segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Zé Galo

 


C

onheci o Zé Galo há cerca de vinte anos. Nesse tempo ele não passava de um franganote com aspirações a uma hierarquia superior que ainda vinha longe.
«Tens que comer muito milho...»
E tinha. Apetite não lhe faltava. Quanto aos atributos, esses prometiam êxito já a curto prazo. Naquilo que todos nós sabemos, claro. Mas até lá, os seus atos estariam limitados pela redução à insignificante condição de franganote e esperar pelo que se chamava, muito bem chamado, dar tempo ao tempo.
Está-se mesmo a ver que vou contar uma história baseado em factos reais, como de costume pinceladas, aqui e acolá, com tinta fantástica. Mas antes de entrar propriamente na história tenho que falar um pouco desta personagem algo bizarra que foi e é (penso) o Zé Galo. Reporto-me ao tempo em que decorre a história. Alto, magro, baixo, gordo, olhos azuis, castanhos, lábios finos de cínico e grossos de não sei o quê. Bom, não tenho jeito para isto. Fiquemos por baixo e gordo e da cor dos olhos não me lembro. Músculos flácidos, de quem se divorciou desde tenra idade do exercício físico. Mas a palavra, esse atributo era um dom que não desperdiçava. E juntando-se a fome com a vontade de comer, é interessante falar do seu coração grande onde se albergava o amor que dedicava às várias candidatas com que se cruzava nas suas deambulações amorosas. Ninguém dizia que tinha quinze anos. Talvez quase a fazer dezasseis. Quanto aos sentimentos propriamente ditos, talvez, num ou noutro caso, pensasse em dar a camisa, ou até o casaco, a um amigo necessitado. Se os seus pensamentos levava-os o vento, não vem para o caso. Não se enquadram na história que ainda não comecei a contar. Nem há tempo. Senão, daqui a pouco esqueço-me da história. Quanto ao casaco, é falso. Desde sempre o conheci vestido com camisolas a atirar para o escuro. 
Passemos à personalidade vincadamente de pessoa independente, tão independente que, várias vezes, perdeu-se misturado com a população, o chamado magote. Isto em feiras e romarias. E nunca o viram a chorar no ato solene da entrega das autoridades aos pais, primeiro preocupados e depois já dentro da rotina de tais acontecimentos.
Além de independente, era extrovertido. Uma qualidade que sabia explorar até ao tutano. Não é exagero, mas a sua envolvência linguística era tão significativa que até conseguia convencer os adversários a ficarem do seu lado, transformando-se em amigos do peito, pelo menos no momento em que achava que era importante para os seus superiores desígnios. Vendedor de "banha da cobra". Delegado de propaganda médica. Talvez advogado ou político. Estes dois últimos casos não seriam de ter em conta visto que lhe dava muito trabalho e trabalho era coisa de segundo plano.
Mais atributos? A coragem. 
«Chega-te para lá. Nem pensar nisso é bom.»
Chorem agora, adeptos da coragem. De certeza que ele nunca esteve, não está, nem estará, do lado dos corajosos. Para ele, ser corajoso era desperdiçar o lado bom da vida. Sim. Ele sempre soube viver a vida. Qualquer que fosse a guerra em que, por mero acaso se envolvesse, no passado que não viveu ou no presente que já passou, preferia, por exemplo, borrar as cuecas ao troar dos canhões, à ordem das baionetas caladas, a tudo isso que fez heróis e cobardes. Muito menos, tornar-se um mártir corajoso só para levar consigo vidas inocentes que nada tinham a ver com essa guerra dos mártires que matam e vão para o paraíso onde os esperam as não sei quantas virgens que poderão usar e descartar na eternidade. Nesse aspeto das virgens, estaria bem à vontade a conquistá-las com as armas da paixão da tal nuvem passageira, porque o amor, esse era coisa complicada que nunca iria entender. É o que penso e tenho a faca na mão porque sou eu quem dá as pinceladas nas personagens e nas histórias em que estão envolvidas. O Zé Galo era assim e nenhum outro galo cantaria no poleiro ou em cima de um muro.
Falando ainda de amor, o Zé amava a vida, o modo como vivia e também as envolvências que o acaso ditava. Ponto final.
Amigos. Para ele, conhecidos de ontem e de hoje estavam metidos na mesma lista. Sendo assim, tinha muitos amigos. Mas amigos às pazadas que contavam apenas como um número, porque os amigos do coração são, normalmente, poucos e bons. Mas isso é outra história que não cabe nesta, que está quase a acontecer e que me contaram e que teve como protagonista central o nosso Zé Galo. Zé, um diminutivo de José. Quanto a Galo, nada tem a ver com apelido. E, de momento fico-me por aqui.  
Tinha arte para o negócio, qualquer que ele fosse. Berlindes de pirolitos protegidos por abafadores poderosos. Bonecos da coleção ou banda desenhada a que faltavam páginas. Vendas fantásticas de sapatilhas estafadas porque eram de marca. Relógios sem motor. Enfim, vendas.
O ser extrovertido era um dom que sabia aproveitar até ao último sumo espremido. Daí, ser dotado para o negócio. De tal forma, que no futuro poderia vir a ser negociante de automóveis ou gerente de uma agência imobiliária. Quanto a ser delegado de propaganda médica, era coisa posta de parte visto que tinha o síndroma da bata branca.
E a propósito de negócio, um dia o nosso amigo Zé Galo levantou-se da cama iluminado por uma ideia genial, tão brilhante que se a aplicasse com entusiasmo e dedicação, daria certamente um lucro a rondar os cem por cento. Já disse que se levantou com a tal ideia. Pronto. Está dito.
«Trigo limpo, ou não me chame José.»
Seguiu-se a ida obrigatória à casa de banho e etc e tal.
«Lavaste bem essa cara, Zezinho?»
«Sim, mãe.»
«Queres sopas de pão com leite e Toddy?»
«Ainda há farinha Amparo?»
O amparo dos sãos e dos convalescentes.
«Não, filho, acabou ontem.»
Devorou o pequeno almoço e saiu. Minto. Antes disso, desceu as escadas que davam acesso ao quintal, este dividido em seis talhões, tantos quantos os inquilinos do prédio. Ao fundo do seu talhão havia um galinheiro. Aí permaneceu em meditação quase transcendental durante alguns minutos.
Que tinha a ver a ideia com os galináceos e os coelhos?
Não. A faisoa era ideia posta de parte. O pai tratava-lhe da saúde. Não, obrigado.



