o estado a que se chegou em 2035. E isso é coisa que deve esquecer... esquecer... entende... entende?»
«E foi assim que dei comigo a alguns metros de distância do café onde estivera contigo.»
«Mas não te esqueceste.»
«Pois não. Bloqueei-a, em parte. Compreendes?, o meu subconsciente tem alguma força.»
«Metes-me medo. Adiante. E falaste com alguém do clã?»
«Não. Que me lembre, não.»
«Bom, afinal o que lucraste com a viagem que tu e ela fizeram?»
«Duas coisas, António. Se é que se chama lucrar quando antevemos que vamos ter uma guerra mundial devastadora num futuro próximo, vou ali e já venho. Só espero é não ser deste mundo quando o começo da guerra chegar. Quanto à outra, é que finalmente descobri a razão porque a Germina me queria controlar e eu não deixava.»
«E disse-te que tinhas dons.»
«Isso já eu sabia. Lurdes...» Acenou com a mão direita.
A empregada aproximou-se.
«Mais duas canecas e podem ser também dois pregos. Por favor.»
«Bem ou mal passados?»
Mário nem sequer olhou para mim. Já conhecia de cor e salteado os meus gostos.
«Médio. E as canecas podem já vir.»
«Certo, senhor Fonseca.»
«Mas que ia eu a dizer?»
«Que já sabias dos teus dons. E se te aproveitasses deles?»
Ficou muito sério a olhar para mim.
«Como assim?»
«Podias, por exemplo, saber os números do euromilhões de amanhã. Hoje é quinta-feira.»
«É boa ideia mas ainda tenho que progredir muito. As minhas idas ao futuro sã por pouco tempo, António. Entendes? E mesmo se conseguisse, não era ético.»
«Deixa-me rir. Estou-me a lembrar de coisas que aconteceram no casino quando eras o Pedro, e não só, e também em Las Vegas. Ou já te esqueceste?»
Mário ia para responder, mas optou pelo silêncio. A empregada estava de volta com os pregos, batatas fritas aos palitos e um molho espesso que não identifiquei.
«Vamos a isto. Esta viagem fez-me cá um destes apetites!»
«E a mim também, embora não tenha viajado.»
«Senhor Mário?»
«Oh!»
A exclamação fora minha. Outra mulher de vermelho, esta mais nova, estava agora na nossa frente.
Mário olhou-a de alto a baixo e indicou-lhe uma cadeira para se sentar. Não era caso para menos. O vestido vermelho, comprido quase até aos pés dava muito e mais que muito nas vistas.
«A sua cara não me é estranha.»
«Claro que não» sorriu. «Viu-me com a minha tia Germina.»
Então sempre falara com o clã.
«Olhe, coma connosco. Já mando vir outro prego e um sumo. Este é o meu amigo António Ildefonso.»
«Muito prazer. Eu chamo-me Alexandra. Mas todos me tratam por Maria.»
Olhei para o Mário. Negativo. A impenetrabilidade da expressão do rosto não me deixou tirar qualquer conclusão.
«Como chegou até aqui?»
«A tia Germina disse para ir ter consigo. Conforme viu, lá não há futuro.»
Paradoxo?, no futuro não haver futuro?
Pois. Dadas as circunstâncias era preciso retirar a palavra paradoxo.
«Co... comigo?»
«Escusas de gaguejar. A sobrinha da mulher de vermelho quis conhecer-te.» Tentei gracejar.
Ela é que não gostou do gracejo, pois corou de imediato. No entanto conseguiu suster uma reação que me pareceu estar iminente.
«Peço desculpa.»
«Não gozes que a coisa é mais séria do que pensas!»
E para a mulher, que devia andar pelos quarenta anos:
«Já sei o que me vai dizer.»
Ler a mente. Um novo dom que se apoderou de Mário. Talvez o resultado das suas inevitáveis viagens ao futuro, mas apenas por alguns segundos.
«Não quero voltar. No futuro a vida na Terra estará a morrer!»
Então compreendi. Era uma treta ele fazer qualquer interferência no futuro. No passado, sim. O paradoxo do neto ir matar o avô era mesmo para ter em conta. O neto nunca chegaria a ver a luz dos dias.
Olhámos um para o outro e eu acabei por encolher os ombros.
«Desde que não nos controle com o olhar, como a sua tia...»
Alexandra sorriu. Tinha um sorriso... como dizer? Envolvente. Sim. Era a palavra adequada.
«A tia Germina é que tem poderes. Dizem na família que é uma mutante. Herdou a mutação do pai.»
«Essa mutação revelou-se logo em criança?»
«Não. Só a partir dos quarenta anos.»
«Cuidado, Mário!» disse num sussurro. «Ela pode estar a adquirir poderes.»
Trocámos um olhar rápido e não conseguimos evitar que o riso se soltasse, como um cavalo à solta.
«Que foi?»
«Nada nada» disse o Mário, já recomposto. «Acredite que não é nada consigo. Ou melhor...»
«É o vestido. Bem disse à minha tia e ela não me quis ouvir.»
«O vestido não tem nada de mal. A cor é bonita. O corte é convencional. Basta subir um pouco a bainha.»
«Então porquê esse riso?»
«Ria connosco, Alexandra. A vida que a espera é muito mais risonha do que a que teve até agora. Esqueça o futuro, Alexandra.»
Conselho sábio, o de Mário.
E a Mónica?, afinal como ia encarar a chegada de mais uma comensal?
De novo na casa da Mónica
A sua reação confirmou a ótima impressão que tinha dela. Contrariamente ao que eu pensava, encarou com naturalidade a nova situação com que se viu confrontada. Talvez tenha contribuído para isso, uma vez que apresentei o caso com a diplomacia que julgava impor-se. Uma conversa a sós onde explanei a situação com que nos vimos confrontados depois da tentativa do Mário encontrar-se com um enigma dos anos oitenta que nunca tinha conseguido decifrar, foi o bastante para a tornar recetiva à entrada da Alexandra no grupo. Era talvez um fator a favor da nossa relação, pois dava-nos mais margem de manobra no que dizia respeito a uma convivência mais prolongada. Não me meti na sua cabeça, mas conhecendo ela como conhecia o Mário, o novo território que tinha para explorar dava-nos mais disponibilidade para estarmos sós.«Não sei se faço bem.»
«Desembucha. Já estou a ficar com nervoso miudinho!»
«Prometes que não tocas em nada?»
Demorei a responder. Parecia que íamos a um museu e que ele estava a fazer uma recomendação a uma criança traquinas. Já bastava ter-me pedido para não dizer nada à Mónica, o que me constrangeu deveras. Não devíamos ter segredos um para o outro e eu estava a dar um motivo a ela para fazer o mesmo noutra ocasião que se proporcionasse.
«Claro que não vou mexer em nada. Se tu o dizes, embora não saiba porquê, prometo.»
«E mais uma coisa: não contes à Mónica nada, mesmo nada, do que vai passar-se dentro de momentos.»
Tínhamos apanhado o metropolitano no Alto dos Moinhos até ao Marquês e saímos nessa estação, começando a subir a Fontes Pereira de Melo pelo passeio do lado esquerdo.
«Não dizes onde vamos?»
«Já vais ver.»
Não queria adiantar mais.
«Albarde-se o burro à vontade do dono.»
«Isso mesmo. Foi o que eu fiz.»
«Como assim, Mário?»
A meio da avenida cortámos à esquerda, o que fez com que se acendesse uma luz ao fundo do túnel.
«Que vamos fazer ao Picoas Plazza, pá?»
«Como sabes que vamos ao Picoas Plazza?»
«Está-se mesmo a ver. Não se trata de ir à Maternidade Alfredo da Costa, pois não?»
«Nunca se sabe.»
«Goza.»
De facto o nosso destino era o Picoas Plazza. Mais propriamente a esplanada onde ele costumava ir. Mas os desígnios que o levavam aí ainda estavam no segredo dos deuses.
Cinco minutos depois já estávamos sentados na esplanada.
«Bom, que bebes?»
«Um café.»
«Então, espera um pouco. Vou ao balcão. Não servem na esplanada.»
«Certo.»
Não tardou que aparecesse com um tabuleiro com duas chávenas de café e dois bolos.
«Hum! Bolos de coco! Como sabias que eu gostava?»
«Foi um palpite. Lembras-te do que me aconteceu aqui?»
Pus-me a adivinhar.
«Deixa ver. Uma antiga aluna tua de... Não me lembro do nome. Costumava guardar-te o lugar no autocarro que os levavam à estação do comboio. Era muito querida. Lourel. Era isso. Foi onde te efetivaste.»
«Boa memória, António.»
«Um pouco emperrada.»
«Mas não se trata da Maria da Graça.»
«Ah!, já sei. Era a tal mulher que tinha o seu amor em Espanha.»
«Mas não era a Marie.»
Entretanto chegam notícias. Uma mulher que não conhece pretende ocupar uma mesa pegada à sua, quando há muitas outras disponíveis. Faz um gesto de anuência e só então olha para ela com olhos de ver.
Não é a Odete. Já há muito tempo que não a vê por ali. Muito provavelmente, evita-o. Inverteram-se os tempos. Fez tudo e mais que tudo para lhe tirar a Maria dos cabelos soltos ao vento. E conseguiu.
Agora pensa que chegou o seu tempo de vingança. Da sua vingança ridícula, o que só dá vontade de rir. Viu sempre nela uma amiga. Mais nada Nunca deste conta, Odete?
A mulher já se sentou na mesa pegada à sua e prepara-se para colocar a mala sobre a cadeira ao seu lado e na frente de Mário. Portanto, está a entrar em domínios alheios. Mais precisamente nos seus domínios.
Tem um movimento de recuo.
«Pode deixar ficar a mala. Estou só.»
«Obrigada.»
Aparenta ter pouco mais de quarenta anos e menos de cinquenta, não é gorda nem magra, o cabelo é curto a atirar para o loiro. Os lábios são carnudos. Os olhos estão tapados por uns óculos escuros.
«Bom, e estamos aqui à espera dessa mulher? Não gozes comigo, Mário!»
«Achas que estou a gozar?»
«Tenho a certeza.»
«Absoluta?»
«Bem...»
«Dá-me a mão.»
«O quê?!... Deixa-te de paneleirices.»
Soltou uma gargalhada gutural, tão gutural que várias pessoas voltaram-se para nós, intrigadas ou incomodadas.
«Dá-me a mão e fecha os olhos.»
«Mau mau!»
E dei-lhe a mão.
«Que está a acontecer, Mário?»
«Observa, apenas.»
«Sim.»
«E então?»
«Mas tu estás ali! E aquela mulher é...»
«Essa mesma.»
«Não percebo» viro-me para ele e sinto vontade de o beliscar. «Aquela mulher que fala contigo.»
«Limita-te a escutar.»
«E não há o perigo deles te verem?»
«Fica descansado. Estamos invisíveis para todas as pessoas que estão nesta esplanada e também para as que vão passando.»
Continua a olhá-la de soslaio. Não sendo uma beleza, não é mulher que se deite fora, mas não pode deitar fora nem acolher uma mulher que não conhece.
Continua a desbaratar a tarde a seu belo prazer, mas não se sente eterno e já dá atenção ao que se passa ou passará na linha do seu horizonte. Com a chegada daquela mulher, os pardais interromperam o repasto. Tudo é silêncio. Entretém-se a dar as últimas dentadas na tosta que está cada vez mais saborosa à medida que desaparece do prato. Alguma coisa lhe diz que aquele momento mágico e de prazer vai ser interrompido.
Bruxo!
«Estou à espera duma amiga.» Diz ela.
Quer diálogo e não quer.
«Ah...»
Consulta o relógio. Tenta ler-lhe o pensamento. Não está a ser bem sucedida na tentativa de tomar de assalto o castelo bem guarnecido.
«Mas ainda é cedo.»
Retira os óculos de lentes escuras do rosto e deposita-os sobre a mesa. De repente lembra-lhe a mulher de vermelho com os seus óculos espelhados e os momentos conturbados que então viveu e que o tempo de hoje já quase apagou. Nada tem a ver com a outra. É inofensiva. A força do olhar perdeu-se com o gesto de desproteger os olhos. Lembra-se outra vez da Odete. Se estivesse presente não hesitava em comentar:
«Dás sempre muita atenção aos olhos das mulheres, principalmente quando são atraentes. Lês bem neles, certamente.»
«Nem sempre, nem sempre, Odete. Olha que já me enganei muitas vezes.»
«Perdão...»
A companheira de mesa interpelou-o.
Será que falou alto?
Se foi, é perigoso. Os pensamentos ficam a nu e ela pode esgrimir em ação brusca de ataque.
«Não percebi o que o senhor disse. Parece que falava de olhos, ou coisa parecida.»
«Foi quando tirou os óculos. Mas já não me lembro do que disse. Ah!, é isso. Esses óculos são muito escuros e devem diminuir-lhe a visão na esplanada. A esta hora o sol já não bate nas mesas.»
«Foi por esse motivo que os tirei.»
«Bem me pareceu.»
Definitivamente não é a mulher de vermelho. Até porque veste calças de ganga azuis e uma t-shirt também azul, de tom mais carregado.
Voltou a consultar o relógio. Está inquieta. Algo perturba aquela cabeça de vento.
Cabeça de vento?
Que ideia mais disparatada, se nem sequer a conhece!
«A sua amiga já deve estar atrasada. Se calhar já não vem.»
Está a meter-se onde não é chamado. Vai replicar e pô-lo no lugar.
«Não é isso. Olhei para o relógio só por olhar. Foi um gesto maquinal.»
«Compreendo. Acontece o mesmo comigo. Posso passar mais que uma hora sem olhar para o relógio e depois faço-o duas vezes no intervalo de cinco minutos.»
O assunto parece ter-se esgotado. Ficou a cerimónia do arquiteto no prato. Uma nica de tosta. Não sabe porquê mas procede sempre da mesma maneira.
É ela quem tenta alimentar a chama antes que volte a mergulhar no mundo silencioso dos números ou na melancolia circular que o tem atormentado ultimamente.
«Pelo que vejo está a consultar um livro. Posso saber o assunto?»
«Muito agreste» mostra-lhe o livro. «Decerto que não é do seu agrado. Primitivas.»
«Puro gosto ou mais do que isso?»
«Sou professor de Matemática.»
«Engraçado! Eu também sou. Agora estou a fazer um trabalho de mestrado.»
«Necessidades de valorização que os tempos correntes impõem. Pediu licença sabática?»
«Certíssimo. Neste momento só quero terminar o mestrado o mais depressa possível e depois ir viver para Espanha.»
«Espanha. Porquê?»
Sorriu, algo embaraçada.
«Tenho lá o meu amor...»
«É espanhol?»
«Alfacinha de gema.»
Achou curiosa aquela revelação. E ele a julgar que se estava a atirar. Tudo parecia ir nesse sentido. Tinha muitas mesas vagas e veio ocupar a que se ligava à sua. A seguir, meteu conversa, mostrou os olhos (que apreciou), olhou descaradamente para ele, meteu-se na sua vida, etc, etc. Um amante em Espanha não impedia que procurasse outro em Portugal.
Ai, Mário, Mário... que já não tens hipótese de emenda! Estás quase sempre a fazer leituras erradas. A desconhecida só quer conversa e até o seu namorado de Espanha pode não existir. Quer conversa, pronto. Por vezes o tempo custa a passar, entendes?
O silêncio prolongou-se e aproveitou para arrumar as ideias. Tentando não ser agressivo, procurou que ela não se refugiasse em terrenos de crença (e olé!).
«Deixemos o seu amor em descanso. Oxalá o reveja o mais depressa possível, tal como deseja. Diga-me uma coisa: está a gostar do seu trabalho?»
«Muito. Muito mais do que julgava. Mas o meu sonho é ir o mais depressa possível para Espanha, onde vive o meu amor.»
Outra vez o seu amor.
«Parece que a sua amiga se demora. Posso oferecer-lhe um café... um sumo?»
«Obrigada. É muito amável. A minha amiga está quase a chegar. Combinámos o encontro às cinco.»
«São cinco e vinte e cinco.»
«O tempo passa a correr.»
Ele que o diga. Não tarda que chegue o crepúsculo.
«Vou andando para a Bertrand. Ela já deve estar à espera...»
Nada feito. Recuo nítido.
Num gesto mecânico consultou o relógio. O tempo, que nunca descansa, estava a chegar ao fim, a triturar as expectativas criadas pela desconhecida. Notou indecisão no gesto de se levantar. Ainda quis saber dele. Como se sentia com a vida que fazia fora das aulas. Um animal acossado. E, ao contrário dela, sem o seu amor.
«Tenho sempre um vazio a preencher. Um enorme vazio. Mas sabe... não sou capaz de ficar de braços cruzados. Dou atenção à minha coleção de selos, à paixão pela escrita, às longas caminhadas que me ajudam a pôr as ideias transviadas no sítio. E muito mais, se for necessário.»
«E a Matemática?»
«É mais um motivo para matar a saudade dos meus tempos de Faculdade. Mas faço-o raramente.»
«E escreve sobre quê?»
«Essencialmente contos.»
Mentiu. Não era escritor. Sim, o Ildefonso. Mas não fazia mal. De certeza que não se zangava.
«Vou andando» levantou-se. Gostaria de ficar mais tempo a falar consigo, mas não posso. Talvez que um dia nos encontremos para falarmos um pouco dos seus contos, quem sabe, ler um ou outro. Vem muitas vezes para aqui?»
«Algumas.»
Mário levantou-se. Trocaram um cumprimento selado por um aperto de mão e ficou a vê-la a afastar-se em direção à Bertrand. Não tinha cabelos longos. Muito menos, soltos ao vento.
«Mário! Onde vais?»
«À Bertrand. Não saias donde estás.»
«Não podes interferir no passado!»
Vi-o dirigir-se para o sítio onde devia estar a desconhecida. O outro Mário estava sentado, aparentemente debruçado sobre um problema de Matemática.
«Não!»
O outro Mário acabava de levantar-se. Tinha que fazer qualquer coisa para evitar uma tragédia.
Quem sabia até se não podiam regressar ao presente?
Optei pela prudência.
Não passaram cinco minutos e eis que Mário voltou, sorridente.
«Cruzaste-te com ele? Ou melhor, contigo?»
«Não.»
«E a desconhecida?»
«Estava na Bertrand a comprar um livro.»
«E?»
«Logo a seguir, saiu. Vi-a passar por mim...»
Então não tinham trocado uma única palavra.
«Não se pode alterar o passado! Não falei com ela mas fiquei a saber uma coisa. Não havia qualquer amiga na livraria.»
«Então?»
«Então, mentiu.»
«E não a seguiste até à porta da saída do centro comercial. Podia estar lá fora a amiga...»
«Seria o tipo mais estúpido do mundo se não a tivesse seguido. Ao mesmo tempo, se tinha esclarecido uma dúvida, outra surgiu, tão forte que me deixou a cismar.»
«Não me digas que ela tinha lá fora à espera o seu amor de Espanha?»
«Pior ainda. Desapareceu. Pura e simplesmente vi-a desaparecer.»
«Incrível!»
Não éramos só nós que fazíamos viagens no tempo. Havia mais quem o fizesse.
Nem eu nem o Mário imaginávamos quantos viajantes andavam entre nós!
«A mulher de vermelho?» perguntei.
«Sim. É quase uma certeza. Mas não sei se veio do futuro ou do passado.»
«Muito interessante o que aconteceu. Não te pergunto como conseguiste. Penso que tu também não sabes como esse dom te veio parar às mãos.»
«Tens razão, meu amigo. Tenho qualquer coisa cá dentro que me dá o poder de realizar estas viagens ao passado e exatamente à medida dos meus desejos. E aí é que está um grande enigma dentro do outro.»
Se compreendia, havia dois dons em Mário. O primeiro, poder viajar ao passado e ao futuro. E o segundo, ainda mais difícil de entender, como chegava no momento exato desejado. E tudo, sem materializações e desmaterializações.
«Em que estás a pensar?»
«Nisto que aconteceu há pouco. Estou banzado!»
«Não percebo o que queres dizer.»
«Mais que admirado. É muita areia, Mário.»
«Também para mim. Por mais voltas que dê à cabeça, chego sempre ao mesmo ponto.»
«E qual?»
Talvez soubesse a resposta que ele ia dar. O implante do chip foi o começo de tudo. Antecipei-me com o palpite.
«Já sei. O chip provavelmente tem ficheiros ocultos. Por outro lado...»
«Diz.»
«Por outro lado, as tuas viagens ao passado são posteriores ao caso do casino.»
«E o que permitiu metamorfosear-me no Pedro e não só...?»
«Tens razão.»
«A tua hipótese da existência de ficheiros ocultos no chip parece ter consistência. Por outro lado, a memória de massa não foi alterada, garantiu-me o técnico informático que desativou o dispositivo. Zero bytes, António. Garantiu-me o minhoquinhas do informático.»
«E se mentiu? Escuta uma coisa: mesmo que os ficheiros estejam ocultos, podem ser detetados.»
«Nada é impossível nos nossos tempos.»
«E o Adolfo?»
«Que tem a ver o Adolfo com o chip?»
«Tudo e nada.»
«És capaz de ter razão. Estamos perante um enigma como a existência da matéria negra e da energia negra que não podem ser comprovadas. Mas que existem, lá isso existem. E se nos deixássemos de hipóteses que só levam a becos sem saída e continuássemos a explorar as potencialidades inimagináveis que me caíram do céu?»
«Não sei, Mário. É perigoso.»
«Alinhamos ou não?»
Hesitei, mas só por breves momentos.
«Vamos em frente.»
«Vê lá...»
«Está decidido.»
«E a Mónica?»
«E a Maria?»
«Deixa a Maria em paz. A Maria decidiu seguir o seu destino. Agora vamos tentar resolver outro enigma.»
«Que enigma?»
«Logo vês. Já nada temos a fazer aqui. É melhor irmos de táxi.»
«Que destino?»
«Só te digo que a distância que nos separa do destino anda à volta de quarenta quilómetros.»
«Deixa-me adivinhar.»
«Antes de adivinhares, pensa bem. Julgo que esta aventura vai ser mais complicada.»
Desvendado o enigma da mulher de vermelho?
Estávamos no café do Norte.
«Os donos já não os mesmos.»
«E isso tem influência?»
«Não. O problema não está aí. Até é bom não serem os antigos donos. Teria que usar um dos meus disfarces.»
«Ah sim.»
«O que tomam os senhores?»
Olhámos um para o outro.
«Dois cafés e duas ginjas, por favor.»
«Com elas?»
Sorrimos.
«Claro que com elas!»
Sorriu também.
«É para já.»
«Está a falhar alguma coisa?»
«Não sei. Ainda não comecei.»
«Tens razão.»
O homem do café colocou primeiro as duas chávenas sobre a mesa e só depois os copos com a ginja. Copos robustos. Como se impunha.
«Vejamos então» raciocinei em voz alta. «Vais outra vez agarrar a minha mão e pedir para fechar os olhos, não é?»
«Exato.»
«E de que estás à espera?»
«De beber o resto da ginja. Faz o mesmo. Não se pode perder nem uma gota. Todo este cenário vai deixar de existir dentro em breve e não sei o que me espera.»
Obedeci. De facto a ginja não era má. Mas eu fazia melhor. Um litro de bagaço, setecentos e cinquenta gramas de açúcar, três paus de canela e um quilo de ginjas, claro. Tudo deitado num frasco de boca larga que ficaria fechado hermeticamente. Depois, guardava o frasco num local às escuras, pelo menos durante três meses. Ao fim desse tempo provava o líquido e fazia os necessários acertos. Mais dois meses e voltava a provar. E aí estava uma ginjinha de estalo.
«Tens a certeza que vai correr tudo bem?»
«É relativo, António.»
«Bom, eu quero voltar para a Mónica, não te esqueças.»
«Vamos então lá a ver...»
«Tal e qual como nos velhos tempos das apostas no totoloto. Ali estou eu a entregar os primeiros cheques assinados à dona do café...»
«E a mulher de vermelho olha na tua direção. Não lhe vejo os olhos, mas parece olhar fixamente para ti. Ela veio do passado ou do futuro?»
«Isso é o que vou saber.»
«Como?»
«Ainda não decidi. Olha, confirma-se que o cabelo é escuro, bem penteado. E o corte é clássico.»
«Sempre não tem chapéu. Acho que era uma dúvida que tinhas.»
«Não me lembro.»
«Dentro em breve vou ficar perturbado pelo olhar da mulher, apesar dos seus olhos estarem escondidos atrás duns óculos espelhados.»
«Está a acontecer!»
«Ah!»
«Que foi?»
«Não existe qualquer chávena de café em cima da mesa. Na altura foi um pormenor que me escapou, lembras-te?»
«Sim. Nem sequer há um copo de água. Nada. Bem disseram na altura os donos do café que não havia ninguém quando foste rebater os recibos do totoloto. Mas tu viste-a.»
«É verdade. E nunca consegui encontrar uma explicação plausível.»
«Muito simples.»
«Então?»
«Nessa altura já eras um sensitivo.»
«Talvez. Mas não consegui saber se ela vinha do passado ou do futuro. Os óculos espelhados, de certeza modernos, faziam a diferença e lançavam a dúvida. Vou ter que decidir. Nem que seja por moeda ao ar.»
Previ que o Mário ia fazer um disparate dos grandes. Daqueles à maneira do Mário.
«É já a dona do café quem assina os restantes cheques. Neste momento estou bloqueado. Mas não perdi a consciência. Tudo vai acontecendo como te contei.» Disse ele.
«Chegou um indivíduo do interior do café. É também um viajante do tempo?»
«Não. Trata-se do antigo dono do café. Estou a dizer-lhe que voltou a acontecer-me o mesmo que da outra vez.»
«É verdade. Já te tinha acontecido uma vez, mas nesse dia não viste ninguém.»
«Foi em fevereiro, penso. Estava frio, ou era eu que tinha frio. Tudo se passou em circunstâncias diferentes. Já me sentia perturbado em Lisboa.»
«Tens razão, Mário.»
«E agora estou a retirar-me em pânico. Nem sequer tenho coragem de olhar para trás. Pronto. Chegou o momento.»
Levantou-se.
«Espera! Onde vais?»
«Já volto. Não saias daqui...»
«Mário!»
Fez-me um gesto para me tranquilizar e encaminhou-se para a mesa da mulher de vermelho. Puxou a cadeira para trás e sentou-se de frente para ela. A mulher continuou tal como estava. Imperturbável, muito direita, como se não houvesse mais ninguém na mesa senão ela.
«Oh!»
Foi tudo muito rápido. Ele pegou-lhe na mão e desapareceram instantaneamente.
Fiquei para morrer. O Mário e a mulher do vestido vermelho tinham desaparecido.
Aproximei-me da mesa da mulher e apenas pude confirmar que nada havia sobre o tampo da mesma. Portanto, tempo perdido.
«Não entres em pânico, António» tentei controlar-me. «Isto que aconteceu é só fruto de uma alucinação. Ou então adormeceste por momentos. Entretanto o teu amigo foi à casa de banho e dentro em breve está de volta. É isso. Vai para a tua mesa e espera. Esta situação não permite precipitações.»
Fiz um sinal para o dono do café.
«Mais duas ginjas, por favor. Desta vez sem elas.»
Pouco depois tinha os dois copos sobre a mesa.
«O seu amigo?»
«Já volta.»
«Ah sim.»
E regressou ao balcão.
Peguei num dos copos e bebi a ginja de um trago.
«Que sede!» comentei para dentro.
Não sabia o que havia de fazer. Ele tinha-me dito para não sair dali e devia obedecer. Mas sentia-me de mãos atadas.
E se não voltasse?
Levantei-me e dirigi-me até à porta. Não estava habituado a meter-me em sarilhos. Para o Mário era o trivial. Falava tu cá tu lá com eles, os sarilhos.
Voltei para a mesa e levei à boca o segundo copo. O dono do café já estava na minha frente.
«O senhor está preocupado...»
«Nem imagina!» pensei.
«Um pouco.» Respondi, laconicamente.
«E eu não estou menos. Posso sentar-me ao seu lado?»
Pressenti que ia acontecer aquilo que se chama bosta no beco.
«Faz favor de se sentar.»
«Antes disso, só um momento.»
Vi-o aproximar-se do balcão e entrar. Voltou com um copo e uma garrafa de ginja. A seguir sentou-se e começou a encher o meu copo e só depois encheu o dele. Tudo feito em silêncio.
«Não sei como dizer-lhe...»
«Mas diga.»
Bebeu a ginja de um trago e voltou a encher o copo, continuando com a garrafa no ar. Compreendi a intenção e pouco depois também o meu copo voltava a estar cheio.
«Beba. Esta é da boa.»
Tinha razão. Parecia-se mais com a minha. Ou então o álcool começava a fazer efeito.
«Vi o seu amigo encaminhar-se para o meio do café, baixei-me para apanhar um pano que escapou-me das mãos e já não o vi.»
«O pano?» tentei ganhar tempo.
«Claro que não. O seu amigo. Foi como que um passo de magia. Daquelas que não se explicam, por mais que sejam repetidas.
«Foi à casa de banho.»
«Acho que não. Se assim fosse, tinha-o visto passar ao fundo. Mas não. Parece que se evaporou.»
Ia explicar-lhe que o Mário tinha viajado até ao futuro ou ao passado, tendo por companhia a mulher de vermelho?
Não o faria, nem foi preciso.
«António...»
Virei-me para a porta do café.
«Oh!»
A exclamação veio da boca do dono do café. E quem me chamou foi o Mário.
Não tardou que desaparecesse do nosso campo de visão.
«Eu já volto, meu amigo.»
