domingo, 15 de outubro de 2023

O Almirante Sardinha


Estamos em fevereiro de 1972. O Vera Cruz fez  a sua última viagem de transporte de tropas para o Ultramar, ficando no "Mar da Palha" aguardando para ser vendido. A sua tripulação vai sendo colocada em outros navios. Eu fui transferido para o Uíge.
Chego ao novo navio, apresento-me ao 2º maquinista ("Pantera cor-de-rosa") que me dá todas as instruções e me indica o camarote e a seguir diz:
«Amanhã, às oito horas, a bordo.»
No dia seguinte entro ao serviço e noto que o ambiente na casa da máquina não é mau, impressão que confirmo ao almoço na messe dos oficiais de máquinas.
Nas estadias em Lisboa o paioleiro ia às compras e um ajudante de motorista cozinhava, evitando assim termos que levar comida de casa.
O paquete Uíge faz a carreira de Angola, indo até Moçâmedes.
Finalmente chegou o dia da véspera de saída e marcámos os quartos e a escala de serviço. Vou fazer o terceiro quarto, da meia noite às quatro da manhã e meio dia às quatro da tarde. No outro dia saímos com destino a Leixões e chegamos pela manhã do dia seguinte. 
A estadia era agradável, tanto a bordo como nas saídas para o Porto, Matosinhos e Leça. Havia sempre um almoço ou jantar no restaurante "Serpa Pinto" que constava de fanecas ou petingas fritas com arroz de tomate. Nunca faltava um lanche ajantarado no "Costa" que constava de presunto e vários enchidos do norte, acompanhados com broa de Avintes e bom vinho verde para quem gostasse, branco ou tinto. Não faltava o almoço ou o jantar do nosso chefe João Domingos que convidava os seus amigos, alguns muito divertidos que davam bom ambiente a este momento alto gastronómico.
À medida que a viagem decorria e o convívio com o pessoal nos ia aproximando era notória a influência da presença do nosso 3º maquinista prático de nome Virgílio, homem com muito expediente, bom contador de histórias, mas nitidamente protegido do chefe.
Durante um desses almoços com os convidados, a certa altura falou-se nos torneiros mecânicos que faziam maravilhas com os seus tornos um tanto ou quanto toscos, pois eram tornos de correias e rodas de muda. Logo o astucioso Virgílio aproveitou a oportunidade para brilhar.
«Comecei a trabalhar aos doze anos como aprendiz de torneiro. Só aí andei até aos dezoito anos, altura em que passei a oficial de terceira. Aos vinte anos fui tirar o curso de ajudante de motorista e iniciei a minha vida de mar na pesca e depois entrei na Marinha Mercante.»
Era uma boa altura para desmascarar o falacioso protegido do chefe, mas a conversa tomou novo rumo. Um convidado do chefe, ourives de profissão, dono de uma ourivesaria em Matosinhos tomou a palavra. Não me lembro bem do motivo da sua intervenção. Talvez se tenha falado de joias, por exemplo das maravilhas do talhe de diamantes em brilhante e em rosa.
«É preciso ter muito cuidado. O mercado está inundado de joias falsas. Há muita gente a vender gato por lebre. Hoje em dia só se deve comprar uma joia numa ourivesaria de confiança.»
«Como assim?» perguntou alguém.
O convidado do chefe, uma pessoa bem falante, pareceu-me logo ser pessoa competente no seu ofício.
«Hoje em dia o negócio fora das ourivesarias está num momento florescente. Há vendedores porta a porta a venderem joias de terceira classe ao preço das de primeira.»
«Não contando com o acréscimo de lucro que têm ao venderem a prestações.» Acrescentou alguém.
«Tem razão. A propósito, embora por motivos quase à margem, passou-se comigo um caso complicado que acabou por ter a sua graça. Não foi bem um caso de venda de gato por lebre. Posso contá-lo se estiverem de acordo.»
Ninguém se opôs. Aliás, a curiosidade dos presentes foi espicaçada.