Subiu as escadas com um sorriso no rosto e só então saiu para a rua, levando a direção da papelaria do Mané Tó, onde comprou um pequeno livro de rifas.
«Só isso?»
«Sim, chega.»
E sorriu.
Ideia brilhante, a das rifas.
Mas para quê?
Agora era preciso usar o dom que Deus lhe dera. A arte de convencer os conhecidos e os desconhecidos. Cem entre todos que conseguisse catequisar. Não podiam ser mais porque o livro tinha cem rifas.
«Compre uma rifa, senhor Anacleto! Só custa cinco tostões...»
E seguiu-se a dúvida posta pelo senhor Anacleto.
«Para que é, rapaz?»
«Vou rifar um galo com mais de três quilos. Tem sido só alimentado a sêmeas, couves e milho. Está bom de ver. Não há galinha que lhe escape e o bicho canta que é um regalo.»
«Se está gordo, então é um galo capão.»
«Um galo quê?»
«Capão. Tiraram-lhe os tomates, entendes?»
«Ah sim. Eu próprio... Bem» pensou. «Mas este é especial. Salta em cima das galinhas.»
«Bom. Dá cá três rifas. E quando é o sorteio?»
«Quinta-feira. Tome atenção aos dois últimos números da lotaria nacional. Eu ando aqui pelo largo.»
E foi fácil. Ou melhor: relativamente fácil. Teve que usar engenho e arte para convencer os mais desconfiados.
Era segunda-feira. No próprio dia venceu as cem rifas. E tudo nos conformes. Nome dos compradores no "canhoto" do talão. Pronto. Uma receita de cinquenta escudos e um lucro de quarenta e nove pois as rifas custaram dez tostões. Portanto, êxito absoluto naquele negócio que resultou de uma ideia luminosa. Uma daquelas que o tornariam célebre na vila.
No dia seguinte, terça-feira, já tinha esquecido a venda das rifas e os habilitados ao magnífico galo alimentado a sêmeas, couves e milho e que dominava, de que maneira!, o seu harém situado na capoeira.
Chegou o grande dia. De facto o Zé não faltou ao prometido. Da parte da tarde estava no largo do convento. Ou melhor: atravessava o largo perpendicularmente, com destino à mata. O dia estava primaveril. Não havia vento e convidava a uma passeata pelo largo. Portanto, nesse dia havia muita gente a gozar dos benefícios dessa tarde maravilhosa.
Mas o Zé não ia ficar no largo. O seu destino era a mata onde tinha combinado um encontro com a namorada, uma última aquisição de recurso dado que a outra, boazona como o milho que a mãe dava de comer ao galo, tinha-lhe passado a perna. Enfim, do mal o menos.
Consultou o relógio. Já ia atrasado.
«Ó Zé!»
Virou-se, sobressaltado.
«Mau mau» pensou. «Temos merda no beco...»
«Ah... é o senhor Pires. Então o que se passa?»
«Olha, rapaz, tenho o 37.»
«O quê? É verdade...» Lembrou-se.
Desenrasca-te agora, Zé Galo. A tua mãe não consentiu que o galo servisse de prémio, dado que desempenhava um papel insubstituível no seu reino que era a capoeira. E mais nada.  Agora é contigo...
«Nem pensar nisso é bom, Zezinho. Trata de ir à praça comprar um galo para as experiências da escola. Era o que faltava!, o meu Tony a servir de cobaia...»
«Mas...»
«Nem mas nem meio mas!»
E pronto. Caso arrumado na altura. Só que nunca mais se lembrou. Foi a ida ao cinema com a Dolores. O lanche no café Batalha. Outra lancharada com a malta. Tudo pago por ele à custa dos patos das rifas. Um forrobodó do caraças.
«Então onde está o galo?»
O galo. Pois era. O galo.
«O galo... O galo está ali. Pode ir lá busca-lo...»
E apontou de imediato para um dos cataventos do convento.
«Ah, meu sacana que te esgano!»
Foge, Zé Galo! Tiveste uma ideia genial, mas nem todas as ideias geniais são bem recebidas, sabes? Se não sabes, então ficas a saber.
E fugiu a bom fugir para os braços da sua amada Brunilde, mais uma nuvem passageira que o acolheu.
Dá cá mais cinco, Zé Galo. Tiveste uma ideia genial!

domingo, 15 de outubro de 2023

O Almirante Sardinha


Estamos em fevereiro de 1972. O Vera Cruz fez  a sua última viagem de transporte de tropas para o Ultramar, ficando no "Mar da Palha" aguardando para ser vendido. A sua tripulação vai sendo colocada em outros navios. Eu fui transferido para o Uíge.
Chego ao novo navio, apresento-me ao 2º maquinista ("Pantera cor-de-rosa") que me dá todas as instruções e me indica o camarote e a seguir diz:
«Amanhã, às oito horas, a bordo.»
No dia seguinte entro ao serviço e noto que o ambiente na casa da máquina não é mau, impressão que confirmo ao almoço na messe dos oficiais de máquinas.
Nas estadias em Lisboa o paioleiro ia às compras e um ajudante de motorista cozinhava, evitando assim termos que levar comida de casa.
O paquete Uíge faz a carreira de Angola, indo até Moçâmedes.
Finalmente chegou o dia da véspera de saída e marcámos os quartos e a escala de serviço. Vou fazer o terceiro quarto, da meia noite às quatro da manhã e meio dia às quatro da tarde. No outro dia saímos com destino a Leixões e chegamos pela manhã do dia seguinte. 
A estadia era agradável, tanto a bordo como nas saídas para o Porto, Matosinhos e Leça. Havia sempre um almoço ou jantar no restaurante "Serpa Pinto" que constava de fanecas ou petingas fritas com arroz de tomate. Nunca faltava um lanche ajantarado no "Costa" que constava de presunto e vários enchidos do norte, acompanhados com broa de Avintes e bom vinho verde para quem gostasse, branco ou tinto. Não faltava o almoço ou o jantar do nosso chefe João Domingos que convidava os seus amigos, alguns muito divertidos que davam bom ambiente a este momento alto gastronómico.
À medida que a viagem decorria e o convívio com o pessoal nos ia aproximando era notória a influência da presença do nosso 3º maquinista prático de nome Virgílio, homem com muito expediente, bom contador de histórias, mas nitidamente protegido do chefe.
Durante um desses almoços com os convidados, a certa altura falou-se nos torneiros mecânicos que faziam maravilhas com os seus tornos um tanto ou quanto toscos, pois eram tornos de correias e rodas de muda. Logo o astucioso Virgílio aproveitou a oportunidade para brilhar.
«Comecei a trabalhar aos doze anos como aprendiz de torneiro. Só aí andei até aos dezoito anos, altura em que passei a oficial de terceira. Aos vinte anos fui tirar o curso de ajudante de motorista e iniciei a minha vida de mar na pesca e depois entrei na Marinha Mercante.»
Era uma boa altura para desmascarar o falacioso protegido do chefe, mas a conversa tomou novo rumo. Um convidado do chefe, ourives de profissão, dono de uma ourivesaria em Matosinhos tomou a palavra. Não me lembro bem do motivo da sua intervenção. Talvez se tenha falado de joias, por exemplo das maravilhas do talhe de diamantes em brilhante e em rosa.
«É preciso ter muito cuidado. O mercado está inundado de joias falsas. Há muita gente a vender gato por lebre. Hoje em dia só se deve comprar uma joia numa ourivesaria de confiança.»
«Como assim?» perguntou alguém.
O convidado do chefe, uma pessoa bem falante, pareceu-me logo ser pessoa competente no seu ofício.
«Hoje em dia o negócio fora das ourivesarias está num momento florescente. Há vendedores porta a porta a venderem joias de terceira classe ao preço das de primeira.»
«Não contando com o acréscimo de lucro que têm ao venderem a prestações.» Acrescentou alguém.
«Tem razão. A propósito, embora por motivos quase à margem, passou-se comigo um caso complicado que acabou por ter a sua graça. Não foi bem um caso de venda de gato por lebre. Posso contá-lo se estiverem de acordo.»
Ninguém se opôs. Aliás, a curiosidade dos presentes foi espicaçada.