«Se é para pagar as ginjas, está tudo pago. Mas gostava que voltasse para me explicar este mistério que se passou com o seu amigo.»
«Eu já volto.»
Conforme calculava o Mário esperava por mim na rua, dois ou três metros para lá do café.
«Então conta lá...»
Pela expressão do rosto deduzi que havia caso.
«Correu tudo mal, António.»
«Como assim? Voltaste são e salvo.»
«Foi um fiasco. Não me lembro de nada.»
Tinha pegado no braço da mulher de vermelho e desapareceram de imediato. Para onde? Se para o passado ou para o futuro era o que estava à espera que me dissesse.
«Olha, só me lembro de dar comigo junto ao muro da praia do peixe. O que aconteceu antes, não sei.»
«E ela?»
«Não voltei a vê-la. Estava ali, especado, aparentemente a olhar o mar, como se nada tivesse acontecido. E de facto nada aconteceu. Perdi-a, António.»
«E se repetires a regressão? Creio que não estou a dizer uma barbaridade. O que aconteceu foi uma espécie de regressão. Voltámos uns tantos anos atrás e conseguimos ver aquela mulher a bloquear-te. Que te bloqueou de verdade é facto assente. O motivo porque te escolheu, não sabemos. Só ela o sabe.»
Seria?
Mário pareceu ter-me lido a dúvida.
«Ao contrário do que tenho pensado, ela não estava naquele café para ver-me. Entrei e ela já lá estava. O seu olhar fixou-se em mim. Aparentemente zangada. Era isso. Ela viajara no tempo e eu interferi ao aparecer no café. Quanto mais cedo eu saísse do café, melhor seria para ela.»
«E isto fica assim, Mário?»
«Acho que é melhor. E compreendo-a. Também não gostava que um sensitivo qualquer me visse.»
«Nem a Manuela?»
«Isso foi diferente. O Adolfo tinha uma central sofisticada de desmaterialização-materialização. As suas intenções eram obscuras. Tenho a certeza que queria encontrar os planos da bomba atómica e assim ganhar uma guerra que já estava perdida.»
«Noutro universo.»
«Sim, num universo paralelo. No nosso, conheci a Manuela, mas perdi-a. Noutro, as nossas vidas uniram-se. Noutro ainda, não a vi sentada no banco naquela noite quente de setembro. Compreendes?»
«Estará a acontecer noutro mundo paralelo um futuro negro para a humanidade?»
«Quem o pode dizer?»
«Mas voltando à Manuela, ela interferiu contigo. Deu-te o isqueiro que tinha a sua fotografia. Lembras-te?»
Apostava que se lembrava. Tudo o que dizia respeito à Manuela...
«Que ainda conservo. Mas creio que não influenciou o futuro. Não fui ao passado interferir em nada. O que aconteceu foi uma coisa vir do passado, o que é diferente.»
«Não será esse isqueiro uma máquina do tempo?»
«Também já pensei nisso. E, para dissipar de vez as dúvidas, não o trouxe.»
«Então é outra coisa. Muito provavelmente o chip.»
Lembrou-me que o chip estava inoperacional.
«Tens razão. Mas voltando à vaca fria, pode haver ficheiros ocultos.»
«Olha, o homem do café está à porta. Vai lá dizer-lhe uma mentirola qualquer. Entretanto eu vou andando para o muro. Preciso de meditar nisto tudo. Mas para já para já vamos deixar assentar a poeira.»
Não foram difíceis duas coisas. Primeiro, dar uma desculpa ao dono do café. Tudo menos a verdade. Segundo, encontrar o Mário. Só que estava acompanhado de uma mulher.
«Essa agora!»
A força da sugestão vence tudo. Um pequeno indício é o bastante para reforçar a imagem formada na mente. E essa minha imagem era a mulher de vermelho. Tão intensa ficara na memória a cor vermelha que foi o bastante para esconder os outros indícios.
Em pouco tempo estava frente a frente com os dois.
Dando seguimento, por exemplo umas calças de ganga, uns olhos castanhos, um cabelo louro certamente pintado. E muito mais. Não. Definitivamente aquela mulher que conversava com o Mário não era a mulher de vermelho. Apenas vestia uma blusa vermelha.
«Apresento-te a Paula. Era uma colega da escola. Lembras-te dela?»
Acenei com a cabeça negativamente. Provavelmente uma professora eventual das turmas da noite, porque não a conhecia.
«Lamento.» Disse, com o melhor dos sorrisos.
«Mas eu conheço-o. Aliás, cruzámo-nos mais que uma vez na sala dos professores. Tinha uns apoios de dia. Agora estou na Pedro de Santarém. Efetivei-me lá.»
E eu e o Mário noutros destinos profissionais.
«Ah sim? Então desculpe por não me lembrar de si.»
Era uma mulher atraente, mas demasiado nova para me chamar a atenção. A partir de uma certa idade começamos a fazer as nossas escolhas mais seguras para o futuro.
«Parece impossível, António, não dares pela presença duma jovem tão interessante como é a Paula!»
Mário, o eterno sedutor. Sem idade. Sem convencionalismos.
«Agora tenho que pedir mil desculpas» sorri. «De facto é imperdoável não ter dado por si.»
Sim. Um palminho de cara gostoso.
Mas estava mais interessada na conversa com o Mário do que em "erros meus-má fortuna-amor ardente" que não sentia por ela.
«Nunca mais apareceste no Califa. Tu e a Maria. A propósito, ela está? Têm algum rebento?»
"O filho que não terás, Maria..."
«Nunca mais a vi.»
O Califa ficava perto da casa da Maria. E, pelos vistos, a Paula encontrava-se com eles nesse café. Faltava dizer para onde fora o Mário. Casino. Almirante Reis. Las Vegas. Tudo podia ter acontecido porque algumas coisa aconteceu. O casino não era a residência habitual de Mário, mas passava algumas noites aí, onde quase todo o mundo o conhecia, principalmente pela irreverência com que enfrentava os chefões e menos chefões, bem como os inspetores, na sua luta inglória de David contra Golias que nunca deu em nada.
«Não quero acreditar, Mário! Tu e a Maria separados. Estavam feitos um para o outro...»
O rosto da jovem iluminou-se, em vez de mostrar desapontamento. A minha atenção ganhou outra força.
«E por onde andas agora?»
Lembrei-me de uma canção de Toni de Matos, há muito apagada da memória dos fãs da música ligeira que tanto apreciavam então.
"Diz-me onde te perdes para te ir lá buscar..."
«Ando por aí, Paula. Tens o meu contacto.»
Boa, Mário. Se era o que pensava, esse contacto já não existia. Assim, a jovem não podia ir lá buscar Mário, o conquistador inveterado.
«Não tenho, Mário. Há uns tempos roubaram-me o telemóvel e tive que refazer os contactos.»
Azar dos Távoras. Que ia ele fazer?
«Olha, os meus pais estão a acenar lá ao fundo. Encontramo-nos por aqui?»
«Sim. Moro lá para o norte, perto da praia.»
Grande mentira, Mário.
«Registei. Muito prazer, António. Apareça também.»
«Igualmente, Paula. Vou fazer por isso.»
E afastou-se a correr.
Ponto final?
«Então, meu amigo...»
«Então o quê?»
«A Paula estava em competição na altura com a Maria?»
«Por acaso não. Apenas tinha um fraquinho por mim. Águas passadas.»
«Mas temos que discutir muito bem isto da mulher de vermelho. Ali em frente há uma esplanada. Bebemos uma imperial e assentamos as ideias.»
Mário seguiu com o olhar a direção do meu braço e concordou. Depois daquele falhanço, havia que baralhar as cartas e dar de novo seguimento ao jogo, ou então continuar no mesmo jogo e apostar forte, com bluff ou sem ele.
«Viva, senhor Fonseca.»
Aqui era Fonseca.
«Olá, Lurdes. Podem ser duas canecas e um prato de gambas.»
Também ali o conheciam. O Mário era uma caixa de surpresas. As histórias que contava não eram todas as histórias que tinha para contar.
Preferi calar-me e fingir de parvo.
«Então que fazemos, meu amigo?»
«Nada.»
«Nada?» perguntou. «Mesmo nada?»
«Por mim, nada. As tuas experiências começam a ficar perigosas. Por pouco hoje não voltavas. Foi demasiado temerária a tua decisão quando pegaste no braço da mulher de vermelho. Podia ter-te arrastado para o passado ou para o futuro e não deixar-te a mínima hipótese de retorno. Já viste o que podia ter acontecido?»
«Arrastado, não. Teleportado. É o termo mais correto. E quanto ao que podia ter acontecido, a vida é uma aventura. Desde que nascemos começa a viagem no desconhecido. Curta ou longa. Ninguém sabe.»
«Voltando à mulher de vermelho, não te lembras mesmo nada do que aconteceu depois que lhe pegaste no braço?»
«Se me lembrasse não te dizia, António?»
«Sei lá.»
Sem saber porquê nem como, pressenti que ele me tinha transmitido um pouco das suas qualidades sensitivas. Claro que sonhava alto. O que o denunciou foi o seu olhar estranho.
«Diz-me a verdade, Mário. Sou o teu melhor amigo!»
«E único amigo. Somos como irmãos.»
«Siameses. Bom, é uma metáfora.»
«Então?»
«Então o quê?»
«Não contas ao teu irmão siamês? Vá lá!»
«Bom. Já que tanto insistes...»
«Conta, conta.»
«Em boa verdade, eu fui teleportado com a Germina.»
«Germina?»
«É o seu nome. E adivinha...?»
Palpitei que ela tinha vindo do futuro. O vestuário contradizia o palpite. Mas de certeza que havia uma explicação.
«É verdade. Acertaste.»
«Mas ainda não me manifestei! Por acaso lês pensamentos?»
Olhou-me estarrecido.
«Ia jurar que sim, que falaste no futuro.»
«E eu digo que não. Bom, não interessa. Conta lá. Foste muito longe?»
«Até 2035. E nem imaginas o que vi!»
Mário transfigurou-se. De repente mostrou uma expressão aterrorizada. Como se tivesse vindo de um futuro sem futuro. Cidades esventradas pelas bombas. Pessoas vagueando entre as ruínas. Atmosfera poluída a ponto de não mostrar o sol.
«Exatamente como estás a dizer. Num futuro próximo vai haver uma guerra que nada terá a ver com as guerras convencionais. Uma guerra tal que a população será quase toda dizimada. E a semente é o terrorismo cego.»
«Mas eu não disse nada. Apenas pensei...»
«Isto é terrível, António! Já bastava o que me aconteceu depois que me implantaram o chip. Não tenho descanso, não tenho descanso.»
«Calma, Mário. Estou convencido que nada tem a ver com esse chip. Foi apenas um dom que adquiriste. Tens vindo a ganhar poder e vais ter que repensar a tua vida futura. E falando de futuro, conta lá então ao teu amigo o que aconteceu com essa Germina. Mas primeiro, explica-me a razão de ela aparecer vestida à anos trinta ou quarenta.»
«Muito simples. As suas viagens ainda são experimentais. E na anterior...»
«Continua. Para quê essa paragem?»
«Tu já o disseste. De facto teleportou-se para 1937.»
«Mas eu não disse nada!»
«Tens razão. Esqueci-me.»
«Do teu dom.»
«Bom. Depois deu outro salto no tempo e foi então que me viu entrar no café. Os papéis que mostrei ao balcão à dona do café despertaram-lhe a curiosidade e quis ler.»
«Ler? Mas não saiu da mesa!»
«E se não me interrompesses?»
Mário continuou a narrativa. Finalmente entendeu a razão porque ficara tão perturbado com aquele olhar escondido atrás de uns óculos espelhados. Pura e simplesmente, e de um modo inconsciente, estava a oferecer resistência à tentativa da Germina entrar no seu cérebro. Segundo ela, era um dom. Fizera-o com muitas pessoas e ele foi o único que não se deixou dominar. E mais convencida ficou quando sentiu que alguém lhe pegara no braço e viu-se teleportada. Coisa que não queria. O seu objetivo era voltar aos do seu clã para discutir com todos a possibilidade de viverem juntos em paz e segurança.
«Falaste de clã?»
«Sim. Depois do fim da guerra, quando toda a Terra ficou destruída, continuaram as escaramuças, desta vez só com o objetivo da sobrevivência na anarquia que se tinha estabelecido.»
«Você tem que voltar, Mário, porque vai interferir com o futuro. Bem basta ver o estado a que se chegou em 2035. E isso é coisa que deve esquecer... esquecer... entende... entende?»
«E foi assim que dei comigo a alguns metros de distância do café onde estivera contigo.»
«Mas não te esqueceste.»
«Pois não. Bloqueei-a, em parte. Compreendes?, o meu subconsciente tem alguma força.»
«Metes-me medo. Adiante. E falaste com alguém do clã?»
«Não. Que me lembre, não.»
«Bom, afinal o que lucraste com a viagem que tu e ela fizeram?»
«Duas coisas, António. Se é que se chama lucrar quando antevemos que vamos ter uma guerra mundial devastadora num futuro próximo, vou ali e já venho. Só espero é não ser deste mundo quando o começo da guerra chegar. Quanto à outra, é que finalmente descobri a razão porque a Germina me queria controlar e eu não deixava.»
«E disse-te que tinhas dons.»
«Isso já eu sabia. Lurdes...» Acenou com a mão direita.
A empregada aproximou-se.
«Mais duas canecas e podem ser também dois pregos. Por favor.»
«Bem ou mal passados?»
Mário nem sequer olhou para mim. Já conhecia de cor e salteado os meus gostos.
«Médio. E as canecas podem já vir.»
«Certo, senhor Fonseca.»
«Mas que ia eu a dizer?»
«Que já sabias dos teus dons. E se te aproveitasses deles?»
Ficou muito sério a olhar para mim.
«Como assim?»
«Podias, por exemplo, saber os números do euromilhões de amanhã. Hoje é quinta-feira.»
«É boa ideia mas ainda tenho que progredir muito. As minhas idas ao futuro sã por pouco tempo, António. Entendes? E mesmo se conseguisse, não era ético.»
«Deixa-me rir. Estou-me a lembrar de coisas que aconteceram no casino quando eras o Pedro, e não só, e também em Las Vegas. Ou já te esqueceste?»
Mário ia para responder, mas optou pelo silêncio. A empregada estava de volta com os pregos, batatas fritas aos palitos e um molho espesso que não identifiquei.
«Vamos a isto. Esta viagem fez-me cá um destes apetites!»
«E a mim também, embora não tenha viajado.»
«Senhor Mário?»
«Oh!»
A exclamação fora minha. Outra mulher de vermelho, esta mais nova, estava agora na nossa frente.
Mário olhou-a de alto a baixo e indicou-lhe uma cadeira para se sentar. Não era caso para menos. O vestido vermelho, comprido quase até aos pés dava muito e mais que muito nas vistas.
«A sua cara não me é estranha.»
«Claro que não» sorriu. «Viu-me com a minha tia Germina.»
Então sempre falara com o clã.
«Olhe, coma connosco. Já mando vir outro prego e um sumo. Este é o meu amigo António Ildefonso.»
«Muito prazer. Eu chamo-me Alexandra. Mas todos me tratam por Maria.»
Olhei para o Mário. Negativo. A impenetrabilidade da expressão do rosto não me deixou tirar qualquer conclusão.
«Como chegou até aqui?»
«A tia Germina disse para ir ter consigo. Conforme viu, lá não há futuro.»
Paradoxo?, no futuro não haver futuro?
Pois. Dadas as circunstâncias era preciso retirar a palavra paradoxo.
«Co... comigo?»
«Escusas de gaguejar. A sobrinha da mulher de vermelho quis conhecer-te.» Tentei gracejar.
Ela é que não gostou do gracejo, pois corou de imediato. No entanto conseguiu suster uma reação que me pareceu estar iminente.
«Peço desculpa.»
«Não gozes que a coisa é mais séria do que pensas!»
E para a mulher, que devia andar pelos quarenta anos:
«Já sei o que me vai dizer.»
Ler a mente. Um novo dom que se apoderou de Mário. Talvez o resultado das suas inevitáveis viagens ao futuro, mas apenas por alguns segundos.
«Não quero voltar. No futuro a vida na Terra estará a morrer!»
Então compreendi. Era uma treta ele fazer qualquer interferência no futuro. No passado, sim. O paradoxo do neto ir matar o avô era mesmo para ter em conta. O neto nunca chegaria a ver a luz dos dias.
Olhámos um para o outro e eu acabei por encolher os ombros.
«Desde que não nos controle com o olhar, como a sua tia...»
Alexandra sorriu. Tinha um sorriso... como dizer? Envolvente. Sim. Era a palavra adequada.
«A tia Germina é que tem poderes. Dizem na família que é uma mutante. Herdou a mutação do pai.»
«Essa mutação revelou-se logo em criança?»
«Não. Só a partir dos quarenta anos.»
«Cuidado, Mário!» disse num sussurro. «Ela pode estar a adquirir poderes.»
Trocámos um olhar rápido e não conseguimos evitar que o riso se soltasse, como um cavalo à solta.
«Que foi?»
«Nada nada» disse o Mário, já recomposto. «Acredite que não é nada consigo. Ou melhor...»
«É o vestido. Bem disse à minha tia e ela não me quis ouvir.»
«O vestido não tem nada de mal. A cor é bonita. O corte é convencional. Basta subir um pouco a bainha.»
«Então porquê esse riso?»
«Ria connosco, Alexandra. A vida que a espera é muito mais risonha do que a que teve até agora. Esqueça o futuro, Alexandra.»
Conselho sábio, o de Mário.
E a Mónica?, afinal como ia encarar a chegada de mais uma comensal?
De novo na casa da Mónica
Tudo foi mais fácil depois de aberto o caminho para a apresentação da Alexandra.
«Amanhã vou tratar de si. Levantamo-nos cedo e compramos algum vestuário. Depois passamos pela minha cabeleireira.»
Levantou-se, aproximando-se dela e tocou-lhe ao de leve nos cabelos longos, cor de fogo. Automaticamente, numa reação defensiva, esta levantou um braço. Surpreso, vi a Mónica ficar imóvel. Mas foi um instante.
«Desculpe a minha reação.»
«Compreendo. Deve ter passado maus momentos lá no futuro, claro. Pelo que nos contou.»
Olhei na direção do Mário. Estava sereno. Aparentemente noutro mundo, não tinha dado por nada.
«Deixe ver. Pode levantar-se e dar uns passos. Assim. Muito bem. Deixe por minha conta.»
«Mónica!» repreendi-a.
«Não faz mal. Lá não tínhamos tempo para os mais elementares desejos femininos. A senhora é que sabe. Entrego-me nas suas mãos.»
«A senhora chama-se Mónica. Depois verá o resultado.»
«Tomei nota. Obrigada.»
Mónica piscou o olho para os lados do Mário e compreendi logo. O Mário era o nosso financiador para casos extras.
«E a Germina?» pensei.
Perdida em viagens no tempo sem tempo tirara partido das mesmas. Ó se tirara!
Mário consultou o relógio.
«E se tratasses do alojamento da Alexandra? Deve estar extenuada. Aliás, estamos todos, não é verdade, António.
Só me ocorreu dizer um "é, sim", pois tentava antecipar a distribuição de todos pelos dois fogos.
«Vamos mudar as regras do jogo.» Disse a Mónica, sorridente.
«Que regras?» perguntei, desconfiado.
Se era o que pensava…
«Muito simples. Eu e a Alexandra ocupamos um dos apartamentos e vocês o outro.»
Era mesmo. Sem mais comentários a juntar a nenhum que tinha feito.
«E agora, os cavalheiros que escolham.»
«Tanto faz» disse o Mário. «Havia a hipótese do meu apartamento. Por razões óbvias, é solução a pôr de parte.»
«O mesmo se passa com o meu andar...» Acrescentei.
«Claro» confirmou a Mónica. «E agora vamos para as nossas instalações, Alexandra?»
Porque ela também tinha o nome de Maria, achei estranho haver agora uma nova Maria na casa que fora da outra Maria. A que soltou os cabelos longos ao vento e passou por ele, sem o ver. Foi como o Mário contou no "Até amanhã, utopia", mas tudo levava a crer que não foi bem assim…
Duas Marias de cabelos longos. Uma tinha-os cor do fogo; a outra, quase escuros como azeviche. A segunda ficara no passado. A primeira veio do futuro.
«Boa noite, senhores.»
«Sonhos cor de rosa, Mónica.» Ironizei. «E uma feliz estadia nesta nova casa, Alexandra.»
Alexandra agradeceu. Mónica fez-me um gesto singelo com o dedo médio alongado. Mário deu as boas noites.
Quando a porta, que separava os dois apartamentos, se fechou, virei-me para o meu amigo.
«E então?»
«Então, o quê?»
«Vê-se mesmo que és cegueta!»
Franziu o sobrolho, algo intrigado.
«Viste alguma coisa quando a Mónica quis tocar no cabelo da nossa jovem amiga?»
«Nada. Tudo me pareceu normal. Só não entendi porque a ruiva pediu desculpa à Mónica.»
«É bom que te habitues a chamá-la pelo nome. Alexandra. Ou Maria Alexandra, se não te fizer confusão. Quanto às pessoas mais chegadas, essas tratam-na por Maria. É contigo. Mas, voltando à minha pergunta, pareceu-me que a Mónica ficou paralisada por uns momentos. Não deste mesmo conta?»
«Não. Lá por poder antecipar-me no tempo por segundos e a Germina ter poderes, não me arranjes mais dons. A ruiva, ou melhor, a Alexandra é uma mulher normalíssima.»
«Até ver...»
«Não te armes em esperto-parvo!»
«Amanhã vou tratar de si. Levantamo-nos cedo e compramos algum vestuário. Depois passamos pela minha cabeleireira.»
Levantou-se, aproximando-se dela e tocou-lhe ao de leve nos cabelos longos, cor de fogo. Automaticamente, numa reação defensiva, esta levantou um braço. Surpreso, vi a Mónica ficar imóvel. Mas foi um instante.
«Desculpe a minha reação.»
«Compreendo. Deve ter passado maus momentos lá no futuro, claro. Pelo que nos contou.»
Olhei na direção do Mário. Estava sereno. Aparentemente noutro mundo, não tinha dado por nada.
«Deixe ver. Pode levantar-se e dar uns passos. Assim. Muito bem. Deixe por minha conta.»
«Mónica!» repreendi-a.
«Não faz mal. Lá não tínhamos tempo para os mais elementares desejos femininos. A senhora é que sabe. Entrego-me nas suas mãos.»
«A senhora chama-se Mónica. Depois verá o resultado.»
«Tomei nota. Obrigada.»
Mónica piscou o olho para os lados do Mário e compreendi logo. O Mário era o nosso financiador para casos extras.
«E a Germina?» pensei.
Perdida em viagens no tempo sem tempo tirara partido das mesmas. Ó se tirara!
Mário consultou o relógio.
«E se tratasses do alojamento da Alexandra? Deve estar extenuada. Aliás, estamos todos, não é verdade, António.
Só me ocorreu dizer um "é, sim", pois tentava antecipar a distribuição de todos pelos dois fogos.
«Vamos mudar as regras do jogo.» Disse a Mónica, sorridente.
«Que regras?» perguntei, desconfiado.
Se era o que pensava…
«Muito simples. Eu e a Alexandra ocupamos um dos apartamentos e vocês o outro.»
Era mesmo. Sem mais comentários a juntar a nenhum que tinha feito.
«E agora, os cavalheiros que escolham.»
«Tanto faz» disse o Mário. «Havia a hipótese do meu apartamento. Por razões óbvias, é solução a pôr de parte.»
«O mesmo se passa com o meu andar...» Acrescentei.
«Claro» confirmou a Mónica. «E agora vamos para as nossas instalações, Alexandra?»
Porque ela também tinha o nome de Maria, achei estranho haver agora uma nova Maria na casa que fora da outra Maria. A que soltou os cabelos longos ao vento e passou por ele, sem o ver. Foi como o Mário contou no "Até amanhã, utopia", mas tudo levava a crer que não foi bem assim…
Duas Marias de cabelos longos. Uma tinha-os cor do fogo; a outra, quase escuros como azeviche. A segunda ficara no passado. A primeira veio do futuro.
«Boa noite, senhores.»
«Sonhos cor de rosa, Mónica.» Ironizei. «E uma feliz estadia nesta nova casa, Alexandra.»
Alexandra agradeceu. Mónica fez-me um gesto singelo com o dedo médio alongado. Mário deu as boas noites.
Quando a porta, que separava os dois apartamentos, se fechou, virei-me para o meu amigo.
«E então?»
«Então, o quê?»
«Vê-se mesmo que és cegueta!»
Franziu o sobrolho, algo intrigado.
«Viste alguma coisa quando a Mónica quis tocar no cabelo da nossa jovem amiga?»
«Nada. Tudo me pareceu normal. Só não entendi porque a ruiva pediu desculpa à Mónica.»
«É bom que te habitues a chamá-la pelo nome. Alexandra. Ou Maria Alexandra, se não te fizer confusão. Quanto às pessoas mais chegadas, essas tratam-na por Maria. É contigo. Mas, voltando à minha pergunta, pareceu-me que a Mónica ficou paralisada por uns momentos. Não deste mesmo conta?»
«Não. Lá por poder antecipar-me no tempo por segundos e a Germina ter poderes, não me arranjes mais dons. A ruiva, ou melhor, a Alexandra é uma mulher normalíssima.»
«Até ver...»
«Não te armes em esperto-parvo!»
As mulheres que vieram do futuro
Uma semana depois Mário e Alexandra foram a Fátima, a pedido desta.
Chegaram ao santuário por volta das onze e meia da manhã. Naquele dia da semana não teve dificuldade em estacionar no parque mais próximo. O mesmo não aconteceria sempre em vésperas do dia 13, de maio a outubro.
Alexandra tinha uma reclamação a fazer.
«Tenho a sensação que viemos pelo ar, Mário!»
Esboçou um sorriso complacente. Aquele era o seu andamento habitual. Cento e quarenta cento e cinquenta na autoestrada.
«Há quem ande mais rápido. O que interessa é que chegámos sãos e salvos.»
«E se um pneu rebentasse?»
«Pois. Até pode acontecer a qualquer pessoa um acidente a pé, num momento imprevisível.»
«É diferente.»
«Bom, dou-te razão. Prometo que no regresso não carrego tanto no prego.»
«Como?»
«É uma metáfora. Traduzido por miúdos, juro que não vou ultrapassar o que está estipulado na lei. E agora concentra-te. Estamos a entrar num local sagrado. Precisamente a 13 de maio de 1917...»
«Eu sei, Mário. Já me ouviste dizer que sou devota da Senhora de Fátima.»
«E nunca duvidaste?»
«Não. A minha fé nem por um minuto foi abalada. Mesmo quando li o livro da Fina D'Armada que tentou reduzir os acontecimentos da Cova da Iria a um mero fenómeno ovnilógico. O livro está muito bem documento, mas peca por uma tendência redutora. Tomou partido de uma convicção, o que, à partida, ia influenciar as suas conclusões.»
«E a inversa?»
Antecipou-se ao contra-argumento da jovem, mas evitou dar-lhe conhecimento.
«Que tens a dizer do milagre do sol testemunhado por milhares de crentes e não crentes?»
«Nada. Não estava lá. Nem podia ter estado, como é lógico. Pronto. Havemos de discutir o tema com profundidade. Este não é o local ideal.»
Concordou, embora renitente.
«Não sei o que nos reserva o futuro.»
«Mas estamos a falar do passado.»
«Por isso mesmo.»
No momento estavam a aproximar-se da capelinha das Aparições.
«Já reparaste no silêncio que nos envolve?»
«Ia a dizer o mesmo, Mário.»
«Queres sentar-te um pouco mais à frente, perto da imagem da Senhora de Fátima?»
«Gostava muito!» concordou Alexandra. «Estou a ficar emocionada.»
«Então, sentemo-nos e deixemos a emoção soltar-se, Maria.»
Dois em um. Primeiro, pressentiu que ela, Alexandra, ia ficar emocionada. Depois, aquele nome que era o seu e não era.
«Maria?»
«Desculpa. Também já estive aqui com uma mulher que se chamava Maria.»
Tinha cabelos longos, sedosos. Mas um dia, soltou-os ao vento.
«Bem me disse o António que tu és um Dom Juan!»
«Ele disse isso?»
«Sim.»
Uma vez, alguém também fez o mesmo comentário. Uma amiga muito versada em religiões e ligada ao paranormal. Lara. A colega que, esgotada a esperança de ter no futuro uma vida normal, um dia resolveu deixar de viver. Sem um sinal de revolta. Sem um aviso. Desistiu de alimentar-se e consentiu que a morte se aproximasse, primeiro cautelosa, até que depois, já senhora da situação, a levou consigo.
«Sentes-te bem aqui?»
«Gostavas dela, Mário?»
«De quem?»
«Não te faças desentendido.»
Ia a responder muito, mas ficou-se por um sim.
«Queres que te conte uma história?»
«É sobre essa mulher?»
«Ainda não.»
Ainda não. Deve ter fixado na memória.
«Então conta essa história. O António tem razão quando diz que és e foste sempre um contador emérito de histórias.»
«Estou a ficar com ciúmes. Falas muito do António.»
Mário apercebeu-se que ela denunciou algo oculto ao ficar muito séria depois do comentário brincalhão do amigo.
«É uma referência. E um bom amigo. Esqueces-te que não sou deste presente. Só te conheço, ao António e à Mónica.»
«Tens razão.»
«Venha lá essa história que já tarda.»
1989?