Um dia, à tarde, entrou uma jovem cliente na ourivesaria e disse logo ao que vinha. Perante uma explicação tão clara, o ourives começou a mostrar algumas peças que logo foram rejeitadas pela cliente. Ao mesmo tempo notou nela um à vontade invulgar e uma presença de espírito notória. Dir-se-ia que ela estava a insinuar-se.
«Então a menina está a pensar num anel com uma pérola verdadeira. Muito bem, posso mostrar-lhe dois ou três e espero que goste.»
«E não só. Tem que ter também um brilhante generoso.»
«Generoso?»
«Um brilhante que se veja.»
«Ah sim, que se veja. Mas vai sair-lhe muito caro esse anel.»
«Não importa.» Sorriu, dengosa, quase se roçando pelo ourives.
O nosso ourives, ao ver tanta facilidade, começou logo a sonhar. Não podia perder tal cliente. Mas, ao mesmo tempo, estava a constatar outra coisa. Ele era um cinquentão e ela andava entre os vinte e os trinta. E melhor, era uma "joia" que não podia desprezar. Que parte dele em luta podia sair vencedora, a material ou a outra que o impelia para uma aventura que se mostrava agora de mão beijada?
«Bom, vejamos. Perder uma coisa tão boa é um atentado à minha personalidade.» Pensou. «Não quero perder a oportunidade, mas também não posso satisfazer um capricho tão dispendioso.»
«Vou mostrar-lhe outras peças...»
«Sim, por favor.»
E exibiu um sorriso ainda mais envolvente que o fez estremecer dos pés á cabeça. Ou vice-versa. Não importa.
Pouco depois...
«E este anel?»
«A pérola e o diamante têm que ser maiores!»
«Oh!»
«Não me diga que não tem...»
«Tenho, sim. Mas vai ficar muito caro.»
«Não há um desconto?»
«Hum...»
«Prometo ser generosa...»
Confirmação. Ela estava a dizer finalmente ao que vinha. Uma cambalhota daquelas não se podia perder. Ela... era boa como o milho. Mas podia sair-lhe caro.
«Então?, ficou mudo?»
«Nem por isso» replicou. «Mas vai custar-lhe muito dinheiro. Tenho que mandar fazer o anel, principalmente por causa do brilhante.»
«Não importa. Eu sei esperar. Isto desde que mereça a pena...»
O nosso ourives pensa em convidá-la para jantar. É um primeiro passo. Depois, logo se vê. Mas pensa ainda no anel. Tal como ela quer, vai-lhe sair caro. O negócio está florescente, mas nunca se sabe o dia de amanhã.
«Olhe, e se um dia destes jantássemos num restaurante pacato e de qualidade? Ao mesmo tempo combinávamos os detalhes,»
A jovem disse logo que sim.
«Pois, os detalhes...» Disse, roçando-se pelo ourives que ficou ao rubro. «São muito importantes os detalhes, não são?»
«Claro que são. Mas ainda não me disse a sua graça.»
«Sou a Susana.»
«E eu chamo-me António.»
Quanto ao anel, o nosso António encheu-se de suores frios quando soube o valor do orçamento. Uma pipa de massa por umas quecas era um autêntico suicídio. Por outro lado, não queria perder aquela "joia".
O dia do jantar chegou e não podia ter corrido melhor para ambos. De tal forma que acabaram a noite na casa da jovem. Sem mais comentários. A não ser falar de uma pergunta da Susana.
«E o anel?, já está a fazer?»
Ele fica um tanto ou quanto confuso. Mas é só por um momento. A parte económica toma logo conta da situação.
«Como o encomendei fica um tanto ou quanto dispendioso. Temos que reduzir o tamanho do brilhante.»
A jovem ficou amuada.
«Para ti nem um anel mobito mereço?»
«Não é isso. Tu mereces tudo. Vou mandar fazer a jóia e vais ver que ficas encantada.»
«Não me desiludas. Nem penses em pôr o brilhante mais pequeno. E agora vem a mim, querido.»
«Pois vou» pensou. «Mas estou com um problema do caraças!»
Pouco ou nada dormiu nessa noite. Quando chegou à ourivesaria caiu verdadeiramente na realidade e começou a cogitar como ia sair daquela alhada. Só havia uma solução. Sim, o brilhante. Podia pôr um falso. Só um especialista daria conta.
Se bem o pensou, assim o fez. Telefonou para a oficina e deu as suas ordens.
O dia do anel chegou.  
«És um amor. Mereces tudo.»
«Tudo?» pôs-se a sonhar. «Mas...»
«Mas o quê?»
«Nada, nada. E se jantasses comigo hoje?»
Para comemorar aquele momento do anel reservou uma mesa no restaurante "O Castelo". Um restaurante de luxo em Leça. Noites não eram noites. E que noites.
Logo a seguir à sobremesa chegou o grande momento.
«Que belo é este anel! E o brilhante ainda é maior do que imaginava! Obrigada, querido.»
«De nada, amor. Mereces tudo.»
Estranhou não ter resposta.
«Vamos para tua casa?»
«Se não te importas, querido, fica para amanhã. Esta horrível dor de cabeça não me largou todo o dia...»
«Primeiro está a tua saúde.»
«Isto não é nada. Vai passar. Pensando melhor, lembras-te daquela pulseira em ouro maciço que me ficava muito bem no pulso?»
«Lembro-me, sim.»
«Faz-me ainda mais elegante. Como eu gostava que ma oferecesses!»
«Não pode ser, Susana. A pulseira já está apalavrada.»
«É pena.»
«Pois é. Ficava-te tão bem...» 
«Esta dor de cabeça que não me larga.» Lamentou-se, simulando contrariedade.
Arroz queimado. Entrou o bispo, ou assim. E mandar fazer a pulseira com ouro falso, isso nem pensar. Era um desprestígio para a sua pessoa. Bem bastava ter feito o que fez com o brilhante.
«Não tenho saída...»
Pensando com a cabeça já tinha idade para ganhar juízo. Ao mesmo tempo admitiu com uma certa tristeza que "aquilo" acabava pouco depois de ter começado.
Olhou-a de olhos nos olhos e tentou adivinhar o que já estava adivinhado.
«Pensas que ando contigo só por causa dos teus lindos olhos?»
Era isso. Os seus sonhos eram outros. E para ele, quem lhe mandou sonhar com quimeras?
Claro que o amanhã prometido não chegou. A bela Susana, mal se viu com o anel, facilitou toda aquela situação que o António achava estar a complicar-se e desapareceu da circulação, sem sequer dar um beijo de despedida. Nem viu nela um simples olhar romântico.
«Bem feito, António. Deste duas quecas, mas felizmente poupaste no brilhante.» Admitiu. 