Um dia, à tarde, entrou uma jovem cliente na ourivesaria e disse logo ao que vinha. Perante uma explicação tão clara, o ourives começou a mostrar algumas peças que logo foram rejeitadas pela cliente. Ao mesmo tempo notou nela um à vontade invulgar e uma presença de espírito notória. Dir-se-ia que ela estava a insinuar-se.
«Então a menina está a pensar num anel com uma pérola verdadeira. Muito bem, posso mostrar-lhe dois ou três e espero que goste.»
«E não só. Tem que ter também um brilhante generoso.»
«Generoso?»
«Um brilhante que se veja.»
«Ah sim, que se veja. Mas vai sair-lhe muito caro esse anel.»
«Não importa.» Sorriu, dengosa, quase se roçando pelo ourives.
O nosso ourives, ao ver tanta facilidade, começou logo a sonhar. Não podia perder tal cliente. Mas, ao mesmo tempo, estava a constatar outra coisa. Ele era um cinquentão e ela andava entre os vinte e os trinta. E melhor, era uma "joia" que não podia desprezar. Que parte dele em luta podia sair vencedora, a material ou a outra que o impelia para uma aventura que se mostrava agora de mão beijada?
«Bom, vejamos. Perder uma coisa tão boa é um atentado à minha personalidade.» Pensou. «Não quero perder a oportunidade, mas também não posso satisfazer um capricho tão dispendioso.»
«Vou mostrar-lhe outras peças...»
«Sim, por favor.»
E exibiu um sorriso ainda mais envolvente que o fez estremecer dos pés á cabeça. Ou vice-versa. Não importa.
Pouco depois...
«E este anel?»
«A pérola e o diamante têm que ser maiores!»
«Oh!»
«Não me diga que não tem...»
«Tenho, sim. Mas vai ficar muito caro.»
«Não há um desconto?»
«Hum...»
«Prometo ser generosa...»
Confirmação. Ela estava a dizer finalmente ao que vinha. Uma cambalhota daquelas não se podia perder. Ela... era boa como o milho. Mas podia sair-lhe caro.
«Então?, ficou mudo?»
«Nem por isso» replicou. «Mas vai custar-lhe muito dinheiro. Tenho que mandar fazer o anel, principalmente por causa do brilhante.»
«Não importa. Eu sei esperar. Isto desde que mereça a pena...»
O nosso ourives pensa em convidá-la para jantar. É um primeiro passo. Depois, logo se vê. Mas pensa ainda no anel. Tal como ela quer, vai-lhe sair caro. O negócio está florescente, mas nunca se sabe o dia de amanhã.
«Olhe, e se um dia destes jantássemos num restaurante pacato e de qualidade? Ao mesmo tempo combinávamos os detalhes,»
A jovem disse logo que sim.
«Pois, os detalhes...» Disse, roçando-se pelo ourives que ficou ao rubro. «São muito importantes os detalhes, não são?»
«Claro que são. Mas ainda não me disse a sua graça.»
«Sou a Susana.»
«E eu chamo-me António.»
Quanto ao anel, o nosso António encheu-se de suores frios quando soube o valor do orçamento. Uma pipa de massa por umas quecas era um autêntico suicídio. Por outro lado, não queria perder aquela "joia".
O dia do jantar chegou e não podia ter corrido melhor para ambos. De tal forma que acabaram a noite na casa da jovem. Sem mais comentários. A não ser falar de uma pergunta da Susana.
«E o anel?, já está a fazer?»
Ele fica um tanto ou quanto confuso. Mas é só por um momento. A parte económica toma logo conta da situação.
«Como o encomendei fica um tanto ou quanto dispendioso. Temos que reduzir o tamanho do brilhante.»
A jovem ficou amuada.
«Para ti nem um anel mobito mereço?»
«Não é isso. Tu mereces tudo. Vou mandar fazer a jóia e vais ver que ficas encantada.»
«Não me desiludas. Nem penses em pôr o brilhante mais pequeno. E agora vem a mim, querido.»
«Pois vou» pensou. «Mas estou com um problema do caraças!»
Pouco ou nada dormiu nessa noite. Quando chegou à ourivesaria caiu verdadeiramente na realidade e começou a cogitar como ia sair daquela alhada. Só havia uma solução. Sim, o brilhante. Podia pôr um falso. Só um especialista daria conta.
Se bem o pensou, assim o fez. Telefonou para a oficina e deu as suas ordens.
O dia do anel chegou.  
«És um amor. Mereces tudo.»
«Tudo?» pôs-se a sonhar. «Mas...»
«Mas o quê?»
«Nada, nada. E se jantasses comigo hoje?»
Para comemorar aquele momento do anel reservou uma mesa no restaurante "O Castelo". Um restaurante de luxo em Leça. Noites não eram noites. E que noites.
Logo a seguir à sobremesa chegou o grande momento.
«Que belo é este anel! E o brilhante ainda é maior do que imaginava! Obrigada, querido.»
«De nada, amor. Mereces tudo.»
Estranhou não ter resposta.
«Vamos para tua casa?»
«Se não te importas, querido, fica para amanhã. Esta horrível dor de cabeça não me largou todo o dia...»
«Primeiro está a tua saúde.»
«Isto não é nada. Vai passar. Pensando melhor, lembras-te daquela pulseira em ouro maciço que me ficava muito bem no pulso?»
«Lembro-me, sim.»
«Faz-me ainda mais elegante. Como eu gostava que ma oferecesses!»
«Não pode ser, Susana. A pulseira já está apalavrada.»
«É pena.»
«Pois é. Ficava-te tão bem...» 
«Esta dor de cabeça que não me larga.» Lamentou-se, simulando contrariedade.
Arroz queimado. Entrou o bispo, ou assim. E mandar fazer a pulseira com ouro falso, isso nem pensar. Era um desprestígio para a sua pessoa. Bem bastava ter feito o que fez com o brilhante.
«Não tenho saída...»
Pensando com a cabeça já tinha idade para ganhar juízo. Ao mesmo tempo admitiu com uma certa tristeza que "aquilo" acabava pouco depois de ter começado.
Olhou-a de olhos nos olhos e tentou adivinhar o que já estava adivinhado.
«Pensas que ando contigo só por causa dos teus lindos olhos?»
Era isso. Os seus sonhos eram outros. E para ele, quem lhe mandou sonhar com quimeras?
Claro que o amanhã prometido não chegou. A bela Susana, mal se viu com o anel, facilitou toda aquela situação que o António achava estar a complicar-se e desapareceu da circulação, sem sequer dar um beijo de despedida. Nem viu nela um simples olhar romântico.
«Bem feito, António. Deste duas quecas, mas felizmente poupaste no brilhante.» Admitiu. 