Talvez. Não tinha a certeza do ano, nem, tão pouco, se lembrava do mês. Julho ou agosto. Mas de uma coisa não se esqueceu. Daquele dia em que foi a Fátima com os primos e a Otília. Não se esqueceu também da tranquilidade do local. Da paz de espírito que o rodeou. Do ambiente místico que o influenciou para, entretanto, acontecer o que aconteceu.
Tentando ajudar alguns entes que já não eram deste mundo, então comprou seis velas. Uma para a Manuela, outra para a infeliz Catarina (1), ainda outra para um poeta que, obcecado, falava muito nos seus poemas de caveiras e da morte. Um poeta esquecido de todos. E as restantes para familiares também já falecidos.
Chegaram ao santuário por volta das onze e meia da manhã. Naquele dia da semana não teve dificuldade em estacionar no parque mais próximo. O mesmo não aconteceria sempre em vésperas do dia 13, de maio a outubro.
Alexandra tinha uma reclamação a fazer.
«Tenho a sensação que viemos pelo ar, Mário!»
Esboçou um sorriso complacente. Aquele era o seu andamento habitual. Cento e quarenta cento e cinquenta na autoestrada.
«Há quem ande mais rápido. O que interessa é que chegámos sãos e salvos.»
«E se um pneu rebentasse?»
«Pois. Até pode acontecer a qualquer pessoa um acidente a pé, num momento imprevisível.»
«É diferente.»
«Bom, dou-te razão. Prometo que no regresso não carrego tanto no prego.»
«Como?»
«É uma metáfora. Traduzido por miúdos, juro que não vou ultrapassar o que está estipulado na lei. E agora concentra-te. Estamos a entrar num local sagrado. Precisamente a 13 de maio de 1917...»
«Eu sei, Mário. Já me ouviste dizer que sou devota da Senhora de Fátima.»
«E nunca duvidaste?»
«Não. A minha fé nem por um minuto foi abalada. Mesmo quando li o livro da Fina D'Armada que tentou reduzir os acontecimentos da Cova da Iria a um mero fenómeno ovnilógico. O livro está muito bem documento, mas peca por uma tendência redutora. Tomou partido de uma convicção, o que, à partida, ia influenciar as suas conclusões.»
«E a inversa?»
Antecipou-se ao contra-argumento da jovem, mas evitou dar-lhe conhecimento.
«Que tens a dizer do milagre do sol testemunhado por milhares de crentes e não crentes?»
«Nada. Não estava lá. Nem podia ter estado, como é lógico. Pronto. Havemos de discutir o tema com profundidade. Este não é o local ideal.»
Concordou, embora renitente.
«Não sei o que nos reserva o futuro.»
«Mas estamos a falar do passado.»
«Por isso mesmo.»
No momento estavam a aproximar-se da capelinha das Aparições.
«Já reparaste no silêncio que nos envolve?»
«Ia a dizer o mesmo, Mário.»
«Queres sentar-te um pouco mais à frente, perto da imagem da Senhora de Fátima?»
«Gostava muito!» concordou Alexandra. «Estou a ficar emocionada.»
«Então, sentemo-nos e deixemos a emoção soltar-se, Maria.»
Dois em um. Primeiro, pressentiu que ela, Alexandra, ia ficar emocionada. Depois, aquele nome que era o seu e não era.
«Maria?»
«Desculpa. Também já estive aqui com uma mulher que se chamava Maria.»
Tinha cabelos longos, sedosos. Mas um dia, soltou-os ao vento.
«Bem me disse o António que tu és um Dom Juan!»
«Ele disse isso?»
«Sim.»
Uma vez, alguém também fez o mesmo comentário. Uma amiga muito versada em religiões e ligada ao paranormal. Lara. A colega que, esgotada a esperança de ter no futuro uma vida normal, um dia resolveu deixar de viver. Sem um sinal de revolta. Sem um aviso. Desistiu de alimentar-se e consentiu que a morte se aproximasse, primeiro cautelosa, até que depois, já senhora da situação, a levou consigo.
«Sentes-te bem aqui?»
«Gostavas dela, Mário?»
«De quem?»
«Não te faças desentendido.»
Ia a responder muito, mas ficou-se por um sim.
«Queres que te conte uma história?»
«É sobre essa mulher?»
«Ainda não.»
Ainda não. Deve ter fixado na memória.
«Então conta essa história. O António tem razão quando diz que és e foste sempre um contador emérito de histórias.»
«Estou a ficar com ciúmes. Falas muito do António.»
Mário apercebeu-se que ela denunciou algo oculto ao ficar muito séria depois do comentário brincalhão do amigo.
«É uma referência. E um bom amigo. Esqueces-te que não sou deste presente. Só te conheço, ao António e à Mónica.»
«Tens razão.»
«Venha lá essa história que já tarda.»
1989?
Talvez. Não tinha a certeza do ano, nem, tão pouco, se lembrava do mês. Julho ou agosto. Mas de uma coisa não se esqueceu. Daquele dia em que foi a Fátima com os primos e a Otília. Não se esqueceu também da tranquilidade do local. Da paz de espírito que o rodeou. Do ambiente místico que o influenciou para, entretanto, acontecer o que aconteceu.
Tentando ajudar alguns entes que já não eram deste mundo, então comprou seis velas. Uma para a Manuela, outra para a infeliz Catarina (1), ainda outra para um poeta que, obcecado, falava muito nos seus poemas de caveiras e da morte. Um poeta esquecido de todos. E as restantes para familiares também já falecidos.
«Esse poeta era José Duro, filho da madrinha da tua avó paterna?»
«Como assim? Leste o meu pensamento!»
«Falaste do poeta, do seu desespero e eu lembrei-me dele. José Duro.»
«Não fiquei convencido. Até porque não falei dele. Pensei nele. Isso sim.»
«Não tens outro remédio senão convencer-te.»
Mas na realidade não foi esse o motivo porque aquele dia ficou indelével para o futuro.
Esteve uma hora de pé, estático, a assistir ao terço na capelinha das Aparições e não sentiu quaisquer problemas nas pernas, ao contrário do que acontecia vulgarmente. Quanto à Júlia e à irmã ficaram sentadas à frente.
A certa altura começou a olhar fixamente para a imagem da Senhora do Rosário e os olhos toldaram-se de lágrimas. Deu consigo pedindo para Ela não o levar. Logo de seguida a dúvida assaltou-o.
Foi mesmo ele que pediu, tal como aconteceu uma vez em Lisboa (2)?
O mais estranho estava para vir. Coisa muito simples e aparentemente natural. Ao mesmo tempo, rápida na duração. Tudo começou quando uma jovem de blusa vermelha foi colocar-se ao seu lado direito, quase se encostando. Não teve tempo para desconfiar daquele movimento de aproximação porque, minutos depois, uma outra mulher, também nova, apareceu à entrada do recinto da capela. Observou-a com atenção. Era alta e tinha um perfil egípcio. Trazia uma criança pela mão.
Aproximou-se. Passou pela frente e foi colocar-se do lado esquerdo, embora ligeiramente afastada.
O mais curioso é que vieram ambas do seu lado direito. Daí a hipótese de virem ambas do futuro. Ainda não estava restabelecido da surpresa quando começaram a rezar o terço. Foi então que sentiu a segunda mulher chegar-se mais a si.
Ficaria para sempre a dúvida. Uma coisa era verdade. Ele foi guardado por duas mulheres que, provavelmente, vieram do futuro.
Um pormenor que não lhe escapou. A segunda mulher cantava divinamente. De vez em quando olhava para ela e via o seu rosto de perfil. Imperturbável. Estava ao seu lado como se ele não existisse. Mas o contacto do corpo era real. Um contacto ao de leve. Tinha uma saia vermelha, de bolas brancas. A cor da blusa apagou-se no esquecimento de Mário.
Que significado podia dar a tanto vermelho?
Sentia-se bem. Respirava-se paz em Fátima.
Na viagem de regresso falou da Manuela, acedendo a um pedido indireto da prima. Pouco depois, ela adormeceu e então calou-se.
Acordou quase de seguida e perguntou-lhe de chofre:
«A Manuela teve uma filha?»
«Acho que não. Porque perguntas?»
«Foi uma ideia que me veio à cabeça.»
«Estou mais descansado.»
Perguntou-lhes se tinham visto alguém ao seu lado na capelinha, quando acabou o terço e vieram ter com ele. Para seu espanto responderam que não se lembravam. Não disseram que não tinham visto. Apenas que não se lembravam.
Muito estranho.
Pararam na Nazaré para lanchar. Mais propriamente no Sítio. Enquanto lanchavam, o Hélder mostrou interesse em saber o que aconteceu a D. Fuas Roupinho quando este perseguia um veado.
«Não sei muito bem. Aliás, é uma lenda. Nesse dia um nevoeiro intenso não deixou que desse conta que, com o entusiasmo da perseguição a um veado, se aproximasse perigosamente do topo de uma falésia. Era demasiado tarde quando o cavaleiro viu onde estava. Então implorou à Virgem e de imediato o cavalo estacou, ficando os dois suspensos à beira do precipício. Em síntese, parece que é isto.»
«Mas é uma lenda, Hélder. As lendas valem o que valem.»
«Sim, claro, Vamos lá ver depois do lanche?»
Tiveram oportunidade de ver a marca deixada por uma das patas do cavalo de D. Fuas na ponta do Bico do Milagre.
«Se fosse verdade!»
«Entramos na capela?»
«Vão vocês. Eu fico aqui.»
Aproximou-se o mais que podia da ponta da falésia e olhou para baixo.
«Impressionante!» sussurrou.
«E então, Alexandra?»
Não respondeu.
«Alexandra!»
«Ah... és tu, Mário.»
Quem queria que fosse?
«Ouviste a história do princípio ao fim?»
«Claro que ouvi. Olha uma coisa, conseguiste saber mais alguma coisa da mulher da blusa vermelha?»
«Não. Até porque acho que foi uma alucinação que tive. E o mesmo aconteceu com a outra.»
«Qual outra?»
«A mulher que trazia a criança pela mão e que cantava como os anjos.»
«Não vi essa mulher de que falas!»
«Não viste? Claro que não podias ter visto. Nem ouviste toda a história. Só agora soubeste da segunda mulher e da criança que trazia pela mão porque te contei!»
Pareceu algo contrariada.
«Confirmação. Aliás, pela expressão do teu rosto quando te perguntei o que achavas do que acabara de contar, pelo teu ar ausente, está mesmo a ver-se que o teu espírito navegava noutras águas.»
«Posso falar?»
«Claro, Alexandra.»
«Bom, então vamos a isto.»
«Que vai sair daí?»
«Pois essa mulher da blusa vermelha era eu. Como tu admitiste, vim do futuro. Não é só a minha tia que tem vindo a fazer viagens no tempo. Ela mentiu-te na altura ao afirmar que esta era a minha primeira viagem. De certa maneira, foi. Mas para ficar convosco. Com o António e a Mónica. Contigo. Mas da outra vez...»
«Não é possível!»
«É. E não te ouvi porque estava lá. A vir ao teu encontro...»
Vários olhares voltaram-se com olhares pouco amistosos.
«É melhor sairmos daqui porque estamos a perturbar todo este ambiente» propôs à Alexandra. «Não vejo uma solução de silêncio nesta conversa tão acalorada que estamos a ter.»
«Também acho. Vamos até uma esplanada e aí conversamos à vontade. Ou melhor...» Consultou o relógio. «Passa do meio-dia. Se não te importas, almoçamos mais cedo. Depois, vamos visitar a catedral onde podes fazer as tuas orações. E aí quero ver se sentes o mesmo que eu senti, apesar de me ter tornado um pouco agnóstico, ao visitar o local onde o Francisco está sepultado. É que não senti nada em relação à Jacinta, o que é estranho. Não achas?»
«Vindo de ti, nada é estranho. O estranho és tu.»
«Obrigado pelo cumprimento, Alexandra. Registei.»
«O António já me tinha dito que tu afinavas com muita facilidade.»
Não comentou, mas sentiu que o seu amigo António tinha subido uns tantos pontos na consideração da Alexandra.
«Esse teu primo estava um pouco toldado nesse dia, não estava?»
Mário interrompeu o simples ato de dar mais uma garfada e fitou a jovem. Algo mais importante estava em fila de espera, pronto a entrar em ação.
Pouco toldado era insuficiente.
«Como sabes?»
«Sei.»
«Bom, não vamos discutir a origem da fuga de informação. É mais que óbvio. Tens razão. No momento em que, sucessivamente, as duas mulheres surgiram, vindas da minha direita, ele não estava presente. Ausentou-se por uma questão de necessidade absoluta. Foi beber uma ou duas cervejas, ou um brandy, ou então as duas coisas. Só tomou conhecimento do caso mais tarde, quando lhe contei.»
O Hélder estava prisioneiro do álcool há já uns bons anos. Obviamente, os negócios já não iam bem. Faltava a coordenação e também o empreendedorismo dos primeiros tempos. O império que erigira, a pulso, desmoronava-se, sem apelo nem agravo. Eu fiquei com a fama de o desencaminhar para os copos quando vinha de férias. Mas na verdade era outro primo. Não tenho problemas de consciência, Alexandra. Até porque bebo com peso, conta e medida. Não há vício que entre comigo. Ou melhor: só se for uma mulher bonita como tu és.»
«Desculpa-me, Mário, mas o meu coração não te pertence. E até duvido que...»
Mário interrompeu-a.
«Mas dizias na capelinha...?»
«Para quê omitir? O António deu-me a ler as tuas histórias. Mas voltando ao teu caso sem testemunhas, conforme já confessei, a primeira mulher era eu. Apareci ali, como estava programado. Só que o tempo era outro e não sabia bem o que fazer. Foi então que te vi. De pé, pensativo. Talvez seguindo as orações, talvez não. Como é óbvio consegui ler o teu pensamento. Mas inspiraste-me confiança. E resolvi ficar ao teu lado, observando, tentando descobrir como tinham acontecido as aparições. Se tinham acontecido. Se o milagre do sol não tinha passado de uma alucinação coletiva. Dei conta também da expressão inquiridora do teu rosto. «Que diabo! Que está esta mulher a fazer ao meu lado?» deves ter pensado. Por momentos julguei que ias dirigir-me a palavra. Mas não. Não aconteceu.»
«Ficaste encostada a mim. Senti o calor do teu corpo.»
«Afastei-me logo quando vi duas mulheres a caminharem na tua direção.»
«Por isso não te viram. Mas a outra mulher que trazia a criança...?»
«Durante o tempo que estive ao teu lado não veio mais ninguém. Nem gorda, nem magra. Nem alta, nem baixa. Talvez se tenha tratado de uma premonição. Alguém que ainda não chegou ao teu tempo.»
«Admito que sim. Mas porque te afastaste?»
«Lamento. As minhas ideias eram outras, Mário. Não se tratava do que pensaste no momento, Dom Juan! Até porque...»
«Porque?»
«Só amamos, e muito, quem não nos ama!»
«Ah!»
«Que foi, Mário?»
«Nada nada.»
Alguém lhe disse o mesmo um dia. Mário não quis admitir o fundo premonitório daquele desabafo da Maria. Claro que da Maria, mas palavras vinham agora da boca da Alexandra.
«Tinha que calcular com a minha tia uma nova viagem, certamente fazendo um recuo a tempos mais remotos que esse.»
«E fizeste essa viagem?»
Limitou-se a sorrir. Mário não conseguiu extrair do sorriso senão montes de dúvidas.
«Queres fazê-la comigo?»
Outro sorriso. Este mais aberto.
«E tu queres que te conte uma história, ó contador de histórias?»
O milagre segundo José da Cruz
Na aldeia ninguém sabia. O enamoramento do pobretanas José da Cruz pela Maria do Carmo era discreto e platónico. Afinal de contas tudo não passava de uma troca de olhares com a moça mais bonita da aldeia e, por coincidência, a filha do lavrador mais rico do lugarejo.
José da Cruz era um dos muitos trabalhadores do Manuel Tenório, senhor de terrenos que se estendiam a perder de vista já fora dos limites da aldeia. Trabalhava de sol a sol nos vinhedos dispostos nas encostas viradas a sul, bem como nos terrenos destinados a produtos hortícolas e também a novas plantações de árvores de frutos, não esquecendo a semeadura das futuras searas ondulantes aos ventos fortes que sopravam na região e também a época das colheitas. E, quando era preciso, levava a pastar até aos montes os rebanhos de cabras e ovelhas. Claro, também era um dos ordenhadores diários. Quanto ao salário, considerava-o generoso, talvez porque não tinha conhecimento dos praticados pelos outros lavradores abastados. E mesmo que não fosse generoso, regatear seria o mesmo que receber "carta oral" de despedida, o que não lhe convinha mesmo nada. Trabalho não lhe faltaria, mas nem pensar em ficar longe da "sua" Maria da Luz das trocas de olhares apaixonados (segundo ele) que ia registando no seu caderninho de apontamentos que comprara na "taberna/mercearia/e o resto" do Joaquim Onofre.
Morava numa casinha térrea, bem no centro da aldeia, que os seus falecidos pais lhe tinham deixado. O segundo e último haver era um terreno de menos de meio hectare, situado para norte, a dois quilómetros de distância. Aí passava algum tempo a cuidar da horta e das cerejeiras, limoeiros, laranjeiras e pereiras.
Era certo que o nosso homem, enamorado pela Maria do Carmo, não dispunha de muito tempo para se dedicar ao dito enamoramento. Restava-lhe o domingo. Dia em que se vestia a rigor para ir à missa, não porque fosse católico devoto, sim porque tinha uma oportunidade única que não podia desperdiçar. Era à entrada e à saída da capelinha que residia o encantamento. Poder trocar os ditos olhares apaixonados que registaria em casa, ao almoço, no caderninho ensebado.
Primeiro quadro: juntava-se à pequena multidão de homens que espreitavam a passagem das moçoilas casadeiras, quiçá trocando os olhares que podia trocar, e destacar um que considerava sempre o mais importante e que ficava mais na memória.
Segundo quadro: antes do fim da cerimónia, corria para o exterior da capelinha e voltava a juntar-se a alguns persistentes devotos do "santo sacrifício da saída da missa", assim ficando em adoração platónica duns olhos grandes e esverdeados, dumas maçãs do rosto avermelhadas e duns cabelos compridos anelados. Isto para não falar dos seus peitos generosos, de bicos proeminentes que queriam saltar da blusa às flores e não podiam.
E havia ainda um terceiro quadro: a frustração de a ver afastar-se, sem mais um olhar, até a perder de vista. Um quadro triste. Desolador. Sim, desolador e triste porque teria que esperar mais uma semana para voltar a vê-la e poder sonhar para lá dos olhares que, segundo ele, trocavam.
Já à porta de casa, rodou a maçaneta e entrou. Estava escuro e frio lá dentro. O outono tinha entrado agreste, sem pedir licença.
«Acorda, José! Ela não é para ti...»
Coçou a cabeça e olhou, desconfiado, em volta.
«Ia jurar... Não. Fui eu a falar cá de dentro.»
Mas era verdade. A Maria do Carmo, uma menina fina e prendada, com estudos, nem sequer pensara uma vez nele. José da Cruz, um simples trabalhador, quase assalariado, por conta do pai, sempre de enxada em punho a rasgar o ventre da terra para esta poder dar os seus frutos, enxugando o suor fedorento do rosto tisnado da braveza do sol, devia render-se à evidência. Ele, um básico na leitura e conversador quase mudo, embora soubesse entender a força e o alcance das palavras não dispunha de meios, nem ousava, de uma vez por todas deixar-se de estatísticas e ultrapassar aquela fase platónica.
Pelo sim pelo não, levantou a chaminé do candeeiro a petróleo, riscou um palito de fósforo na lixa da caixa e aproximou-o da torcida. Só depois de recolocar a chaminé no seu sítio é que afinou a intensidade da chama para não sujar o vidro de negro do fumo. Finalmente percorreu, com o candeeiro em punho, a cozinha e os restantes compartimentos da casa.
Claro, concluiu. A voz veio dentro dele.
«Que temos para o almoço?»
Ah!, pensou alto. Sempre fora sua, a tal voz suspeita.
Abriu a porta do forno do fogão e soltou uma exclamação de contentamento. Ainda havia uma sobra do guisado da véspera. Galinha com batatas e cenouras, escurecidas pelo molho do sangramento da mesma. Não gostava muito de degolar uma galinha, principalmente as chamadas galinhas carecas de pescoço alto, muito vermelho. Por outras palavras, o manuseamento de armas brancas não se ligava bem com ele. Mas aquele sangue que escorria do pescoço da ave ia dar um paladar do outro mundo ao guisado.
O fogão a lenha ainda tinha brasas. Dois ou três cavacos ateavam em pouco tempo as brasas e não tardou que o tacho de barro aquecesse.
Uma fatia generosa de pão, uma tigela de azeitonas e um canjirão de vinho tinto. Um copo e um garfo. Era o bastante.
«José, é isto que vais pôr na mesa para a tua amada?»
Comeu rapidamente do tacho e mal tocou no pão, nas azeitonas e no vinho. De seguida, baixou a intensidade da chama do candeeiro e dirigiu-se para o quarto. Deitou-se em cima da cama, sem sequer tirar os sapatos.
Triste vida, José da Cruz...
Não demorou muito que adormecesse.
Acordou, sobressalto. Anoitecera.
«Calma, José, hoje é domingo.»
Respirou fundo, aliviado.
Que ia fazer àquelas horas?
Procurou o candeeiro na cozinha e fez subir a chama. Passava das oito. Lá fora era noite cerrada.
Tinha duas opções: ou ficava deitado na cama a ler pela enésima vez "A Morgadinha dos Canaviais", ou então ia beber um copo à taberna do Elias.
«Isso mesmo. Vai saber-te bem um copo fora de casa. Talvez consigas pensar menos nela...»
Agasalhou-se com o sobretudo esfiapado e saiu porta fora, tomando o rumo da taberna. Uma aragem fria fê-lo puxar a gola para cima. Em menos de cinco minutos estava à entrada da porta da taberna. Esfregou as mãos. Um hábito antigo de indecisão.
Havia uma mesa livre a um canto. Mesmo ao seu gosto porque gostava de se mostrar pouco.
«Elias, meio canjirão de tinto. Um quarto de pão e uma tigela de sopa.»
Nem perguntou o que era a sopa. Invariavelmente, era grão ou feijão com hortaliça. A chamada sopa de colher em pé. Muito substancial e de consequências sonoras, devastadoras, ao alvorecer. Felizmente vivia só.
Pouco depois tinha uma colher e a tigela na sua frente.
«Já trago o resto. Queres vinagre para a sopa, José?»
«Não. Desta vez não.»
Concentrou-se na conversa que se desenrolava na mesa ao lado.
«Sempre queres ir lá no dia 13?»
«Não sei. A que dia da semana calha?»
«É sábado.»
«Sendo sábado, posso. O pior é se chove. Ainda é meia hora a andar e com passada larga. Mas estou muito curioso. Será que as crianças inventaram tudo aquilo?»
«Achas?, com aquela idade?»
«Ou então alguém as influenciou. Os padres são bem capazes disso. Olha que meninos para ganharem trunfos!»
«Mas então, afinal o que é que elas viram?»
«Bom... Em 13 de maio as crianças levaram o rebanho para a Cova da Iria, como era costume. O céu estava sereno e de repente um clarão apareceu sobre um carrasqueiro e então a Lúcia viu uma senhora vestida de branco, mais brilhante que o sol, muito séria. E falou com ela.»
«Quem era?»
«Não disse naquele dia. Que rezassem muito e fossem àquele sítio todos os dias 13, por seis vezes. Mais tarde souberam que era a Nossa Senhora.»
Não conseguiu ouvir mais porque tinha-se estabelecido uma discussão azeda entre o Elias e um cliente por causa de um caneco que não tinha sido pago.
«Foram cinco!» disse o cliente.
«Mas aqui estão seis.»
«É verdade. Mas já cá estava um.»
E a discussão continuou, num tom cada vez mais alto e agressivo. Por causa de um caneco iam envolver-se à porrada, pensou.
Finalmente os ânimos serenaram.
«Bom, então fica combinado. Arrancamos daqui cedo. Sempre quero ver se há ou não um milagre no sábado.»
«E sempre é verdade que prometeu que a guerra vai acabar em breve?»
«Sim. Desde que rezassem com fervor o terço todos os dias para se alcançar a paz no mundo e o fim da guerra...»
«Era bom. Tenho lá um sobrinho... Mas tu acreditas naquelas patranhas?»
«Não digas blasfémias que ainda te acontece uma coisa ruim!»
E foram as últimas palavras que ouviu. Entretanto tinham-se levantado e encaminhado para a porta.
José juntou o que já tinha ouvido antes com a revelação feita pelos dois indivíduos que conversavam na mesa ao lado. Talvez não fosse má ideia ir também. A situação do seu enamoramento pela filha do patrão não podia piorar mais do que já estava, se é que havia alguma coisa mais concreta que as trocas de olhares aos domingos, antes e depois da missa. Por outro lado, o milagre talvez o pudesse beneficiar. Nunca se sabia.
Passava já das nove horas da manhã quando José da Cruz saiu de casa. Depois de várias hesitações, lá resolveu finalmente pôr-se ao caminho para testemunhar ou não o milagre previsto pela Lúcia, já alcunhada de vidente. Nuvens negras ameaçavam borrasca da grande.
A princípio era só ele. Ao fim de dez minutos já via aparecerem as pessoas de todos os lados, como formigas de carreiros que não existiam mas que certamente desembocavam na Cova da Iria. Primeiro eram só pessoas e chapéus de chuva abertos. Depois começou a descortinar os mais variados meios de locomoção utilizados pelos crentes e não crentes: carros de bois, automóveis luxuosos e não luxuosos, carroças com assentos improvisados, galeras, bestas, bicicletas. E sobretudo muita, muita gente. Muita gente a caminho da Cova da Iria. Umas iluminadas pela fé e outras procurando um motivo para escarnecerem mais do que já tinham escarnecido aquilo que consideravam um embuste.
E ele...? Era crente, ou não crente?
Apesar de trazer consigo o enorme chapéu, resistente à intempérie mais extrema, e que já pertencera ao seu falecido pai, receava ficar ensopado até aos ossos antes de chegar ao local onde certamente já se concentrava a multidão que não parava de rezar, embora houvesse uns tantos que tentavam aproveitar-se da ingénua religiosidade dos fiéis para proferirem as mais inimagináveis blasfémias.
Chegou pelas dez horas, quando o céu ainda ficou mais negro, o vento fustigou impiedosamente os rostos das pessoas, começando a chover a bem chover. Apesar do mau tempo, as pessoas mantiveram-se no seu posto, movidas pelos mais diversos interesses, como era o caso do interesse de José da Cruz, um pobre trabalhador que se enamorara perdidamente pela filha do agricultor mais rico da aldeia. E ali estavam todos, ele e uns bons milhares, no ponto onde se disse que a Virgem aparecera aos pastorinhos do lugarejo de Aljustrel que, entretanto, ainda não tinham chegado. Lúcia (a vidente), Francisco e Jacinta, respetivamente de 10, 9 e 8 anos.
É então que José vê uma mulher a dois metros, molhada dos pés à cabeça, tiritando de frio. Tem um lenço a tapar-lhe a cabeça e as orelhas. Sente pena dela e aproxima-se.
«Uma camponesa.» Pensou.
«Então a menina não trouxe chapéu?»
«Virou-se a meio do caminho.»
E não voltou para trás. Tamanha era a sua devoção pela Virgem!
«Abrigue-se no meu chapéu. Dá bem para os dois.»
«Obrigada, senhor.»
E abrigou-se. José sentiu a proximidade do corpo da jovem. A cabeça chegava-lhe aos ombros.
«Veio pela fé ou por curiosidade?»
«Olhe, não sei bem. Ouvi falar tanto dos pastorinhos!»
«Como eu.»
A jovem continuava a tremer. Sentido pena da jovem, num gesto instintivo despe o sobretudo e passa-o pelos seus os ombros.
«Assim não vale. Ainda se constipa.»
«Ora, sou rijo como o aço. A menina é que se constipa se não se agasalhar. Está toda ensopada.»
«Pois estou. Obrigada, aceito. Chamo-me Cristina.»
«E eu José. José da Cruz. Só Cristina?»
«Sim. Nunca conheci os meus pais. Fui criada num orfanato.»
Finalmente apareceram a Lúcia e os primos. Há grande agitação entre a multidão. A chuva continua a cair mas ninguém desespera. Grupos de fiéis ajoelham na lama. As atenções estão todas viradas para a vidente. Vai falar do milagre.
Então a Lúcia pede-lhes que fechem os chapéus em sinal de respeito. A ordem é transmitida e a grande maioria obedece, apesar da chuva. Há muita gente em êxtase. Gente comovida, com as mãos unidas em oração. Gente que sente. Gente a quem parece tocar o sobrenatural. O momento é único.
A Senhora falou a Lúcia mais uma vez, afirma esta. E a fé aumenta. Ao mesmo tempo, as nuvens deixam de ficar negras e a chuva para.
«Que estranho!» comentou a jovem. «Parou de chover!»
«Sim. E já se vê céu velho.»
«Céu velho?»
«Voltou o azul do céu que as nuvens tapavam, percebe?»
«Entendi.»
Ela é bonita. Quem sabe...?
«José, estás a ver mal. A beleza interior é que conta.»
Outra vez aquela voz!
«Disse alguma coisa, José?»
«Não não. Só falava para os meus botões.»
«Ah.»
Entretanto o sol aparece.
.....................................................................................................................................................
(Excerto de um artigo de Avelino de Almeida, jornalista, à época, de "O Século"...)
«Viu, Cristina?»