«Saiu-lhe caro o "negócio", amigo António.» Disse alguém.
«Pois saiu. Mas podia ter sido pior.»
«E a tal Susana nunca mais apareceu para dar outro golpe do baú?» perguntou um dos presentes. 
«Valeram a pena as quecas?» perguntou outro.
Uma queca vale o que vale. Quanto à bela Susana...

Tudo acabou em bem. Se ela fosse mais esperta talvez levasse mais alguma coisa. Felizmente que desapareceu da circulação. Ela e o anel de brilhante. Não esquecendo a pérola verdadeira.
A vida do ourives voltou à calmaria do costume. Negócios a seguir a negócios, feitos sem sobressaltos. Até que um dia...
Não. Não era um sonho mau. A Susana estava na sua frente a chamar-lhe nomes feios, inimagináveis. A ele, um homem de bem que um dia pecou por ter sonhado algo que nunca passaria de um sonho.
«Velho paneleiro! Velho corrupto. Porco nojento!»
«Mas...»
«Não tens vergonha em vender joias falsas, enganar os clientes...» 
E tenta agredi-lo, continuando o impropério de asneiras. 
Com tanta gritaria começa a juntar-se uma pequena multidão à volta da ourivesaria. Pessoas sempre prontas a saberem as últimas novidades,
Chega a polícia, faz as suas perguntas e conclui rapidamente que a jovem Susana não tem qualquer prova em relação ao que estava a afirmar. Não comprou o anel. Este foi-lhe oferecido.
De imediato é aconselhada a ir-se embora.
«Sou enganada, sou enxovalhada. E vai-te embora. Só neste país!» 
E saiu porta fora.
O ourives dá um suspiro de alívio. Tudo acabou em bem para ele, mas não se livrou da fama de se ter envolvido numa aventura.
«Velho paneleiro. Fizeste uma boa figura! Nem com o "pau de Cabinda" estiveste à altura!» gritou ela, já no exterior da ourivesaria.
«O que aconteceu mais que eu não sei?» perguntou uma mulher.
«Bem gostava de ser mosca...» Disse outra.
Risos. Aplausos. Expressões de dúvida. De tudo um pouco.

«Nunca mais me meti em alhadas.» Disse o ourives para o chefe. «Finalmente estou livre.»
«Até à próxima.» Comentou um dos presentes.
«Isso é o que pensas, António.» Afirmou o chefe. «Cuidado com elas.»

Saímos de Leixões. O rumo é Las Palmas, porto muito agradável onde se comprava tudo, desde relógios, rádios, televisões, eletrodomésticos, bebidas e tabaco. As Canárias são portos livres e os navios aproveitam para abastecerem de combustível nestes portos, devido aos preços convidativos. Hoje tudo acabou. Continua a haver portos livres mas os preços são praticamente os mesmos.