«Saiu-lhe caro o "negócio", amigo António.» Disse alguém.
«Pois saiu. Mas podia ter sido pior.»
«E a tal Susana nunca mais apareceu para dar outro golpe do baú?» perguntou um dos presentes. 
«Valeram a pena as quecas?» perguntou outro.
Uma queca vale o que vale. Quanto à bela Susana...

Tudo acabou em bem. Se ela fosse mais esperta talvez levasse mais alguma coisa. Felizmente que desapareceu da circulação. Ela e o anel de brilhante. Não esquecendo a pérola verdadeira.
A vida do ourives voltou à calmaria do costume. Negócios a seguir a negócios, feitos sem sobressaltos. Até que um dia...
Não. Não era um sonho mau. A Susana estava na sua frente a chamar-lhe nomes feios, inimagináveis. A ele, um homem de bem que um dia pecou por ter sonhado algo que nunca passaria de um sonho.
«Velho paneleiro! Velho corrupto. Porco nojento!»
«Mas...»
«Não tens vergonha em vender joias falsas, enganar os clientes...» 
E tenta agredi-lo, continuando o impropério de asneiras. 
Com tanta gritaria começa a juntar-se uma pequena multidão à volta da ourivesaria. Pessoas sempre prontas a saberem as últimas novidades,
Chega a polícia, faz as suas perguntas e conclui rapidamente que a jovem Susana não tem qualquer prova em relação ao que estava a afirmar. Não comprou o anel. Este foi-lhe oferecido.
De imediato é aconselhada a ir-se embora.
«Sou enganada, sou enxovalhada. E vai-te embora. Só neste país!» 
E saiu porta fora.
O ourives dá um suspiro de alívio. Tudo acabou em bem para ele, mas não se livrou da fama de se ter envolvido numa aventura.
«Velho paneleiro. Fizeste uma boa figura! Nem com o "pau de Cabinda" estiveste à altura!» gritou ela, já no exterior da ourivesaria.
«O que aconteceu mais que eu não sei?» perguntou uma mulher.
«Bem gostava de ser mosca...» Disse outra.
Risos. Aplausos. Expressões de dúvida. De tudo um pouco.

«Nunca mais me meti em alhadas.» Disse o ourives para o chefe. «Finalmente estou livre.»
«Até à próxima.» Comentou um dos presentes.
«Isso é o que pensas, António.» Afirmou o chefe. «Cuidado com elas.»

Saímos de Leixões. O rumo é Las Palmas, porto muito agradável onde se comprava tudo, desde relógios, rádios, televisões, eletrodomésticos, bebidas e tabaco. As Canárias são portos livres e os navios aproveitam para abastecerem de combustível nestes portos, devido aos preços convidativos. Hoje tudo acabou. Continua a haver portos livres mas os preços são praticamente os mesmos.

Nas muitas conversas à refeição o 3º Virgílio é quem se destaca mais. Um palrador incorrigível.
Falou-se nas traineiras que andavam á pesca na nossa costa e logo o Virgílio entra em ação:
«Foram aí os meus primeiros embarques. Embarquei na traineira "A Rosina" quando acabei o curso de ajudante e lá andei cerca de seis anos, até tirar o curso de motorista de terceira classe. Quando acabei o curso fui convidado para o arrastão "Pimpinela". Andei aí até ter o tempo de embarque para a carta de motorista de segunda classe. Foram três anos. Fiz o exame e passei, como não podia deixar de ser. Um profissional como eu passa sempre.»
E continuou...
Ao acabar o curso ficou sem emprego, mas logo foi abordado se queria ir para Benguela. Havia uma empresa que estava a pedir motoristas. E lá foi para África, onde passou grande parte da sua vida.
«Andei quinze anos nas traineiras. Nem à metrópole vim. Só trabalho. Muito trabalho. Eu sou assim. Quem me conhece, sabe. Quando falava em vir para Portugal logo os meus chefes diziam: "E quem te rende?". Eu lá me ia conformando e fazia mais um ano com a promessa de ser no próximo.»
Chegava a altura das férias e ir para a metrópole. Falava com os meus chefes.
«Ó homem, é impossível. E então agora que estamos a contar contigo para trabalhares nas oficinas... A não ser que prefiras as férias.»
«Ó chefe, como é que é isso?»
«Muito simples. Ficas a trabalhar nas oficinas com um ordenado muito maior.»
«Como assim?»
«Ficas como encarregado de primeira. Aceitas?»
Pensa e logo diz:
«Aceito, mas para o ano vou à metrópole.»
«Claro, homem. Para o ano gozas as merecidas férias.»
E foram mais quinze anos. Estes, passados nas oficinas a trabalhar no duro. Não era capaz de dizer que não.
«Quando me vim embora para a metrópole era encarregado geral das oficinas.»