A manifestação miraculosa, o sinal visível anunciado está prestes a produzir-se – asseguram muitos romeiros. E assiste-se então a um espetáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele. Do cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se conservam muitas centenas de pessoas, a quem escasseou valor para se meter à terra barrenta, vê-se toda a imensa multidão voltar-se para o sol, que se mostra liberto de nuvens, no zénite. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se realizando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar:
– Milagre, milagre! Maravilha, maravilha!
E, a seguir, perguntam uns aos outros se viram e o que viram. O maior numero confessa que viu a tremura, o bailado do sol; outros, porém, declaram ter visto o rosto risonho da própria Virgem, juram que o sol girou sobre si mesmo como uma roda de fogo de artificio, que ele baixou quase a ponto de queimar a terra com os seus raios…
Há quem diga que o viu mudar sucessivamente de cor…"
«Sim, José. Que belo! Até pareceu que o sol bailava! Eu sabia! Eu sabia!»
Aos olhos extasiados do povo, rendido ao fenómeno, o sol tremeu.
«Impossível! O sol não pode bailar. O que estamos a ver é uma ilusão. Mas acha que a pequena vidente nos mandou olhar para o céu?»
«Foi o que ouvi.» Virou-se para trás. «A notícia veio daquelas bandas.»
«Então também não estou enganado. Este foi o milagre que ela pediu em agosto à Senhora para que todos acreditassem.»
(O "bailar" do sol, que foi visto, em êxtase, pela maior parte dos que estavam a olhar o céu, não se circunscreveu à região, pois foi visto em vários locais, segundo testemunhos dados. O próprio poeta Afonso Lopes Vieira também o viu da sua casa em São Pedro de Moel, a menos de 40 km da Cova da Iria. Portanto, este fenómeno não se tratou de uma alucinação coletiva no local. A reforçar ainda a natureza diversa dos observadores, uma amálgama de crentes e descrentes. E mesmo que os céticos viessem a afirmar que aquele fenómeno não passara de coisa atmosférica, nunca encontrariam explicação para a previsão da vidente de um milagre a ocorrer nesse dia.
Também parece não constar que Nossa Senhora disse-lhe que o milagre viria do céu. O certo é que a vidente mandou o povo olhar o céu à hora exata...)
«Já não sinto frio, José. Tome o seu sobretudo. Mais uma vez, obrigada.»
«Tive muito gosto.»
«A minha roupa secou! Apalpe, José.»
Apalpou. E ela estremeceu.
«Afinal ainda sente frio.»
Corou.
José entendeu.
«Não foi por mal.»
Como resposta recebeu um sorriso envolvente da jovem.
«Vamos?»
«Sim, José.»
A multidão começou a desmobilizar, seguindo cada um o seu destino.
«Quer que a leve a casa?»
Ela olhou com a intensidade de uns olhos carentes que pareciam falar. Ele tentou interpretar que súplica era aquela que via nos seus lindos olhos.
«Cristina...»
«José...»
«Tenho uma galinha que deixou de pôr. Posso fazer um guisado.»
«Obrigada, José, mas tenho que me pôr ao caminho.»
«Vá lá...»
Se a Cristina aceitou o convite de José da Cruz e se viveram juntos até que a morte os separou, devem-no a Nossa Senhora. Então, extrapolando, o enamoramento platónico do José pela Maria do Carmo foi arrumado a um canto inacessível da memória naquele mesmo dia.
Só ele sabe o que aconteceu, mas não está cá para esclarecer se matou ou não a galinha que deixou de pôr ovos…
«E então, Mário?»
Coçou a cabeça, denotando confusão na expressão do rosto.
«Contei esta história ao António, como muitas outras. Julgava que tinha sido o resultado de um simples momento de inspiração. E inspirei-me em fontes da época.»
«Tens a certeza que aconteceu tudo como contaste?»
«Claro. O António não mudou o sentido da história. Apenas a passou para o papel e depois publicou-a no seu blogue. Podes perguntar-lhe quando chegarmos a casa. É sempre assim. Ele limita-se a dar vida às minhas histórias. Nem eu admitia que fosse de outra forma.»
«Faz um esforço para te lembrares!»
«Qual esforço? Tudo aconteceu ao José da Cruz como eu quis que acontecesse. Foi tudo invenção minha. O José da Cruz. A sua apaixonada. A desconhecida. Tudo o que está na história.»
Alexandra pareceu contrariada. O seu rosto ficou sério. Expectante. Os lábios esboçaram um movimento como se fosse falar. Falso alarme. Manteve-se calada, não deixando de fitar Mário.
«Não me olhes assim!»
Pareceu não ter ouvido o pedido do amigo. Olhou-o ainda mais intensamente.
«Fecha os olhos.»
«Porquê?»
«Porque eu quero.»
«Vais dar-me um beijo?»
«Tu e a tua mania de te armares em sedutor! Desce à Terra. Vá, fecha esses olhos, caramba!»
«Está bem, eu fecho. Escusas de ser tão agressiva. Explica-te, por favor.»
«Já vais ver o que acontece...»
Naquela manhã que prometia ser chuvosa, Alexandra chegou a tempo de se juntar à multidão. Desta vez os cálculos tinham dado certo.
Grande era o fervor que movia aquela multidão rumando ao local já sagrado onde a Virgem aparecera aos três pastorinhos. A chuva caía intensamente, mas não quebrava a força anímica que levava toda aquela gente simples a juntar-se à Lúcia, à Jacinta e ao Francisco.
Ela já sabia do suposto milagre do sol, mas precisava de saber se o fenómeno tinha acontecido tal como fora relatado pelos jornais da época, ou se tudo não tinha passado de um embuste.
«Nem de propósito. Esta chuva gélida não passa. Tenham dó de mim. Estou ensopadinha até aos ossos.»
E estremeceu, tal era o frio que sentia.
«Então a menina não trouxe chapéu?»
Chapéu? Que era isso nas suas terras áridas em que o efeito de estufa ditava a lei. Os meses iam passado e o cenário mantinha-se inalterado. Não chovia nem uma gota. Só um milagre podia trazer a chuva de volta.
A propósito de milagres, ia em busca de um. Oxalá fosse bem sucedida.
Mas como responder?
«Virou-se a meio do caminho.»
Foi obrigada a mentir àquele simpático homem que tinha surgido do nada. Num relance, o exame que fez foi positivo. Era sincero dentro da curta abordagem que lhe fez. Mas nunca se sabia.
«Abrigue-se no meu chapéu. Dá bem para os dois.»
E dava. Era um chapéu de chuva, largo, de cabo e varetas robustas. Tinha ouvido vagamente falarem de chapéus de chuva existentes no passado profundo. Agora eram obsoletos numa terra árida em que a vida estava condenada a médio prazo.
«Obrigada, senhor.»
Aquele senhor soou-lhe a falso. Era um pobre homem que respirava sinceridade.
Que fazia ele pela vida?
E aconchegou-se ao desconhecido de boa vontade. Tiritava.
«Veio pela fé ou pela curiosidade?
Que atrevimento! Por agora passava.
Olhou para cima. O homem era alto, bem constituído fisicamente.
«Olhe, não sei bem o que me trouxe aqui. Ainda por cima com esta chuva. Ouvi falar tanto...»
«Como eu.»
O homem despiu o sobretudo e colocou-o, delicadamente, sobre os seus ombros.
«Que gentil!» pensou.
«Assim não vale. Ainda se constipa.»
E foi então que uma recordação relâmpago lhe veio à memória. Aquele rosto! Já o tinha visto em qualquer local.
Seria também um viajante do tempo?
Ia jurar que já o tinha visto algures!
Algures é finalidade?
«Ora, sou rijo como o aço. A menina é que se constipa. Está toda ensopada.»
Seguiram-se as apresentações. Inventou um nome. Quanto a ele, chamava-se José.
E seguiu-se a descrição que antecedeu o milagre do sol. Entretanto parara de chover. Estranhamente já não sentia frio.
Resultado da envolvência mística ou a temperatura tinha subido de súbito?
O sol rompeu entre as nuvens densas que esbranquiçaram.
«Viu, Cristina?!...»
«Sim, José. Que belo! Até pareceu que o sol bailava!»
Aos olhos extasiados do povo, rendido ao fenómeno, o sol tremeu.
«Impossível. O sol não pode bailar. O que estamos a ver é uma ilusão. Mas acha que a pequena vidente nos mandou olhar para o céu?»
«Foi o que ouvi.» Virou-se para trás. «A notícia veio daquelas bandas.»
Face ao que assistira não podia negar que se tratava de um milagre. O sol estremeceu mesmo.
Nunca deixaria de ter fé na Virgem Maria.
«Quer que a leve a casa?»
Ela olhou com a intensidade de uns olhos carentes que pareciam falar. Ele tentou interpretar que súplica era aquela que via nos seus lindos olhos.
«Cristina...»
«José...»
«Tenho uma galinha que deixou de pôr. Posso fazer um guisado.»
«Obrigada, José, mas tenho que me pôr ao caminho.»
Era verdade. Estava quase na hora do portal abrir e ainda tinha que percorrer alguns quilómetros.
Como havia de dizer ao simpático camponês?
«Mas onde está ele?»
Olhou em volta e só viu os últimos caminheiros em dispersão. Do José nem rasto...
«E foi assim que aconteceu, Mário. Eu estava lá e assisti ao fenómeno.»
«Fenómeno?»
Retificou:
«Acho que foi milagre. Um aviso que veio dos céus. A Lúcia falou de um milagre e este consumou-se.»
«Dou-te o benefício da dúvida. O sol estremeceu mesmo!»
«Ah! Que queres dizer?»
«É verdade. Também lá estive. E depois nasceu a história que o António escreveu. Mas não te reconheci!»
«Como assim, Mário? Ah!, talvez porque levava um lenço a cobrir a cabeça.»
«Foi por isso. E agora tenho a certeza que estivemos juntos debaixo do mesmo chapéu.»
«Sim.»
«E agasalhei-te com o meu sobretudo. Aconteceu quase como tu disseste.»
«E como contaste ao António.»
Consultou o relógio.
«Já cinco horas, Mário!»
«E então?»
«Tens razão. Hoje o tempo não tem tempo. Podemos ainda visitar a catedral?»
O tempo não tem tempo. Onde ouviste estas palavras, Mário?
«Claro. Mas estou a pensar numa coisa...»
«Sim?»
Que ia sair dali?
Na aldeia ninguém sabia. O enamoramento do pobretanas José da Cruz pela Maria do Carmo era discreto e platónico. Afinal de contas tudo não passava de uma troca de olhares com a moça mais bonita da aldeia e, por coincidência, a filha do lavrador mais rico do lugarejo.
José da Cruz era um dos muitos trabalhadores do Manuel Tenório, senhor de terrenos que se estendiam a perder de vista já fora dos limites da aldeia. Trabalhava de sol a sol nos vinhedos dispostos nas encostas viradas a sul, bem como nos terrenos destinados a produtos hortícolas e também a novas plantações de árvores de frutos, não esquecendo a semeadura das futuras searas ondulantes aos ventos fortes que sopravam na região e também a época das colheitas. E, quando era preciso, levava a pastar até aos montes os rebanhos de cabras e ovelhas. Claro, também era um dos ordenhadores diários. Quanto ao salário, considerava-o generoso, talvez porque não tinha conhecimento dos praticados pelos outros lavradores abastados. E mesmo que não fosse generoso, regatear seria o mesmo que receber "carta oral" de despedida, o que não lhe convinha mesmo nada. Trabalho não lhe faltaria, mas nem pensar em ficar longe da "sua" Maria da Luz das trocas de olhares apaixonados (segundo ele) que ia registando no seu caderninho de apontamentos que comprara na "taberna/mercearia/e o resto" do Joaquim Onofre.
Morava numa casinha térrea, bem no centro da aldeia, que os seus falecidos pais lhe tinham deixado. O segundo e último haver era um terreno de menos de meio hectare, situado para norte, a dois quilómetros de distância. Aí passava algum tempo a cuidar da horta e das cerejeiras, limoeiros, laranjeiras e pereiras.
Era certo que o nosso homem, enamorado pela Maria do Carmo, não dispunha de muito tempo para se dedicar ao dito enamoramento. Restava-lhe o domingo. Dia em que se vestia a rigor para ir à missa, não porque fosse católico devoto, sim porque tinha uma oportunidade única que não podia desperdiçar. Era à entrada e à saída da capelinha que residia o encantamento. Poder trocar os ditos olhares apaixonados que registaria em casa, ao almoço, no caderninho ensebado.
Primeiro quadro: juntava-se à pequena multidão de homens que espreitavam a passagem das moçoilas casadeiras, quiçá trocando os olhares que podia trocar, e destacar um que considerava sempre o mais importante e que ficava mais na memória.
Segundo quadro: antes do fim da cerimónia, corria para o exterior da capelinha e voltava a juntar-se a alguns persistentes devotos do "santo sacrifício da saída da missa", assim ficando em adoração platónica duns olhos grandes e esverdeados, dumas maçãs do rosto avermelhadas e duns cabelos compridos anelados. Isto para não falar dos seus peitos generosos, de bicos proeminentes que queriam saltar da blusa às flores e não podiam.
E havia ainda um terceiro quadro: a frustração de a ver afastar-se, sem mais um olhar, até a perder de vista. Um quadro triste. Desolador. Sim, desolador e triste porque teria que esperar mais uma semana para voltar a vê-la e poder sonhar para lá dos olhares que, segundo ele, trocavam.
Já à porta de casa, rodou a maçaneta e entrou. Estava escuro e frio lá dentro. O outono tinha entrado agreste, sem pedir licença.
«Acorda, José! Ela não é para ti...»
Coçou a cabeça e olhou, desconfiado, em volta.
«Ia jurar... Não. Fui eu a falar cá de dentro.»
Mas era verdade. A Maria do Carmo, uma menina fina e prendada, com estudos, nem sequer pensara uma vez nele. José da Cruz, um simples trabalhador, quase assalariado, por conta do pai, sempre de enxada em punho a rasgar o ventre da terra para esta poder dar os seus frutos, enxugando o suor fedorento do rosto tisnado da braveza do sol, devia render-se à evidência. Ele, um básico na leitura e conversador quase mudo, embora soubesse entender a força e o alcance das palavras não dispunha de meios, nem ousava, de uma vez por todas deixar-se de estatísticas e ultrapassar aquela fase platónica.
Pelo sim pelo não, levantou a chaminé do candeeiro a petróleo, riscou um palito de fósforo na lixa da caixa e aproximou-o da torcida. Só depois de recolocar a chaminé no seu sítio é que afinou a intensidade da chama para não sujar o vidro de negro do fumo. Finalmente percorreu, com o candeeiro em punho, a cozinha e os restantes compartimentos da casa.
Claro, concluiu. A voz veio dentro dele.
«Que temos para o almoço?»
Ah!, pensou alto. Sempre fora sua, a tal voz suspeita.
Abriu a porta do forno do fogão e soltou uma exclamação de contentamento. Ainda havia uma sobra do guisado da véspera. Galinha com batatas e cenouras, escurecidas pelo molho do sangramento da mesma. Não gostava muito de degolar uma galinha, principalmente as chamadas galinhas carecas de pescoço alto, muito vermelho. Por outras palavras, o manuseamento de armas brancas não se ligava bem com ele. Mas aquele sangue que escorria do pescoço da ave ia dar um paladar do outro mundo ao guisado.
O fogão a lenha ainda tinha brasas. Dois ou três cavacos ateavam em pouco tempo as brasas e não tardou que o tacho de barro aquecesse.
Uma fatia generosa de pão, uma tigela de azeitonas e um canjirão de vinho tinto. Um copo e um garfo. Era o bastante.
«José, é isto que vais pôr na mesa para a tua amada?»
Comeu rapidamente do tacho e mal tocou no pão, nas azeitonas e no vinho. De seguida, baixou a intensidade da chama do candeeiro e dirigiu-se para o quarto. Deitou-se em cima da cama, sem sequer tirar os sapatos.
Triste vida, José da Cruz...
Não demorou muito que adormecesse.
Acordou, sobressalto. Anoitecera.
«Calma, José, hoje é domingo.»
Respirou fundo, aliviado.
Que ia fazer àquelas horas?
Procurou o candeeiro na cozinha e fez subir a chama. Passava das oito. Lá fora era noite cerrada.
Tinha duas opções: ou ficava deitado na cama a ler pela enésima vez "A Morgadinha dos Canaviais", ou então ia beber um copo à taberna do Elias.
«Isso mesmo. Vai saber-te bem um copo fora de casa. Talvez consigas pensar menos nela...»
Agasalhou-se com o sobretudo esfiapado e saiu porta fora, tomando o rumo da taberna. Uma aragem fria fê-lo puxar a gola para cima. Em menos de cinco minutos estava à entrada da porta da taberna. Esfregou as mãos. Um hábito antigo de indecisão.
Havia uma mesa livre a um canto. Mesmo ao seu gosto porque gostava de se mostrar pouco.
«Elias, meio canjirão de tinto. Um quarto de pão e uma tigela de sopa.»
Nem perguntou o que era a sopa. Invariavelmente, era grão ou feijão com hortaliça. A chamada sopa de colher em pé. Muito substancial e de consequências sonoras, devastadoras, ao alvorecer. Felizmente vivia só.
Pouco depois tinha uma colher e a tigela na sua frente.
«Já trago o resto. Queres vinagre para a sopa, José?»
«Não. Desta vez não.»
Concentrou-se na conversa que se desenrolava na mesa ao lado.
«Sempre queres ir lá no dia 13?»
«Não sei. A que dia da semana calha?»
«É sábado.»
«Sendo sábado, posso. O pior é se chove. Ainda é meia hora a andar e com passada larga. Mas estou muito curioso. Será que as crianças inventaram tudo aquilo?»
«Achas?, com aquela idade?»
«Ou então alguém as influenciou. Os padres são bem capazes disso. Olha que meninos para ganharem trunfos!»
«Mas então, afinal o que é que elas viram?»
«Bom... Em 13 de maio as crianças levaram o rebanho para a Cova da Iria, como era costume. O céu estava sereno e de repente um clarão apareceu sobre um carrasqueiro e então a Lúcia viu uma senhora vestida de branco, mais brilhante que o sol, muito séria. E falou com ela.»
«Quem era?»
«Não disse naquele dia. Que rezassem muito e fossem àquele sítio todos os dias 13, por seis vezes. Mais tarde souberam que era a Nossa Senhora.»
Não conseguiu ouvir mais porque tinha-se estabelecido uma discussão azeda entre o Elias e um cliente por causa de um caneco que não tinha sido pago.
«Foram cinco!» disse o cliente.
«Mas aqui estão seis.»
«É verdade. Mas já cá estava um.»
E a discussão continuou, num tom cada vez mais alto e agressivo. Por causa de um caneco iam envolver-se à porrada, pensou.
Finalmente os ânimos serenaram.
«Bom, então fica combinado. Arrancamos daqui cedo. Sempre quero ver se há ou não um milagre no sábado.»
«E sempre é verdade que prometeu que a guerra vai acabar em breve?»
«Sim. Desde que rezassem com fervor o terço todos os dias para se alcançar a paz no mundo e o fim da guerra...»
«Era bom. Tenho lá um sobrinho... Mas tu acreditas naquelas patranhas?»
«Não digas blasfémias que ainda te acontece uma coisa ruim!»
E foram as últimas palavras que ouviu. Entretanto tinham-se levantado e encaminhado para a porta.
José juntou o que já tinha ouvido antes com a revelação feita pelos dois indivíduos que conversavam na mesa ao lado. Talvez não fosse má ideia ir também. A situação do seu enamoramento pela filha do patrão não podia piorar mais do que já estava, se é que havia alguma coisa mais concreta que as trocas de olhares aos domingos, antes e depois da missa. Por outro lado, o milagre talvez o pudesse beneficiar. Nunca se sabia.
Passava já das nove horas da manhã quando José da Cruz saiu de casa. Depois de várias hesitações, lá resolveu finalmente pôr-se ao caminho para testemunhar ou não o milagre previsto pela Lúcia, já alcunhada de vidente. Nuvens negras ameaçavam borrasca da grande.
A princípio era só ele. Ao fim de dez minutos já via aparecerem as pessoas de todos os lados, como formigas de carreiros que não existiam mas que certamente desembocavam na Cova da Iria. Primeiro eram só pessoas e chapéus de chuva abertos. Depois começou a descortinar os mais variados meios de locomoção utilizados pelos crentes e não crentes: carros de bois, automóveis luxuosos e não luxuosos, carroças com assentos improvisados, galeras, bestas, bicicletas. E sobretudo muita, muita gente. Muita gente a caminho da Cova da Iria. Umas iluminadas pela fé e outras procurando um motivo para escarnecerem mais do que já tinham escarnecido aquilo que consideravam um embuste.
E ele...? Era crente, ou não crente?
Apesar de trazer consigo o enorme chapéu, resistente à intempérie mais extrema, e que já pertencera ao seu falecido pai, receava ficar ensopado até aos ossos antes de chegar ao local onde certamente já se concentrava a multidão que não parava de rezar, embora houvesse uns tantos que tentavam aproveitar-se da ingénua religiosidade dos fiéis para proferirem as mais inimagináveis blasfémias.
Chegou pelas dez horas, quando o céu ainda ficou mais negro, o vento fustigou impiedosamente os rostos das pessoas, começando a chover a bem chover. Apesar do mau tempo, as pessoas mantiveram-se no seu posto, movidas pelos mais diversos interesses, como era o caso do interesse de José da Cruz, um pobre trabalhador que se enamorara perdidamente pela filha do agricultor mais rico da aldeia. E ali estavam todos, ele e uns bons milhares, no ponto onde se disse que a Virgem aparecera aos pastorinhos do lugarejo de Aljustrel que, entretanto, ainda não tinham chegado. Lúcia (a vidente), Francisco e Jacinta, respetivamente de 10, 9 e 8 anos.
É então que José vê uma mulher a dois metros, molhada dos pés à cabeça, tiritando de frio. Tem um lenço a tapar-lhe a cabeça e as orelhas. Sente pena dela e aproxima-se.
«Uma camponesa.» Pensou.
«Então a menina não trouxe chapéu?»
«Virou-se a meio do caminho.»
E não voltou para trás. Tamanha era a sua devoção pela Virgem!
«Abrigue-se no meu chapéu. Dá bem para os dois.»
«Obrigada, senhor.»
E abrigou-se. José sentiu a proximidade do corpo da jovem. A cabeça chegava-lhe aos ombros.
«Veio pela fé ou por curiosidade?»
«Olhe, não sei bem. Ouvi falar tanto dos pastorinhos!»
«Como eu.»
A jovem continuava a tremer. Sentido pena da jovem, num gesto instintivo despe o sobretudo e passa-o pelos seus os ombros.
«Assim não vale. Ainda se constipa.»
«Ora, sou rijo como o aço. A menina é que se constipa se não se agasalhar. Está toda ensopada.»
«Pois estou. Obrigada, aceito. Chamo-me Cristina.»
«E eu José. José da Cruz. Só Cristina?»
«Sim. Nunca conheci os meus pais. Fui criada num orfanato.»
Finalmente apareceram a Lúcia e os primos. Há grande agitação entre a multidão. A chuva continua a cair mas ninguém desespera. Grupos de fiéis ajoelham na lama. As atenções estão todas viradas para a vidente. Vai falar do milagre.
Então a Lúcia pede-lhes que fechem os chapéus em sinal de respeito. A ordem é transmitida e a grande maioria obedece, apesar da chuva. Há muita gente em êxtase. Gente comovida, com as mãos unidas em oração. Gente que sente. Gente a quem parece tocar o sobrenatural. O momento é único.
A Senhora falou a Lúcia mais uma vez, afirma esta. E a fé aumenta. Ao mesmo tempo, as nuvens deixam de ficar negras e a chuva para.
«Que estranho!» comentou a jovem. «Parou de chover!»
«Sim. E já se vê céu velho.»
«Céu velho?»
«Voltou o azul do céu que as nuvens tapavam, percebe?»
«Entendi.»
Ela é bonita. Quem sabe...?
«José, estás a ver mal. A beleza interior é que conta.»
Outra vez aquela voz!
«Disse alguma coisa, José?»
«Não não. Só falava para os meus botões.»
«Ah.»
Entretanto o sol aparece.
.....................................................................................................................................................
(Excerto de um artigo de Avelino de Almeida, jornalista, à época, de "O Século"...)
«Viu, Cristina?»
A manifestação miraculosa, o sinal visível anunciado está prestes a produzir-se – asseguram muitos romeiros. E assiste-se então a um espetáculo único e inacreditável para quem não foi testemunha dele. Do cimo da estrada, onde se aglomeram os carros e se conservam muitas centenas de pessoas, a quem escasseou valor para se meter à terra barrenta, vê-se toda a imensa multidão voltar-se para o sol, que se mostra liberto de nuvens, no zénite. O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se realizando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta, e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar:
– Milagre, milagre! Maravilha, maravilha!
E, a seguir, perguntam uns aos outros se viram e o que viram. O maior numero confessa que viu a tremura, o bailado do sol; outros, porém, declaram ter visto o rosto risonho da própria Virgem, juram que o sol girou sobre si mesmo como uma roda de fogo de artificio, que ele baixou quase a ponto de queimar a terra com os seus raios…
Há quem diga que o viu mudar sucessivamente de cor…"
«Sim, José. Que belo! Até pareceu que o sol bailava! Eu sabia! Eu sabia!»
Aos olhos extasiados do povo, rendido ao fenómeno, o sol tremeu.
«Impossível! O sol não pode bailar. O que estamos a ver é uma ilusão. Mas acha que a pequena vidente nos mandou olhar para o céu?»
«Foi o que ouvi.» Virou-se para trás. «A notícia veio daquelas bandas.»
«Então também não estou enganado. Este foi o milagre que ela pediu em agosto à Senhora para que todos acreditassem.»
(O "bailar" do sol, que foi visto, em êxtase, pela maior parte dos que estavam a olhar o céu, não se circunscreveu à região, pois foi visto em vários locais, segundo testemunhos dados. O próprio poeta Afonso Lopes Vieira também o viu da sua casa em São Pedro de Moel, a menos de 40 km da Cova da Iria. Portanto, este fenómeno não se tratou de uma alucinação coletiva no local. A reforçar ainda a natureza diversa dos observadores, uma amálgama de crentes e descrentes. E mesmo que os céticos viessem a afirmar que aquele fenómeno não passara de coisa atmosférica, nunca encontrariam explicação para a previsão da vidente de um milagre a ocorrer nesse dia.
Também parece não constar que Nossa Senhora disse-lhe que o milagre viria do céu. O certo é que a vidente mandou o povo olhar o céu à hora exata...)
«Já não sinto frio, José. Tome o seu sobretudo. Mais uma vez, obrigada.»
«Tive muito gosto.»
«A minha roupa secou! Apalpe, José.»
Apalpou. E ela estremeceu.
«Afinal ainda sente frio.»
Corou.
José entendeu.
«Não foi por mal.»
Como resposta recebeu um sorriso envolvente da jovem.
«Vamos?»
«Sim, José.»
A multidão começou a desmobilizar, seguindo cada um o seu destino.
«Quer que a leve a casa?»
Ela olhou com a intensidade de uns olhos carentes que pareciam falar. Ele tentou interpretar que súplica era aquela que via nos seus lindos olhos.
«Cristina...»
«José...»
«Tenho uma galinha que deixou de pôr. Posso fazer um guisado.»
«Obrigada, José, mas tenho que me pôr ao caminho.»
«Vá lá...»
Se a Cristina aceitou o convite de José da Cruz e se viveram juntos até que a morte os separou, devem-no a Nossa Senhora. Então, extrapolando, o enamoramento platónico do José pela Maria do Carmo foi arrumado a um canto inacessível da memória naquele mesmo dia.
Só ele sabe o que aconteceu, mas não está cá para esclarecer se matou ou não a galinha que deixou de pôr ovos…
«E então, Mário?»
Coçou a cabeça, denotando confusão na expressão do rosto.
«Contei esta história ao António, como muitas outras. Julgava que tinha sido o resultado de um simples momento de inspiração. E inspirei-me em fontes da época.»
«Tens a certeza que aconteceu tudo como contaste?»
«Claro. O António não mudou o sentido da história. Apenas a passou para o papel e depois publicou-a no seu blogue. Podes perguntar-lhe quando chegarmos a casa. É sempre assim. Ele limita-se a dar vida às minhas histórias. Nem eu admitia que fosse de outra forma.»
«Faz um esforço para te lembrares!»
«Qual esforço? Tudo aconteceu ao José da Cruz como eu quis que acontecesse. Foi tudo invenção minha. O José da Cruz. A sua apaixonada. A desconhecida. Tudo o que está na história.»
Alexandra pareceu contrariada. O seu rosto ficou sério. Expectante. Os lábios esboçaram um movimento como se fosse falar. Falso alarme. Manteve-se calada, não deixando de fitar Mário.
«Não me olhes assim!»
Pareceu não ter ouvido o pedido do amigo. Olhou-o ainda mais intensamente.
«Fecha os olhos.»
«Porquê?»
«Porque eu quero.»
«Vais dar-me um beijo?»
«Tu e a tua mania de te armares em sedutor! Desce à Terra. Vá, fecha esses olhos, caramba!»
«Está bem, eu fecho. Escusas de ser tão agressiva. Explica-te, por favor.»
«Já vais ver o que acontece...»
Naquela manhã que prometia ser chuvosa, Alexandra chegou a tempo de se juntar à multidão. Desta vez os cálculos tinham dado certo.
Grande era o fervor que movia aquela multidão rumando ao local já sagrado onde a Virgem aparecera aos três pastorinhos. A chuva caía intensamente, mas não quebrava a força anímica que levava toda aquela gente simples a juntar-se à Lúcia, à Jacinta e ao Francisco.
