segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Zé Galo

 


C

onheci o Zé Galo há cerca de vinte anos. Nesse tempo ele não passava de um franganote com aspirações a uma hierarquia superior que ainda vinha longe.
«Tens que comer muito milho...»
E tinha. Apetite não lhe faltava. Quanto aos atributos, esses prometiam êxito já a curto prazo. Naquilo que todos nós sabemos, claro. Mas até lá, os seus atos estariam limitados pela redução à insignificante condição de franganote e esperar pelo que se chamava, muito bem chamado, dar tempo ao tempo.
Está-se mesmo a ver que vou contar uma história baseado em factos reais, como de costume pinceladas, aqui e acolá, com tinta fantástica. Mas antes de entrar propriamente na história tenho que falar um pouco desta personagem algo bizarra que foi e é (penso) o Zé Galo. Reporto-me ao tempo em que decorre a história. Alto, magro, baixo, gordo, olhos azuis, castanhos, lábios finos de cínico e grossos de não sei o quê. Bom, não tenho jeito para isto. Fiquemos por baixo e gordo e da cor dos olhos não me lembro. Músculos flácidos, de quem se divorciou desde tenra idade do exercício físico. Mas a palavra, esse atributo era um dom que não desperdiçava. E juntando-se a fome com a vontade de comer, é interessante falar do seu coração grande onde se albergava o amor que dedicava às várias candidatas com que se cruzava nas suas deambulações amorosas. Ninguém dizia que tinha quinze anos. Talvez quase a fazer dezasseis. Quanto aos sentimentos propriamente ditos, talvez, num ou noutro caso, pensasse em dar a camisa, ou até o casaco, a um amigo necessitado. Se os seus pensamentos levava-os o vento, não vem para o caso. Não se enquadram na história que ainda não comecei a contar. Nem há tempo. Senão, daqui a pouco esqueço-me da história. Quanto ao casaco, é falso. Desde sempre o conheci vestido com camisolas a atirar para o escuro. 
Passemos à personalidade vincadamente de pessoa independente, tão independente que, várias vezes, perdeu-se misturado com a população, o chamado magote. Isto em feiras e romarias. E nunca o viram a chorar no ato solene da entrega das autoridades aos pais, primeiro preocupados e depois já dentro da rotina de tais acontecimentos.
Além de independente, era extrovertido. Uma qualidade que sabia explorar até ao tutano. Não é exagero, mas a sua envolvência linguística era tão significativa que até conseguia convencer os adversários a ficarem do seu lado, transformando-se em amigos do peito, pelo menos no momento em que achava que era importante para os seus superiores desígnios. Vendedor de "banha da cobra". Delegado de propaganda médica. Talvez advogado ou político. Estes dois últimos casos não seriam de ter em conta visto que lhe dava muito trabalho e trabalho era coisa de segundo plano.
Mais atributos? A coragem. 
«Chega-te para lá. Nem pensar nisso é bom.»
Chorem agora, adeptos da coragem. De certeza que ele nunca esteve, não está, nem estará, do lado dos corajosos. Para ele, ser corajoso era desperdiçar o lado bom da vida. Sim. Ele sempre soube viver a vida. Qualquer que fosse a guerra em que, por mero acaso se envolvesse, no passado que não viveu ou no presente que já passou, preferia, por exemplo, borrar as cuecas ao troar dos canhões, à ordem das baionetas caladas, a tudo isso que fez heróis e cobardes. Muito menos, tornar-se um mártir corajoso só para levar consigo vidas inocentes que nada tinham a ver com essa guerra dos mártires que matam e vão para o paraíso onde os esperam as não sei quantas virgens que poderão usar e descartar na eternidade. Nesse aspeto das virgens, estaria bem à vontade a conquistá-las com as armas da paixão da tal nuvem passageira, porque o amor, esse era coisa complicada que nunca iria entender. É o que penso e tenho a faca na mão porque sou eu quem dá as pinceladas nas personagens e nas histórias em que estão envolvidas. O Zé Galo era assim e nenhum outro galo cantaria no poleiro ou em cima de um muro.
Falando ainda de amor, o Zé amava a vida, o modo como vivia e também as envolvências que o acaso ditava. Ponto final.
Amigos. Para ele, conhecidos de ontem e de hoje estavam metidos na mesma lista. Sendo assim, tinha muitos amigos. Mas amigos às pazadas que contavam apenas como um número, porque os amigos do coração são, normalmente, poucos e bons. Mas isso é outra história que não cabe nesta, que está quase a acontecer e que me contaram e que teve como protagonista central o nosso Zé Galo. Zé, um diminutivo de José. Quanto a Galo, nada tem a ver com apelido. E, de momento fico-me por aqui.  
Tinha arte para o negócio, qualquer que ele fosse. Berlindes de pirolitos protegidos por abafadores poderosos. Bonecos da coleção ou banda desenhada a que faltavam páginas. Vendas fantásticas de sapatilhas estafadas porque eram de marca. Relógios sem motor. Enfim, vendas.
O ser extrovertido era um dom que sabia aproveitar até ao último sumo espremido. Daí, ser dotado para o negócio. De tal forma, que no futuro poderia vir a ser negociante de automóveis ou gerente de uma agência imobiliária. Quanto a ser delegado de propaganda médica, era coisa posta de parte visto que tinha o síndroma da bata branca.
E a propósito de negócio, um dia o nosso amigo Zé Galo levantou-se da cama iluminado por uma ideia genial, tão brilhante que se a aplicasse com entusiasmo e dedicação, daria certamente um lucro a rondar os cem por cento. Já disse que se levantou com a tal ideia. Pronto. Está dito.
«Trigo limpo, ou não me chame José.»
Seguiu-se a ida obrigatória à casa de banho e etc e tal.
«Lavaste bem essa cara, Zezinho?»
«Sim, mãe.»
«Queres sopas de pão com leite e Toddy?»
«Ainda há farinha Amparo?»
O amparo dos sãos e dos convalescentes.
«Não, filho, acabou ontem.»
Devorou o pequeno almoço e saiu. Minto. Antes disso, desceu as escadas que davam acesso ao quintal, este dividido em seis talhões, tantos quantos os inquilinos do prédio. Ao fundo do seu talhão havia um galinheiro. Aí permaneceu em meditação quase transcendental durante alguns minutos.
Que tinha a ver a ideia com os galináceos e os coelhos?
Não. A faisoa era ideia posta de parte. O pai tratava-lhe da saúde. Não, obrigado.