A viagem continua e vamos a S. Tomé. Como sempre chegamos de manhã. Aproveito para ir a terra desfrutar de uma praia maravilhosa, com um almoço tardio de camarão da Ribeira e sumo de ananás.
De S. Tomé seguimos para Cabinda e vamos à famosa foz do rio Zaire. Depois, Luanda, Lobito e chegamos a Moçâmedes, o último porto de escala. Como se diz na gíria, começamos a recolher cabo.
O porto de Moçâmedes fica a cerca de um quilómetro do centro da cidade. A estrada é paralela à praia e prolonga-se até à praia principal. Aí ficam o comércio, a restauração e os cinemas, não esquecendo as boas esplanadas com o camarão e o caranguejo (1).
Por aí almoçamos ou jantamos, pois as refeições não são nada caras.
Sou informado durante o quarto que no cinema levavam "O Pai Tirano" e penso logo em ir. Depois do filme ia a uma esplanada e comia alguma coisa.
Acabo o quarto às sete da noite, tomo banho e vou ao cinema. Acaba o filme e sinto a barriga a dar horas. Vou a uma esplanada e mando vir um bife à casa. Um bife enorme com molho de natas, batatas fritas e um ovo a cavalo. A seguir tomo café. Nesse momento começo a ouvir uma cantoria incessante de grilos. Penso logo em fazer uma gracinha inocente das minhas. Já matei a fome e pago. Depois, peço ao empregado se não me arranja um cartucho em papel pardo, igual àqueles em que se punha o café moído que se vendia a peso. 
«Por acaso tenho, senhor.»
Saio da esplanada com um sorriso no rosto. Sei muito bem o que vou fazer. Meto-me ao caminho de regresso para bordo e apanho uns tantos grilos que meto no cartucho. Já a bordo só espero que eles, ao portaló, fiquem calados. E tenho sorte, Não cantam. Talvez por estarem aprisionados no escuro, dentro do cartucho.
Àquela hora o nosso chefe João Domingos dorme que nem um justo com a porta no gancho. Há uma greta de vinte centímetros. 
«É para já!»
Abro o cartucho, bato no fundo e os insetos cantadores não se fazem rogados. Ao verem luz saem do cartucho e caem na alcatifa do camarote do chefe. Logo a seguir deito o cartucho ao mar. Vou para o camarote e durmo até às quatro menos vinte, hora de chamada para entrar de serviço na casa da máquina.
Os serviços em porto eram sossegados. Estava tudo parado. Era só deixar correr o tempo.
Às sete e meia o praticante vem para baixo com novidades. Na messe estão numa conversa animada sobre uma ocorrência durante a noite. Alguém encheu de grilos o camarote do chefe.
«É impossível.» Digo eu. «Não podiam entrar.»
«Os grilos entraram pela greta da porta e cantaram toda a noite. O chefe não conseguiu pregar olho...»
Sou rendido e vou à messe comer uns ovos mexidos.
«O senhor terceiro já sabe dos grilos?»
«Quais grilos?» perguntei. 
«Durante a noite puseram no camarote do chefe uma série de grilos.»
«Coitado do chefe» lamentei. «Deve estar de rastos...»
«Bons cantores. Nunca se cansaram de cantar.» Queixou-se o chefe João Domingos, do seu lugar.
«Ah!»
«Bem, graça até teve. Mas se apanho o malandro do brincalhão!»
«O chefe dorme com a porta no gancho e há tanto grilo lá fora que uns tantos entraram!»
«Ó Fernandes, você é o segundo embarque que faz. Não imagina a malandragem que há para aí. Estão sempre prontos para rebaixar o próximo. Se fosse um ou dois grilos ainda acreditava que tinham entrado só por eles. Mas era um batalhão de cantores, Fernandes!» 
A história dos grilos não saiu de cena. Saímos de Moçâmedes e quando estávamos a chegar a Luanda ainda havia grilos-cantores à solta. E se eles cantavam maravilhosamente, para grande desespero do chefe Domingos!

Voltando ao Virgílio...
Pediu para trocar um quarto, pois precisava de ir visitar os amigos.
«Por onde ando faço amigos.»
«O senhor Virgílio quando foi para a metrópole continuou a trabalhar? Não se reformou?»
«Pensei nisso, mas ainda era novo para me reformar. Além disso, fiz poucos descontos e ficava com uma reforma de miséria. Ao mesmo tempo apareceu logo um lugar no navio "Horta" nos "Carregadores Açoreanos" a fazer a carreira dos Açores para os Estados Unidos. Nestas viagens íamos a Nova Yorque...»
E começou logo a descrever a entrada nesse porto, não se esquecendo de falar na "Estátua da Liberdade", situada à direita de quem entrava.
«Ainda andou durante bastante tempo nos "Carregadores Açoreanos"?»
«Sim. Entre o "Horta", o Ribeira Grande" e o "Monte Brasil" ainda foram alguns dez anos. Daí vim para a Colonial e por cá fiquei. Primeiro, o "Luanda". Depois, "Benguela", "Ganda", "Lobito". Finalmente o "Uíge". E cá estou há quatro anos.»
«Sem ir de férias?»
«Sem ir de férias.»
«Então há quantos anos anda na Colonial?»
«Bem, quatro daqui e com os outros embarques já lá vão uns oito anos. Mas agora me lembro. Desculpem, esta cabeça já não é a mesma. Depois dos "Carregadores fui trabalhar numa oficina de reparação de barcos de pesca. Isto em Peniche.»
«Senhor Virgílio, ainda esteve alguns meses na oficina?»
«Meses? Claro que não. Aguentei três anos.»
«É obra!»
«Pois é.»
«O meu amigo, se assim lhe posso chamar...»
«À vontade.»
«Quantos anos tem?»
«Bom, já se passaram cinquenta e seis primaveras. Havia de me ter reformado no ano passado, mas tem sido uma vida de trabalho, como já lhe contei, a descontar pouco. Chega-se ao fim e fica-se com uma reforma de miséria. Agora na Marinha estou a fazer os descontos corretos. Já é tarde mas talvez ainda valha a pena.»
«A verdade é esta. Sempre pensei que o senhor tivesse mais idade. Apesar de não parecer o senhor está ótimo. Com todos esses anos de trabalho em tantas empresas estava convencido que o meu amigo andava a rondar os oitenta anos.»
«Ó Fernandes, eu ao falar onde trabalhei digo os anos aproximadamente, compreende? Já vi que os meus amigos andam sempre prontos para a brincadeira. Pegaram nessa da idade para se meterem comigo.»
Diz o 3º maquinista:
«O senhor com um currículo desses é já promovido com distinção a Almirante Sardinha!»
Todo o pessoal presente ri, menos o nosso Almirante". Irritado, abandona a messe, dizendo que a brincadeira tinha ido longe de mais. 
Foi um sinal claro que ia com "os azeites" ao bater com a porta com estrondo.

(1) Os caranguejos de Moçâmedes são sapateiras enormes com patas bem recheadas. O seu interior é delicioso. 
   
