quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O vulcão em La Palma

 


E

stava casado há poucos dias. Tínhamos vindo de Palma de Maiorca, onde passámos a lua de mel no hotel Cristina. 
O Vera Cruz estava a chegar da sua viagem de Luanda com tropas. 
Já sabia que ia embarcar nele, para fazer a primeira viagem. Tinha que começar a ganhar o meu primeiro ordenado.
Os dias passavam. Até que o chefe Lopes telefonou e informou:
«O Vera Cruz chega amanhã e seria bom estar aqui logo pela manhã para ganhar o dia e tratarmos de todas as formalidades.»
Lá fui para a Rocha do Conde de Óbidos até à Colonial, onde falei com o chefe Lopes. Tratámos da papelada e recebi ordem de marcha para bordo.
Chego ao navio e vou ter com o piloto, a quem entrego os papéis.
«Amanhã, às oito horas a bordo! Por hoje é tudo.» Disse o piloto.
Saí de bordo, apanhei o elétrico para a Praça da Figueira. A seguir fui beber café à Suiça e segui para a estação do Rossio, onde apanhei o comboio para a Amadora. Aí chegado, fui a casa dos meus pais dar um beijo à minha avó Alice e à minha mãe. Demorei pouco tempo e segui para o apartamento na Reboleira, onde a Luísa me esperava. Contei-lhe todas as peripécias do dia.
«Já estou a ganhar! Tenho que estar amanhã, às oito horas, a bordo.»

Ainda não sei o dia da saída. Vamos a S. Tomé e à ilha do Príncipe. A viagem dura vinte e três dias. É rápida, mas sempre é quase um mês fora de casa.
Chegou a hora do jantar, comemos e arrumámos a cozinha. A seguir vimos a televisão até o "João Pestana" chegar. E chegou bem depressa. Assim como a hora de levantar e de seguir para bordo.
Apanhei o autocarro para o Museu dos Coches (Belém) e daí o elétrico para a Rocha. Viagem rápida àquela hora da manhã. Ainda não eram oito horas.
Chego a bordo e vou apresentar-me ao primeiro oficial maquinista. Faz as suas perguntas e diz, logo a seguir:
«Vou levá-lo ao seu camarote. Vista o fato de macaco e vá ter à casa das máquinas com o segundo oficial, o senhor João Lima.»
Assim faço. Entro no elevador que me conduz às profundezas do navio. Encontro o Lima, apresentamo-nos e passo o dia com ele.
Às quatro horas vimos para cima e falamos com o primeiro oficial Albertino.
«Tudo bem. Podem ir tomar banho. E amanhã, às oito, a bordo.»
Venho para casa e conto a nova aventura à Luísa. Pergunta-me se estou a gostar. Digo que sim. O ambiente é bom e calmo.
No outro dia de manhã estou de novo a bordo e sigo para a máquina com o Lima. Há muito para fazer. O navio vai sair ao outro dia, a seguir ao almoço.
As caldeiras começam a levar os primeiros calores até terem pressão de vapor. Assim se vai passando o dia. Até que chegam as quatro horas e venho para cima com o Lima. O próximo passo é entrar no escritório da máquina onde está o 1º Albertino. Ao ver-nos, levanta os olhos da secretária.
«Está tudo bem?»
O Lima responde:
«Tudo bem da nossa parte. O senhor segundo Cipriano está na casa das caldeiras e o senhor segundo Marques Mendes está na casa da máquina.»
«Bom, vão tomar banho. Amanhã a bordo, às oito. Já me esquecia, o Soares fica de serviço à chegada a Lisboa com o 3º Victor Campos Alves. Este rapaz é prático, não é de curso, mas é muito competente. Tive ocasião de confirmar os seus conhecimentos ao longo do embarque.»
Vou para casa o mais rápido possível. Jantamos e vamos a casa dos meus pais para me despedir de todos.
Volto a casa com a Luísa. O ambiente é triste, vai haver uma separação de quase um mês.
No dia seguinte sigo para Belém e daí para a Rocha, onde está o navio. Vou para bordo e começo no meu trabalho de quartos. Estou a fazer o terceiro quarto, da meia noite às quatro da manhã e do meio dia às quatro da tarde. O chefe de quarto é o segundo João Lima. Eu sou o terceiro da casa da máquina e o Victor é o terceiro da casa das caldeiras.
O navio saiu no nosso quarto. Em manobras havia sempre o dobrar de quartos.
Às quatro da tarde ainda estamos em manobras e temos que ficar até dar o pronto à máquina, ou seja, o fim das manobras. Há que acertar tudo na casa da máquina. Só depois é que vamos para cima para o nosso merecido momento do descanso. Já não era sem tempo.
Subo no elevador e vou direito ao camarote. Mal entro, fico sentado no sofá. Estou estafado, mais por causa do barulho do que do trabalho. Pouco depois tomo banho (ó banho abençoado!) e logo a seguir deito-me na cama. Fico aí até à hora do jantar, que é às sete horas.
Em conversa na messe fico a saber que entrou um vulcão em erupção na ilha de La Palma. Vamos poder assistir a um espetáculo fantástico. Fico entusiasmado.
Pergunto a um colega quando passamos.
«Olha, depois de amanhã. À noite.»
Assim foi. Passámos ao largo, com a erupção à vista. Foi uma visão espetacular. Para nunca mais esquecer.
Esta erupção durou mais de dois meses, visto termos passado ao largo da ilha por três vezes.