Subiu as escadas com um sorriso no rosto e só então saiu para a rua, levando a direção da papelaria do Mané Tó, onde comprou um pequeno livro de rifas.
«Só isso?»
«Sim, chega.»
E sorriu.
Ideia brilhante, a das rifas.
Mas para quê?
Agora era preciso usar o dom que Deus lhe dera. A arte de convencer os conhecidos e os desconhecidos. Cem entre todos que conseguisse catequisar. Não podiam ser mais porque o livro tinha cem rifas.
«Compre uma rifa, senhor Anacleto! Só custa cinco tostões...»
E seguiu-se a dúvida posta pelo senhor Anacleto.
«Para que é, rapaz?»
«Vou rifar um galo com mais de três quilos. Tem sido só alimentado a sêmeas, couves e milho. Está bom de ver. Não há galinha que lhe escape e o bicho canta que é um regalo.»
«Se está gordo, então é um galo capão.»
«Um galo quê?»
«Capão. Tiraram-lhe os tomates, entendes?»
«Ah sim. Eu próprio... Bem» pensou. «Mas este é especial. Salta em cima das galinhas.»
«Bom. Dá cá três rifas. E quando é o sorteio?»
«Quinta-feira. Tome atenção aos dois últimos números da lotaria nacional. Eu ando aqui pelo largo.»
E foi fácil. Ou melhor: relativamente fácil. Teve que usar engenho e arte para convencer os mais desconfiados.
Era segunda-feira. No próprio dia venceu as cem rifas. E tudo nos conformes. Nome dos compradores no "canhoto" do talão. Pronto. Uma receita de cinquenta escudos e um lucro de quarenta e nove pois as rifas custaram dez tostões. Portanto, êxito absoluto naquele negócio que resultou de uma ideia luminosa. Uma daquelas que o tornariam célebre na vila.
No dia seguinte, terça-feira, já tinha esquecido a venda das rifas e os habilitados ao magnífico galo alimentado a sêmeas, couves e milho e que dominava, de que maneira!, o seu harém situado na capoeira.
Chegou o grande dia. De facto o Zé não faltou ao prometido. Da parte da tarde estava no largo do convento. Ou melhor: atravessava o largo perpendicularmente, com destino à mata. O dia estava primaveril. Não havia vento e convidava a uma passeata pelo largo. Portanto, nesse dia havia muita gente a gozar dos benefícios dessa tarde maravilhosa.
Mas o Zé não ia ficar no largo. O seu destino era a mata onde tinha combinado um encontro com a namorada, uma última aquisição de recurso dado que a outra, boazona como o milho que a mãe dava de comer ao galo, tinha-lhe passado a perna. Enfim, do mal o menos.
Consultou o relógio. Já ia atrasado.
«Ó Zé!»
Virou-se, sobressaltado.
«Mau mau» pensou. «Temos merda no beco...»
«Ah... é o senhor Pires. Então o que se passa?»
«Olha, rapaz, tenho o 37.»
«O quê? É verdade...» Lembrou-se.
Desenrasca-te agora, Zé Galo. A tua mãe não consentiu que o galo servisse de prémio, dado que desempenhava um papel insubstituível no seu reino que era a capoeira. E mais nada.  Agora é contigo...
«Nem pensar nisso é bom, Zezinho. Trata de ir à praça comprar um galo para as experiências da escola. Era o que faltava!, o meu Tony a servir de cobaia...»
«Mas...»
«Nem mas nem meio mas!»
E pronto. Caso arrumado na altura. Só que nunca mais se lembrou. Foi a ida ao cinema com a Dolores. O lanche no café Batalha. Outra lancharada com a malta. Tudo pago por ele à custa dos patos das rifas. Um forrobodó do caraças.
«Então onde está o galo?»
O galo. Pois era. O galo.
«O galo... O galo está ali. Pode ir lá busca-lo...»
E apontou de imediato para um dos cataventos do convento.
«Ah, meu sacana que te esgano!»
Foge, Zé Galo! Tiveste uma ideia genial, mas nem todas as ideias geniais são bem recebidas, sabes? Se não sabes, então ficas a saber.
E fugiu a bom fugir para os braços da sua amada Brunilde, mais uma nuvem passageira que o acolheu.
Dá cá mais cinco, Zé Galo. Tiveste uma ideia genial!

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