     

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O vulcão em La Palma

 


E

stava casado há poucos dias. Tínhamos vindo de Palma de Maiorca, onde passámos a lua de mel no hotel Cristina. 
O Vera Cruz estava a chegar da sua viagem de Luanda com tropas. 
Já sabia que ia embarcar nele, para fazer a primeira viagem. Tinha que começar a ganhar o meu primeiro ordenado.
Os dias passavam. Até que o chefe Lopes telefonou e informou:
«O Vera Cruz chega amanhã e seria bom estar aqui logo pela manhã para ganhar o dia e tratarmos de todas as formalidades.»
Lá fui para a Rocha do Conde de Óbidos até à Colonial, onde falei com o chefe Lopes. Tratámos da papelada e recebi ordem de marcha para bordo.
Chego ao navio e vou ter com o piloto, a quem entrego os papéis.
«Amanhã, às oito horas a bordo! Por hoje é tudo.» Disse o piloto.
Saí de bordo, apanhei o elétrico para a Praça da Figueira. A seguir fui beber café à Suiça e segui para a estação do Rossio, onde apanhei o comboio para a Amadora. Aí chegado, fui a casa dos meus pais dar um beijo à minha avó Alice e à minha mãe. Demorei pouco tempo e segui para o apartamento na Reboleira, onde a Luísa me esperava. Contei-lhe todas as peripécias do dia.
«Já estou a ganhar! Tenho que estar amanhã, às oito horas, a bordo.»

Ainda não sei o dia da saída. Vamos a S. Tomé e à ilha do Príncipe. A viagem dura vinte e três dias. É rápida, mas sempre é quase um mês fora de casa.
Chegou a hora do jantar, comemos e arrumámos a cozinha. A seguir vimos a televisão até o "João Pestana" chegar. E chegou bem depressa. Assim como a hora de levantar e de seguir para bordo.
Apanhei o autocarro para o Museu dos Coches (Belém) e daí o elétrico para a Rocha. Viagem rápida àquela hora da manhã. Ainda não eram oito horas.
Chego a bordo e vou apresentar-me ao primeiro oficial maquinista. Faz as suas perguntas e diz, logo a seguir:
«Vou levá-lo ao seu camarote. Vista o fato de macaco e vá ter à casa das máquinas com o segundo oficial, o senhor João Lima.»
Assim faço. Entro no elevador que me conduz às profundezas do navio. Encontro o Lima, apresentamo-nos e passo o dia com ele.
Às quatro horas vimos para cima e falamos com o primeiro oficial Albertino.
«Tudo bem. Podem ir tomar banho. E amanhã, às oito, a bordo.»
Venho para casa e conto a nova aventura à Luísa. Pergunta-me se estou a gostar. Digo que sim. O ambiente é bom e calmo.
No outro dia de manhã estou de novo a bordo e sigo para a máquina com o Lima. Há muito para fazer. O navio vai sair ao outro dia, a seguir ao almoço.
As caldeiras começam a levar os primeiros calores até terem pressão de vapor. Assim se vai passando o dia. Até que chegam as quatro horas e venho para cima com o Lima. O próximo passo é entrar no escritório da máquina onde está o 1º Albertino. Ao ver-nos, levanta os olhos da secretária.
«Está tudo bem?»
O Lima responde:
«Tudo bem da nossa parte. O senhor segundo Cipriano está na casa das caldeiras e o senhor segundo Marques Mendes está na casa da máquina.»
«Bom, vão tomar banho. Amanhã a bordo, às oito. Já me esquecia, o Soares fica de serviço à chegada a Lisboa com o 3º Victor Campos Alves. Este rapaz é prático, não é de curso, mas é muito competente. Tive ocasião de confirmar os seus conhecimentos ao longo do embarque.»
Vou para casa o mais rápido possível. Jantamos e vamos a casa dos meus pais para me despedir de todos.
Volto a casa com a Luísa. O ambiente é triste, vai haver uma separação de quase um mês.
No dia seguinte sigo para Belém e daí para a Rocha, onde está o navio. Vou para bordo e começo no meu trabalho de quartos. Estou a fazer o terceiro quarto, da meia noite às quatro da manhã e do meio dia às quatro da tarde. O chefe de quarto é o segundo João Lima. Eu sou o terceiro da casa da máquina e o Victor é o terceiro da casa das caldeiras.
O navio saiu no nosso quarto. Em manobras havia sempre o dobrar de quartos.
Às quatro da tarde ainda estamos em manobras e temos que ficar até dar o pronto à máquina, ou seja, o fim das manobras. Há que acertar tudo na casa da máquina. Só depois é que vamos para cima para o nosso merecido momento do descanso. Já não era sem tempo.
Subo no elevador e vou direito ao camarote. Mal entro, fico sentado no sofá. Estou estafado, mais por causa do barulho do que do trabalho. Pouco depois tomo banho (ó banho abençoado!) e logo a seguir deito-me na cama. Fico aí até à hora do jantar, que é às sete horas.
Em conversa na messe fico a saber que entrou um vulcão em erupção na ilha de La Palma. Vamos poder assistir a um espetáculo fantástico. Fico entusiasmado.
Pergunto a um colega quando passamos.
«Olha, depois de amanhã. À noite.»
Assim foi. Passámos ao largo, com a erupção à vista. Foi uma visão espetacular. Para nunca mais esquecer.
Esta erupção durou mais de dois meses, visto termos passado ao largo da ilha por três vezes.

Continuámos a viagem para sul. As temperaturas começaram a subir e chegaram a atingir os 57º C. na plataforma de manobras. Era o "inferno de Dante", como o 2º maquinista Cipriano chamava.
Estávamos no Equador [1], a um dia de viagem até S. Tomé e Príncipe.
Nesse dia, à saída do "quarto", fui a tribunal marcial. "Desafiei o deus Neptuno e tenho que ser condenado por um ato tão impensado".
Reunem-se os membros do tribunal. O juiz é o 2º Marques Mendes, alcunhado por "pica a burra". O advogado de acusação é o 2 º Lima e o de defesa é o 3º Jacinto. Quanto ao julgamento, esse decorre na piscina da 1ª classe. O ambiente é bom. Como já tinha levado uma série de banhadas de água fria durante o quarto, sou só condenado a mais uma banhada no quarto da noite. Sou atirado três vezes para a piscina, onde tenho que ir buscar ao fundo uma argola em ferro. Caso contrário, por cada falhanço pagava uma rodada de cerveja o todos os oficiais de máquinas. Como fui ao fundo nas calmas buscar a argola de ferro não fui condenado a pagar as rodadas de cerveja, mas o deus Neptuno condenou-me a pagar uma caixa de doze garrafas de "Mateus Rosé".
O jantar foi animado com o vinho a escorrer pela goela abaixo de cada um. E no fim houve uma saúde em minha honra. Depois, entregaram-me o diploma de passagem do Equador.