Ela já sabia do suposto milagre do sol, mas precisava de saber se o fenómeno tinha acontecido tal como fora relatado pelos jornais da época, ou se tudo não tinha passado de um embuste.
«Nem de propósito. Esta chuva gélida não passa. Tenham dó de mim. Estou ensopadinha até aos ossos.»
E estremeceu, tal era o frio que sentia.
«Então a menina não trouxe chapéu?»
Chapéu? Que era isso nas suas terras áridas em que o efeito de estufa ditava a lei. Os meses iam passado e o cenário mantinha-se inalterado. Não chovia nem uma gota. Só um milagre podia trazer a chuva de volta.
A propósito de milagres, ia em busca de um. Oxalá fosse bem sucedida.
Mas como responder?
«Virou-se a meio do caminho.»
Foi obrigada a mentir àquele simpático homem que tinha surgido do nada. Num relance, o exame que fez foi positivo. Era sincero dentro da curta abordagem que lhe fez. Mas nunca se sabia.
«Abrigue-se no meu chapéu. Dá bem para os dois.»
E dava. Era um chapéu de chuva, largo, de cabo e varetas robustas. Tinha ouvido vagamente falarem de chapéus de chuva existentes no passado profundo. Agora eram obsoletos numa terra árida em que a vida estava condenada a médio prazo.
«Obrigada, senhor.»
Aquele senhor soou-lhe a falso. Era um pobre homem que respirava sinceridade.
Que fazia ele pela vida?
E aconchegou-se ao desconhecido de boa vontade. Tiritava.
«Veio pela fé ou pela curiosidade?
Que atrevimento! Por agora passava.
Olhou para cima. O homem era alto, bem constituído fisicamente.
«Olhe, não sei bem o que me trouxe aqui. Ainda por cima com esta chuva. Ouvi falar tanto...»
«Como eu.»
O homem despiu o sobretudo e colocou-o, delicadamente, sobre os seus ombros.
«Que gentil!» pensou.
«Assim não vale. Ainda se constipa.»
E foi então que uma recordação relâmpago lhe veio à memória. Aquele rosto! Já o tinha visto em qualquer local.
Seria também um viajante do tempo?
Ia jurar que já o tinha visto algures!
Algures é finalidade?
«Ora, sou rijo como o aço. A menina é que se constipa. Está toda ensopada.»
Seguiram-se as apresentações. Inventou um nome. Quanto a ele, chamava-se José.
E seguiu-se a descrição que antecedeu o milagre do sol. Entretanto parara de chover. Estranhamente já não sentia frio.
Resultado da envolvência mística ou a temperatura tinha subido de súbito?
O sol rompeu entre as nuvens densas que esbranquiçaram.
«Viu, Cristina?!...»
«Sim, José. Que belo! Até pareceu que o sol bailava!»
Aos olhos extasiados do povo, rendido ao fenómeno, o sol tremeu.
«Impossível. O sol não pode bailar. O que estamos a ver é uma ilusão. Mas acha que a pequena vidente nos mandou olhar para o céu?»
«Foi o que ouvi.» Virou-se para trás. «A notícia veio daquelas bandas.»
Face ao que assistira não podia negar que se tratava de um milagre. O sol estremeceu mesmo.
Nunca deixaria de ter fé na Virgem Maria.
«Quer que a leve a casa?»
Ela olhou com a intensidade de uns olhos carentes que pareciam falar. Ele tentou interpretar que súplica era aquela que via nos seus lindos olhos.
«Cristina...»
«José...»
«Tenho uma galinha que deixou de pôr. Posso fazer um guisado.»
«Obrigada, José, mas tenho que me pôr ao caminho.»
Era verdade. Estava quase na hora do portal abrir e ainda tinha que percorrer alguns quilómetros.
Como havia de dizer ao simpático camponês?
«Mas onde está ele?»
Olhou em volta e só viu os últimos caminheiros em dispersão. Do José nem rasto...
«E foi assim que aconteceu, Mário. Eu estava lá e assisti ao fenómeno.»
«Fenómeno?»
Retificou:
«Acho que foi milagre. Um aviso que veio dos céus. A Lúcia falou de um milagre e este consumou-se.»
«Dou-te o benefício da dúvida. O sol estremeceu mesmo!»
«Ah! Que queres dizer?»
«É verdade. Também lá estive. E depois nasceu a história que o António escreveu. Mas não te reconheci!»
«Como assim, Mário? Ah!, talvez porque levava um lenço a cobrir a cabeça.»
«Foi por isso. E agora tenho a certeza que estivemos juntos debaixo do mesmo chapéu.»
«Sim.»
«E agasalhei-te com o meu sobretudo. Aconteceu quase como tu disseste.»
«E como contaste ao António.»
Consultou o relógio.
«Já cinco horas, Mário!»
«E então?»
«Tens razão. Hoje o tempo não tem tempo. Podemos ainda visitar a catedral?»
O tempo não tem tempo. Onde ouviste estas palavras, Mário?
«Claro. Mas estou a pensar numa coisa...»
«Sim?»
Que ia sair dali?
Talvez uma declaração de amor. As paixonetas de Mário vinham como uma torrente de águas selvagens a desbravar terrenos novos. E era verdade. Ela era um terreno novo, embora se tivessem conhecido em 13 de outubro de 1917.
«Em que estás a pensar, Mário?»
«Como não me lembrei antes de toda esta envolvência que tivemos no passado?»
«O subconsciente tem muita força.»
«E tu abriste-o!»
Apontou o indicador para a Alexandra e ficou de imediato paralisado. O poder da Germina também se transmitira à sobrinha.
«Desculpa, Mário. Não foi de propósito. Às vezes não me controlo.»
«Tens dons, Alexandra!»
«E tu também. A tia já me tinha avisado. Aliás, doutra forma não terias estado na Cova da Iria em 1917. O José eras tu.»
«Em que estás a pensar, Mário?»
«Como não me lembrei antes de toda esta envolvência que tivemos no passado?»
«O subconsciente tem muita força.»
«E tu abriste-o!»
Apontou o indicador para a Alexandra e ficou de imediato paralisado. O poder da Germina também se transmitira à sobrinha.
«Desculpa, Mário. Não foi de propósito. Às vezes não me controlo.»
«Tens dons, Alexandra!»
«E tu também. A tia já me tinha avisado. Aliás, doutra forma não terias estado na Cova da Iria em 1917. O José eras tu.»
Mário conteve-se.
«Escuta uma coisa. Porque morreram quase de seguida o Francisco e a Jacinta?»
«E ficou a única pastorinha que falou com a Virgem. Não sei. Talvez interesses ocultos. Não há dúvida que os dois irmãos eram o elo mais fraco.»
«Ainda outra coisa...»
«Diz.»
«E se ficássemos cá esta noite, Mário?»
Não era má ideia. Precisava de mais tempo para digerir aquele dia rico em emoções.
«Acho bem.» Concordou.
«Mas cada um no seu quarto. E mais uma coisa...»
«Sim?»
«Como foi que começámos a tratar-nos por tu?»
«É mais um mistério, ou um sinal que vamos ser dois bons amigos?» respondeu Mário, com outra pergunta.
Mário pouco dormiu nessa noite. As emoções do dia quase que o deitaram abaixo. O mesmo se devia ter passado com a Alexandra, embora parecesse ter nervos de aço. A não ser aquelas reações bruscas que o deixavam desarmado, quase sem forças para reagir.
Consultou o relógio. Passavam alguns minutos das nove. Talvez ela até já tivesse tomado o pequeno almoço. Na casa da Mónica era quase sempre a primeira a levantar-se.
Confirmação (teria dito a dona Ima). Foi encontrá-la de volta do buffet mas ainda em missão de escolha.
«Bom dia, Alexandra. Dormiste bem?»
«Bom dia, Mário. Com os anjos. Este ar que se respira é especial. Já me tinham dito e confirma-se. E tu? Estás com uma cara!»
«Mal preguei olho.»
«Estranhaste a cama?»
Como dizer-lhe?
Não queria dar parte de fraco. Mas tinha que ser.
«Não. Foi por causa de tudo isto que nos aconteceu.»
«E se tomássemos o pequeno almoço em paz? Temos muito tempo para falar dessas emoções todas. Até porque a seguir vamos à Basílica e preciso de ter a cabeça fresca.»
«Acho bem» concordou. «Mas agora deixa que te sirva o pequeno almoço. Senta-te que este teu servo vai tratar de ti. Deixa-me adivinhar...»
Pareceu concentrar-se.
«Mário, que palermices são essas?»
«E um guisado da minha galinha que deixou de pôr ovos?»
«Só tu! Mas agora a sério, já que és tão gentil, pode ser...»
«Um sumo de laranja com duas pedras de gelo e um prato com queijo da serra, desse quase manteiga. Talvez pão de mistura se não estiveres a fazer dieta. Aliás, não precisas.»
Abriu a boca de espanto.
«Minha alma está parva!»
«Onde aprendeste essa expressão?»
«Foi a Mónica. Mas tu adivinhaste! E lá em casa tomo meia de leite com um pão com manteiga.»
«Agora vais pensar que, além de ler mãos, também leio mentes. E também que sou um jumper básico, mal amanhado.»
(e também capaz de metamorfosear-se de uma forma parecida com a da Maya, nativa de Psycon, uma beldade excêntrica que se destacava, por exemplo, pelo seu cabelo comprido castanho-avermelhado. Maya foi uma personagem fundamental na segunda série de "Espaço 1999". Conseguia, num instante, uma transformação molecular concentrando-se na estrutura molecular da criatura que queria imitar, mantendo o seu próprio conhecimento e identidade...)
«Claro que não. Tens poderes, mas não tanto. Acertaste por acaso.»
«Dou-te toda a razão» respirou fundo pela jovem não ter descoberto esse segredo. «Mas vamos concentrar-nos num pequeno almoço suculento e saudável. Mente sã em corpo são.»
«E o corpo precisa de alimento. É o nosso principal inimigo.»
«Estás preparada?»
«Preparadíssima.»
«Então, vamos.»
E começaram a subir a escadaria que os conduzia ao Santuário.
«É a primeira vez.»
«Vais sentir-te bem, acredita. Queres sentar-te primeiro num dos bancos corridos, ou vamos começar já a visita?»
«Vou sentar-me, mas preferia ficar só.»
Respeitava as opções da amiga. Mesmo que fossem amigos há muito, o que não era verdade, compreendia a sua necessidade de isolamento.
«Desculpa, Mário. Preciso mesmo de estar só para tentar tirar de vez uns macaquinhos do sótão. E depois, orar. Nessa altura, chamo-te. Se andares por perto, claro.»
Foi para o exterior do Santuário e sentou-se na escadaria. Lá fora o astro-rei começava a romper timidamente entre as nuvens. Também ele sentia necessidade de se isolar por alguns momentos. Preferia fazer a visita aos túmulos do Francisco e da Jacinta na companhia da Alexandra.
«Não há de ser nada, Mário.» sussurrou. «É só fumo de verão. Não vou prender-me em incertezas.»
Foi então que viu uma criança a olhar com insistência para ele.
«Olá.»
«Olá.» Respondeu a criança.
«Onde estão os teus pais?»
«Vim só com a mana.»
«E onde está ela?»
Apontou para a entrada do Santuário.
«Queres ir ter com ela?»
«Sim.»
«E fugiste?»
«Sim.»
«Fugiste, porquê?»
«Zanguei-me. Não queria estar lá dentro. Cheirava mal.»
Compreendia que não lhe agradasse o cheiro a incenso e a velas queimadas.
«Não devias ter fugido. Vamos lá então. A tua mana já deve estar preocupada.»
E começaram a subir os últimos degraus.
Foi então que viu a Alexandra.
«Pelos vistos já arranjaste um amigo. Olá, Ricardo.»
A criança esboçou um sorriso.
«Mas conheces o Ricardo?»
«E a Dora. Também vieram a Fátima.»
«Pelos vistos andam muitos por aqui.» Pensou.
«É verdade.»
«Falei alto?»
«Pois falaste. Vamos entregar a criança à Dora. Estou ansiosa por ver os túmulos...»
«São muito simples.»
«Não é pelos túmulos. Vamos?»
«Que coincidência o Ricardo vir ter comigo!»
«Não foi coincidência. Eu já tinha visto a Dora e disse ao Ricardo para ir ter com o senhor que estava sentado nas escadas.»
«E ele mentiu. Disse que tinha fugido. Mas como sabias que eu estava no exterior?»
«Vi-te sair do Santuário.»
«Viste?»
«Não ponhas mistérios onde não os há.»
«Eis o túmulo do Francisco. Curioso. Não estou a ter aquele sentimento profundo da primeira vez.»
«Para ti não é a primeira vez. Mas eu... que coisa é esta que estou a sentir e que não sei explicar?»
Pareceu-lhe que ela ia desfalecer e agarrou-a. De imediato sentiu um choque elétrico.
«Não voltes a fazer isso, Mário!»
«Não é o que pensas. Apenas quis ajudar-te. Julguei que ias desmaiar. Juro que estou a falar verdade!»
A história da ida a Fátima acabou naquele momento. A viagem de regresso foi feita no mais ruidoso dos silêncios.
«Escuta uma coisa. Porque morreram quase de seguida o Francisco e a Jacinta?»
«E ficou a única pastorinha que falou com a Virgem. Não sei. Talvez interesses ocultos. Não há dúvida que os dois irmãos eram o elo mais fraco.»
«Ainda outra coisa...»
«Diz.»
«E se ficássemos cá esta noite, Mário?»
Não era má ideia. Precisava de mais tempo para digerir aquele dia rico em emoções.
«Acho bem.» Concordou.
«Mas cada um no seu quarto. E mais uma coisa...»
«Sim?»
«Como foi que começámos a tratar-nos por tu?»
«É mais um mistério, ou um sinal que vamos ser dois bons amigos?» respondeu Mário, com outra pergunta.
Mário pouco dormiu nessa noite. As emoções do dia quase que o deitaram abaixo. O mesmo se devia ter passado com a Alexandra, embora parecesse ter nervos de aço. A não ser aquelas reações bruscas que o deixavam desarmado, quase sem forças para reagir.
Consultou o relógio. Passavam alguns minutos das nove. Talvez ela até já tivesse tomado o pequeno almoço. Na casa da Mónica era quase sempre a primeira a levantar-se.
Confirmação (teria dito a dona Ima). Foi encontrá-la de volta do buffet mas ainda em missão de escolha.
«Bom dia, Alexandra. Dormiste bem?»
«Bom dia, Mário. Com os anjos. Este ar que se respira é especial. Já me tinham dito e confirma-se. E tu? Estás com uma cara!»
«Mal preguei olho.»
«Estranhaste a cama?»
Como dizer-lhe?
Não queria dar parte de fraco. Mas tinha que ser.
«Não. Foi por causa de tudo isto que nos aconteceu.»
«E se tomássemos o pequeno almoço em paz? Temos muito tempo para falar dessas emoções todas. Até porque a seguir vamos à Basílica e preciso de ter a cabeça fresca.»
«Acho bem» concordou. «Mas agora deixa que te sirva o pequeno almoço. Senta-te que este teu servo vai tratar de ti. Deixa-me adivinhar...»
Pareceu concentrar-se.
«Mário, que palermices são essas?»
«E um guisado da minha galinha que deixou de pôr ovos?»
«Só tu! Mas agora a sério, já que és tão gentil, pode ser...»
«Um sumo de laranja com duas pedras de gelo e um prato com queijo da serra, desse quase manteiga. Talvez pão de mistura se não estiveres a fazer dieta. Aliás, não precisas.»
Abriu a boca de espanto.
«Minha alma está parva!»
«Onde aprendeste essa expressão?»
«Foi a Mónica. Mas tu adivinhaste! E lá em casa tomo meia de leite com um pão com manteiga.»
«Agora vais pensar que, além de ler mãos, também leio mentes. E também que sou um jumper básico, mal amanhado.»
(e também capaz de metamorfosear-se de uma forma parecida com a da Maya, nativa de Psycon, uma beldade excêntrica que se destacava, por exemplo, pelo seu cabelo comprido castanho-avermelhado. Maya foi uma personagem fundamental na segunda série de "Espaço 1999". Conseguia, num instante, uma transformação molecular concentrando-se na estrutura molecular da criatura que queria imitar, mantendo o seu próprio conhecimento e identidade...)
«Claro que não. Tens poderes, mas não tanto. Acertaste por acaso.»
«Dou-te toda a razão» respirou fundo pela jovem não ter descoberto esse segredo. «Mas vamos concentrar-nos num pequeno almoço suculento e saudável. Mente sã em corpo são.»
«E o corpo precisa de alimento. É o nosso principal inimigo.»
«Estás preparada?»
«Preparadíssima.»
«Então, vamos.»
E começaram a subir a escadaria que os conduzia ao Santuário.
«É a primeira vez.»
«Vais sentir-te bem, acredita. Queres sentar-te primeiro num dos bancos corridos, ou vamos começar já a visita?»
«Vou sentar-me, mas preferia ficar só.»
Respeitava as opções da amiga. Mesmo que fossem amigos há muito, o que não era verdade, compreendia a sua necessidade de isolamento.
«Desculpa, Mário. Preciso mesmo de estar só para tentar tirar de vez uns macaquinhos do sótão. E depois, orar. Nessa altura, chamo-te. Se andares por perto, claro.»
Foi para o exterior do Santuário e sentou-se na escadaria. Lá fora o astro-rei começava a romper timidamente entre as nuvens. Também ele sentia necessidade de se isolar por alguns momentos. Preferia fazer a visita aos túmulos do Francisco e da Jacinta na companhia da Alexandra.
«Não há de ser nada, Mário.» sussurrou. «É só fumo de verão. Não vou prender-me em incertezas.»
Foi então que viu uma criança a olhar com insistência para ele.
«Olá.»
«Olá.» Respondeu a criança.
«Onde estão os teus pais?»
«Vim só com a mana.»
«E onde está ela?»
Apontou para a entrada do Santuário.
«Queres ir ter com ela?»
«Sim.»
«E fugiste?»
«Sim.»
«Fugiste, porquê?»
«Zanguei-me. Não queria estar lá dentro. Cheirava mal.»
Compreendia que não lhe agradasse o cheiro a incenso e a velas queimadas.
«Não devias ter fugido. Vamos lá então. A tua mana já deve estar preocupada.»
E começaram a subir os últimos degraus.
Foi então que viu a Alexandra.
«Pelos vistos já arranjaste um amigo. Olá, Ricardo.»
A criança esboçou um sorriso.
«Mas conheces o Ricardo?»
«E a Dora. Também vieram a Fátima.»
«Pelos vistos andam muitos por aqui.» Pensou.
«É verdade.»
«Falei alto?»
«Pois falaste. Vamos entregar a criança à Dora. Estou ansiosa por ver os túmulos...»
«São muito simples.»
«Não é pelos túmulos. Vamos?»
«Que coincidência o Ricardo vir ter comigo!»
«Não foi coincidência. Eu já tinha visto a Dora e disse ao Ricardo para ir ter com o senhor que estava sentado nas escadas.»
«E ele mentiu. Disse que tinha fugido. Mas como sabias que eu estava no exterior?»
«Vi-te sair do Santuário.»
«Viste?»
«Não ponhas mistérios onde não os há.»
«Eis o túmulo do Francisco. Curioso. Não estou a ter aquele sentimento profundo da primeira vez.»
«Para ti não é a primeira vez. Mas eu... que coisa é esta que estou a sentir e que não sei explicar?»
Pareceu-lhe que ela ia desfalecer e agarrou-a. De imediato sentiu um choque elétrico.
«Não voltes a fazer isso, Mário!»
«Não é o que pensas. Apenas quis ajudar-te. Julguei que ias desmaiar. Juro que estou a falar verdade!»
A história da ida a Fátima acabou naquele momento. A viagem de regresso foi feita no mais ruidoso dos silêncios.
Quando chegaram a Lisboa já passava da uma da tarde. O termómetro do carro marcava trinta graus para o exterior. Lisboa quente era um inferno quando não havia vento.
Mário parou em segunda fila. Outro problema, além do calor, o do estacionamento.
«Vai entrando enquanto arrumo o carro.»
Alexandra obedeceu a um Mário que lhe pareceu de muito mau humor. Pior para ele. Que se pusesse bem. Talvez aceitasse um pedido de desculpa.
Sem olhar outra vez para ele, abriu a porta do carro e saiu. Sempre em silêncio, afastou-se. Entretanto, Mário meteu a primeira e arrancou de esticão. Mesmo assim ela não olhou para trás.
«Ele agarrou-me e eu reagi.»
«Como assim, Alexandra? Que queria aquele malandreco?»
«Sabes muito bem, o quê, Mónica. Abraçar-me.»
«E depois?»
«Depois o quê?»
«Ora.»
«Bom. Parece que estamos a desconversar.»
«Ele agarrou-te, sem mais nem menos?» perguntei, com grandes dúvidas. «Não parece do Mário!»
Conhecia o meu amigo. Em negócios de saias só avançava pela certa. De certeza que a Alexandra tinha feito uma leitura errada. Quase tão certo como eu chamar-me António. Era certo que havia que dar uns tantos graus de liberdade aos seus momentos de impetuosidade. De vez em quando ele saía dos carretos por causa de um problema de "lana caprina".
«Pois. Foi mesmo como estou a dizer.»
«Mas conta como aconteceu? Ou melhor: porque aconteceu.» Pediu a Mónica.
«Bom, na altura estávamos junto ao túmulo do Francisco e tudo tinha corrido normalmente até à altura. Tanto na véspera como ao pequeno almoço. Estava a falar com a Dora e o Mário apareceu com o Ricardinho.»
«Quem são eles?» perguntámos os dois, quase ao mesmo tempo.
«São dois amigos meus.»
«Onde fizeste esses amigos?»
Arrependi-me logo e tentei emendar a mão.
«Deixa, continua.»
Não me passou despercebido um suspiro de alívio metafórico. Qualquer coisa como isso.
«Não sei o que aconteceu, mas emocionei-me junto ao túmulo do Francisco.»
«E não no túmulo da Jacinta?»
«Pois.»
«Tal como aconteceu com o Mário.» Admiti.
«Foi então que ele me agarrou pelos braços. Não conseguiu nada, claro, pois imobilizei-o.»
«Imobilizaste-o? É preciso ter muita força!»
«António...»
«Sou todo ouvidos.»
«Há algumas coisas em mim que ainda não posso explicar. Mais tarde, talvez. Por agora vão ter paciência, muita paciência comigo.»
«Ah sim? Vamos ter paciência!»
«Desculpem. Estão no vosso direito de não me quererem cá.»
«Lembra-te que estás à nossa guarda. O Mário deitava-nos o fogo. Nem nós queremos, pois não António?»
«Somos teus amigos. Entretanto passa das duas. Já almoçámos, tomámos o café, a Mónica fumou o seu cigarro e o Mário ainda não apareceu. O outro foi ao quiosque para comprar só uma caixa de fósforos e não voltou. Espero que ele não imite o outro.»
«Conheces melhor que ninguém o Mário» disse a Mónica. «Se ainda não voltou a coisa é forte...»
«Como estava ele antes de saíres do carro?»
«Zangado. Não trocámos palavra desde que saímos de Fátima. A culpa também foi minha. Talvez tenha sido demasiado violenta. Mas que mereceu, mereceu.»
«Tens a certeza?»
«Sim, António.»
«Absoluta?»
«Bom. Tudo é relativo.»
«Até a ideia de que a verdade absoluta está connosco?»
«Querem que conte outra vez? Talvez descubram qualquer coisa que me falhou na altura.»
Todos ficámos suspensos com o soar da campainha.
«É ele!» exclamou a Alexandra, com um novo brilho nos olhos.
Que se passa, Alexandra?
«O Mário tem a chave de casa.» Afirmou a Mónica.
De facto não era o Mário.
«Estes tipos da publicidade não podiam vir a outra hora?»
Mário deixou a Alexandra perto de casa e foi arrumar o carro. Contra toda a lógica não voltou. Um dia. Dois dias. Nem um sinal. Foi levado pelo vento num dia sereno. Mas ele não estava sereno quando deixou a Alexandra quase à porta de casa.
«Deu-lhe forte na mosca!» comentou a Mónica.
«É imprevisível tudo o que vem dele» admiti. «Mas será que contaste tudo, Alexandra?»
O Slimpas, amigo de infância do Mário, teria jurado pelas alminhas que acabara de contar toda a verdade.
«Não sei o que possa mais acrescentar. Só se querem que diga que o matei.»
«Pelo amor de Deus! Raciocinemos. Enquanto estacionava o carro pode ter tido um mau encontro com os mafiosos do casino. Ou então foi atropelado. Temos que contactar os hospitais.»
«Não, Mónica. Nada disso. Os mafiosos não têm hipótese de o descobrir. Não se esqueçam do seu novo dom?»
«És capaz de ter razão. Mas para onde raio foi o nosso homem?»
«Já sei.»
«Não brinques.»
«Não estou a brincar. Las Vegas não te diz nada, Mónica?»
«Ah! A mim, não. Mas ao Mário diz muito.»
«Certo. O meu palpite aponta para aí.»
«A culpa é minha. Provavelmente fui demasiado impulsiva e ele já não se sentiu bem na minha presença. Las Vegas soa-me a uma localidade possível. É aí que o podemos encontrar?»
Mário precisava de voltar a Las Vegas. Deixara por lá muito dinheiro e tinha forçosamente que o recuperar. Quanto mais cedo melhor. Aproveitou o desaguisado com a Alexandra, forçou o dramatismo e partiu, sem uma palavra. Coisas habituais num homem imprevisível como ele era. Não tinha lógico, mas era quase certo.
«Sim. Mas Las Vegas não fica ao virar da esquina, Alexandra.»
«Então?»
«São muitas horas de avião...»
«Tão longe! Que tem Las Vegas para o atrair assim tanto?»
«Casinos. Sonho. Aventura. Dinheiro. Mas não é o que pensas. Acho que ele fugiu de ti, Alexandra, porque estava a deixar-se envolver. Ao mesmo tempo, também tinha dinheiro a recuperar.»
«Foi jogar?»
«Um dia saberemos.»
«E agora que vamos fazer?» perguntou a Mónica, agarrando-se ao meu braço.
Não consegui evitar acariciar o seu rosto e beijá-la ao de leve nos lábios.
«Nada. Vocês, nada. Deixem comigo.»
«Vais a Las Vegas? Não será melhor nós aguardarmos mais alguns dias?»
Conhecendo como o conhecia, achava que tinha lá deixado um nó por desatar. A Amélia dos olhos doces. Tinha que saber concretamente o que se passara.
«Acho que não vem tão depressa. Pode precisar da minha ajuda. Não fico bem com a minha consciência.»
«O que queres é aventura. Quando falaste de jogo, sonho e tudo isso, esqueceste-te de propósito de falar em mulheres. Onde há casinos há mulheres e casos. E que casos!»
«Mónica!»
«Estou a gozar» mentiu. «Vais correr riscos. Foste seguido naquele dia em que visitaste o Mário na casa perto da Alameda. Corres perigo de ser reconhecido. Não tens o dom do teu amigo. Já te esquecias?»
«O risco é mínimo. Eles andam por cá e eu vou para lá.»
Bem pensado. Mas quem tinha a certeza?
«Quando partes, António?»
«Talvez amanhã, ao fim da tarde.»
«Olha, se o encontrares, diz-lhe...»
«Sim?»
Vi a Alexandra corar.
«Nada. Dá-lhe só cumprimentos meus. E diz-lhe que não estou zangada.»
«Não anseias por ele?»
«Deixa a rapariga em paz, António.»
Olhei para a Mónica.
«Hoje vamos jantar fora. Não se sabe o dia de amanhã...»
«Credo!»
«Já dizia o Fernando Pessoa e morreu no dia seguinte.»
O segundo caderno do Mário estava incompleto. Não eram só as últimas folhas rasgadas que provavam que as minhas suspeitas tinham razão de ser. Havia mais argumentos a darem força e lógica. Conhecendo o Mário como conhecia, ele nunca encerrava um caso como aquele que teve com a Maria. Nem carne nem peixe. Apenas um manto denso de nevoeiro a envolver o que me parecia ser evidente.
E a Alexandra?
Coisa complicada, pensei. Um nó na vida dela. Não sabia o que dizer-lhe. Que já não ia a Las Vegas era certo e ela sabia. Mas a razão porquê, não. Precisava da ajuda da Mónica e mesmo assim não sabia como ela ia desatar o nó que a vida tinha dado à pobre jovem.
«Bom, António, estás a precisar de um copo. O teu amigo mete-se em sarilhos e és tu quem tem a obrigação de o desensarilhar perante os outros. Não está bem.» Pensei.
Dirigi-me à cozinha e tirei uma cerveja do frigorífico.
Ouvi um ruído para os lados do hall de entrada. Alguém estava a meter a chave à porta.
«Ó gente da casa!»
Era a Mónica. E eu, a gente da casa.
Com a cerveja no copo fui ao seu encontro.
«A beber já de manhã?»
Beijei-a.
«Que é isto?» perguntou. «Um beijo tão frio!»
Sorri.
«E agora?»
«Agora, sim.»
«A Alexandra?»
«Senta-te. Ainda bem que já tens a cerveja.»
Ordem para me sentar. Achei estranho.
«É melhor beber um gole. Houve algum problema com ela?»
«Já não volta, António.»
«O quê?!...»
«Alguém telefonou-lhe quando estávamos no Vasco da Gama a ver uns relógios. Não consegui ouvir o que ela respondeu. Aliás, fez-me um sinal discreto que se ia afastar.»