Continuámos a viagem para sul. As temperaturas começaram a subir e chegaram a atingir os 57º C. na plataforma de manobras. Era o "inferno de Dante", como o 2º maquinista Cipriano chamava.
Estávamos no Equador [1], a um dia de viagem até S. Tomé e Príncipe.
Nesse dia, à saída do "quarto", fui a tribunal marcial. "Desafiei o deus Neptuno e tenho que ser condenado por um ato tão impensado".
Reunem-se os membros do tribunal. O juiz é o 2º Marques Mendes, alcunhado por "pica a burra". O advogado de acusação é o 2 º Lima e o de defesa é o 3º Jacinto. Quanto ao julgamento, esse decorre na piscina da 1ª classe. O ambiente é bom. Como já tinha levado uma série de banhadas de água fria durante o quarto, sou só condenado a mais uma banhada no quarto da noite. Sou atirado três vezes para a piscina, onde tenho que ir buscar ao fundo uma argola em ferro. Caso contrário, por cada falhanço pagava uma rodada de cerveja o todos os oficiais de máquinas. Como fui ao fundo nas calmas buscar a argola de ferro não fui condenado a pagar as rodadas de cerveja, mas o deus Neptuno condenou-me a pagar uma caixa de doze garrafas de "Mateus Rosé".
O jantar foi animado com o vinho a escorrer pela goela abaixo de cada um. E no fim houve uma saúde em minha honra. Depois, entregaram-me o diploma de passagem do Equador.

De manhã cedo chegámos ao Príncipe, onde ficámos fundeados. Pouco depois fui a terra de lancha. Quando cheguei, pensei que estava no Paraíso. Encantaram-me especialmente aquelas praias de areia branca e os coqueiros altaneiros, à beira-mar.
Passei a manhã na praia (digo, Paraíso). A temperatura da água rondava os vinte e oito graus Celsius e não resisti à tentação de tomar vários banhos. Por volta das duas da tarde fui para uma esplanada na marginal e mandei vir uns camarões da ribeira que acompanhei com cerveja bem fresca. Inesquecível a comida e a bebida com toda aquela paisagem envolvente!
Chegou a hora de deixar o Paraíso no seu sítio e de apanhar a lancha para bordo. Tomei banho e só então reparei que apanhei um senhor escaldão. Até parecia um pimento maduro.
À noite fomos para S. Tomé, onde também fundeámos.
De manhã apanhei a lancha e fui para terra. As praias também eram paradisíacas, mas não tinham a beleza das da ilha do Príncipe. Bebi mais umas cervejas, acompanhadas por uns pratos de camarão da Ribeira.
Voltei para bordo.
Dois dias depois cheguei a Luanda. As chegadas eram sempre de manhã por causa do desembarque de tropas.
Saí de quarto às quatro da tarde e fui logo para terra. Andei a passear por Luanda. Passei pelo "Polo Norte", restaurante onde serviam uns gelados deliciosos. Acabei por ir jantar aos "Pezinhos na Água", restaurante na ilha, com uma esplanada na praia, onde a água da baía de Luanda chegava. Daí o seu nome.
Comi umas garoupinhas grelhadas, que tinham sido pescadas na barra do Quanza. Estas garoupinhas eram famosas pelo sabor e pela sua consistência.
Saímos de Luanda ao quarto dia com destino a Lisboa.
Passámos pelo vulcão que continuava com erupções fortíssimas, que tinham grande beleza vistas ao longe.
Chegados a Lisboa todo o mundo foi para casa, à exceção do pessoal de serviço. É claro. Eu fiquei. Mas a Luísa foi ter comigo. Ao outro dia fui rendido às oito horas.
Saímos de bordo e apanhámos um táxi para o Rossio. Tomámos o pequeno almoço na Suíça. Daí, seguimos para o nosso apartamento.
A estadia foi curta. Depressa se passou com uma tarde em Lisboa a fazer compras. Comemos uma açorda de gambas no "Telheiro", situado na Latino Coelho e fomos a um espetáculo.
Regressámos nos transportes públicos à Reboleira, onde nos esperava o nosso apartamento.
Como os tempos mudaram...

Se há coincidência ou não, não sei. O certo é que, cinquenta anos depois, fiz a minha última viagem no rebocador "Montalvo", indo a Dakar levar um batelão.
Saímos de Setúbal à tarde. À noite, estou na ponte a ouvir as notícias e oiço dizer que o vulcão da ilha La Palma entrou em erupção com irradiações fortíssimas para a atmosfera de fumos e cinzas.
Estamos a passar em frente ao vulcão e observo o mesmo espetáculo semelhante ao ocorrido há cinquenta anos.
Coincidência ou não, esta foi a minha última viagem!  

[1] Uma forma de dizer porque o Equador é um círculo máximo imaginário que divide a Terra em dois hemisférios, norte e sul.

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