De manhã cedo chegámos ao Príncipe, onde ficámos fundeados. Pouco depois fui a terra de lancha. Quando cheguei, pensei que estava no Paraíso. Encantaram-me especialmente aquelas praias de areia branca e os coqueiros altaneiros, à beira-mar.
Passei a manhã na praia (digo, Paraíso). A temperatura da água rondava os vinte e oito graus Celsius e não resisti à tentação de tomar vários banhos. Por volta das duas da tarde fui para uma esplanada na marginal e mandei vir uns camarões da ribeira que acompanhei com cerveja bem fresca. Inesquecível a comida e a bebida com toda aquela paisagem envolvente!
Chegou a hora de deixar o Paraíso no seu sítio e de apanhar a lancha para bordo. Tomei banho e só então reparei que apanhei um senhor escaldão. Até parecia um pimento maduro.
À noite fomos para S. Tomé, onde também fundeámos.
De manhã apanhei a lancha e fui para terra. As praias também eram paradisíacas, mas não tinham a beleza das da ilha do Príncipe. Bebi mais umas cervejas, acompanhadas por uns pratos de camarão da Ribeira.
Voltei para bordo.
Dois dias depois cheguei a Luanda. As chegadas eram sempre de manhã por causa do desembarque de tropas.
Saí de quarto às quatro da tarde e fui logo para terra. Andei a passear por Luanda. Passei pelo "Polo Norte", restaurante onde serviam uns gelados deliciosos. Acabei por ir jantar aos "Pezinhos na Água", restaurante na ilha, com uma esplanada na praia, onde a água da baía de Luanda chegava. Daí o seu nome.
Comi umas garoupinhas grelhadas, que tinham sido pescadas na barra do Quanza. Estas garoupinhas eram famosas pelo sabor e pela sua consistência.
Saímos de Luanda ao quarto dia com destino a Lisboa.
Passámos pelo vulcão que continuava com erupções fortíssimas, que tinham grande beleza vistas ao longe.
Chegados a Lisboa todo o mundo foi para casa, à exceção do pessoal de serviço. É claro. Eu fiquei. Mas a Luísa foi ter comigo. Ao outro dia fui rendido às oito horas.
Saímos de bordo e apanhámos um táxi para o Rossio. Tomámos o pequeno almoço na Suíça. Daí, seguimos para o nosso apartamento.
A estadia foi curta. Depressa se passou com uma tarde em Lisboa a fazer compras. Comemos uma açorda de gambas no "Telheiro", situado na Latino Coelho e fomos a um espetáculo.
Regressámos nos transportes públicos à Reboleira, onde nos esperava o nosso apartamento.
Como os tempos mudaram...

Se há coincidência ou não, não sei. O certo é que, cinquenta anos depois, fiz a minha última viagem no rebocador "Montalvo", indo a Dakar levar um batelão.
Saímos de Setúbal à tarde. À noite, estou na ponte a ouvir as notícias e oiço dizer que o vulcão da ilha La Palma entrou em erupção com irradiações fortíssimas para a atmosfera de fumos e cinzas.
Estamos a passar em frente ao vulcão e observo o mesmo espetáculo semelhante ao ocorrido há cinquenta anos.
Coincidência ou não, esta foi a minha última viagem!  

[1] Uma forma de dizer porque o Equador é um círculo máximo imaginário que divide a Terra em dois hemisférios, norte e sul.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Férias em Tenerife

 


Estava a ouvir o noticiário das vinte horas e trinta minutos e fui surpreendido com uma notícia. Lavrava um grande incêndio em Tenerife. Vi nas imagens o "Teide" [1] na sua imponência lá no alto. Tudo à sua volta estava em chamas. Um espetáculo triste.
Veio-me à memória o Natal e a passagem do ano de 2013 em Santa Cruz de Tenerife a bordo do rebocador Montalvo.
Tinha saído da Cidade da Praia a rebocar o "Vila Real", da Somague. Começámos logo a apanhar vento forte de norte e uma ondulação de cerca de dois metros. A velocidade começou a diminuir e lá fomos devagar, devagarinho, rumo a Lisboa. Subitamente o tempo agravou-se e logo de manhã recebemos instruções para arribar a Santa Cruz.
Almoçámos já atracados em Tenerife. Durante a refeição muito se falou nos dias que iríamos estar parados e seria difícil chegar a tempo de passar o Natal em casa.
Entretanto o nosso comandante Fredy diz:
«O tempo vai levantar daqui a três dias e já não dá para passar o Natal em casa. Esse será passado a navegar."»
O mestre Paulinho diz de sua justiça:
«Com muita sorte ainda passamos o Natal em casa.»
Alguém diz:
«Seria bom, mas não sonhes com isso.»
O almoço acaba e pensa-se em ir a terra. Estamos num cais bem longe do centro.
O 2º maquinista Tiago vai informar-se no cais com os guardas e regressa com notícias frescas. Ir ao centro é fácil, mas é bem longe. Primeiro vai-se a pé pela rua paralela ao cais até às bombas de gasolina. São quinze minutos a andar normalmente. Aí chegados, apanhamos o autocarro para o centro. O bilhete custa um euro e oitenta cêntimos. No regresso é o inverso.
«Chefe, quer vir?»
Penso e digo:
«Hoje, não. Amanhã irei.»
«Sendo assim, vou aproveitar a tarde e, se calhar, janto no McDonald's, pois estou com saudades de comer um hambúrguer
«Aproveita enquanto podes, puto reguila
Vou até ao camarote, telefono à Luísa e conto-lhe as novidades.
«O Natal já foi.» Digo com uma certa mágoa. «Vamos a ver a passagem do ano.»
Como tudo é diferente! Hoje pego no telemóvel e falo para onde quero. Se preciso de dinheiro vou ao multibanco. Mas há outras coisas que não mudam. Por exemplo, o mercado negro ainda existe em certos países como os de África e da América do Sul.
Passo a tarde a passear pelo cais e avisto o longo caminho que leva às bombas de gasolina. Penso para comigo:
«Amanhã irei lanchar ao "Corte Inglês" e compro a prenda de Natal para a Luísa.»

Manhã do dia seguinte...
Falo com o Tiago e fico a saber que o caminho até é agradável de fazer.
Almoço e vou até ao centro e reparo nas ruas enfeitadas com a decoração. À noite, com tudo iluminado, deve se bonito de ver-se.
Vou lanchar ao "Corte Inglês". Como uma azevia e bebo um chocolate quente. Compro a prenda da Luísa e vou para a rua e ando por aqui e por ali à espera que anoiteça.
Janto no McDonald's. Durante o jantar as iluminações acendem-se. Apesar de simples, são bonitas pelo seu conjunto de cores.
Apanho a camioneta até às bombas de gasolina. Sigo a pé para bordo do Montalvo. Apesar de ser dezembro a temperatura em Tenerife está amena. Uma maravilha. Valha-me isso.
No dia seguinte, o nosso comandante Fredy e o cozinheiro Antunes combinam ir às compras, pois os mantimentos já não são muitos e ninguém sabe a duração da estadia. Falam para Setúbal e o dinheiro é depositado na conta do Antunes. O supermercado eleito é o Carrefour por ser o mais barato e ter mais variedade de artigos. 
Mais de meia tripulação vai a terra abastecer-se e assim passa-se a tarde. As compras são trazidas a bordo pelo Carrefour. Quanto ao jantar é comprado no McDonald's e comido a bordo. Em dias de compras a paparoca vem de fora.