Nas muitas conversas à refeição o 3º Virgílio é quem se destaca mais. Um palrador incorrigível.
Falou-se nas traineiras que andavam á pesca na nossa costa e logo o Virgílio entra em ação:
«Foram aí os meus primeiros embarques. Embarquei na traineira "A Rosina" quando acabei o curso de ajudante e lá andei cerca de seis anos, até tirar o curso de motorista de terceira classe. Quando acabei o curso fui convidado para o arrastão "Pimpinela". Andei aí até ter o tempo de embarque para a carta de motorista de segunda classe. Foram três anos. Fiz o exame e passei, como não podia deixar de ser. Um profissional como eu passa sempre.»
E continuou...
Ao acabar o curso ficou sem emprego, mas logo foi abordado se queria ir para Benguela. Havia uma empresa que estava a pedir motoristas. E lá foi para África, onde passou grande parte da sua vida.
«Andei quinze anos nas traineiras. Nem à metrópole vim. Só trabalho. Muito trabalho. Eu sou assim. Quem me conhece, sabe. Quando falava em vir para Portugal logo os meus chefes diziam: "E quem te rende?". Eu lá me ia conformando e fazia mais um ano com a promessa de ser no próximo.»
Chegava a altura das férias e ir para a metrópole. Falava com os meus chefes.
«Ó homem, é impossível. E então agora que estamos a contar contigo para trabalhares nas oficinas... A não ser que prefiras as férias.»
«Ó chefe, como é que é isso?»
«Muito simples. Ficas a trabalhar nas oficinas com um ordenado muito maior.»
«Como assim?»
«Ficas como encarregado de primeira. Aceitas?»
Pensa e logo diz:
«Aceito, mas para o ano vou à metrópole.»
«Claro, homem. Para o ano gozas as merecidas férias.»
E foram mais quinze anos. Estes, passados nas oficinas a trabalhar no duro. Não era capaz de dizer que não.
«Quando me vim embora para a metrópole era encarregado geral das oficinas.»

A viagem continua e vamos a S. Tomé. Como sempre chegamos de manhã. Aproveito para ir a terra desfrutar de uma praia maravilhosa, com um almoço tardio de camarão da Ribeira e sumo de ananás.
De S. Tomé seguimos para Cabinda e vamos à famosa foz do rio Zaire. Depois, Luanda, Lobito e chegamos a Moçâmedes, o último porto de escala. Como se diz na gíria, começamos a recolher cabo.
O porto de Moçâmedes fica a cerca de um quilómetro do centro da cidade. A estrada é paralela à praia e prolonga-se até à praia principal. Aí ficam o comércio, a restauração e os cinemas, não esquecendo as boas esplanadas com o camarão e o caranguejo (1).
Por aí almoçamos ou jantamos, pois as refeições não são nada caras.
Sou informado durante o quarto que no cinema levavam "O Pai Tirano" e penso logo em ir. Depois do filme ia a uma esplanada e comia alguma coisa.
Acabo o quarto às sete da noite, tomo banho e vou ao cinema. Acaba o filme e sinto a barriga a dar horas. Vou a uma esplanada e mando vir um bife à casa. Um bife enorme com molho de natas, batatas fritas e um ovo a cavalo. A seguir tomo café. Nesse momento começo a ouvir uma cantoria incessante de grilos. Penso logo em fazer uma gracinha inocente das minhas. Já matei a fome e pago. Depois, peço ao empregado se não me arranja um cartucho em papel pardo, igual àqueles em que se punha o café moído que se vendia a peso. 
«Por acaso tenho, senhor.»
Saio da esplanada com um sorriso no rosto. Sei muito bem o que vou fazer. Meto-me ao caminho de regresso para bordo e apanho uns tantos grilos que meto no cartucho. Já a bordo só espero que eles, ao portaló, fiquem calados. E tenho sorte, Não cantam. Talvez por estarem aprisionados no escuro, dentro do cartucho.
Àquela hora o nosso chefe João Domingos dorme que nem um justo com a porta no gancho. Há uma greta de vinte centímetros. 
«É para já!»
Abro o cartucho, bato no fundo e os insetos cantadores não se fazem rogados. Ao verem luz saem do cartucho e caem na alcatifa do camarote do chefe. Logo a seguir deito o cartucho ao mar. Vou para o camarote e durmo até às quatro menos vinte, hora de chamada para entrar de serviço na casa da máquina.
Os serviços em porto eram sossegados. Estava tudo parado. Era só deixar correr o tempo.
Às sete e meia o praticante vem para baixo com novidades. Na messe estão numa conversa animada sobre uma ocorrência durante a noite. Alguém encheu de grilos o camarote do chefe.
«É impossível.» Digo eu. «Não podiam entrar.»
«Os grilos entraram pela greta da porta e cantaram toda a noite. O chefe não conseguiu pregar olho...»
Sou rendido e vou à messe comer uns ovos mexidos.
«O senhor terceiro já sabe dos grilos?»
«Quais grilos?» perguntei. 
«Durante a noite puseram no camarote do chefe uma série de grilos.»
«Coitado do chefe» lamentei. «Deve estar de rastos...»
«Bons cantores. Nunca se cansaram de cantar.» Queixou-se o chefe João Domingos, do seu lugar.
«Ah!»
«Bem, graça até teve. Mas se apanho o malandro do brincalhão!»
«O chefe dorme com a porta no gancho e há tanto grilo lá fora que uns tantos entraram!»
«Ó Fernandes, você é o segundo embarque que faz. Não imagina a malandragem que há para aí. Estão sempre prontos para rebaixar o próximo. Se fosse um ou dois grilos ainda acreditava que tinham entrado só por eles. Mas era um batalhão de cantores, Fernandes!» 
A história dos grilos não saiu de cena. Saímos de Moçâmedes e quando estávamos a chegar a Luanda ainda havia grilos-cantores à solta. E se eles cantavam maravilhosamente, para grande desespero do chefe Domingos!

