quinta-feira, 3 de agosto de 2023

A greve




Verão de 1974. A revolução dos cravos já aconteceu. Mas esta história pouco ou nada tem a ver com ela. Apenas marca a época. Portanto, vamos em frente. E a propósito de irmos em frente...

Nada fazia prever que à saída do Barreiro, naquela manhã solarenga, a viagem do navio "Congo" iria ser tão atribulada para grande parte da tripulação como foi. Viviam-se tempos agitados em Portugal, onde todo o mundo reivindicava sem saber se era razoável o que se exigia ao patronato. Falava-se que os sindicatos estavam em negociações com o patronato, mas nada de concreto havia.

Saímos com rumo ao Recife. A viagem decorreu normalmente, sem qualquer sobressalto.
Já no Recife, depois de cumpridas as formalidades, pela noite fomos dar as nossas voltas. Como era hábito, escolhemos o Veleiro. Depois de uma longa viagem através da imensidão do Atlântico sabia bem estarmos numa esplanada à beira-mar a degustar uns camarões com cervejas ou refrigerantes, ou para outros beberem um gin tónico ou um whisky com uma atraente companhia de ocasião ou com alguém que já marcava alguns pontos nos seus generosos corações.
No outro dia era o tempo de se iniciarem os negócios, como a venda de aguardente, Nossas Senhoras de Fátima fluorescentes e medalhas religiosas, azeite, bacalhau, conservas, por vezes a troco de café com muita arábica que vendiam depois com bom lucro em Portugal. Habitualmente formavam-se pequenos grupos, uns especializados nuns produtos como os de cariz religioso, outros no dito azeite e nas conservas e demais produtos alimentícios. Tudo isto com a finalidade de angariarem dinheiro para as suas extravagâncias. 
Dias depois já estávamos de saída para o próximo porto que era Maceió, mais para sul. E foi aí que se deu o começo das complicações. Complicações que, verdadeiramente, não eram complicações. Como se verá adiante, o pessoal da tripulação sabia desenrascar-se. Ó se sabia!
Mas o que estava a acontecer?
Coisa que podia agravar a situação. De Lisboa vinham notícias. Sabia-se que havia negociações entre os sindicatos e o patronato (a Nacional e a C.T.M.) (1), mas a acrescentar ao que se sabia, as partes estavam longe de chegar a um acordo.
Começava-se a falar em greve, embora a situação em Maceió, um porto pequeno e muito agradável, fosse normalíssima. Assim, uns continuaram a ir para as esplanadas à beira-mar, ou outros para vários destinos, como bares e cabarés.
Entretanto saímos para S. Salvador da Baía, cidade grande, bastante típica, com a suas 365 igrejas, segundo diziam, uma para cada dia do ano (2). O acesso da cidade baixa para a cidade alta, ou vice-versa, era feito pelo elevador do Lacerda. Havia mais acessos por ruas, mas estas eram muito inclinadas. Era por isso que se aproveitava o elevador (aplicavam a lei do menor esforço porque era preciso guardar energia para outros "empreendimentos"). 
Dia de praia. A não dispensar. Visita obrigatória ao mercado Modelo, na zona baixa, onde havia à venda muito artesanato. Quanto aos negócios das "Nossas Senhoras", bem como os alimentícios, estes começaram a fracassar, ficando num impasse, visto que a greve estava à vista.
Saímos da Baía rumo ao Rio de Janeiro e tudo indicava que a greve ia ser aí. Era uma greve às horas extraordinárias e parecia ser de pouca influência. Mas na verdade não era, como se verificou já no Rio. O navio não podia sair do porto porque tornava-se necessário dobrar o pessoal para se efetivarem as saídas e as entradas. E sem possibilidade de se fazerem horas extraordinárias nada se podia fazer. Assim, o navio ficou preso no porto. Mas em nada se alterou a rotina das saídas à noite, com o dinheiro a fluir, sempre a fluir, enquanto houvesse.
E depois?
Depois, nada que fosse complicado. Pedia-se abono ao comandante, abono esse que ia até um terço do ordenado.
O dinheiro voltou aos bolsos dos tripulantes e tudo se normalizou. Idas a Copacabana, Ipanema, Barra da Tijuca. Estes e outros locais para se gastar dinheiro não faltavam. Muita diversão. Para todos os gostos. A greve tinha vindo em boa hora e até pareceu que os dias agradáveis voavam. Tudo numa boa. Até que o dinheiro dos abonos faltou quando o comandante fechou a torneira.
«E agora?» pergunto eu e perguntaram muitos.
Tempo de angústia. Tragédia ter que ficar a bordo. Saudade das esplanadas à beira-mar e das bebidas fresquinhas. Muita tristeza por não ser possível contactar com as "Lolas" dos bares e dos cabarés. Recordação das músicas lentas em que os corpos se aconchegavam mais e cada vez mais.
Agora que os abonos estavam esgotados parecia que nada mais havia a fazer. 
Ou havia?
«Então, não apareceste ontem?» perguntou um brasileiro.
«Pois não, amigo. Acabou-se o dinheiro.»
«Claro que não acabou. Eu empresto-te. Passas-me um cheque e eu desconto-o quando viajar para Lisboa.»
«Obrigado, amigo.»
Uma situação que se repetiu de um modo parecido à replicação de um vírus. Os cheques começaram a ser passados e trocados por dinheiro ao câmbio do dia. E a alegria voltou. Com ela, voltaram as idas às esplanadas à beira-mar e demais locais já referidos. Borga e mais borga. A normalidade voltou. Era uma fase nova, esta dos cheques. Coisa incrível! Quase todos tínhamos amigos no Rio de Janeiro.
E se o dinheiro se esgotava, não havia problema. Mais cheque, menos cheque...
«Não há problema. Depois, pagas tudo, quando eu embarcar para Lisboa. Até é um favor que me fazes, amigo (3)
Agora, vinha a fava do bolo-rei. Ninguém esperava que a greve se prolongasse por mais de três meses.
Finalmente a greve acabou e o navio "Congo" saiu para Santos. Mais amigos. Mais cheques.
Só quando o navio seguiu para Lisboa é que a realidade lhes abriu a mente. Começaram a consultar os "canhotos" dos livros de cheques e caíram em si. Muitos não tinham dinheiro na sua conta para pagarem as dívidas contraídas.
Foi uma complicação do caraças! Alguns ficaram doidos. Ameaçaram atirar-se às águas do Atlântico. Foi uma carga de trabalhos para segurar essa gente desgraçada.
«Que me passou pela cabeça, porra?»
«Que vou dizer à minha mulher e aos meus filhos?»
«Não mereço viver!»
«Onde vou arranjar dinheiro?»
«Eu mato-me!»
A longa viagem até Lisboa deu tempo para pensar. Gozaram muito, mas gastaram mais que o equivalente a três meses de ordenado. Os "canhotos" não mentiam.
Uns tantos, porque tinham dinheiro suficiente nas suas contas, encolheram os ombros, resignados.
«Que se lixe. Foram uns meses bem passados.»
Outros tantos, por razões óbvias, pediram para mudar de carreira.
«Não tenho culpa deles serem papalvos.»
Finalmente, mais outros tantos, apesar de terem ficado endividados e sem hipótese de pagarem as dívidas contraídas, continuaram a fazer a carreira do Brasil.
«Que se lixe! Logo se vê.»
E chegámos ao fim desta história. 
Quer acreditem, quer não... histórias são histórias.

(1) Companhia de navegação resultante da fusão da antiga Colonial com a Insulana.    
(2) Verdade ou não, foi assim que me contaram.
(3) Não assisti.


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