Os dias passam e nada quanto à saída. Ora está o tempo mau na nossa costa, ou está o tempo mau na zona atlântica. Com estes contratempos o Natal e o Ano Novo vão ser passados nas ilhas Canárias. Já não há esperança de chegarmos a tempo às nossas casas. O ambiente a bordo é de tristeza, mas como o velho ditado diz "morre dia, morre dólar". Assim, logo se pensa fazer as festas a bordo o melhor possível.
Pôs-se a situação à dona Manuela, chefe do pessoal da Rebonave.
«Vou depositar o dinheiro para que não falte nada a bordo.» Disse.
E assim foi. Não faltou nada. Umas iguarias compradas. Outras feitas. Como as fatias douradas do 3º maquinista Pompílio.
A estadia prolonga-se e pensa-se em alugar um carro para dar umas voltas pela ilha e ir ao "Teide".
Vamos a uma agências e somos informados que os carros estão todos alugados até à passagem do ano. É uma altura de muito turismo em Tenerife. Só no princípio do ano há carros disponíveis.
Expomos a nossa situação, que é compreensível e fica um carro reservado.
«Caso formos embora, tudo bem, o senhor desmarca.»
O preço é convidativo. Só falta o principal. Um carro. Somos quatro para o aluguer. É só esperar.
Os dias passam-se o melhor possível. Uns lanches no "Corte Inglês". Uns jantares no restaurante chinês e no "Mac". Uns passeios pelos arredores de Santa Cruz com alguma praia à mistura, apesar de estarmos em dezembro. Quanto às compras, estas são guardadas para depois do Natal, altura em que entra tudo em saldo no "Corte Inglês".
O tempo continua mau na nossa costa e não temos condições para sair. Vamos ficando e começamos a ganhar hábitos. Todos os dias dou as minhas voltas e vou lanchar, como não podia deixar de ser, umas iguarias de Natal à cafetaria do "Corte Inglês". Outros vão para a esplanada do restaurante chinês, onde têm internet. Aí passam a tarde, ou ficam para jantar. À noite há quem vá para um bar beber umas cervejas. Toda a tripulação está feliz. Todos têm as suas preferências satisfeitas.
Chega a noite de Natal que é passada em grande harmonia. Uns lembram a família que está longe. Outros dizem que não se pode ter tudo; e lá vem o velho ditado: "morre dia, morre dólar".
Ficamos na messe a conversar mais um pouco. E depois, camarote. É tempo de falar com os entes queridos.
O dia de Natal é passado a bordo. Dou um passeio pelo cais para esticar as pernas e volto a falar para casa. As saudades apertam. E assim se passa o Natal. Apesar da distâncias talvez tenha sido o melhor de todos passado fora.
Chega mais um dia. É o tempo de saldos. Faço as minhas compras. Vejo uns "Reis Magos" montados nos seus camelos. Faltam-me no presépio. Serão caros? Pergunto o preço. É convidativo. Nem sequer hesito.
Vou para a secção de roupas e faço mais compras. A viagem já dura desde outubro e estou a precisar de roupa mais quente.
Chega a hora do lanche e entro na cafetaria. Mais doces de Natal e um chocolate quente. Fico por lá a fazer horas para apanhar a camioneta.
Janto a bordo. De seguida vou para a cama. Até chegar o sono, ponho-me a ler "O Pagem da Duquesa", de Campos Júnior. Trata-se de um romance histórico muito interessante.
A nossa saída continua a ser adiada. A Companhia de Seguros não dá luz verde para sair. A Somague, a Rebonave e a Seguradora falam umas com as outras mas nada fica resolvido. O mau tempo na costa é uma realidade. As janelas entre a bonança e a tempestade são pequenas. Não há condições de furar o tempo.
Chega a passagem do ano e vamos às compras para não faltar nada a bordo. Tudo continua a correr em bom ambiente.
Depois do jantar formou-se um grupo para ir ver o fogo de artifício. Não dei por perdido o tempo. Foi muito bom. A seguir, o grupo dividiu-se. Uns foram para bordo, como eu e o Fredy. Outros continuaram por terra.
O dia de Ano Novo também foi passado a bordo. Nada faltou ao almoço e ao jantar. O bom ambiente manteve-se.
Finalmente chega a manhã de telefonar à agência a saber do carro. Boa notícia. O carro está à nossa disposição.
Diz o Antunes:
«Estamos no ir! Temos muito que andar até à agência...»
E lá vamos até ás bombas de gasolina para apanhar a camioneta. As formalidades do carro são feitas e este é-nos entregue. Começa o passeio pela ilha. Contornamos a marginal em direção ao "Teide". Aí chegados, almoçamos num restaurante perto da estação do funicular.
No fim do repasto entramos no funicular que nos vai levar ao ponto mais alto de Espanha.
E que vemos lá em cima? Uma vista maravilhosa. Vale a pena, mas está muito frio e estamos rodeados de neve. Pouco depois voltamos para baixo. Na zona dos restaurantes a temperatura é bem mais agradável, apesar da altitude.
Chegados ao carro é o momento do regresso ao centro da ilha. Fazemos várias paragens para apreciarmos a paisagem. Como é cedo, resolvemos ir à parte norte da ilha, onde jantamos e passamos um pouco da noite.
Fala-se do tempo que vamos ficar com o carro. O preço é bom e o carro faz muito jeito porque o centro é longe. Com o carro ao portaló tudo fica perto. São mais dois dias que aproveitamos bem indo a uma série de estâncias balneares.  E assim se vai passando o tempo...

Finalmente chegou o dia da saída rumo a Lisboa, onde vai ficar o "Vila Real". Depois, Setúbal. Mas nem tudo continuou a ser rosas. Para variar, começámos a apanhar vento norte e ondulação de metro e meio. Lá fomos navegando devagar, devagarinho. Com o tempo a agravar-se, veio a ordem de arribar a Portimão. Aí atracámos e ficámos dois dias.
Saímos com vento pela proa e ondulação de metro e meio. A velocidade não ultrapassou os dois nós e seguimos ao longo da costa. Em caso de agravamento do tempo arribávamos a Sines. Mas não aconteceu. Felizmente. Até que chegámos a Lisboa, onde ficou o "Vila Real". Daí a Setúbal foi um pulo. Só quatro horas.

Esta viagem teve início a 27 de outubro e só terminou a 17 de janeiro.
Foi a minha primeira viagem no Montalvo que se iniciou a rebocar dois batelões para o Togo. Nunca se pensou chegar a Setúbal em janeiro de 2014.


[1] Ponto mais alto de Espanha com os seus 3378 metros e as suas neves quase perpétuas.