Voltando ao Virgílio...
Pediu para trocar um quarto, pois precisava de ir visitar os amigos.
«Por onde ando faço amigos.»
«O senhor Virgílio quando foi para a metrópole continuou a trabalhar? Não se reformou?»
«Pensei nisso, mas ainda era novo para me reformar. Além disso, fiz poucos descontos e ficava com uma reforma de miséria. Ao mesmo tempo apareceu logo um lugar no navio "Horta" nos "Carregadores Açoreanos" a fazer a carreira dos Açores para os Estados Unidos. Nestas viagens íamos a Nova Yorque...»
E começou logo a descrever a entrada nesse porto, não se esquecendo de falar na "Estátua da Liberdade", situada à direita de quem entrava.
«Ainda andou durante bastante tempo nos "Carregadores Açoreanos"?»
«Sim. Entre o "Horta", o Ribeira Grande" e o "Monte Brasil" ainda foram alguns dez anos. Daí vim para a Colonial e por cá fiquei. Primeiro, o "Luanda". Depois, "Benguela", "Ganda", "Lobito". Finalmente o "Uíge". E cá estou há quatro anos.»
«Sem ir de férias?»
«Sem ir de férias.»
«Então há quantos anos anda na Colonial?»
«Bem, quatro daqui e com os outros embarques já lá vão uns oito anos. Mas agora me lembro. Desculpem, esta cabeça já não é a mesma. Depois dos "Carregadores fui trabalhar numa oficina de reparação de barcos de pesca. Isto em Peniche.»
«Senhor Virgílio, ainda esteve alguns meses na oficina?»
«Meses? Claro que não. Aguentei três anos.»
«É obra!»
«Pois é.»
«O meu amigo, se assim lhe posso chamar...»
«À vontade.»
«Quantos anos tem?»
«Bom, já se passaram cinquenta e seis primaveras. Havia de me ter reformado no ano passado, mas tem sido uma vida de trabalho, como já lhe contei, a descontar pouco. Chega-se ao fim e fica-se com uma reforma de miséria. Agora na Marinha estou a fazer os descontos corretos. Já é tarde mas talvez ainda valha a pena.»
«A verdade é esta. Sempre pensei que o senhor tivesse mais idade. Apesar de não parecer o senhor está ótimo. Com todos esses anos de trabalho em tantas empresas estava convencido que o meu amigo andava a rondar os oitenta anos.»
«Ó Fernandes, eu ao falar onde trabalhei digo os anos aproximadamente, compreende? Já vi que os meus amigos andam sempre prontos para a brincadeira. Pegaram nessa da idade para se meterem comigo.»
Diz o 3º maquinista:
«O senhor com um currículo desses é já promovido com distinção a Almirante Sardinha!»
Todo o pessoal presente ri, menos o nosso Almirante". Irritado, abandona a messe, dizendo que a brincadeira tinha ido longe de mais. 
Foi um sinal claro que ia com "os azeites" ao bater com a porta com estrondo.

(1) Os caranguejos de Moçâmedes são sapateiras enormes com patas bem recheadas. O seu interior é delicioso. 
   
     

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