«E então?»
«Voltou muito séria, mas sem uma lágrima visível. A seguir agarrou-se muito a mim e ficou assim durante alguns segundos.»
«Mónica, vou regressar.»
«Algum problema no teu país? A tua mãe...?»
«Não. Nada disso. Está tudo bem por lá. Mas tenho que regressar. E desculpa-me, não posso continuar na tua casa. Estou muito grata a todos vós. Receberam-me muito bem.»
«Não queres pensar melhor?»
«Foi tudo muito rápido mas já pensei.»
«O Mário...?»
Pareceu-me ver amargura na expressão do seu olhar.
«Não estou preparada para estas coisas. Dá um abraço ao António. Agarra-o bem!»
Tinha contornado a pergunta.
«Está bem agarrado» sorri. «E como vais conseguir regressar?»
«Não te preocupes.»
O Mário levava os seus casos até ao fim, mas este ficou pelo caminho. Conheci-a bem. Dois simultâneos eram muita areia para o seu camião. Alguém tinha que ficar pelo caminho e já acontecera no passado. Nesse tempo fez a pior escolha da sua vida e deu o que deu. Pagou com juros.
«Acho que sabes mais do que eu.»
«Pois sei. Mas aquele caderno com as últimas folhas rasgadas quer dizer muita coisa.»
«Folhas rasgadas? Não sabia disso.»
«Pensava... Deixa. Vou dar-te a ler o caderno do qual foste a fiel guardadora. Fiel e honesta. Certamente ficarás a entender. Aqui para nós, ele fez mais uma escolha depois de vários saltos no passado. Com a leitura do seu caderno fiquei a conhecer mais alguns espaços por onde passaram os meandros da sua vida.»
«Mas é impossível voltar ao passado!»
«Admito que sim. Alterá-lo, não.»
«E então?»
«Ele só deu saltos no tempo. Não alterou nada.»
Seria?
«E agora onde está?»
«Não sei.»
«Las Vegas?»
«Talvez tenha passado por lá por causa do dinheiro e depois voltado.»
«E a Amélia?»
«Julgo que os mafiosos a mataram.»
«Muito bem. Admitamos que trouxe o dinheiro. E depois?»
«Sei tanto como tu. Deixa-te ficar sentada. Eu vou lá dentro buscar o caderno. Pode ser que encontres uma pista.»
«Agora não me apetece ler. Sinto a falta deles. Acho que acabavam por entender-se. Foi um erro mútuo.»
«Penso o mesmo que tu, Mónica. Era só dar tempo ao tempo. Mas tens que ler o caderno. A chave pode estar lá.»
«Sim. Mais tarde. Agora apetece-me sentar no teu colo.»
A Maria do sul
O Mário telefonou-me na véspera de eu viajar para Las Vegas. Resumindo, disse para não ir ter com ele. Tudo estava a correr bem. Aliás, não ia demorar muito tempo por lá.
«Olha, António, há um segundo caderno.»
«E não me disseste nada?»
«A Mónica sabe onde está. Não a culpes. Fui eu que lhe pedi para o guardar e que não revelasse a sua existência. Nem sequer a ti.»
«E leu-o?»
«Não. Está dentro de um envelope lacrado.»
«Portanto, é secreto.»
«Sim. Ou melhor: foi até agora. Lê e publica, se achares que vale a pena.»
«É sobre o destino da Maria?»
«Sim. E não só...»
«E porquê agora?»
«Pensa bem, António.»
«Vou pensar. Quando voltas?»
«Não sei.»
«E a Alexandra? Ela gosta de ti.»
«Nada nos prende. Diz-lhe que...»
«Que?»
«Um abraço para todos. Adeus.»
Hoje fui a Setúbal. Não vi a Maria. Não vi os seus cabelos longos, soltos ao vento. Há quase cinco anos que não a vejo. Os seus cabelos, o corpo moreno e esbelto, os olhos assustados de gazela. Há quase cinco anos.
Como era a sua voz?Esqueci. Entretanto esqueci-me de a procurar. Já não sonhava com ela. Estava preso a outro sonho, este que tinha a ver com uma gaiola dourada. Esqueci-me de a procurar, mas hoje fui a Setúbal. É domingo. Talvez não tenha escolhido bem o dia. Aliás, não escolhi porque o destino era outro. Estremoz. Talvez o restaurante do Isaías. De certeza o lago do Gadanha. Mas não sei com aconteceu. De repente dei comigo em Setúbal, cidade de Bocage e da Luísa Todi.
Sinto-me enganado. Perdi os meus anos de ouro com a Anabela. Fui o único culpado porque deixei-me envolver na teia duma aranha cujos efeitos já conhecia. Bem me dizia o Alfredo.
«Tem cuidado, Mário! Ela é uma predadora.»
E eu?, quem sou senão outro predador?
Ou quem fui. O tempo é outro. Elas já não correm atrás de mim. Aos poucos vou envelhecendo na segurança de um pôr do sol seguro e que perdeu há algum tempo a poesia e o calor. Um pôr do sol que soa a falso. A Anabela sabe. Mais tarde ou mais cedo vai dar o golpe, depois das tentativas que esboçou. Está à espera de uma oportunidade. Ela e a força do seu dinheiro. De facto o tempo é outro. Agora sou mais um leão cansado, dormitando ao pôr do sol, do que um predador.
Voltando à Maria, parece que não respondeu ao meu apelo. Mais uma vez não veio ao meu encontro. Nem sequer a vi passar por mim, correndo de braços abertos, talvez rumando para outro futuro.
Que esperava?
Hoje os meus poderes não existem.
Ontem, o que significa há muitos dias.
«És bruxo?»
«O que aconteceu?»
«Ia no carro muito distraída a ouvir música de uma cassete que me ofereceste e quase tive um acidente!»
Lembrava-me. Na véspera, já depois das dez da noite tínhamos saído juntos da escola, até que cada um seguiu para o seu carro.
Sem saber porquê, disse-lhe:
«Tem cuidado!»
Ela voltou-se e perguntou, algo admirada:
«Porquê?»
«Tem cuidado.» Repeti.
E agora vinha com aquela conversa...
«Um carro dos bombeiros surgiu de repente no cruzamento e quase chocámos. Tudo porque tinha a música muito alta.»
Não sei se já casou. Se tem o tal filho que não é filho. Talvez uma menina, como previ, ou ninguém. Não sei se mora no mesmo casarão verde, de um verde já queimado pelo tempo. Só sei que o desejo foi forte, mas não chegou a ser tão forte como o grito.
Mário, Maria e a amizade
Difícil de compreender. O comboio já não era o mesmo. Quanto ao destino da viagem estava para além de Aveiro, cuja estação desapareceu da vista num instante. O "Alfa Pendular" ganhava velocidade. Se não houvesse qualquer contratempo estaria no Porto ainda antes da hora do almoço.
Olhei pelo vidro do comboio o Vouga prestes a lançar as suas águas agora salgadas no Atlântico. Afinal Aveiro e o "Galo de Ouro" não tinham sido a concretização do meu objetivo nesta viagem que começara em Lisboa.
Ou aconteceu?
Não me lembro. De repente fiquei com a visão nublada e deixei de ver a posição erótica da Leta, apelativa para acontecimentos que sabia muito bem quais eram. Era já passado, quer tivesse acontecido ou não o salto no tempo. Mas tinha o seu quê de verdade.
Agora a realidade era outra e tudo apontava que estava noutro tempo mais recente, à procura de não sei o quê. Guardava boas recordações do Porto dos anos sessenta desde o momento em que me apresentei no quartel do CICA 1 para cumprir a recruta com soldado-cadete, intruso numa elite de jovens bem protegidos por altos interesses que não são chamados para aqui, porque a história agora é outra.
Mas se é outra, então qual é esta a história?
Não me ocorria, por mais voltas que desse à cabeça.
Fechei os olhos e tentei descansar nos poucos minutos que faltavam para avistar a ponte de São João, inaugurada em 1991 e que foi substituir a bela e centenária ponte metálica Dona Maria Pia, uma das obras primas de Gustavo Eiffel.
Acordei ao dar conta do abrandamento da velocidade, à aproximação de Vila Nova de Gaia. Pouco depois atravessava o Douro que se mostrou aos meus olhos com toda sua beleza e esplendor. O destino final era Campanhã, mas não sabia se a partir daí toda a trama da história se ia desenrolar. Tinha apenas uma certeza. Campanhã estava cada vez mais próxima e era aí que tinha de sair, talvez para me dirigir até ao centro do Porto, ou seguir viagem. Logo se veria quando descesse do Alfa, o que não demorou muito a acontecer.
Já na gare, olhei em todas as direções à procura de um sinal. Por exemplo, alguém que estivesse à minha espera, como acontecia nos filmes. Mas eu não seguia um guião. O mais certo era tomar um táxi e seguir para o centro. O saco Samsonite cinzento escuro que trazia era uma pequena pista. Tinha um lugar marcado num hotel ou pensão, ou então alguém esperava por mim. A segunda hipótese era a mais agradável, mas parece que não tinha sorte.
Atravessei o átrio em direção à saída e fui à procura de um táxi. E lá estavam eles. Alinhados. À espera dos clientes.
«Mário!»
Olhei em volta num ângulo de cento e oitenta graus até que a vi. Uma mulher de cabelo curto, corpo esbelto, calças de ganga muito cingidas às pernas acenava-me com vigor, embora exibisse um meio sorriso. Devia andar pelos cinquenta, mais ano menos ano.
Numa fração de segundo senti que aquele momento era um ensaio geral de um espetáculo que nunca subiria à cena. Foi por isso que olhei para trás, não fosse ela estar a cumprimentar alguém que também se chamava Mário.
Estávamos já frente a frente.
«Então, não me abraças?»
Mas quem era aquela mulher que aparentava tanta familiaridade comigo?
Não tive tempo. Já ela se cingia ao meu corpo e encostava o rosto ao meu.
«Estou zangada, contigo, Mário. Saíste de casa sem avisares e estiveste uma semana fora. Apenas me enviaste o SMS a dizer que chegavas no Alfa às onze e meia. Mas já não estou zangada. Não consigo, Mário. Amo-te muito!»
Estava em maus lençóis. Aquela mulher não me dizia nada. Muito menos os lábios muito pintados com um horrível batom vermelho. E as unhas azuis não faziam o meu género. Que me chamassem bota de elástico, ou coisa pior. O que sentia era para vir cá para fora.
«Vamos para o carro. Depois contas à tua Maria o que aconteceu para partires assim de surpresa. Não parece coisa tua.»
Chamava-se Maria e tinha cabelos curtos.
«Está bem, Maria. Eu conto-te tudo. Mas primeiro vamos almoçar. Diz-me onde queres ir. Não interessa o preço. É a compensação por ter-te deixado preocupada.»
«O prémio de consolação. Tens outra, Mário?»
«Já chega uma para me atazanar o juízo.»
Mas que sarilho era este em que estava metido?
Tudo levava a crer que a Maria era a minha companheira e eu considerava-me um solteirão.
Tinha uma imensa sensação de culpa por ter trazido de Lisboa aquele saco Samsonite.
Certamente ela ia perguntar porque vinha com aquele saco de viagem pela mão se só ia ficar um dia no Porto.
Desci do Alfa e dirigi-me ao átrio de entrada. Conheci-a na net, tinha fotografias suas, mas era diferente reconhecê-la de imediato. A não ser que me acenasse, ou isso.
Bingo!
Era ela a acenar-me. Nada feia, mas com um ar de provinciana. Bem me disse o Raul quando lhe mostrei as fotografias.
«Estás parvo ou quê?»
«Depois dizes-me.»
«Mário!»
Fomos ao encontro um do outro.
«Então és tu que estás na minha frente. A mulher de quem apaixonei em dois dias depois de diálogos trocados na tela dos corações caídos.»
Beijei-a na face. Mais era impossível. Afinal, tive um sonho acordado antes de estarmos frente a frente.
«Não falemos disso, Mário. Bem sabes que tenho uma grande amizade por ti e só amizade. Põe isso na tua cabeça romântica. Sabes o motivo.»
«Eu sei. E se não puder esconder os meus pensamentos?»
«Compreendo, mas não gosto de ouvir.»
«Vou esforçar-me.»
«Olha, tenho o carro lá fora, numa rua perto.»
Achei a receção algo fria, mas não me admirei. A Maria era assim. Pelo menos parecia. Enquanto trocámos as primeiras palavras ao vivo, nada mudou no que sentia por aquela mulher. Antes pelo contrário.
«Fizeste boa viagem?»
«Sim. Nada cansativa.»
«Ainda bem.»
Curiosamente não estava a deixar transparecer qualquer sinal de nervosismo por ser aquele o primeiro encontro. Mas era natural. Se não estava a mentir, e acreditava porque a Maria detestava a mentira, sentir apenas amizade por alguém não era o mesmo que sentir amor. Esse sentimento sim, fazia o coração bater mais acelerado e acrescentava outro ingrediente que era a ansiedade.
«És mais bonita ao vivo. Fica-te bem a pintura nos olhos e sobretudo o realce que esse batom vermelho vivo dá aos lábios. Torna-os ainda mais sedutores do que já são.»
«Mário! Já combinámos que só há amizade entre nós.»
«Desculpa. Vou tentar não repetir.»
Entrámos para o carro.
«Não rias desta pileca que nada tem a ver com o teu Golf.»
«Não rio. Para onde vamos?»
«Tenho o almoço já feito, mas preciso ainda de passar pelo Continente.»
«Tu mandas, Maria.»
«Sou Touro. Gosto de mandar.»
«E eu Leão. Não gosto de obedecer.»
Sorrimos. Vi pela primeira vez o seu sorriso aberto.»
«Ficas mais atraente quando sorris.»
«Mário!»
«Pronto. Já cá não está esse Mário que falou.»
Olhou para mim e voltou a sorrir. Certamente que começara a fazer o primeiro exame ao vivo a um homem por quem só podia nutrir simpatia.
E porquê?
Muito simples, mas difícil de entender. Porque ainda gostava de um homem que a trocou por outra mulher. E isso eu não compreendia. As mulheres sentem despeito quando são preteridas e ela continuava a falar do amante como se este fosse a melhor coisa do mundo. Um deus e tudo isso. Bem tentei nos nossos diálogos que tivemos na tela, e nas longas conversas ao telefone, que ela abrisse os olhos para a realidade. Eu não ia esperar eternamente. Um dia, por mais que gostasse dela, partiria para outra.
Continente. Uma perdição para o consumidor. Atrás das promoções estão outros impulsos. E eu que o diga neste primeiro dia de compras a dois.
Deixei que a Maria fizesse as primeiras compras e passei depois ao ataque quando coloquei no carrinho uma garrafa de "Monte Velho" tinto (13,5º), pois sabia que a Maria gostava de vinho tinto. De seguida peguei num garrafão de três litros de bom azeite.
«Esporão. É ótimo, não achas?»
Começava uma forma de sedução.
«E o preço também, Mário.»
«Faço questão. Tenho um vale de mais de sessenta euros para gastar.
«Ah sim. Já tinhas dito.»
Lembrei-me. Aconteceu numa das últimas conversas intermináveis que tínhamos tido pelo telefone. É que o tempo voava sem darmos por isso. De tal forma, que uma vez já passava das cinco da manhã e fiz um reparo natural.
«Já viste as horas que são, Maria?»
«Estás a mandar-me embora, Mário?»
«Por amor de Deus. Nunca me canso de falar contigo.»
E ela só nutria amizade por mim.
«Desculpa.»
Queria entender e não conseguia.
Pus no carrinho mais três ou quatro artigos que achei conveniente comprar. Então a Maria ganhou coragem e aventurou-se com dois artigos que não ficaram atrás em preço e qualidade. Respondi com um paio de Portalegre, requeijão e doce de abóbora com pinhões.
«É muito bom este doce de abóbora, Maria.»
«Por acaso já comprei um vez. O doce é muito bom.»
«Falta mais alguma coisa?»
«Não me lembro.»
Fui buscar outra garrafa de tinto. Sabia que ela era bom copo e assim tentava conquistá-la com um golpe baixo.
Que grande safado me saíste, Mário!
A despesa ultrapassou cento e cinquenta euros. Tirando os cerca de sessenta e cinco euros, o estrago ficou por oitenta e cinco.
«Nunca pensei!»
«Deixa, vão aqui coisas boas. Não te preocupes que eu também não.»
Na minha mente analítica passaram alguns momentos em que a vi marcar golos na posição de offside ao contribuir com a entrada de alguns artigos no carrinho, mas era cedo para me considerar o pato da história. Daí não sentir suores frios quando paguei a conta do supermercado.
«Precisamos de ir a outro sítio?»
«Olha, quero comprar bolos. Gostas de jesuítas?»
«Por acaso nunca provei.»
«Mas pago eu, certo?»
«Está bem.»
Não demorou que chegássemos a casa.
Comemos um suculento naco de porco assado no forno, acompanhado de batatas, arroz e esparregado.
A viagem tinha-me tirado o apetite, mas nem por isso deixei de fazer elogios durante a refeição.
«Afinal comi mais do que tu. Quando falámos das nossas refeições fazias sempre menção do facto de eu comer pouco e não te agradar ver-me magrinha quando nos encontrássemos.»
«Tens toda a razão, Maria. E não te acho magrinha. Tens as proporções certas.»
«Mário!»
Vi-a corar pela primeira vez.
«De facto comeste mais do que eu. A carne e o respetivo acompanhamento estavam uma delícia. A viagem é que me tirou o apetite...»
Quanto à garrafa de "Monte Velho", essa ficou vazia e a minha amiga abriu a outra. O álcool desinibia.
Leta...
Senti o comboio abrandar a velocidade e espreitei pela janela tentando identificar a estação da próxima paragem. O comboio era regional e ia parando sucessivamente nas estações e apeadeiros.
«Estamos a chegar a Aveiro, Luísa. Eu levo a mala mais pesada. Anda, despacha-te.» Disse um passageiro para a companheira gorda que ganhava forças para se levantar do assento.
Aveiro. Levantei-me e encaminhei-me para a saída mais próxima. Pelos vistos era o meu destino, quer quisesse quer não.
A carruagem ficou em frente a uma das portas da estação. Pouco depois estava no exterior da estação, do outro lado, e a caminho de um destino que não tinha escolhido conscientemente.
«Então o que temos, Mário?» perguntei, num sussurro.
Encolhi os ombros. Provavelmente tinha feito uma saída em falso. Paciência. Ficava a conhecer Aveiro e afinal já não ia ao Porto.
Hesitei no rumo a seguir. Como é vulgar dizer-se, estava nitidamente às escuras. Coisa estranha. Nunca me tinha acontecido.
«Deixa-te ir, Mário. Alguma coisa há de acontecer.»
Mas outro pensamento, mais cauteloso, dizia:
«Procura um café e senta-te. Talvez te recordes de algum acontecimento.»
Venceu o primeiro impulso. Continuar ao acaso durante mais algum tempo. Logo se via.
E viu-se. Pareceu-me que dei uma volta em círculo pois fui ter outra vez à estação.
«Bonito, Mário. Assim vais longe...»
Mas quem procurava?
Resolvi seguir um trajeto diferente, mas continuei a andar à toa por ruas que não conhecia. À medida que tempo passava sentia uma irritação crescente.
«Vejamos... quero um indício. Só um indício, por mais fraco que seja. Vamos lá, pensa, Mário. Porra!, abre-me esses olhos.»
Foi então que li:
«Restaurante Galo de Ouro.»
Não sabia porquê nem como, mas estava a ser arrastado na direção do restaurante. Que soubesse, já tinha almoçado. E que bem se comia no verão na messe dos oficiais! O pior era quando a mulher do comandante entrava e todo o pessoal se levantava como que impulsionado por uma mola. A seguir, tocava a sentar. Uma garfada e vinha a filha do comandante, uma trintona "upa upa" que andava à procura de noivo. Levanta-te. Sorri para a filha do comandante e senta-te. E a cena a repetir-se vezes sem fim com a comida a arrefecer no prato.
Dei alguns passos até que fiquei junto à porta. Pelos vistos não havia clientes. E era natural. Já passava das três da tarde.
Ia entrar no restaurante?
Era imperativo. Mas não para almoçar. Apenas devia entrar no restaurante.
Que impulso mais estranho!
Empurrei a porta e espreitei mesmo. A sala de refeições estava numa meia-luz que não pressagiava coisa boa.
Dei alguns passos e tentei adaptar a vista. Ao fundo, junto à cozinha, vi quatro ou cinco pessoas sentadas.
«Mário!»
Uma jovem, vestida de negro, aproximou-se de mim. O cabelo curto valorizava-a.
Num repente abraçou-me. Senti o contacto do seu peito no meu. Só que o meu não tinha montes nem vales.
«Que surpresa, meu amigo! Bem disseste que um dia vinhas ver-me.»
«Sim. Da Figueira até aqui não são muitos quilómetros. Mas...»
Estava como um peixe fora de água.
«Olha, quero apresentar-te alguns familiares. O momento é muito doloso. Faleceu o meu tio e viemos há pouco do funeral.»
«Perdão, não sabia. Os meus sentidos pêsames para todos. Então volto noutra altura.»
«Pelo amor de Deus, Mário. A vida continua. Vamos apanhar um pouco de ar e entretanto conversamos. Já tinha saudades tuas, sabes? Como vai a tua tropa na Figueira? Já me disseste numa carta que eras aspirante.»
Então eu continuei a trocar cartas com ela. Cartas para uma desconhecida, por tinha a certeza que nunca vira aquele rosto.
«Leta, come ao menos alguma coisa com o teu amigo e depois vão à vossa vida.» Disse uma senhora com lenço preto na cabeça que aparentava ter cinquenta anos.
Deduzi que era a viúva.
«Deixe, tia, obrigada. Como qualquer coisa lá fora com o Mário. Vamos então?»
«Sim.»
Fiz uma ligeira vénia às pessoas presentes e apressei-me a seguir a jovem.
Já no exterior, mirei-a de alto a baixo. Leta. Agora estava a compreender o equívoco de ter passado pelo parque de campismo da Nazaré. E lembrava-me dela. Da Leta, que era aluna interna do colégio de Nun'Álvares em Tomar e que a jovem escolhera para seu confidente. Cartas trocadas com frequência como se fôssemos dois namorados. Cartas em que me contava a sua vida quase de freira no internato, segundo ela uma grande escola para se aprenderem os maus princípios e não só os assuntos escolares. Mas era o que os seus pais queriam.
«Calcula que algumas até saem à noite para irem ter com os namorados!» contou-me um dia.
«Queres tomar qualquer coisa, Mário?»
«Sim. Acho bem. E assim podemos ter oportunidade para nos conhecermos melhor.» Respondi, frisando as duas últimas palavras.
«Olha, pode ser nesta esplanada.»
Acenei com a cabeça num gesto de concordância e pedi-lhe para seguir à minha frente.
«Antes de mais, sou eu que pago. Afinal és meu convidado. Noutras circunstâncias teríamos ficado no restaurante do meu tio. Ficamos nesta mesa?»
«Tanto faz, Leta.»
Deixei que se sentasse primeiro. Interessante, a miúda. Não tinha mais que dezassete anos. Mas havia qualquer coisa que não batia certo. Claro que não mancava de uma perna ou isso e que não era jovem para se deitar fora. Só que senti uma pedra virtual no sapato. E neste caso coisa difícil de tirar.
«Desculpa-me, Mário.»
Pareceu ganhar coragem. Por coincidência estava na nossa frente um empregado do café a servir de interlúdio.
«Para mim uma sande mista e uma laranjada. E tu, que tomas?»
«Apenas um café. O meu almoço foi pesado. Sopa e dois pratos, calcula. No verão come-se bem na messe por causa dos oficiais que vão passar férias à Figueira.»
O empregado afastou-se.
«E pagam mais por isso?»
«Claro que não. Mas estavas a pedir desculpa. Porquê?»
Já sabia a resposta, mas deixei que falasse. Era o princípio da minha pequena vingança.
«Esperavas outra pessoa?»
«Claro que não. Esperava a Leta, a minha amiguinha por quem nutro uma especial amizade e que tentei proteger, nas cartas que trocámos, com conselhos de irmão mais velho. Não sei se ela os seguiu. Seguiste os meus conselhos, Leta?»
Acenou afirmativamente com a cabeça.
«E que agradeço muito. Se não fosses tu a abrir-me os olhos teria sido levada na onda. Nem imaginas o que se passa naqueles quartos! Houve muita coisa que não te contei.»
«Não te esqueças que me contaste tudo. Ou quase tudo. Se há mais, por exemplo...?»
«Abortos.»
«Verdade?»
«Sim. Mas deixemos isso.»
«Então o que temos?»
Adivinhava o que ia seguir-se.
«Não sei se me vais perdoar.»
«Estou a ficar preocupado.»
«Desculpa-me, Mário, mas a fotografia que te enviei é de uma colega. Como vês não sou loura.»
O empregado colocou sobre a mesa um prato com a sande, a laranjada e o café.
«Já trago os guardanapos. Com licença.»
«E pode levar o cinzeiro.» Disse ela. «Nós não fumamos. Pois não, Mário?»
«Deixa-me ver se há vestígios...»
A jovem Leta sorriu e aproximou o rosto até se encostar ao meu. A proximidade perturbou-me. Um homem não era de ferro, caraças!
«Estás a corar, Mário!»
«Eu?»
O empregado ainda estava nas proximidades.
«Quer que pague já?» perguntei.
«Claro que não. Conheço a menina. Já fui empregado no restaurante do seu tio que Deus tem. Desculpem.»
Afastou-se. Ficámos a sorrir um para o outro.
«Um admirador teu?»
«Talvez, mas só para te fazer ciúmes. Claro que não. Só penso numa pessoa.»
«No teu namorado?»
«Achas?»
Pegou-me nas mãos e acariciou-as.
«Ainda não me disseste se me perdoavas...»
«E se não te perdoar?»
«Vá lá, não me faças sofrer!»
«Não te esqueças da sande.»
Tentei arrefecer o momento. A proximidade do corpo da aquecia-me ao rubro.
«É verdade.»
O empregado trouxe os guardanapos de papel e desta vez afastou-se logo. Tinha aprendido a lição.
De momento estava entusiasmado com a jovem Leta. Mas todo o cuidado era pouco. Não podia resvalar.
«Não te deixes ir na onda, Mário. Ela só tem dezassete anos!»
«Não chegaste a ir visitar-me ao parque de campismo.»
«Foi por isso que deixaste de escrever. E se eu te disser que fui ao parque de campismo?»
«Foste mesmo?»
«Fui.»
«E porque não foste ter comigo?» perguntei, agora sério. «Afinal de contas só tu me conhecias...»
«É verdade. Mas vi-te com companhia. E que companhia! Uma linda mulher de cabelos compridos, uns bons anos mais velha que tu.»
«Era uma amiga.»
«Morde aqui. De mãos dadas?»
«Nunca mais a vi.»
«Fumo de verão?»
«Mais ou menos. Mas não compreendo porque não me falaste. Afinal és a minha amiguinha que sempre protegi.»
Fez um sinal ao empregado. Eu antecipei-me, quando este se aproximou e pus-lhe na mão uma nota de vinte.
«Mau mau.»
«Pagas para a próxima.»
Levantámo-nos.
«De que morreu o teu tio?»
«Um brutal acidente de carro...»
«Oh!»
Consultei o relógio.
«Já seis horas!»
«Não me digas que não ficas cá? É fim de semana, Mário!»
«Não trouxe roupa.»
«É simples.»
«Simples?»
«Compras o essencial. E sei de uma pensão decente e barata. Faz isso por mim, Mário!»
«Leta!»
«Pela nossa amizade.»
Só amizade?
Acabei por ceder.
«E onde é essa tal pensão?»
«Que bom, Mário. Só vais no domingo à noite...»
Deitou-se sobre a cama, pôs as mãos na nuca e dobrou ligeiramente as pernas.
«Temos o caldo entornado.» Pensei.
Sentei-me a seu lado.
«Tu és uma rapariga bonita, Leta. Aquela fotografia da outra... não entendo.»
«Costumávamos fazer isso. Trocávamos as fotos. Não sabíamos quem íamos conhecer.»
Aproximei-me mais dela e enfrentei o seu rosto sério.
Caldo mais que entornado.
«E nunca me contaste!»
«Tinha receio que não gostasses de mim porque me imaginavas na Aline.»
«Mas éramos só dois amigos! Aline?»
«Sim. A rapariga da fotografia. Uma das minhas colegas de quarto. Mas deixemos isso. Há outras coisa mais importantes.»
Soergueu-se e levou as duas mãos delicadas ao meu rosto. O caldo entornou-se todo.
«Leta!»
«És o primeiro. Sê meigo.»
Ainda por cima com menos de dezoito anos. Estava a chegar a um beco sem saída. Ainda era muito novo para me comprometer num casamento que não sabia se resultava. Queria gozar a vida. Ganhar experiência. Conhecer outros horizontes.
«Mário... vem! Mas onde vais?»
O ideal era ir à rua comprar fósforos.
«Vou só à casa de banho, Leta.»
Demorei tanto ou tão pouco que a Leta teve tempo de empurrar a porta e aparecer na minha frente, tal Eva sem parra.
E agora, Mário?
Senti o comboio abrandar a velocidade e espreitei pela janela tentando identificar a estação da próxima paragem. O comboio era regional e ia parando sucessivamente nas estações e apeadeiros.
«Estamos a chegar a Aveiro, Luísa. Eu levo a mala mais pesada. Anda, despacha-te.» Disse um passageiro para a companheira gorda que ganhava forças para se levantar do assento.
Aveiro. Levantei-me e encaminhei-me para a saída mais próxima. Pelos vistos era o meu destino, quer quisesse quer não.
A carruagem ficou em frente a uma das portas da estação. Pouco depois estava no exterior da estação, do outro lado, e a caminho de um destino que não tinha escolhido conscientemente.
«Então o que temos, Mário?» perguntei, num sussurro.
Encolhi os ombros. Provavelmente tinha feito uma saída em falso. Paciência. Ficava a conhecer Aveiro e afinal já não ia ao Porto.
Hesitei no rumo a seguir. Como é vulgar dizer-se, estava nitidamente às escuras. Coisa estranha. Nunca me tinha acontecido.
«Deixa-te ir, Mário. Alguma coisa há de acontecer.»
Mas outro pensamento, mais cauteloso, dizia:
«Procura um café e senta-te. Talvez te recordes de algum acontecimento.»
Venceu o primeiro impulso. Continuar ao acaso durante mais algum tempo. Logo se via.
E viu-se. Pareceu-me que dei uma volta em círculo pois fui ter outra vez à estação.
«Bonito, Mário. Assim vais longe...»
Mas quem procurava?
Resolvi seguir um trajeto diferente, mas continuei a andar à toa por ruas que não conhecia. À medida que tempo passava sentia uma irritação crescente.
«Vejamos... quero um indício. Só um indício, por mais fraco que seja. Vamos lá, pensa, Mário. Porra!, abre-me esses olhos.»
Foi então que li:
«Restaurante Galo de Ouro.»
Não sabia porquê nem como, mas estava a ser arrastado na direção do restaurante. Que soubesse, já tinha almoçado. E que bem se comia no verão na messe dos oficiais! O pior era quando a mulher do comandante entrava e todo o pessoal se levantava como que impulsionado por uma mola. A seguir, tocava a sentar. Uma garfada e vinha a filha do comandante, uma trintona "upa upa" que andava à procura de noivo. Levanta-te. Sorri para a filha do comandante e senta-te. E a cena a repetir-se vezes sem fim com a comida a arrefecer no prato.
Dei alguns passos até que fiquei junto à porta. Pelos vistos não havia clientes. E era natural. Já passava das três da tarde.
Ia entrar no restaurante?
Era imperativo. Mas não para almoçar. Apenas devia entrar no restaurante.
Que impulso mais estranho!
Empurrei a porta e espreitei mesmo. A sala de refeições estava numa meia-luz que não pressagiava coisa boa.
Dei alguns passos e tentei adaptar a vista. Ao fundo, junto à cozinha, vi quatro ou cinco pessoas sentadas.
«Mário!»
Uma jovem, vestida de negro, aproximou-se de mim. O cabelo curto valorizava-a.
Num repente abraçou-me. Senti o contacto do seu peito no meu. Só que o meu não tinha montes nem vales.
«Que surpresa, meu amigo! Bem disseste que um dia vinhas ver-me.»
«Sim. Da Figueira até aqui não são muitos quilómetros. Mas...»
Estava como um peixe fora de água.
«Olha, quero apresentar-te alguns familiares. O momento é muito doloso. Faleceu o meu tio e viemos há pouco do funeral.»
«Perdão, não sabia. Os meus sentidos pêsames para todos. Então volto noutra altura.»
«Pelo amor de Deus, Mário. A vida continua. Vamos apanhar um pouco de ar e entretanto conversamos. Já tinha saudades tuas, sabes? Como vai a tua tropa na Figueira? Já me disseste numa carta que eras aspirante.»
Então eu continuei a trocar cartas com ela. Cartas para uma desconhecida, por tinha a certeza que nunca vira aquele rosto.
«Leta, come ao menos alguma coisa com o teu amigo e depois vão à vossa vida.» Disse uma senhora com lenço preto na cabeça que aparentava ter cinquenta anos.
Deduzi que era a viúva.
«Deixe, tia, obrigada. Como qualquer coisa lá fora com o Mário. Vamos então?»
«Sim.»
Fiz uma ligeira vénia às pessoas presentes e apressei-me a seguir a jovem.
Já no exterior, mirei-a de alto a baixo. Leta. Agora estava a compreender o equívoco de ter passado pelo parque de campismo da Nazaré. E lembrava-me dela. Da Leta, que era aluna interna do colégio de Nun'Álvares em Tomar e que a jovem escolhera para seu confidente. Cartas trocadas com frequência como se fôssemos dois namorados. Cartas em que me contava a sua vida quase de freira no internato, segundo ela uma grande escola para se aprenderem os maus princípios e não só os assuntos escolares. Mas era o que os seus pais queriam.
«Calcula que algumas até saem à noite para irem ter com os namorados!» contou-me um dia.
«Queres tomar qualquer coisa, Mário?»
«Sim. Acho bem. E assim podemos ter oportunidade para nos conhecermos melhor.» Respondi, frisando as duas últimas palavras.
«Olha, pode ser nesta esplanada.»
Acenei com a cabeça num gesto de concordância e pedi-lhe para seguir à minha frente.
«Antes de mais, sou eu que pago. Afinal és meu convidado. Noutras circunstâncias teríamos ficado no restaurante do meu tio. Ficamos nesta mesa?»
«Tanto faz, Leta.»
Deixei que se sentasse primeiro. Interessante, a miúda. Não tinha mais que dezassete anos. Mas havia qualquer coisa que não batia certo. Claro que não mancava de uma perna ou isso e que não era jovem para se deitar fora. Só que senti uma pedra virtual no sapato. E neste caso coisa difícil de tirar.
«Desculpa-me, Mário.»
Pareceu ganhar coragem. Por coincidência estava na nossa frente um empregado do café a servir de interlúdio.
«Para mim uma sande mista e uma laranjada. E tu, que tomas?»
«Apenas um café. O meu almoço foi pesado. Sopa e dois pratos, calcula. No verão come-se bem na messe por causa dos oficiais que vão passar férias à Figueira.»
O empregado afastou-se.
«E pagam mais por isso?»
«Claro que não. Mas estavas a pedir desculpa. Porquê?»
Já sabia a resposta, mas deixei que falasse. Era o princípio da minha pequena vingança.
«Esperavas outra pessoa?»
«Claro que não. Esperava a Leta, a minha amiguinha por quem nutro uma especial amizade e que tentei proteger, nas cartas que trocámos, com conselhos de irmão mais velho. Não sei se ela os seguiu. Seguiste os meus conselhos, Leta?»
Acenou afirmativamente com a cabeça.
«E que agradeço muito. Se não fosses tu a abrir-me os olhos teria sido levada na onda. Nem imaginas o que se passa naqueles quartos! Houve muita coisa que não te contei.»
«Não te esqueças que me contaste tudo. Ou quase tudo. Se há mais, por exemplo...?»
«Abortos.»
«Verdade?»
«Sim. Mas deixemos isso.»
«Então o que temos?»
Adivinhava o que ia seguir-se.
«Não sei se me vais perdoar.»
«Estou a ficar preocupado.»
«Desculpa-me, Mário, mas a fotografia que te enviei é de uma colega. Como vês não sou loura.»
O empregado colocou sobre a mesa um prato com a sande, a laranjada e o café.
«Já trago os guardanapos. Com licença.»
«E pode levar o cinzeiro.» Disse ela. «Nós não fumamos. Pois não, Mário?»
«Deixa-me ver se há vestígios...»
A jovem Leta sorriu e aproximou o rosto até se encostar ao meu. A proximidade perturbou-me. Um homem não era de ferro, caraças!
«Estás a corar, Mário!»
«Eu?»
O empregado ainda estava nas proximidades.
«Quer que pague já?» perguntei.
«Claro que não. Conheço a menina. Já fui empregado no restaurante do seu tio que Deus tem. Desculpem.»
Afastou-se. Ficámos a sorrir um para o outro.
«Um admirador teu?»
«Talvez, mas só para te fazer ciúmes. Claro que não. Só penso numa pessoa.»
«No teu namorado?»
«Achas?»
Pegou-me nas mãos e acariciou-as.
«Ainda não me disseste se me perdoavas...»
«E se não te perdoar?»
«Vá lá, não me faças sofrer!»
«Não te esqueças da sande.»
Tentei arrefecer o momento. A proximidade do corpo da aquecia-me ao rubro.
«É verdade.»
O empregado trouxe os guardanapos de papel e desta vez afastou-se logo. Tinha aprendido a lição.
De momento estava entusiasmado com a jovem Leta. Mas todo o cuidado era pouco. Não podia resvalar.
«Não te deixes ir na onda, Mário. Ela só tem dezassete anos!»
«Não chegaste a ir visitar-me ao parque de campismo.»
«Foi por isso que deixaste de escrever. E se eu te disser que fui ao parque de campismo?»
«Foste mesmo?»
«Fui.»
«E porque não foste ter comigo?» perguntei, agora sério. «Afinal de contas só tu me conhecias...»
«É verdade. Mas vi-te com companhia. E que companhia! Uma linda mulher de cabelos compridos, uns bons anos mais velha que tu.»
«Era uma amiga.»
«Morde aqui. De mãos dadas?»
«Nunca mais a vi.»
«Fumo de verão?»
«Mais ou menos. Mas não compreendo porque não me falaste. Afinal és a minha amiguinha que sempre protegi.»
Fez um sinal ao empregado. Eu antecipei-me, quando este se aproximou e pus-lhe na mão uma nota de vinte.
«Mau mau.»
«Pagas para a próxima.»
Levantámo-nos.
«De que morreu o teu tio?»
«Um brutal acidente de carro...»
«Oh!»
Consultei o relógio.
«Já seis horas!»
«Não me digas que não ficas cá? É fim de semana, Mário!»
«Não trouxe roupa.»
«É simples.»
«Simples?»
«Compras o essencial. E sei de uma pensão decente e barata. Faz isso por mim, Mário!»
«Leta!»
«Pela nossa amizade.»
Só amizade?
Acabei por ceder.
«E onde é essa tal pensão?»
«Que bom, Mário. Só vais no domingo à noite...»
Deitou-se sobre a cama, pôs as mãos na nuca e dobrou ligeiramente as pernas.
«Temos o caldo entornado.» Pensei.
Sentei-me a seu lado.
«Tu és uma rapariga bonita, Leta. Aquela fotografia da outra... não entendo.»
«Costumávamos fazer isso. Trocávamos as fotos. Não sabíamos quem íamos conhecer.»
Aproximei-me mais dela e enfrentei o seu rosto sério.
Caldo mais que entornado.
«E nunca me contaste!»
«Tinha receio que não gostasses de mim porque me imaginavas na Aline.»
«Mas éramos só dois amigos! Aline?»
«Sim. A rapariga da fotografia. Uma das minhas colegas de quarto. Mas deixemos isso. Há outras coisa mais importantes.»
Soergueu-se e levou as duas mãos delicadas ao meu rosto. O caldo entornou-se todo.
«Leta!»
«És o primeiro. Sê meigo.»
Ainda por cima com menos de dezoito anos. Estava a chegar a um beco sem saída. Ainda era muito novo para me comprometer num casamento que não sabia se resultava. Queria gozar a vida. Ganhar experiência. Conhecer outros horizontes.
«Mário... vem! Mas onde vais?»
O ideal era ir à rua comprar fósforos.
«Vou só à casa de banho, Leta.»
Demorei tanto ou tão pouco que a Leta teve tempo de empurrar a porta e aparecer na minha frente, tal Eva sem parra.
E agora, Mário?
Mário, Maria e a amizade
Difícil de compreender. O comboio já não era o mesmo. Quanto ao destino da viagem estava para além de Aveiro, cuja estação desapareceu da vista num instante. O "Alfa Pendular" ganhava velocidade. Se não houvesse qualquer contratempo estaria no Porto ainda antes da hora do almoço.
Olhei pelo vidro do comboio o Vouga prestes a lançar as suas águas agora salgadas no Atlântico. Afinal Aveiro e o "Galo de Ouro" não tinham sido a concretização do meu objetivo nesta viagem que começara em Lisboa.
Ou aconteceu?
Não me lembro. De repente fiquei com a visão nublada e deixei de ver a posição erótica da Leta, apelativa para acontecimentos que sabia muito bem quais eram. Era já passado, quer tivesse acontecido ou não o salto no tempo. Mas tinha o seu quê de verdade.
Agora a realidade era outra e tudo apontava que estava noutro tempo mais recente, à procura de não sei o quê. Guardava boas recordações do Porto dos anos sessenta desde o momento em que me apresentei no quartel do CICA 1 para cumprir a recruta com soldado-cadete, intruso numa elite de jovens bem protegidos por altos interesses que não são chamados para aqui, porque a história agora é outra.
Mas se é outra, então qual é esta a história?
Não me ocorria, por mais voltas que desse à cabeça.
Fechei os olhos e tentei descansar nos poucos minutos que faltavam para avistar a ponte de São João, inaugurada em 1991 e que foi substituir a bela e centenária ponte metálica Dona Maria Pia, uma das obras primas de Gustavo Eiffel.
Acordei ao dar conta do abrandamento da velocidade, à aproximação de Vila Nova de Gaia. Pouco depois atravessava o Douro que se mostrou aos meus olhos com toda sua beleza e esplendor. O destino final era Campanhã, mas não sabia se a partir daí toda a trama da história se ia desenrolar. Tinha apenas uma certeza. Campanhã estava cada vez mais próxima e era aí que tinha de sair, talvez para me dirigir até ao centro do Porto, ou seguir viagem. Logo se veria quando descesse do Alfa, o que não demorou muito a acontecer.
Já na gare, olhei em todas as direções à procura de um sinal. Por exemplo, alguém que estivesse à minha espera, como acontecia nos filmes. Mas eu não seguia um guião. O mais certo era tomar um táxi e seguir para o centro. O saco Samsonite cinzento escuro que trazia era uma pequena pista. Tinha um lugar marcado num hotel ou pensão, ou então alguém esperava por mim. A segunda hipótese era a mais agradável, mas parece que não tinha sorte.
Atravessei o átrio em direção à saída e fui à procura de um táxi. E lá estavam eles. Alinhados. À espera dos clientes.
«Mário!»
Olhei em volta num ângulo de cento e oitenta graus até que a vi. Uma mulher de cabelo curto, corpo esbelto, calças de ganga muito cingidas às pernas acenava-me com vigor, embora exibisse um meio sorriso. Devia andar pelos cinquenta, mais ano menos ano.
Numa fração de segundo senti que aquele momento era um ensaio geral de um espetáculo que nunca subiria à cena. Foi por isso que olhei para trás, não fosse ela estar a cumprimentar alguém que também se chamava Mário.
Estávamos já frente a frente.
«Então, não me abraças?»
Mas quem era aquela mulher que aparentava tanta familiaridade comigo?
Não tive tempo. Já ela se cingia ao meu corpo e encostava o rosto ao meu.
«Estou zangada, contigo, Mário. Saíste de casa sem avisares e estiveste uma semana fora. Apenas me enviaste o SMS a dizer que chegavas no Alfa às onze e meia. Mas já não estou zangada. Não consigo, Mário. Amo-te muito!»
Estava em maus lençóis. Aquela mulher não me dizia nada. Muito menos os lábios muito pintados com um horrível batom vermelho. E as unhas azuis não faziam o meu género. Que me chamassem bota de elástico, ou coisa pior. O que sentia era para vir cá para fora.
«Vamos para o carro. Depois contas à tua Maria o que aconteceu para partires assim de surpresa. Não parece coisa tua.»
Chamava-se Maria e tinha cabelos curtos.
«Está bem, Maria. Eu conto-te tudo. Mas primeiro vamos almoçar. Diz-me onde queres ir. Não interessa o preço. É a compensação por ter-te deixado preocupada.»
«O prémio de consolação. Tens outra, Mário?»
«Já chega uma para me atazanar o juízo.»
Mas que sarilho era este em que estava metido?
Tudo levava a crer que a Maria era a minha companheira e eu considerava-me um solteirão.
Tinha uma imensa sensação de culpa por ter trazido de Lisboa aquele saco Samsonite.
Certamente ela ia perguntar porque vinha com aquele saco de viagem pela mão se só ia ficar um dia no Porto.
Desci do Alfa e dirigi-me ao átrio de entrada. Conheci-a na net, tinha fotografias suas, mas era diferente reconhecê-la de imediato. A não ser que me acenasse, ou isso.
Bingo!
Era ela a acenar-me. Nada feia, mas com um ar de provinciana. Bem me disse o Raul quando lhe mostrei as fotografias.
«Estás parvo ou quê?»
«Depois dizes-me.»
«Mário!»
Fomos ao encontro um do outro.
«Então és tu que estás na minha frente. A mulher de quem apaixonei em dois dias depois de diálogos trocados na tela dos corações caídos.»
Beijei-a na face. Mais era impossível. Afinal, tive um sonho acordado antes de estarmos frente a frente.
«Não falemos disso, Mário. Bem sabes que tenho uma grande amizade por ti e só amizade. Põe isso na tua cabeça romântica. Sabes o motivo.»
«Eu sei. E se não puder esconder os meus pensamentos?»
«Compreendo, mas não gosto de ouvir.»
«Vou esforçar-me.»
«Olha, tenho o carro lá fora, numa rua perto.»
Achei a receção algo fria, mas não me admirei. A Maria era assim. Pelo menos parecia. Enquanto trocámos as primeiras palavras ao vivo, nada mudou no que sentia por aquela mulher. Antes pelo contrário.
«Fizeste boa viagem?»
«Sim. Nada cansativa.»
«Ainda bem.»
Curiosamente não estava a deixar transparecer qualquer sinal de nervosismo por ser aquele o primeiro encontro. Mas era natural. Se não estava a mentir, e acreditava porque a Maria detestava a mentira, sentir apenas amizade por alguém não era o mesmo que sentir amor. Esse sentimento sim, fazia o coração bater mais acelerado e acrescentava outro ingrediente que era a ansiedade.
«És mais bonita ao vivo. Fica-te bem a pintura nos olhos e sobretudo o realce que esse batom vermelho vivo dá aos lábios. Torna-os ainda mais sedutores do que já são.»
«Mário! Já combinámos que só há amizade entre nós.»
«Desculpa. Vou tentar não repetir.»
Entrámos para o carro.
«Não rias desta pileca que nada tem a ver com o teu Golf.»
«Não rio. Para onde vamos?»
«Tenho o almoço já feito, mas preciso ainda de passar pelo Continente.»
«Tu mandas, Maria.»
«Sou Touro. Gosto de mandar.»
«E eu Leão. Não gosto de obedecer.»
Sorrimos. Vi pela primeira vez o seu sorriso aberto.»
«Ficas mais atraente quando sorris.»
«Mário!»
«Pronto. Já cá não está esse Mário que falou.»
Olhou para mim e voltou a sorrir. Certamente que começara a fazer o primeiro exame ao vivo a um homem por quem só podia nutrir simpatia.
E porquê?
Muito simples, mas difícil de entender. Porque ainda gostava de um homem que a trocou por outra mulher. E isso eu não compreendia. As mulheres sentem despeito quando são preteridas e ela continuava a falar do amante como se este fosse a melhor coisa do mundo. Um deus e tudo isso. Bem tentei nos nossos diálogos que tivemos na tela, e nas longas conversas ao telefone, que ela abrisse os olhos para a realidade. Eu não ia esperar eternamente. Um dia, por mais que gostasse dela, partiria para outra.
Continente. Uma perdição para o consumidor. Atrás das promoções estão outros impulsos. E eu que o diga neste primeiro dia de compras a dois.
Deixei que a Maria fizesse as primeiras compras e passei depois ao ataque quando coloquei no carrinho uma garrafa de "Monte Velho" tinto (13,5º), pois sabia que a Maria gostava de vinho tinto. De seguida peguei num garrafão de três litros de bom azeite.
«Esporão. É ótimo, não achas?»
Começava uma forma de sedução.
«E o preço também, Mário.»
«Faço questão. Tenho um vale de mais de sessenta euros para gastar.
«Ah sim. Já tinhas dito.»
Lembrei-me. Aconteceu numa das últimas conversas intermináveis que tínhamos tido pelo telefone. É que o tempo voava sem darmos por isso. De tal forma, que uma vez já passava das cinco da manhã e fiz um reparo natural.
«Já viste as horas que são, Maria?»
«Estás a mandar-me embora, Mário?»
«Por amor de Deus. Nunca me canso de falar contigo.»
E ela só nutria amizade por mim.
«Desculpa.»
Queria entender e não conseguia.
Pus no carrinho mais três ou quatro artigos que achei conveniente comprar. Então a Maria ganhou coragem e aventurou-se com dois artigos que não ficaram atrás em preço e qualidade. Respondi com um paio de Portalegre, requeijão e doce de abóbora com pinhões.
«É muito bom este doce de abóbora, Maria.»
«Por acaso já comprei um vez. O doce é muito bom.»
«Falta mais alguma coisa?»
«Não me lembro.»
Fui buscar outra garrafa de tinto. Sabia que ela era bom copo e assim tentava conquistá-la com um golpe baixo.
Que grande safado me saíste, Mário!
A despesa ultrapassou cento e cinquenta euros. Tirando os cerca de sessenta e cinco euros, o estrago ficou por oitenta e cinco.
«Nunca pensei!»
«Deixa, vão aqui coisas boas. Não te preocupes que eu também não.»
Na minha mente analítica passaram alguns momentos em que a vi marcar golos na posição de offside ao contribuir com a entrada de alguns artigos no carrinho, mas era cedo para me considerar o pato da história. Daí não sentir suores frios quando paguei a conta do supermercado.
«Precisamos de ir a outro sítio?»
«Olha, quero comprar bolos. Gostas de jesuítas?»
«Por acaso nunca provei.»
«Mas pago eu, certo?»
«Está bem.»
Não demorou que chegássemos a casa.
Comemos um suculento naco de porco assado no forno, acompanhado de batatas, arroz e esparregado.
A viagem tinha-me tirado o apetite, mas nem por isso deixei de fazer elogios durante a refeição.
«Afinal comi mais do que tu. Quando falámos das nossas refeições fazias sempre menção do facto de eu comer pouco e não te agradar ver-me magrinha quando nos encontrássemos.»
«Tens toda a razão, Maria. E não te acho magrinha. Tens as proporções certas.»
«Mário!»
Vi-a corar pela primeira vez.
«De facto comeste mais do que eu. A carne e o respetivo acompanhamento estavam uma delícia. A viagem é que me tirou o apetite...»
Quanto à garrafa de "Monte Velho", essa ficou vazia e a minha amiga abriu a outra. O álcool desinibia.
«Comeste bem, Mário. Mas na verdade o bacalhau com todos estava uma delícia.»
«O bacalhau fazia lasca e não sabia a salgado. O doce também não estava mau. Mas o café é aquela coisa. Sempre ruim nos restaurantes. Sabes porquê?»
«Não, Mário. Mas estás a fugir ao prometido. Por onde andaste nestes dias?»
«Fui comprar cigarros ao quiosque da esquina e perdi-me.»
«Deixa-te de graças.»
«E se fôssemos dar uma volta a pé para ajudar a digestão?»
«Para isso existem os digestivos.»
«Não pareces o mesmo. Sempre gostaste de dar uma volta depois de uma refeição pesada.»
«Antes pelo contrário.» Pensei.
«Pois é. Mas hoje não me apetece. Aliás, o bacalhau com todos não é prato pesado. E se fôssemos para casa? Conversamos ou vemos um pouco de televisão. Ou então lemos um livro.»
«Um livro? Nem pareces tu!»
«Achas que não gosto de ler?»
«A não ser que...?»
«Diz.»
«Aquilo que sabes. São saudades, Mário? Mas és cuidadoso com as horas. Tens medo da congestãozinha!»
Mas afinal qual das duas Marias era a legítima?
Estávamos frente a frente. Já não via timidez na expressão do seu olhar.
Efeito do álcool, quis acreditar.
Efeito do álcool, quis acreditar.
«Olha, Mário, queres café?»
«Sim, por favor.»
«E um digestivo?»
«Ainda me vences aos pontos.»
Sorriu.
«Já te tinha avisado que gostava de beber e sou resistente aos efeitos do álcool.»
«Confirmo. E eu também. Mas a continuarmos assim ainda acabamos na cama.»
«Que é isso, Mário?»
Tentei justificar-me. Mas tinha certas dúvidas se não era o que ela queria.
«Não me olhes assim, Mário!»
Lá tinha que lembrar-me da Odete de má memória que disse-me, um dia, que eu despia as mulheres com o olhar.
«Peço desculpa, Maria.»
«Importas-te que fume?»
«Claro que não.»
Puxou de um cigarro e levou-o à boca. Acendeu-o com o isqueiro e aspirou logo com alguma sofreguidão. De seguida, uma baforada de fumo inundou o espaço acima de nós.
«Não fumo mais que um maço por dia, mas dá-me gozo.»
«Bem reparei.»
Enfim, o primeiro trunfo.
«Agora vamos ver as tuas mãos. Tenho umas dúvidas...»
«É alguma coisa má?»
«É, se continuares a fumar. Falando sério, achas que dizia-te a frio?»
Pediu-me uns minutos para lavar a loiça e dar uma volta à cozinha.
«Se não te importas ficas sentado na sala a ver televisão. Não gosto de homens na cozinha...»
Foi então que me lembrei.
«A propósito, já recebeste a encomenda?»
«Não.»
«E o aviso? Nos correios disseram-me que chegava no dia seguinte. E já lá vão cinco dias. É melhor telefonares para os CTT.»
Em boa hora. A encomenda ia ser devolvida no dia seguinte.
«Vamos aos correios mais à tardinha. E a propósito. O que é?»
«Surpresa.»
Mais à tardinha?
Então fazia-se tarde para regressar a Lisboa.
Pouco depois estávamos de novo sentados à mesa.
«O senhor bebe mais alguma coisa?»
«Não, obrigado.»
«Então o que deseja?»
«Que me dê as mãos.»
«Já sabes que não. Só te posso dar amizade...»
«E emprestas-mas?»
«Claro.»
«Por agora só a direita.»
«Sim. Estou ansiosa.»
«Pronto. Era só um pormenor.»
«E quando me dás o relatório?»
«Brevemente.»
Não senti o mínimo sinal de fraqueza ou ordem para avançar. De facto tinha um desafio muito grande na minha frente. Cada vez mais sentia que a Maria era uma mulher difícil de contornar. O click ocorrido quando aconteceu o primeiro encontro virtual não se repetia agora, apesar dela ter posto de parte a timidez. Mas tinha uma certa esperança na chegada do anoitecer. A noite era boa conselheira para estas coisas do coração.
Chovia com alguma intensidade quando saímos para ir buscar a encomenda. Tinha que ser antes que fosse devolvida.
Metemo-nos ao caminho, muito juntos, debaixo do mesmo chapéu de chuva. O primeiro sinal positivo.
Voltámos com a encomenda. Um gravador de DVD apetrechado com disco rígido. Um capricho do seu amigo Mário.
«Mas isso foi muito caro!»
«Tenho muito gosto em oferecer-te.»
Entretanto anoiteceu.
«Se não te importas o jantar são restos do almoço.»
«Claro que não me importo. A carne de porco até estava uma delícia.»
«Mas tu comeste pouco!»
«Agora vai ser diferente. O apetite voltou.»
«Folgo.»
Jantámos. Depois a Maria foi lavar a loiça e eu fiquei a vê-la, continuando sentado na casa de jantar.
Pouco depois voltou à sala e ficámos a conversar.
Até que…
«Dez horas. Já é tarde. Ficas cá esta noite.»
E continuámos a conversar. Coisa estranha. Tínhamos sempre assunto.
O tempo voou.
«Já cinco horas!» exclamou, admirada.
«Pois... estás-me a mandar embora?»
Sorrimos.
«Vou fazer-te a cama.»
«Então não dormimos juntos?» perguntei aos meus botões.
O quarto era ao lado do seu.
«Meio caminho andado.» Pensei.
Até agora só vinham bons sinais. Parecia que a noite era boa conselheira.
Despedimo-nos com um beijo e ela fechou-se no seu casulo. Isto é, fechou a porta do quarto.
Só então reparei que o quarto estava frio como gelo. Meti-me na cama e senti o peso dos cobertores. Depois, fiquei à espera.
Acordei com a claridade. Gostava de dormir com as persianas meio corridas.
A manhã estava fria. Ainda bem que tinha comprado aquele pijama. Por sinal o Raul foi comigo e disse que a vendedora estava a dar-me sorte.
«Ela só mostrou as mamas quando se baixou a tirar um saco de asas para o pijama e a camisa.» Disse.
«E sorriu para ti naquela posição. Eu bem vi.»
«És um cusca.»
«Tu é que cuscaste...»
A porta do quarto da Maria continuava fechada. Para não a acordar, resolvi não acender qualquer luz no hall. Podia ter sido fatal, pois esbarrei no Santo António que estava numa mesinha encostada à parede em frente à porta da casa de banho. Valeu-me o instinto e o reflexo. O Santo António acabou nas minhas mãos e não foi escaqueirar-se no chão.
Fiz a barba, tomei duche e tudo mais. Depois, fui até à sala e sentei-me, à espera dela.
Apareceu muito encolhida, de mãos agarradas às abas do robe vermelho.
«Está frio, Mário.»
«Suporta-se» armei-me em valente. «Dormiste bem?»
Quando é que abria o robe?
«Muito bem. Em que estás a pensar?»
«Não posso dizer.» Sorri, irónico.
«Então é melhor não insistir.»
Muito simples. Ela lembrava-me a Anabela e o seu robe vermelho que despiu e mostrou o corpo desnudo onde sobressaíam uns seios grandes onde quase me asfixiava.
«Acho bem.»
«Mário, onde vais?»
«Comprar pão.»
«Mas tu gostas de torradas ao pequeno almoço.»
«Desde quando?»
«Seja. Mas essa não é a porta da rua!»
Já a tinha aberto. A Maria nunca mentia.
«O que queres da despensa?»
Que mundo era o meu que já não me dava segurança?
Até ao almoço não houve histórias para contar. Apenas a senti triste, sentimento que não consegui explicar.
Ainda tentei.
«Que se passa, Maria? Eu volto qualquer dia. Prometo.»
«Eu sei que posso contar contigo. Não é isso.»
«Então?»
Não respondeu.
Depois do almoço foi levar-me à estação.
A certa altura ficámos parados no meio de um grande congestionamento de trânsito. Senti que estava perturbada. Na verdade, nervosa.
Então, compreendi. Queria ver-se livre de mim. Quanto mais cedo, melhor.
Finalmente chegámos à estação. Não havia muito tempo a perder. Um beijo rápido e correr a comprar o bilhete. De seguida, atravessar para o outro lado do cais de embarque.
Acenei para a Maria, que correspondeu. Mas o seu olhar era indefinido e eu não tinha poderes para descobrir o que havia naquela cabeça, a não ser que se travava nela uma luta sem quartel entre o possível e o impossível.
Fiz-lhe um gesto para seguir na direção do carro.
Acenou-me uma última vez e encaminhou-se para o carro. Entretanto o comboio chegou, subi para o interior e procurei um lugar sentado.
Mal me sentei aconteceu uma coisa muito estranha. Sem saber porquê, fiquei triste. Sem avisarem, as lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto, aumentando sempre de intensidade. O curioso é que não pensava em nada. Acabava de entrar no comboio e não tinha motivos para sentir saudades da Maria porque de certeza íamos falar, noites a fio, ao telefone.
Fora bem recebido, mas não aconteceu o que estava à espera, e isso, sim, era motivo para uma natural tristeza. No entanto, ela vincou, desde o primeiro minuto, a sua posição e daí nunca saiu. Portanto, não tinha motivos para me sentir triste, nem alegre. A famosa amizade ia continuar.
Não aconteceu. Não houve feromonas no ar, nem ela teve um momento de fingimento porque, segundo afirmava a todo o momento, era uma mulher que nunca mentia nem admitia a mentira.
Quando o fenómeno terminou, então sim, deixei-me arrastar por pensamentos negativos. Francamente nunca gostei de indefinições. Amizade e só amizade, uma treta! Tinha quase a certeza que ela estava a experimentar-me. Oxalá não esticasse a corda até aos limites, tal como a Cibele tinha feito.
«Estás a mandar-me embora?»
Afinal quem era a mulher que conseguia estar a falar ao telefone, noites a fio, com o amigo?
Sei que fugi de uma desconhecida que dizia ser minha companheira de muitos anos. Sei que ela sabia tudo de mim e eu nada dela. Sei que me foi esperar ao comboio, justificando-se que eu lhe tinha enviado um SMS com a hora da chegada. Sei que ela gostava muito de mim e que a relação daquela noite foi inimaginável. Sei também que este comboio, que se desloca neste momento à velocidade de cento e dez quilómetros por hora, tem como destino o Porto.
Só não sei o que é que vou lá fazer…
Quem...?
"Continuei a ler o caderno de Mário. O que era preocupação começava a transformar-se em preocupação. Todos os sinais de alarme tinham sido ligados e pareciam apontar para um desfecho trágico. O meu amigo estava a passar por uma experiência assaz perigosa que, certamente, ia deixar feridas profundas.
Preso nas teias do tempo, vivendo situações quase irreais, baseadas em desejos recalcados, quase obsessivos, entrara num círculo vicioso acentuadamente centrípeto. Ao mesmo tempo deixava ver uma situação quase demente em que cada vez mais o seu fictício mostrava ser o dono e o senhor de desígnios recalcados que agora ganhavam força de não retorno. Não conhecer o seu alter ego e deixar vir à superfície fantasmas adormecidos era mau sinal. Ao mesmo tempo, os sintomas do esquecimento de si e dos momentos reais não auguravam nada de bom.
Apenas um sinal de esperança. O seu caderno relacionava-se com o passado e podia significar que ele tinha ultrapassado os maus momentos crescentes de degradação dos escaninhos da sua mente. Por outro lado, a partida apressada para Las Vegas, segundo a Alexandra explicada pela situação de quase rotura entre eles, podia estar a ser encarada pela face errada. Era sabido que as leis do coração de Mário funcionavam como um cata-vento insaciável. Sempre à procura do arquétipo da mulher única, que não existia, estava agora a lidar com um inimigo, que junto com a solidão, o ia destroçar. Tal como teria acontecido aos milhões de galáxias, aparentemente unidas pelo poder da gravidade. Uma gravidade que não bastava, não fora o aparecimento da matéria negra, invisível, para compensar a falha existente. Por outras palavras, Mário procurava essa força para encontrar o equilíbrio que lhe escapava.
As duas Marias, e outras Marias ou não, eram passado e não voltavam, como é lógico. Quanto à Alexandra, era um permanente argumento para agudizar o conflito interno de Mário e ele precisava, como pão para a boca, de harmonia. Finalmente, a Amélia talvez até fosse fruto da sua imaginação fértil…"
Sou um monstro que destrói e devora, como um buraco negro de apetite insaciável, toda a matéria existente no espaço, estrelas, galáxias, aglomerados...?
Quem sou eu, para ontem ter torturado um inocente e hoje olhar angelicalmente para uma ave a quem lhe cortaram as asas?
Quem sou eu, para continuar preso neste comboio que não tem destino e que ontem tudo apontava estar rumando para o Porto?
A noite caiu. Os meus companheiros de viagem mais próximos dormitam. O visor da velocidade mostra um valor cento e vinte fixo, como se o maquinista tivesse ligado o piloto automático. No exterior a temperatura é de doze graus. Pouco me importa. A realidade é outra cá dentro.
Fecho os olhos. Vou tentar dormir um pouco. Não! Não posso adormecer. É uma tentação perigosa. Se adormecer, salto outra vez no tempo e isso não quero. Se o comboio parar, não vou conseguir fugir desta situação que me tolhe a liberdade.
A velocidade parece ter saído do modo piloto automático. Cento e vinte e um. Mais um quilómetro por hora. Não vejo importância neste incremento. A situação não se alterou. Continuo a não saber o que estou aqui a fazer e o mesmo deve estar a passar-se com todos os viajantes, creio. Mas estes ao menos defenderam-se. Adormeceram e assim estão alienados da situação do momento. Momento. Isto não é um momento. Um momento passa e tudo muda com outro momento. Isto é estático.
E se acordasse a mulher que está ao meu lado?
Talvez se sinta como eu. Talvez. Mas pode saber mais do que eu, que estou prisioneiro nesta viagem maldita, sem partida nem chegada. Não me lembro. Não me lembro se existiu ontem e como foi ontem. Se também o amanhã não existe. Se estou preso no intervalo do aleatório dos saltos no tempo.
Ao menos podia ter comigo o poder do "abre-te Sésamo".
E então para onde vou?
A tentação de contrariar o impossível!
«Mário.»
Sou eu. Pelo menos lembro-me do meu nome.
Viro-me para o lado. A mulher acordou.
Que tem a ver comigo?
«Estamos a chegar. Ao menos conseguiste dormir?»
Olho para o visor ao alto, no fundo da carruagem. Cento e vinte e quatro. Algo que contraria a ideia da mulher que me conhece. O comboio não vai parar.
«Mário, prepara-te.»
Agora falou a mulher que está frente a frente comigo.
«Vamos, Mário. É agora.» Diz a mulher ao meu lado.
Abro os braços num gesto de incompreensão.
«Mas o comboio aumentou a velocidade! Não veem?»
«Não veem?» disseram as duas, muito sérias. «Não vês, queres dizer.»
«O visor está avariado.» Informou a segunda mulher. «Segue-me.»
Cada uma fala como se fosse a única. Mas vou obedecer às duas. Assim como assim, é uma experiência. Tenho que sair daqui a todo o custo.
Ou adormeci também e estou a sonhar?
Não importa que esteja dentro do sonho.
«Vá lá! Não podemos perder o momento certo...»
Já estamos junto à porta da saída. Dou uma nova mirada para o visor. Cento trinta. É surreal! Vamos esmagar-nos no chão. Não é a forma lógica de fugirmos desta situação. Tenho que as convencer. Uma de cada vez, já que parecem existir em dois espaços. É a melhor solução. E o comboio tem que parar. Um comboio para nas estações para largar e permitir a entrada de novos passageiros. Preciso de acreditar nas duas mulheres e assim conseguir sair da minha fantasia. Este comboio vai parar.
«Carrega no botão verde!»
Sou fraco. A segunda mulher domina-me por completo.
«Pronto.»
«E agora salta.»
«É o saltas...»
«Ai saltas saltas!»
Parece que desta vez o aleatório não venceu. Não sei como foi que aconteceu, mas acabei de tocar à campainha da porta que já se abriu e deixou que visse um rosto estupefacto de mulher que não consegue dizer palavra. Talvez entrasse no seu sonho ou no sonho de várias mulheres. Tanto faz. O aleatório é que vai decidir. Desta vez, sim. E está no seu direito.
O roupão vermelho, a mostrar um pouco dos seios, vai continuar a esconder o rosto. Tanto pode ser uma das Marias, como a Anabela. Ou outra. Se o abrir e mostrar os seios generosos, de certeza que é a Anabela. Erotismo é com ela. E se não...?, então é uma outra das outras.
«Como chegaste aqui?»
Limito-me a sorrir e a encolher os ombros.
«És mudo?»
«Posso entrar?»
Se entrar, então ganhei outro estatuto.
«Não compreendo.»
«Não compreendes, o quê?»
«Entraste para o comboio. Vi-o partir e senti logo um aperto no coração.»
«E choraste?»
«Não.»
«Tenho a certeza que sim.»
«Não te convenças. Entra, alma de Deus.»
Ela ia abrir o robe?
"Continuei a ler o caderno de Mário. O que era preocupação começava a transformar-se em preocupação. Todos os sinais de alarme tinham sido ligados e pareciam apontar para um desfecho trágico. O meu amigo estava a passar por uma experiência assaz perigosa que, certamente, ia deixar feridas profundas.
Preso nas teias do tempo, vivendo situações quase irreais, baseadas em desejos recalcados, quase obsessivos, entrara num círculo vicioso acentuadamente centrípeto. Ao mesmo tempo deixava ver uma situação quase demente em que cada vez mais o seu fictício mostrava ser o dono e o senhor de desígnios recalcados que agora ganhavam força de não retorno. Não conhecer o seu alter ego e deixar vir à superfície fantasmas adormecidos era mau sinal. Ao mesmo tempo, os sintomas do esquecimento de si e dos momentos reais não auguravam nada de bom.
Apenas um sinal de esperança. O seu caderno relacionava-se com o passado e podia significar que ele tinha ultrapassado os maus momentos crescentes de degradação dos escaninhos da sua mente. Por outro lado, a partida apressada para Las Vegas, segundo a Alexandra explicada pela situação de quase rotura entre eles, podia estar a ser encarada pela face errada. Era sabido que as leis do coração de Mário funcionavam como um cata-vento insaciável. Sempre à procura do arquétipo da mulher única, que não existia, estava agora a lidar com um inimigo, que junto com a solidão, o ia destroçar. Tal como teria acontecido aos milhões de galáxias, aparentemente unidas pelo poder da gravidade. Uma gravidade que não bastava, não fora o aparecimento da matéria negra, invisível, para compensar a falha existente. Por outras palavras, Mário procurava essa força para encontrar o equilíbrio que lhe escapava.
As duas Marias, e outras Marias ou não, eram passado e não voltavam, como é lógico. Quanto à Alexandra, era um permanente argumento para agudizar o conflito interno de Mário e ele precisava, como pão para a boca, de harmonia. Finalmente, a Amélia talvez até fosse fruto da sua imaginação fértil…"
Sou um monstro que destrói e devora, como um buraco negro de apetite insaciável, toda a matéria existente no espaço, estrelas, galáxias, aglomerados...?
Quem sou eu, para ontem ter torturado um inocente e hoje olhar angelicalmente para uma ave a quem lhe cortaram as asas?
Quem sou eu, para continuar preso neste comboio que não tem destino e que ontem tudo apontava estar rumando para o Porto?
A noite caiu. Os meus companheiros de viagem mais próximos dormitam. O visor da velocidade mostra um valor cento e vinte fixo, como se o maquinista tivesse ligado o piloto automático. No exterior a temperatura é de doze graus. Pouco me importa. A realidade é outra cá dentro.
Fecho os olhos. Vou tentar dormir um pouco. Não! Não posso adormecer. É uma tentação perigosa. Se adormecer, salto outra vez no tempo e isso não quero. Se o comboio parar, não vou conseguir fugir desta situação que me tolhe a liberdade.
A velocidade parece ter saído do modo piloto automático. Cento e vinte e um. Mais um quilómetro por hora. Não vejo importância neste incremento. A situação não se alterou. Continuo a não saber o que estou aqui a fazer e o mesmo deve estar a passar-se com todos os viajantes, creio. Mas estes ao menos defenderam-se. Adormeceram e assim estão alienados da situação do momento. Momento. Isto não é um momento. Um momento passa e tudo muda com outro momento. Isto é estático.
E se acordasse a mulher que está ao meu lado?
Talvez se sinta como eu. Talvez. Mas pode saber mais do que eu, que estou prisioneiro nesta viagem maldita, sem partida nem chegada. Não me lembro. Não me lembro se existiu ontem e como foi ontem. Se também o amanhã não existe. Se estou preso no intervalo do aleatório dos saltos no tempo.
Ao menos podia ter comigo o poder do "abre-te Sésamo".
E então para onde vou?
A tentação de contrariar o impossível!
«Mário.»
Sou eu. Pelo menos lembro-me do meu nome.
Viro-me para o lado. A mulher acordou.
Que tem a ver comigo?
«Estamos a chegar. Ao menos conseguiste dormir?»
Olho para o visor ao alto, no fundo da carruagem. Cento e vinte e quatro. Algo que contraria a ideia da mulher que me conhece. O comboio não vai parar.
«Mário, prepara-te.»
Agora falou a mulher que está frente a frente comigo.
«Vamos, Mário. É agora.» Diz a mulher ao meu lado.
Abro os braços num gesto de incompreensão.
«Mas o comboio aumentou a velocidade! Não veem?»
«Não veem?» disseram as duas, muito sérias. «Não vês, queres dizer.»
«O visor está avariado.» Informou a segunda mulher. «Segue-me.»
Cada uma fala como se fosse a única. Mas vou obedecer às duas. Assim como assim, é uma experiência. Tenho que sair daqui a todo o custo.
Ou adormeci também e estou a sonhar?
Não importa que esteja dentro do sonho.
«Vá lá! Não podemos perder o momento certo...»
Já estamos junto à porta da saída. Dou uma nova mirada para o visor. Cento trinta. É surreal! Vamos esmagar-nos no chão. Não é a forma lógica de fugirmos desta situação. Tenho que as convencer. Uma de cada vez, já que parecem existir em dois espaços. É a melhor solução. E o comboio tem que parar. Um comboio para nas estações para largar e permitir a entrada de novos passageiros. Preciso de acreditar nas duas mulheres e assim conseguir sair da minha fantasia. Este comboio vai parar.
«Carrega no botão verde!»
Sou fraco. A segunda mulher domina-me por completo.
«Pronto.»
«E agora salta.»
«É o saltas...»
«Ai saltas saltas!»
Parece que desta vez o aleatório não venceu. Não sei como foi que aconteceu, mas acabei de tocar à campainha da porta que já se abriu e deixou que visse um rosto estupefacto de mulher que não consegue dizer palavra. Talvez entrasse no seu sonho ou no sonho de várias mulheres. Tanto faz. O aleatório é que vai decidir. Desta vez, sim. E está no seu direito.
O roupão vermelho, a mostrar um pouco dos seios, vai continuar a esconder o rosto. Tanto pode ser uma das Marias, como a Anabela. Ou outra. Se o abrir e mostrar os seios generosos, de certeza que é a Anabela. Erotismo é com ela. E se não...?, então é uma outra das outras.
«Como chegaste aqui?»
Limito-me a sorrir e a encolher os ombros.
«És mudo?»
«Posso entrar?»
Se entrar, então ganhei outro estatuto.
«Não compreendo.»
«Não compreendes, o quê?»
«Entraste para o comboio. Vi-o partir e senti logo um aperto no coração.»
«E choraste?»
«Não.»
«Tenho a certeza que sim.»
«Não te convenças. Entra, alma de Deus.»
Ela ia abrir o robe?
Afinal Mário perdeu o comboio?
Julgo que continuo a sonhar dentro do sonho. Nesse contexto, poderá estar de volta ao mundo real. Basta o sonho dentro do sonho não se realizar.
Julgo que continuo a sonhar dentro do sonho. Nesse contexto, poderá estar de volta ao mundo real. Basta o sonho dentro do sonho não se realizar.
Já no interior da casa tive uma reação instintiva, olhando em volta com insistência. A minha atitude não lhe passou despercebida. Interpretou e reagiu.
«Que coisa tão estúpida, Mário! Procura lá para dentro. Nos quartos. Debaixo da cama. No roupeiro. Na marquise. Em toda a casa.»
Fiz um gesto de deixa para lá e tentei explicar-me.
«Desculpa-me, Maria. A pressa com que quiseste meter-me dentro do comboio fez-me ter pensamentos estranhos, indignos mesmo. Outra pessoa nas mesmas circunstância teria desistido e partido para outra. Mas eu não. Aqui me tens. A procurar debaixo da cama ou nos roupeiros.»
«Parvo. És mesmo um parvo.»
«Então? Porquê a pressa de quereres despachar-me?»
Não respondeu de imediato.
«Estava apenas confusa.»
«Confusa?»
«Sim. Tinha motivos fortes.»
«Motivos?»
«Não te armes em eco! Confusa, sim. Os meus sentimentos estavam a apoderar-se da razão e pensava que ainda era cedo para me envolver. Conhecia-te há pouco tempo e também há pouco tempo tinha saído ferida de uma relação duma forma que não imaginas. Sofri muito, Mário, acredita.»
«Eu sei. Já me contaste. Então foi por causa dele. Bendito aquele momento de desorientação que tive na gare. Nem imaginas. Parecia uma barata tonta à procura do cais de embarque. E ninguém me ajudava. As informações eram vagas. Por duas vezes cheguei ao ponto de partida. Até que encontrei o cais certo. Mas era tarde. O comboio já estava em movimento e fora do meu encalce.»
Sentou-se no sofá e fez um sinal para me sentar ao seu lado.
«E não esperaste pelo comboio seguinte. Um regional que partia três quartos de hora mais tarde. Lento. Muito lento, mas que te levava para longe de mim. Eu acreditava que tinha procedido da forma mais certa para não ser ferida outra vez.»
«Tens razão. Três quartos de hora depois regressava a Lisboa e nada seria como dantes. Bastava um daqueles momentos em que tudo se altera e o inevitável acontece. Ainda bem que perdi o comboio. Preciso de falar contigo, Maria.»
Ficou pensativa. Tentei adivinhar se estava tentando encontrar uma explicação para o facto de eu ter voltado para trás. E a explicação tornava-se evidente. Não fora coincidência a desorientação que tive no cais. Havia uma coisa forte para além da simples coincidência.
«Queres tomar alguma coisa? Uma cerveja...»
Entendi a estratégia da Maria. Precisava de ganhar tempo.
«Obrigado, Maria» concordei. «Mas tu também tens que beber.»
«Só se for um copo de tinto. Daquele que compraste. Já sabes como sou, embora não goste de beber fora das refeições.»
Sorri. Lembrei-me do bigode que me deu da primeira vez que almoçámos juntos e tentei embriagá-la. Cuidado! Deixou-me entre as nove e as dez. O feitiço quase se tinha virado contra o feiticeiro.
Pouco depois eu tinha a minha garrafa de Sagres e ela o copo de vinho tinto Monte Velho.
«Quiseste enfraquecer-me naquele dia, mas saiu-te o tiro pela culatra.»
«Estava a pensar nisso. És bruxa, Maria?»
Onde e quando já tinha ouvido uma frase parecida com esta, mas em ordem invertida?
«Mais ou menos» ironizou. «Mas estou a brincar. Apenas tenho um bocadinho de clarividência. Só um bocadinho.»
«Bom, com esta história dos copos perdi o fio à meada. Por acaso lembras-te onde ia?»
«Não ias para parte alguma. Voltaste para trás...»
«Sim, estou a lembrar-me.»
«E agora estamos aqui os dois.»
«Em boa hora.»
«Talvez.»
«Sim.»
Olhou-me frontalmente.
«E se eu disser que não?»
«Dizes que não. Desejo-te boa sorte e vou à minha vida.»
«Que pretendes, Mário?»
Seria que ela gostava de mim?
Uhm! Era demasiado bom.
Então, lembrei-me da última vez que estive com ela. Parecíamos dois namorados tímidos naquele dia em que fomos a Espinho e andámos perto da beira-mar. Em sintonia. Podia-se ter-se esclarecido muita coisa, mas tudo continuou como dantes.
Continuava a ser obrigado a respirar amizade.
«Que coisa tão estúpida, Mário! Procura lá para dentro. Nos quartos. Debaixo da cama. No roupeiro. Na marquise. Em toda a casa.»
Fiz um gesto de deixa para lá e tentei explicar-me.
«Desculpa-me, Maria. A pressa com que quiseste meter-me dentro do comboio fez-me ter pensamentos estranhos, indignos mesmo. Outra pessoa nas mesmas circunstância teria desistido e partido para outra. Mas eu não. Aqui me tens. A procurar debaixo da cama ou nos roupeiros.»
«Parvo. És mesmo um parvo.»
«Então? Porquê a pressa de quereres despachar-me?»
Não respondeu de imediato.
«Estava apenas confusa.»
«Confusa?»
«Sim. Tinha motivos fortes.»
«Motivos?»
«Não te armes em eco! Confusa, sim. Os meus sentimentos estavam a apoderar-se da razão e pensava que ainda era cedo para me envolver. Conhecia-te há pouco tempo e também há pouco tempo tinha saído ferida de uma relação duma forma que não imaginas. Sofri muito, Mário, acredita.»
«Eu sei. Já me contaste. Então foi por causa dele. Bendito aquele momento de desorientação que tive na gare. Nem imaginas. Parecia uma barata tonta à procura do cais de embarque. E ninguém me ajudava. As informações eram vagas. Por duas vezes cheguei ao ponto de partida. Até que encontrei o cais certo. Mas era tarde. O comboio já estava em movimento e fora do meu encalce.»
Sentou-se no sofá e fez um sinal para me sentar ao seu lado.
«E não esperaste pelo comboio seguinte. Um regional que partia três quartos de hora mais tarde. Lento. Muito lento, mas que te levava para longe de mim. Eu acreditava que tinha procedido da forma mais certa para não ser ferida outra vez.»
«Tens razão. Três quartos de hora depois regressava a Lisboa e nada seria como dantes. Bastava um daqueles momentos em que tudo se altera e o inevitável acontece. Ainda bem que perdi o comboio. Preciso de falar contigo, Maria.»
Ficou pensativa. Tentei adivinhar se estava tentando encontrar uma explicação para o facto de eu ter voltado para trás. E a explicação tornava-se evidente. Não fora coincidência a desorientação que tive no cais. Havia uma coisa forte para além da simples coincidência.
«Queres tomar alguma coisa? Uma cerveja...»
Entendi a estratégia da Maria. Precisava de ganhar tempo.
«Obrigado, Maria» concordei. «Mas tu também tens que beber.»
«Só se for um copo de tinto. Daquele que compraste. Já sabes como sou, embora não goste de beber fora das refeições.»
Sorri. Lembrei-me do bigode que me deu da primeira vez que almoçámos juntos e tentei embriagá-la. Cuidado! Deixou-me entre as nove e as dez. O feitiço quase se tinha virado contra o feiticeiro.
Pouco depois eu tinha a minha garrafa de Sagres e ela o copo de vinho tinto Monte Velho.
«Quiseste enfraquecer-me naquele dia, mas saiu-te o tiro pela culatra.»
«Estava a pensar nisso. És bruxa, Maria?»
Onde e quando já tinha ouvido uma frase parecida com esta, mas em ordem invertida?
«Mais ou menos» ironizou. «Mas estou a brincar. Apenas tenho um bocadinho de clarividência. Só um bocadinho.»
«Bom, com esta história dos copos perdi o fio à meada. Por acaso lembras-te onde ia?»
«Não ias para parte alguma. Voltaste para trás...»
«Sim, estou a lembrar-me.»
«E agora estamos aqui os dois.»
«Em boa hora.»
«Talvez.»
«Sim.»
Olhou-me frontalmente.
«E se eu disser que não?»
«Dizes que não. Desejo-te boa sorte e vou à minha vida.»
«Que pretendes, Mário?»
Seria que ela gostava de mim?
Uhm! Era demasiado bom.
Então, lembrei-me da última vez que estive com ela. Parecíamos dois namorados tímidos naquele dia em que fomos a Espinho e andámos perto da beira-mar. Em sintonia. Podia-se ter-se esclarecido muita coisa, mas tudo continuou como dantes.
Continuava a ser obrigado a respirar amizade.
Até quando?
Até um dia, no futuro, em que iria receber uma chamada de telemóvel.
«Preciso da tua ajuda. Estou num curso de formação de Matemática e sinto-me perdida.»
«Desculpa-me, Maria. Não posso ir ter contigo. Estou noutra. É tarde.»
«Preciso da tua ajuda. Estou num curso de formação de Matemática e sinto-me perdida.»
«Desculpa-me, Maria. Não posso ir ter contigo. Estou noutra. É tarde.»
Não me lembro do que estávamos a falar à beira-mar. O assunto esgotou-se e então, para afastar o vazio instalado, tive uma ideia.
«Vamos ao casino?»
«Como sabes, não tenho dinheiro, Mário.»
«De qualquer forma, vamos.»
E fomos. Dei-lhe cinquenta euros para jogar e expliquei-lhe como se jogava.
«O que ganhares é para ti.»
As máquinas sorveram o dinheiro no ápice. Também ela tinha azar ao jogo e sorte ao amor. Era o que diziam, mas nem sempre batia certo.
«Estás a ver? Cinquenta euros é muito dinheiro!»
«Deixa. Pode ter-nos dado sorte.»
«Que queres dizer?»
«Talvez nada.»
Voltando...
«Nunca mais falámos de amor desde que uma vez fiz aquela triste confissão de que não gostaste.»
«Qual confissão?»
Outra vez o sonho dentro doutro sonho.
«Posso dizer?»
«Desta vez não te admoesto.»
«Que gosto muito de ti e isso. Mas sempre que faço uma incursão destas, logo me chamas à razão e não tenho outra hipótese senão recuar.»
Aguardou em silêncio e interpretei o momento como uma oportunidade para avançar. Respirei fundo e peguei-lhe numa das mãos.
«Não é preciso fazer uma declaração de amor. Sabes muito bem o que sinto por ti.»
Continuou em silêncio.
«É agora ou nunca!» pensei.
«Tens a certeza, Mário?»
«Absoluta, dentro da relatividade que existe para tudo. Pronto. Quase absoluta, Maria.»
«Não sei se vou arrepender-me.»
Estava a dar-me a deixa?
Aproximei-me mais até sentir o contacto do seu corpo e ela não esboçou qualquer movimento de recuo.
O que estava certo e o que estava errado?
«Tonto!»
«Porquê?»
Acariciei-lhe a mão. Ela correspondeu.
«És um tonto, Mário! E cego. Tu nunca conseguiste ir à raiz dos meus sentimentos. Estava a ver que nunca mais acontecia. Ainda bem que perdeste o comboio. Isso tem um significado especial, não tem?»
«Sim. Acho que sim. Não foi fácil, Maria. Só queria afastar-me porque estava convencido que tinhas outro. Mas o coração dava-me outros sinais.»
De que estava à espera?
Deixou que a beijasse. Na face. Nos olhos. Nos lábios. Em tudo o que era ela. E eu queria mais. Sempre mais.
«Mas...»
Dúvida.
«Diz, Maria.»
«E se eu não te amo?»
De súbito receei que ela estivesse a recuar.
«O que queres dizer?»
Fiquei na expectativa.
«... tanto como tu me amas?»
Dúvida a desvanecer-se.
«Ou melhor, se te amo mais do que tu me amas?»
Assim, sim.
«Conheces a medida certa?»
Levantou-se sem desviar os olhos dos meus. Depois, pegou-me na mão e foi-me levando para o hall onde estava o Santo António. Da outra vez quase que o tinha deitado ao chão. Valeram os bons reflexos que sempre tive. Fiquei com ele nas mãos.
Se não fosse a situação em marcha teria parado para lhe agradecer.
«Vem...»
Por momentos pensei na Manuela. Aquele "vem" lembrava-me um poema que lhe tinha dedicado há muitos anos.
Estávamos no quarto. Não me admirei ao vê-la dirigir-se para o lado da janela e correr o estore. Certas mulheres só conseguiam fazer amor no escuro e pareceu-me que a Maria era uma delas. Ou então sentia vergonha por ser a primeira vez comigo.
Começou a despir-se na penumbra e imitei-a.
«Vem...» Repetiu.
Continuava a viver o sonho dentro de outro sonho no estranho mundo das ilusões, o tal mundo intrusivo que não se sabe quando começa nem quando acaba.
Este mundo acabou. Por agora.
Vou saltar para outro que está à minha espera...














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